terça-feira, 30 de setembro de 2014

Michael Löwy: A primeira Internacional, 150 anos depois


    

A experiência da Primeira Internacional não pode ser repetida, obviamente, mas ela é de extrema relevância para todos nós, no começo do século XXI


Por Michael Löwy.   Foto: Wikimedia Commons


Marxistas e anarquistas (esses termos não eram comuns à época) fundaram a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional, há exatos 150 anos. Os desacordos entre os partidários de Marx e de Bakunin levaram a uma amarga divisão em 1872. Logo depois, a AIT “marxista” dissolveu-se, de fato, enquanto os bakuninistas criaram, em uma conferência em Saint-Imier, Suíça (1872), sua própria AIT, que de maneira precária existe ainda hoje.

Para Marx, as razões para a cisão foram as tendências pan-eslávicas e o sectarismo antidemocrático e conspiratório de Bakunin. De acordo com Bakunin, a divisão resultou da orientação pan-germânica de Marx, assim como de seu comportamento intolerante e autoritário. Uma importante coletânea de textos históricos inéditos, organizada por Marcelo Musto e a ser em breve publicada pela Boitempo, expõe com clareza essas mazelas1.O que se perde nesta abordagem, que predomina amplamente na literatura da Primeira Internacional, é o simples e importante fato de que essa era uma Associação onde, a despeito dos desacordos e conflitos, partidários de Proudhon, Marx, Bakunin, Blanqui e outros, puderam trabalhar juntos por muitos anos, eventualmente adotando resoluções comuns, e lutando lado a lado no maior evento revolucionário do século XIX, a Comuna de Paris.

Apesar de sua curta duração – apenas alguns meses – a Comuna de Paris de 1871 foi o primeiro exemplo histórico do poder revolucionário dos trabalhadores, democraticamente organizado – delegados eleitos pelo sufrágio universal – e suprimindo o aparato burocrático do Estado burguês. Foi também uma autêntica experiência pluralista, associando na mesma luta “marxistas”, proudhonianos de esquerda, jacobinos, blanquistas e republicanos sociais. Claro, as respectivas análises de Marx e de Bakunin sobre este evento revolucionário eram absolutamente opostas.

No entanto, as – inegáveis – divergências entre Marx e Bakunin, marxistas e anarquistas, não são tão simples e óbvias como comumente se crê.

Curiosamente, Marx regozijou-se do fato de que durante os eventos da Comuna os proudhonianos esqueceram a hostilidade de seu mentor para com a ação política revolucionária, enquanto certos anarquistas estavam satisfeitos com o esquecimento do centralismo e a adoção do federalismo nos escritos de Marx sobre a Comuna. É verdade que A Guerra Civil na França 1871, assim como a declaração sobre a Comuna que Marx redigiu em nome da Primeira Internacional e diversos rascunhos e materiais preparatórios deste documento, testemunham o feroz antiestatismo de Marx. Definindo a Comuna como uma forma política, finalmente encontrada, para a emancipação dos trabalhadores, ele insistiu na ruptura com o Estado, este corpo artificial, esta jiboia-constritora, como ele o chamava, este pesadelo sufocante, este enorme parasita2.

Entretanto, depois da Comuna, intensificou-se o conflito entre as duas tendências revolucionárias do socialismo internacional, levando à exclusão de Bakunin e Guillaume (seu seguidor suíço), no Congresso de Haia da AIT (1872), e a transferência desta para a sede em Nova York – de fato, sua dissolução. Depois desta cisão, os anarquistas, como mencionado acima, fundaram sua própria Associação Internacional dos Trabalhadores.

A despeito da cisão, Marx e Engels não ignoraram os escritos de Bakunin e, em alguns casos, tiveram de concordar com seus argumentos antiestatais. Um exemplo marcante é a Crítica do Programa de Gotha, de 1875.

Ao invés de contabilizar os equívocos e tropeços de cada lado do conflito – não faltam acusações mútuas – há de se enfatizar o aspecto positivo da Primeira Internacional: um diverso, múltiplo e democrático movimento internacionalista, onde participantes com abordagens políticas distintas foram capazes não apenas de coexistir, mas de cooperar no pensamento e na ação durante alguns anos, atuando como a vanguarda da primeira revolução proletária moderna. Foi uma internacional na qual marxistas e Libertaires, como indivíduos ou como organizações políticas (tais como o marxista Partido Social Democrata Alemão) puderam – a despeito dos conflitos – trabalhar juntos e se engajar em ações comuns.

As Internacionais posteriores – a Segunda, a Terceira e a Quarta – não tiveram muito espaço para os anarquistas. Entretanto, em diversos momentos importantes da história do século XX, anarquistas e socialistas ou comunistas foram capazes de unir forças. 1) Nos primeiros anos da Revolução de Outubro (1917-1921), muitos anarquistas, tais como Emma Goldmann e Alexander Berkman, deram apoio (crítico) aos líderes bolcheviques. 2) Durante a Revolução Espanhola, os anarquistas da CNT-FAI (Confederación Nacional del Trabajo – Federación Anarquista Ibérica) e os simpatizantes de Trotsky do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) lutaram lado a lado contra o fascismo, e se opuseram à orientação não-revolucionária dos stalinistas e dos sociais democratas de direita. 3) No Maio de 1968, uma das primeiras iniciativas revolucionárias foi a fundação do Movimento 22 de Março, sob a liderança do anarquista Daniel Cohn-Bendit e o trotskista Daniel Bensaïd. Houve também diversas tentativas intelectuais significativas de juntar as duas tradições revolucionárias, entre escritores como William Morris ou Victor Serge, poetas como André Breton (o fundador do movimento Surrealista), filósofos como Walter Benjamin, e historiadores como Daniel Guérin.

A experiência da Primeira Internacional não pode ser repetida, obviamente, mas ela é de extrema relevância para todos nós, no começo do século XXI, quando novamente marxistas e anarquistas reúnem forças e agem conjuntamente, como indivíduos, como redes ou como organizações políticas (cuja existência não é um obstáculo à cooperação), no movimento Justiça Global, nas lutas ecológicas radicais, em apoio aos Zapatistas em Chiapas, nas mobilizações de massa dos Indignados (Espanha, Grécia), ou no Occupy em Wall Street e outros cantos do mundo.


Michael Löwy é sociólogo, diretor emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), e visita o Brasil nos meses de outubro e novembro para lançar seu novo livro A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano (Boitempo). Uma versão ampliada deste artigo será publicada na edição 23 da revista Margem Esquerda (Boitempo), que chega às livrarias no final de outubro.

1 Marcello Musto, Trabalhadores, uni-vos!: Antologia política da I Internacional (São Paulo, Boitempo, 2014), no prelo.



quinta-feira, 25 de setembro de 2014

‘A verdadeira tarefa da esquerda vem depois das eleições: construir a alternativa ao bloco dominante’



Por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação



No encerramento das entrevistas com os candidatos presidenciais da esquerda anticapitalista, o Correio da Cidadania conversou com Mauro Iasi, do PCB. Na conversa, ele destaca o processo de reconstrução da legenda mais antiga de todo o país e também o que considera a principal necessidade das forças contra-hegemônicas, incapazes de constituir a chamada Frente de Esquerda em 2014. Em sua visão, tal desafio continua posto, inclusive no sentido de aglutinar forças extrapartidárias.

“Nós demonstramos que é possível participar do debate eleitoral sem rebaixar o programa, sem fantasiar ou disfarçar nossas verdadeiras intenções. A nossa briga, já de bastante tempo, é contra a mercantilização da vida, pauta a luta pela educação, saúde, cultura, acesso a bens e serviços essenciais, o que conseguimos ver, na prática, na campanha”, disse Iasi.

Sobre o contexto geral do pleito, Iasi lamenta os “12 anos de processo de despolitização”, representados pela opção do PT em levar à frente um projeto socioeconômico conciliador que ignorou os interesses de classe e em momento algum chamou suas bases à luta. E para os tempos em que se exigem mais instrumentos de participação política, o candidato comunista critica um sistema eleitoral que só oferece chances de vitória àqueles previamente enquadrados pelo grande capital.

“É um debate muito empobrecido. Quem faz contraponto é a esquerda, que sofre com o quadro de imposição de uma política absolutamente centrada no pragmatismo e desvinculada das questões de interesses de classe, o que ajudaria a população a entender a natureza dos projetos e optar por aquele que de fato representa seus interesses”.

Correio da Cidadania: Como está vendo o atual momento político com as eleições que se aproximam?

Mauro Iasi: Estamos numa conjuntura eleitoral que expressa o resultado de um longo período de despolitização no Brasil. Infelizmente, estamos num quadro onde as eleições acabam se concentrando em pessoas e iniciativas individuais. Pouco se debate a respeito de verdadeiros projetos e, mais ainda, dos interesses de classe que estão por trás de uma e outra alternativa. Esse processo de despolitização foi produzido por 12 anos de um governo de pacto social, que apostou na baixa diferenciação das propostas, distante de uma verdadeira concepção de governo com políticas sociais, com propostas de implementação de um modelo de desenvolvimento se que diferenciasse claramente das alternativas da burguesia e do grande capital –e em favor dos interesses da classe trabalhadora.

Em nenhum momento, o governo mobilizou sua base social em defesa de propostas porventura obstaculizadas por uma suposta maioria conservadora no Congresso. Pelo contrário, o governo propiciou o debate e a implementação de medidas como a reforma da previdência, a paralisação da reforma agrária, a flexibilização dos direitos trabalhistas e a prioridade ao agronegócio (com o que se fez do Código Florestal). Tudo isso sem que a população fosse minimamente convocada a defender seus interesses, através da organização autônoma e da didática diferenciação de concepções sobre a natureza dos projetos em disputa.

Conjuntura que agora culmina num quadro eleitoral no qual a população não tem elementos para discernir as propostas e está prestes a embarcar novamente numa alternativa de mudança que muda muito pouco. Seja no campo da Dilma ou da Marina.

Mais uma vez, Dilma e o PT tentam o discurso de que o necessário foi feito, mas agora viria a verdadeira mudança. Resguardamo-nos o direito de duvidar, pois foi o mesmo discurso do segundo mandato de Lula e da passagem para a Dilma. Agora, aparece mais uma vez, mas na verdade o governo e a campanha de Dilma demonstram claramente uma opção de continuidade pelo caminho escolhido até agora. A Marina, por sua vez, não apresenta, de fato, alternativa de mudança. Ela capitaliza os anseios de se encerrar o ciclo do PT, com concepções que variam das mais conservadoras até aquelas que não se identificaram com tal governo, mas não traz nenhuma alteração de fundo no debate político brasileiro. Ela mesma é a reedição de medidas muito conservadoras no campo econômico, reafirma o patamar colocado por FHC e, do ponto de vista de políticas sociais, não indica nenhum elemento inovador. Pelo contrário, nesse campo também representa o pensamento conservador. Por fim, Aécio é a própria expressão da política conservadora e privatista.

Portanto, é um debate muito empobrecido. Quem faz contraponto é a esquerda, a qual, até por esse contexto geral de despolitização, sofre muito com a falta de espaço. Sofre também, fundamentalmente, com o quadro de imposição de uma política absolutamente centrada no pragmatismo e desvinculada das questões de interesses de classe, o que ajudaria a população a entender a natureza dos projetos e optar por aquele que de fato representa seus interesses.

Correio da Cidadania: Quais são, a seu ver, os principais problemas e questões do Brasil de hoje e, em seus aspectos mais fundamentais, como o PCB se encaixa nesse cenário e com qual programa o PCB está se apresentando nessas eleições de 2014?

Mauro Iasi: O PCB formulou sua proposta de participação nas eleições a partir do nosso Congresso e da leitura que temos do Brasil e seus desafios. Estruturamos o programa em cinco eixos.

O primeiro afirma que o Brasil completou um ciclo capitalista e exatamente por isso produz uma série de problemas no acesso da população a direitos essenciais, como o direito à vida, moradia, alimentação, educação, saúde, transporte. Ou seja, afirmamos uma política de desmercantilização da vida, colocando-nos claramente a favor da ideia de que esses são bens e serviços essenciais à vida humana e, portanto, devem ser oferecidos pelo Estado de maneira pública, universal e gratuita.

O segundo eixo diz respeito às condições econômicas para realizar o primeiro. É possível garantir todos os direitos, mas é preciso mudar profundamente a forma econômica pela qual o país está sendo conduzido nos últimos 20 anos. Nesse eixo, propomos reversão das privatizações ocorridas e controle por parte do Estado de setores essenciais da economia, como mineração, energia, infraestrutura de transportes, portos e aeroportos. E uma profunda reforma agrária, combinada com a reforma urbana. Tanto uma como outra, a nosso ver, estão no eixo de garantir a socialização da vida e das condições necessárias para produzir uma sociabilidade mais elevada do povo brasileiro.

O terceiro eixo diz respeito às condições políticas para realizar tais tarefas e, portanto, à socialização da economia e desmercantilização da vida. Diz respeito, portanto, a uma crítica que a nosso ver emergiu claramente nas Jornadas de Junho, questionou os limites da democracia representativa e cobrou formas de democracia direta. Tais protestos questionam a base de fundamento do presidencialismo de coalizão que tem prevalecido, com os partidos fazendo seu jogo no mercado eleitoral (financiados por grandes empresas) e formando um Congresso absolutamente serviçal dos interesses privados dos grandes grupos econômicos do país. Através desse presidencialismo de coalizão, tais grupos controlam e limitam a ação do Poder Executivo e o colocam a seu serviço. Em resumo, uma governabilidade ‘por cima’, negociada através de cargos no governo, emendas no orçamento, financiamento de campanha...

Para romper tamanho círculo vicioso, é necessário estabelecer formas de poder popular, seja através das mais imediatas, os conselhos, ou mais aperfeiçoadas, como os órgãos do poder popular.  Existe ainda a possibilidade, em caso de uma vitória, de sustentação de governabilidade na auto-organização da população, deixando de cair na armadilha do presidencialismo de coalizão. Órgãos, conselhos ou assembleias seriam deliberativos, ao invés de consultivos, como indica a atual proposta da presidência da República. Tampouco seriam mera forma de homologação, como propõe a Marina e sua ideia de referendos e plebiscitos. Seriam órgãos autênticos de construção de políticas, deliberação de prioridades e apontamento de linhas de desenvolvimento. Teriam poder deliberativo, no sentido de formular a vontade que o Executivo deve levar ao Congresso. E com atuação e correlação de forças que não tornem o governo refém de negociatas, como hoje.

O quarto item fala sobre a necessidade muito premente de garantia de direitos, uma vez que hoje eles têm sido flexibilizados e relativizados ao extremo. Isso é muito sério no âmbito do direito do trabalho ou nos direitos fundamentais e humanos. Não são direitos relativizados em negociações, mas na prática, como se vê na violência urbana que a PM promove, ao suspender os direitos mais elementares e produzir verdadeiro genocídio.

O último eixo, firme em nossa convicção enquanto partido, é que tais transformações no Brasil devem ser articuladas, em primeiro lugar, no cenário da América Latina. Pela importância que tem o Brasil, porém, mais que isso, pela necessidade de articularmos as forças de resistência anti-imperialistas e anti-monopolistas, através da associação de nossos povos. Na América Latina e no âmbito mundial, porque a ofensiva contra os trabalhadores e os direitos elementares, além da ameaça belicista e do expansionismo imperialista, ameaçam todos os povos. E seria essencial, para uma transformação social, o Brasil contribuir em patamar mais avançado de resistência mundial contra a globalização e o imperialismo.

Correio da Cidadania: Diante de quadro tão complexo, qual a importância das eleições de 2014 para as esquerdas e qual o papel delas nas eleições de 2014?

Mauro Iasi: O Estado burguês conseguiu consolidar uma hegemonia muito sólida no Brasil. Afirmávamos, e continuamos afirmando, que as demandas que emergiram nas manifestações de rua do ano passado precisavam também se expressar no debate eleitoral, nem que fosse pra quebrar o consenso em torno dos temas que circunscrevem o debate eleitoral aos limites da ordem burguesa. Precisavam colocar a alternativa socialista, a necessidade da construção do poder popular, de enfrentar o modelo econômico, social e cultural que tem prevalecido nos últimos 20 anos. E a esquerda está tendo um papel importante nas eleições.

No entanto, como já sabíamos e não estamos nem um pouco surpresos, o espaço nas eleições é extremamente viciado e limitado. O ordenamento jurídico brasileiro de hoje impede que tais debates sejam feitos. Inclusive, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que deveria zelar pela licitude do processo, tem uma atitude totalmente passiva e leniente com todo o verdadeiro arbítrio que é o processo eleitoral brasileiro. Não apenas existe uma desigualdade econômica enorme, propiciada pelo financiamento privado de campanha, mas também há uma cobertura jornalística absolutamente desigual. E, quando há debates, prevalece o critério que o TSE estipulou como correto, de haver ou não bancadas parlamentares para participar do debate, cerceando e penalizando, portanto, os partidos que entram agora para tentar mudanças.

É um paradoxo: temos um espaço muito limitado, como sabíamos, mas, ao mesmo tempo, muito importante de ser ocupado, mesmo nas pequenas brechas que podemos furar. O PCB, ciente disso, optou por um tipo de campanha com mobilização e viagens pelo Brasil todo. Num volume maior que o esperado, a campanha corre nos assentamentos da reforma agrária, no movimento sindical, social, nas universidades, na juventude, naquilo que chamamos de reconstrução de uma vanguarda social, tão duramente golpeada no último período.

Portanto, consideramos um acerto participar das eleições. Mas a verdadeira tarefa vem depois das eleições. Temos a obrigação, enquanto esquerda brasileira, de construir uma alternativa ao bloco dominante. É uma tarefa urgente.

Correio da Cidadania: Sobre o que você chama de tarefa urgente, chegamos a outra pergunta: quanto à possibilidade de uma esquerda socialista unificada, considera que se tenha perdido a oportunidade, aberta para tal cenário, pelas grandes manifestações de 2013?

Mauro Iasi: Eu concordo que seria um bom momento para exercitá-la. Nós do PCB defendemos a proposta em 2006, em São Paulo, quando fui candidato a vice-governador na chapa do Plínio de Arruda Sampaio (PSOL) para o governo. Sempre fomos um dos principais incentivadores dessa proposta. Infelizmente, em 2010, não foi possível e, agora, em 2014, nós temos experiências locais de Frente de Esquerda. Estamos juntos na disputa do Ceará, em Sergipe, Piauí, parcialmente em Goiás...

Assim, nós nos esforçamos muito para que isso fosse possível. Muito esforço, por exemplo, foi feito para que Minas Gerais tivesse uma chapa unitária. Infelizmente, por uma série de motivos, não se deu na chapa majoritária. A dinâmica com que o PSOL, por exemplo, operou a constituição do seu candidato foi muito difícil. Nós acompanhamos e respeitamos a autonomia dos nossos colegas e a maneira pela qual decidiram sua candidatura, mas, de fato, retardou demais o processo e tornou inviável uma Frente de Esquerda para 2014.

Mas o que nós estamos percebendo é que a nova base social cobra essa unidade. Temos de achar um meio de efetivá-la. A única coisa que podemos dizer no momento é que o método pelo qual está sendo construída a Frente de Esquerda está errado. Nós não constituiremos uma Frente de Esquerda por um acordo eleitoral de última hora, depois de as alternativas já estarem colocadas.

Não dá pra esperar uma próxima eleição com vistas a se criar um amplo movimento para se discutir e repensar o país, a partir de uma verdadeira alternativa de esquerda. E esse amplo debate tem de incluir  todos os setores de esquerda, não apenas três ou quatro partidos da esquerda institucional que disputam a eleição hoje.

É necessário que se junte ao processo várias organizações de esquerda que não têm, e não querem ter, registro eleitoral. Associações, movimentos sociais, sindicatos, movimentos de luta pela terra, juventude, a fim de se criar uma verdadeira onda em se possa discutir o Brasil e suas opções, de modo a alcançar um projeto mínimo de desenvolvimento.

Dentro de tal projeto, temos de pensar no papel das eleições, se devemos participar do processo eleitoral, e como participar. A partir dessa construção coletiva, temos certeza que haverá muito mais maturidade para se chegar a uma alternativa também eleitoral para os próximos pleitos, com grau de unidade maior.

Eu acredito que, se os partidos de esquerda dependerem de uma dinâmica que já se consolidou, dificilmente sairá uma aliança eleitoral, ou melhor, aquilo que defendemos: uma Frente de Esquerda. É preciso trabalhar nessa perspectiva, para o que há muita disposição do PCB. Além de que, agora mais do que nunca, fica evidente que esta construção é uma necessidade para o avanço da disputa política brasileira.

Correio da Cidadania: Considera que, nessas eleições, o debate aberto pelo PCB e pelas esquerdas de um modo geral conseguirá fazer a diferença de alguma forma, confrontando o debate da ordem?

Mauro Iasi: Acredito que nós já fizemos isso. O PCB hoje completa um ciclo de reconstrução evidente. Nós estamos presentes em todos os estados da federação, seja em comissões provisórias ou como partido já organizado. Temos frentes enraizadas no movimento de mulheres, unidade classista no movimento sindical, uma nova juventude comunista... Essa presença foi potencializada agora com a campanha que está em curso. Acredito que conquistamos avançamos em um trabalho consciente, sem açodamentos, em que priorizamos a formulação estratégica, a leitura sobre o Brasil, o acerto de contas com a nossa história, o que nos posicionou bem para participar de um debate tão necessário, que vai acontecer daqui pra frente.

Mais ainda, nós compramos uma briga contra um verdadeiro senso comum na esquerda brasileira. Aquele que entende que, ao participar do processo eleitoral, nós tínhamos de necessariamente buscar mediações e discursos que implicavam em rebaixar ou disfarçar nossas metas socialistas revolucionárias e as questões de fundo que julgávamos necessárias, mas que o espaço eleitoral não permitiria.

Nós demonstramos que é possível participar do debate eleitoral sem rebaixar o programa, sem fantasiar ou disfarçar nossas verdadeiras intenções. Até porque consideramos que estas intenções correspondem a uma objetividade que exige resposta. A ideia do poder popular materializou-se na crítica feita nas manifestações do ano passado.

A nossa briga, já de bastante tempo, é contra a mercantilização da vida, pauta a luta pela educação, saúde, cultura, acesso a bens e serviços essenciais, o que conseguimos ver, na prática, na campanha.

Outro aspecto sobre o qual tivemos uma boa surpresa é que a luta pela terra no Brasil está diante de um impasse, que pode ser produtivo, rico. Os grandes movimentos de luta pela terra no Brasil já perceberam, claramente, que o inimigo se deslocou. Não é mais aquele latifúndio tradicional e não se trata só de uma mera distribuição de terra. Está-se diante de uma profunda transformação fundiária, agrícola, na política de abastecimento. Os assentamentos da reforma agrária possam sair do dilema perverso em que se encontram:  depender do Estado para sobreviver, sob uma concorrência absolutamente desleal com o agronegócio.

É preciso um salto de qualidade na luta pela terra, assim como em todos os elementos da bandeira da reforma urbana. O partido posicionou-se nesse debate com uma política que articula tais temas e amarra uma visão estratégica de país, uma visão socialista.

Penso que é esse o nosso grande ganho, independentemente do resultado numérico das eleições. Mas também esperamos ter um crescimento e uma consolidação maior do PCB, um espaço importante que ainda será muito útil no desenvolvimento de uma estratégia socialista.


Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Lênin e o revisionismo



Por Miguel Urbano Rodrigues
 


Os dirigentes da União Europeia – nomeadamente Merkel, Hollande e Cameron – intensificaram nas últimas semanas as suas críticas à Rússia. O pretexto são os acontecimentos da Ucrânia. Um alvo prioritário é Vladimir Putin. Um dos absurdos dessa campanha é a insistência em apresentarem o presidente da Rússia como um ditador que estaria empenhado numa política que visaria a reconstituição parcial da União Soviética.

Um anticomunismo transparente é identificável em crônicas de influentes analistas ocidentais. Não obstante a Rússia ser hoje um país capitalista, slogans bolorentos da guerra fria são retomados.

Putin é acusado de recorrer a métodos e à linguagem de comunistas históricos. Até a realização da parada da vitória em Moscou, a 9 de maio, para comemorar a derrota do Reich nazista, foi interpretada como uma ameaça em Washington e algumas capitais da União Europeia.

Uma estranha febre ideológica ganha subitamente atualidade e destacados intelectuais do sistema capitalista divulgam a despropósito entusiásticas apologias do neoliberalismo e exorcizam o marxismo como velharia obsoleta.

É nessa atmosfera que se insere o novo discurso anticomunista que, agitando fantasmas, falsifica a História.

Na tentativa de apresentarem Marx e Lenin como inimigos da democracia, intervêm figuras exponenciais de uma ideologia inseparável da engrenagem liberticida que ameaça a humanidade e é responsável por crimes monstruosos.

Em Portugal os comentadores de serviço na TV, na rádio e nos jornais de “referência” cumprem com zelo a sua tarefa, debitando asneiras no combate ao suposto renascimento do “saudosismo comunista” na Rússia.

Creio por isso oportuno e útil recordar fatos e situações históricas que desmontam a atual campanha ideológica do imperialismo.

Começarei por chamar a atenção para a falsidade das teses de acadêmicos anticomunistas que atribuem a Lenin um dogmatismo rígido na utilização do marxismo para a compreensão e transformação do mundo. Trata-se de uma grosseira mentira. O fundador do primeiro Estado socialista não via no marxismo uma ciência imobilista, de fronteiras definitivas.

“Não consideramos de modo algum – escreveu – a teoria de Marx como algo de acabado e intocável, estamos, pelo contrário, convencidos de que ela apenas assentou a pedra angular da ciência que os socialistas devem fazer avançar em todas as direções, se não querem atrasar-se em relação à vida. Pensamos que para os socialistas russos é especialmente necessária a elaboração independente da teoria de Marx, pois esta teoria oferece apenas postulados gerais orientadores que em particular à Inglaterra se aplicam de maneira diferente da França, à França de maneira diferente da Alemanha, à Alemanha de maneira diferente da Rússia (1).

Lenin repetiu incansavelmente que sem teoria revolucionária não pode triunfar qualquer movimento revolucionário. Mas conseguiu, com imaginação e talento, ser simultaneamente flexível na aplicação do método marxista e intransigente no combate às ideias e manobras daqueles que, afirmando ser marxistas, assumiam na prática posições incompatíveis com a ideologia do autor de O Capital.

Contrariamente à convicção de muitos jovens que identificam nos “renovadores” que contribuíram para a social democratização de muitos PCs europeus um fenômeno relativamente recente, o revisionismo do marxismo mergulha as raízes no século XIX.

Principiou ainda em vida de Marx e foi permanente. Em 1894, quando Lenin preparava a fundação do futuro partido bolchevique, teve de travar uma luta dura contra os “marxistas legais”, tendência liderada pelo alemão Struve que procurava “tomar do marxismo tudo aquilo que é aceitável para a burguesia liberal, incluindo a luta por reformas, abrangendo a luta de classes (sem a ditadura do proletariado), incluindo o reconhecimento ‘geral’ dos ideais socialistas e a substituição do capitalismo por um ‘novo sistema’ e rejeitar ‘somente’ a alma viva do marxismo, o seu caráter revolucionário”.

A segunda ofensiva dos oportunistas para desvirtuar o marxismo em benefício da burguesia teve o seu epicentro no partido Social Democrata Alemão, ao tempo muito prestigiado, quando o seu dirigente Edward Bernstein publicou em 1899 uma série de artigos em que revia teses fundamentais do marxismo. Na sua apologia do reformismo lançou uma palavra de ordem famosa: “o movimento é tudo, o objetivo final quase nada” (2).

Lenin e Rosa Luxemburgo arrancaram-lhe a máscara, denunciando-o como um deturpador do marxismo. Para os comunistas “o objetivo final” era tudo e o reformismo de Bernstein apontava para uma conciliação com a burguesia. Na prática, Bernstein retomava teses reacionárias da filosofia de Kant. Mas a sua pregação influenciou um amplo setor do Partido Social Democrata Alemão, então marxista, com repercussões negativas na Rússia (3).

Uma terceira grande ofensiva do revisionismo ocorreu em 1908. Dois filósofos, o austríaco Ernst Mach e o alemão Richard Avenarius, que negavam a existência objetiva do mundo material, difundiram a chamada filosofia da “experiência crítica”, mais conhecida pelo nome de Empiriocriticismo. Segundo eles, os corpos seriam somente “complexos de sensações”. Os trabalhos de ambos deram origem a uma corrente de pensamento que se popularizou com o nome de “machismo”. Mach, sobretudo, embora pretendendo ser marxista, rejeitou o essencial do materialismo histórico e do materialismo dialético.

Uma parcela ponderável da intelectualidade progressista europeia aderiu com entusiasmo a essa nova filosofia, aceitando-a como escorada na ciência. Kautsky, abrindo as colunas do órgão central da socialdemocracia alemã à apologia do Empiriocriticismo, contribuiu para aumentar a confusão gerada.

Os mencheviques aderiram imediatamente, mas a propaganda machista perturbou também quadros da fração bolchevique do Partido Operário Social Democrata da Rússia-POSDR-b. Essa influência negativa levou inclusive à formação de um grupo oportunista, os “otzovistas”, que defendia a retirada do Parlamento russo (a Duma) dos deputados bolcheviques, afirmando que o Partido deveria realizar apenas atividades ilegais.

Foi então que Lenin declarou guerra a essa perigosa modalidade de revisionismo, primeiro através de artigos, depois num livro, “Materialismo e Empiriocriticismo”, ensaio filosófico que com o tempo se tornou um clássico do marxismo como obra teórica. Demonstrou que Mach e os seus seguidores, simulando realizar um trabalho científico inovador, se limitavam afinal a colar um novo rótulo a velhas teses idealistas (4).

Os esforços para destruir o marxismo foram permanentes em vida de Lenin e prosseguiram após a sua morte.

O moderno revisionismo

Desde o início da I Guerra Mundial, uma onda de falso patriotismo varreu a Europa. Tripudiando sobre os seus programas, e violando compromissos assumidos em nome do internacionalismo proletário, partidos que pretendiam ser socialistas votaram os créditos de guerra das grandes potências envolvidas no conflito, tornando-se cúmplices da hecatombe que atingiu a humanidade. Essa opção foi decisiva para o descrédito e agonia da II Internacional. A luta contra o imperialismo perde muito do seu significado, dizia Lenin, se não “estiver indissoluvelmente ligada à luta contra o oportunismo”. O grande revolucionário foi, portanto, implacável na denúncia do social-chauvinismo, desmentindo que a defesa da liberdade e dos verdadeiros interesses nacionais fosse a motivação da guerra.

A vitória da Revolução Russa criou, entretanto, as condições que permitiram a criação da III Internacional. Mas, como era de esperar, a existência da União Soviética foi por si só um incentivo a uma ofensiva permanente em múltiplas frentes contra o marxismo.

Finda a II Guerra Mundial, a luta contra o comunismo assumiu facetas muito diferenciadas. Os partidos comunistas europeus tinham desempenhado um grande papel na luta contra o fascismo. Enfraquecê-los, instalar neles o divisionismo, empurrá-los para o antissovietismo e o afastamento do marxismo foi uma constante nas campanhas das burguesias e do imperialismo.

No auge da guerra fria, o Manifesto de Champigny, na França, em 1968, quando Waldeck Rochet era secretário-geral do PCF, cumpriu importante papel em debates ideológicos que abriram a porta ao eurocomunismo. Invocando a necessidade de renovar o marxismo, dirigentes como os franceses Georges Marchais, Roger Garaudy e Louis Althusser, o italiano Enrico Berlinguer, o espanhol Santiago Carrillo e outros serão lembrados como arquitetos de um revisionismo que encaminhou os seus partidos para a socialdemocratização. No caso do PCI, a guinada à direita funcionou, aliás, como etapa rumo à sua autodestruição.

O revisionismo atuou, porém, sob máscaras muito diferentes. Após a desagregação da União Soviética, surgiram em muitos partidos dirigentes que, apresentando-se como empenhados em renovar o marxismo, passaram rapidamente ao ataque ao leninismo e ao centralismo democrático. Alguns acabaram ingressando em partidos socialistas integrados no sistema capitalista.

As universidades produziram uma geração de acadêmicos que, principiando por leituras perversas de Marx, não tardaram a procurar justificações para a defesa de políticas neoliberais.

Ganharam também alguma notoriedade revisionistas (oportunistas de esquerda) que, pretendendo exibir uma suposta pureza marxista, recorreram a textos de Gramsci e de Che Guevara para lhes deturparem o pensamento em obras de cariz antissoviético, aplaudidas pelo imperialismo.

Uma modalidade de anticomunismo, mais sutil, é a praticada por intelectuais que, criticando o capitalismo, identificam nos movimentos sociais a força revolucionária vocacionada para salvar a humanidade (John Holloway, Bernard Cassen, Ignacio Ramonet, Boaventura Sousa Santos, Hans Dietrich etc.), negando aos partidos protagonismo na luta contra o sistema.

Aceitar em Marx o economista e rejeitar o ideólogo é atitude frequente em cenáculos de intelectuais que satanizam Lenin.

O perigo oportunista

A palavra oportunista tornou se incômoda para muitos dirigentes de partidos comunistas europeus e latino-americanos. Essa atitude traduz a consciência de estratégias e táticas que afetaram a unidade do movimento comunista internacional.
As suas últimas reuniões confirmaram a existência de discordâncias profundas que o debilitaram.

O panorama atual é muito complexo. Na Europa, a maioria dos partidos está hoje integrada ao Partido da Esquerda Europeia, ombro a ombro com partidos burgueses como o Die Link alemão, o Syriza da Grécia e o Bloco de Esquerda de Portugal.

A função inconfessada desse partido é neutralizar os trabalhadores, dificultando a sua participação nas grandes lutas contra o imperialismo e as políticas neoliberais impostas na União Europeia. Não surpreende que o PEE conte com a simpatia da mídia controlada pelo capital e a benevolência dos governos que o representam.

Muitos partidos comunistas foram contaminados nas últimas décadas. Alguns participaram na orquestra do antissovietismo. Robert Hue, quando secretário geral do PCF, teve o descaramento de afirmar que “tudo foi negativo na União Soviética”.

O Partido Comunista Italiano desapareceu depois de mudar de nome. Fausto Bertinotti, que foi secretario geral da Rifondazione Comunista, desce hoje à abjeção de renegar o comunismo.

O Partido Comunista Francês, em rápida metamorfose, renegou o passado e transformou-se numa caricatura de partido operário. O Partido Comunista da Espanha, hoje antileninista, diluiu-se numa Esquerda Unida inofensiva.

Uma epidemia de oportunismo instalou-se no movimento comunista internacional.

Uma das suas manifestações é a crítica – ostensiva ou indireta - a partidos que, na fidelidade aos princípios, continuam a assumir-se como marxistas-leninistas. São visados entre outros o Partido Comunista da Grecia (KKE), o Partido Comunista do México (PCM), e o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Não cabe neste artigo comentar a estratégia desses partidos revolucionários. Não me identifico com todas as posições que assumem. Mas eles me fazem recordar que o Partido Comunista Português, pela fidelidade aos princípios e à sua história, resistiu vitoriosamente com firmeza à vaga de anticomunismo, que, sobretudo no início dos anos 90, descaracterizou ou destruiu outros.

Hoje, é precisamente essa fidelidade aos princípios do KKE, do PCM e do PCB, a sua firmeza no combate ao revisionismo e na denúncia do oportunismo que me inspiram respeito e admiração.

Eles e outros fundadores da Revista Comunista Internacional são hoje uma minoria no Movimento Comunista Internacional. Mas a coerência demonstrada na fidelidade ao pensamento e obra de Marx e a coragem com que assumem a herança de Lenin contam com a minha solidariedade fraterna.


Notas:
(1) V.Lenin, O Nosso Programa, Obras Completas, in Tomo 4, pág. 184
(2) V.I.Lenin, A Falência da II Internacional, idem, Tomo 26, pág. 227
(3) V.Lenin, Uma Orientação Retrógrada na Socialdemocracia Russa, idem, Tomo 4, pág. 265
(4) V.I.Lenin, Materialismo e Empiriocriticismo, Edições Avante! 1982, Lisboa.


(*) Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.


quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Reforma Política: tática oportunista para as eleições e diversionista para as lutas de massa



Por Ivan Pinheiro (*)



Em 2002, quando surgiu a possibilidade de vitória eleitoral do que ainda parecia ser uma frente de esquerda e, portanto, de iniciarmos um processo de mudanças progressivas no Brasil, às vésperas do primeiro turno Lula assinou a “Carta aos Brasileiros”, em verdade dirigida aos banqueiros, comprometendo-se a manter intacta a política econômica neoliberal dos tempos de FHC, incluindo a “autonomia” do Banco Central e o superávit primário, desvio de recursos públicos para pagamento dos rentistas. Nesse caso, não se pode acusar Lula de não cumprir promessas.

Com a vitória dele no segundo turno, a então coordenação da frente que o apoiava criou uma comissão dos cinco partidos (PCB, PT, PDT, PSB e PcdoB) para elaborar um PROGRAMA DOS 100 DIAS, de forma que, logo no início do mandato, o novo Presidente mostrasse que veio para cumprir as promessas de mudanças feitas na campanha e que encheram de esperança a grande maioria do povo brasileiro e a esquerda mundial. Afinal, seria um governo novo, de oposição ao anterior.

A principal proposta da comissão, apoiada pelo PCB, era a convocação, logo após a posse, de um plebiscito para consultar o povo sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte soberana, que não se confundisse com a composição do Congresso Nacional e que revisasse toda a Constituição Brasileira, que já havia sofrido forte retrocesso político em função de emendas aprovadas no famigerado governo FHC.

Partia-se do pressuposto de que, para mudar o Brasil, era indispensável primeiro mudar leis que perpetuam a hegemonia burguesa. Exatamente como fizeram Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, antes de deflagrarem os processos de mudanças em seus países.

Mas no Brasil, o medo venceu a esperança!

Antes mesmo da posse, já eleito no segundo turno, a primeira viagem internacional de Lula, de surpresa (pelo menos para o PCB), foi aos Estados Unidos para encontrar-se com Bush na Casa Branca, ao lado de Henrique Meireles, então presidente do Banco de Boston, para apresentá-lo como o novo presidente do Banco Central do Brasil, assegurando-lhe autonomia para gerir a política monetária. Nesse momento, começou a se dissolver a coordenação da campanha, que deveria se transformar, após a posse, numa coordenação política do governo.

Ao tomar posse, Lula jogou no lixo, ao mesmo tempo, o programa da campanha, a coordenação política e a proposta do Programa dos 100 Dias, fazendo a opção pela governabilidade institucional da ordem, ao invés da governabilidade popular pelas mudanças. Formou uma base de apoio parlamentar com o centro e a centro-direita, com mais de 300 dos parlamentares que no passado chamara de picaretas, transformando-se em refém e cúmplice dos caciques da política burguesa, sob o comando do PMDB e do companheiro Sarney, rendendo-se ao grande capital. O Vice-Presidente, José de Alencar, havia sido criteriosamente escolhido para sinalizar uma aliança com setores da burguesia, com vistas a um projeto desenvolvimentista, que Lula anunciava, já na posse, como o “espetáculo do crescimento”, que iria “destravar” o capitalismo no Brasil. Essa promessa Lula também cumpriu à risca.

Constatando a traição ao programa que elegeu Lula, o PCB, em março de 2005 (antes, portanto do episódio conhecido como “mensalão”), rompe com o governo, por absoluta incompatibilidade política com o transformismo do novo presidente e dos demais partidos que haviam composto a frente, que continuaram se degenerando e se fartando de cargos e verbas, sem qualquer crítica ao abandono do programa eleitoral e entregando as organizações sociais sob sua influência na bandeja da cooptação, transformando uma legião de ex-militantes de esquerda em burocratas de carreira, cabos eleitorais de “mandatos” de seus partidos.

A CUT e a UNE, que já vinham também num acelerado processo de degeneração, logo se transformaram em correia de transmissão do governo e nos principais instrumentos de apassivamento dos trabalhadores e da juventude.

Depois de onze anos alavancando o capitalismo, “como nunca antes na história desse país” - iludindo os trabalhadores com o discurso da inclusão, da nova classe média, de um desenvolvimento capitalista em que ganhariam igualmente todas as classes e que garantiria a paz social -, bastou o estopim do aumento das tarifas dos ônibus urbanos, em junho do ano passao, para que se desmontassem as ilusões, as manipulações, o amaciamento da classe trabalhadora e da juventude.

Tudo isso aliado aos ventos ainda suaves da crise do capitalismo em nosso país, que tem levado o governo Dilma a mitigá-la com mais capitalismo: desoneração do capital, Código Florestal, privatizações de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, estádios de futebol, a vergonhosa continuidade dos leilões de petróleo, inclusive do pré-sal, além de projetos para reduzir direitos trabalhistas e previdenciários.

A explosão das insatisfações reprimidas, que continuam latentes, tem suas razões principais na privatização e no sucateamento dos serviços públicos, sobretudo na saúde e educação, na desmoralização e na falta de representatividade das instituições da ordem (e das entidades de massas cooptadas), em função de alianças e práticas oportunistas e da cumplicidade com a corrupção.

Com a quebra do salto alto petista, foram-se a arrogância e a certeza absoluta de mais alguns confortáveis anos de mais do mesmo. Atônitos, os reformistas acharam no lixo da sua própria história a proposta do Programa dos 100 Dias, abandonado quando a correlação de forças era altamente favorável. Com seus quase 60 milhões de votos e a inaudita esperança popular, Lula tinha todo o respaldo para mudar o Brasil, mobilizando as massas, mesmo que com medidas apenas progressistas.

Ao final do mandato de Dilma, cada vez mais reféns do centro e da centro-direita, até para se manter no governo, petistas e outros reformistas, alguns insistindo em se dizer comunistas (o que, por praticarem a conciliação de classe, é funcional para sua aceitação pelo sistema) levantaram a bandeira da reforma política, esbravejando contra o parlamento, a justiça, a mídia, instituições que não só deixaram intactas, mas fortalecidas.

Fingindo desconhecer que este governo não sobrevive sem o PMDB, que tem a chave da agenda legislativa brasileira - com a inédita acumulação da presidência da Câmara e do Senado e a Vice-Presidência, ocupadas pelas mais experimentadas raposas políticas - os reformistas levantam agora, como a salvação da pátria, a bandeira da convocação de um plebiscito para uma constituinte, que abandonaram no momento propício, há dez anos!

Clamar por constituinte nessa correlação de forças desfavorável é um gesto de demagogia. Ou se trata de uma inocente ilusão de classe ou de uma esperta cortina de fumaça para passar ao povo a impressão de que querem mudar. Como não há inocência em políticos profissionais, a segunda hipótese é mais provável. Tanto não querem mudar que mantiveram sua aliança preferencial com o PMDB, garantindo ao enigmático Michel Temer a candidatura a vice-presidente.

A correlação de forças não é desfavorável apenas no parlamento, mas sobretudo em relação à evidente hegemonia burguesa na sociedade brasileira, moldada pela alienação, pelo individualismo, fundamentalismo religioso, pela mídia hegemônica, que cultua a aversão aos partidos e reduz a política aos momentos eleitorais.

Vão buscar no lixo a constituinte de 2003, que seria ampla e irrestrita, mas agora a limitam a uma específica sobre reforma política que nem merece esse nome, pois é fundamentalmente eleitoral. Mostram assim que só acreditam na chamada democracia burguesa, uma ditadura de classe disfarçada.

No esperto discurso da reforma política, fazem críticas a deformações do parlamento, para as quais contribuíram tanto quanto os demais partidos da ordem. O PT e seus aliados fiéis e acríticos se fartaram e se fartam de financiamento privado, a ponto de seus candidatos, em alguns casos, receberem mais doações “generosas” de empresas que seus adversários conservadores, até porque os setores mais lúcidos das classes dominantes preferem terceirizar o governo a um partido com o nome de trabalhadores, para fazer com eficiência a política do capital e com a vantagem de iludir aqueles que emprestam o nome ao partido.

Essa manobra irresponsável e eleitoreira pode ter consequências nefastas, na medida em que abre espaço para o Congresso Nacional a ser eleito em outubro promover, sem qualquer consulta popular, uma minirreforma “política” regressiva que pareça mudança.

O mais grave, entretanto, é que a prioridade absoluta na bandeira da reforma política sequestra a pauta unitária levantada nas manifestações de 2013. Trata-se de diversionismo e esperteza para não expor o governo Dilma ao desgaste de ter que negar cada uma daquelas bandeiras, por ser refém e parceiro do capital.

Devemos continuar levantando essas bandeiras que os reformistas tentam esconder: redução da jornada sem redução salarial, reforma agrária, fim do fator previdenciário e da terceirização, do superávit primário; pelo fim dos leilões do petróleo para gerar investimentos públicos em saúde e educação, pela desmilitarização da polícia, entre outras.

No lugar da reforma política eleitoral, nossa bandeira política central deve ser PELO PODER POPULAR, que expressa a recusa às instituições burguesas e “a tudo que está aí”, sinalizando uma organização popular com vocação de poder.


*Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB

Foto: T.Almeida

(setembro de 2014)

(texto revisado e aprovado pelo Comissão Política Nacional do PCB)



segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Politica em ritmo de eleição: entre “avanços” e “recuos”, quem perde e quem ganha



Por Aluizio Moreira


A agressividade que se tem verificado nos meios de comunicação, entre os adeptos dos três primeiros colocados na corrida para a presidência da república, chega a beirar o absurdo. Por vezes chega a evidenciar um fanatismo de tal monta, como se a escolha de um dos candidatos e não do outro, fosse uma questão de vida ou morte. E isto entre eleitores que fazem parte de uma elite “pensante”, sobretudo no meio acadêmico, que se autoconsidera de esquerda.

Fala-se em retrocesso, se se defende tal candidato ou candidata de determinado partido, em avançar mais se se apoia tal candidato ou candidata de outro partido. Resta definir qual retrocesso e qual avanço. Retrocesso ou avanço não deixa de ser mudança, para frente ou para trás.

Mas na verdade o que deveria motivar o eleitor (me dirijo ao intelectual formador de opinião que se considera de esquerda) numa eleição seja minoritária ou majoritária, seria a questão da contribuição que essa eleição traria para a organização popular, objetivando a implantação da real transformação da sociedade.  Isto porque não entendo ser de esquerda, aquele que simplesmente, e comodamente, defende o status quo, apostando na humanização de um sistema, que jamais poderá ser humanizado.

É claro que a eleição, por si só, não transforma alguma coisa, como pensava (e ainda pensa) a tendência bernsteniana que apostava (e ainda aposta) na transformação da sociedade pela via parlamentar. Ou o povo toma em suas mãos a tarefa de transformar, ou tudo permanecerá como tem sido até hoje: mudamos as pessoas no poder, mas em sua essência, a sociedade continua a mesma. 

Ou seja, ajudamos a perpetuar a sociedade capitalista, cuja lógica de sua reprodução repousa na apropriação e concentração da riqueza por uma ínfima parcela da população, na manutenção do sistema cuja base é a propriedade privada dos meios de produção, na conservação do lucro como forma de realização do capital.

Os “avanços” que muitos apregoam como prova insofismável das mudanças, apenas “mudaram” situações; podem até ter melhorado os ganhos salariais, ou o aumento do número de pessoas que ingressam nas universidades, uma maior “fartura” na mesa do trabalhador. Ganhos salariais que no primeiro dia de sua vigência, já estão corroídos pelos aumentos dos preços das mercadorias; ingressam nos cursos superiores, assinando um contrato de financiamento com instituições bancárias; matam a fome com alimentos cultivados com agrotóxicos e geneticamente modificados. (Em relação aos alimentos, enquanto a China, EUA, França, Alemanha, Sri Lanka, entre outros, adotam medidas contra o uso de agrotóxicos e transgênicos, o governo brasileiro financia empresas que investem neste tipo de negócios).

Evidente que a politica, está presente em” todos os aspectos da vida humana” como salientou Reinaldo Dias na sua obra Ciência politica (2013, p.6-7), e diz respeito a questões tão diversas como a inclusão social dos indivíduos, a melhoria da qualidade de vida da população, a participação do povo nas decisões  que afetam a coletividade, a biodiversidade, embora em nossa sociedade, a população seja induzida ideologicamente pela classe hegemônica (no poder ou fora dele), a relacionar a politica apenas com o ato de votar periodicamente. Mas não devemos esquecer também, que a politica implica em relação de poder, poder este que é constituído por uma diversidade de instituições burocráticas, administrativas e repressivas, que se concentra no Estado, como detentor desse poder numa sociedade de classes.

Na verdade, o poder politico representa determinados interesses de determinada classe social, que para manter sua hegemonia como classe, necessita da legitimação de todo povo, através das eleições parlamentares.

As divergências que se apresentam numa disputa eleitoral na sociedade capitalista como a nossa, são divergências de grupos  que se assenhoreiam ou procuram assenhorear-se do poder, a fim de assegurar/ampliar a defesa de seus interesses/compromissos de classe. Os parlamentares não deixam de ser seus representantes, por mais que afirmem que defendem os interesses do povo. 

Com maiores ou menores conflitos, as falsas contradições entre as diversas tendências neoliberais, são apresentadas sob o manto da politica do “avançar mais”, da “nova politica”, do “fazer diferente”.



domingo, 14 de setembro de 2014

Bens comuns: da privatização à democracia real



Estudo revela: multiplicam-se iniciativas que mobilizam inteligência social para gerir serviços públicos, livrando-os da burocracia estatista e dos riscos de mercantilização


Por Ladislau Dowbor

          The other side of pushing for democracy-driven transformation
          is the building of democracy in the internal running of the public sector.1


O setor público, a máquina do Estado, com os seus ministérios, secretarias, divisões de poder, direito público administrativo e outras heranças institucionais estão sendo pressionados pela chamada modernidade. É significativo que quase todos os países disponham hoje de ministérios ou departamentos de reforma administrativa, pois com a expansão das políticas sociais, a urbanização generalizada e o poder das novas tecnologias de informação e comunicação, os pontos de referência estão se deslocando radicalmente. Sentimos os arranjos institucionais existentes como congelados no tempo.

Bastante mais precário ainda, no entanto, é o referencial jurídico e administrativo das organizações da sociedade civil, e de forma geral emerge como desafio a dimensão participativa das nossas democracias. Quando vemos manifestações como as de junho de 2013 no Brasil, mas também mobilizações semelhantes nos mais variados países, com milhões de pessoas saindo à rua para fazer política – centrada nos protestos contra os bancos privados e Wall Street ou contra os governos, reclamando regulação financeira ou saúde e mobilidade urbana, ou ainda democracia na gestão dos recursos em geral – aparece claramente a fragilidade das correias de transmissão, digamos assim, entre as necessidades e interesses das populações e os aparelhos administrativos estatais.

As corporações privadas, a bem da verdade, também enfrentam estes desafios. Em termos de burocracia e de falta de resposta (responsiveness) aos usuários não deixam muito a desejar ao setor público. O resgate da governança, da capacidade de articulação do conjunto das políticas de uma sociedade moderna, está se tornando no desafio principal que enfrentamos.

Poder votar a cada dois ou a cada quatro anos já não basta para assegurar as dimensões democráticas de uma sociedade complexa. Há inúmeras iniciativas interessantes como os sistemas de consulta direta entre a administração central ou regional e as administrações locais na China, o sistema direto de consulta do NEDLAC (National Economic Development and Labor Council) na África do Sul, os acertos entre as administrações locais, empresas e OSCs (Organizações da Sociedade Civil) na linha da negotiated economy na Dinamarca e outras experiências. E temos evidentemente os conselhos como o CDES em Brasília, com representação de empresas, sindicatos, academia e movimentos sociais, hoje surgindo no nível dos Estados da federação e dos municípios. São Paulo hoje tem, além do Conselho da Cidade, conselhos eleitos nas 32 subprefeituras. O denominador comum é sem dúvida a necessidade de uma maior densidade de presença do cidadão nos processos decisórios da sociedade. Democracia representativa já não basta, isto está se tornando claro, e apesar das resistências, aos trancos e barrancos e passando por estruturas experimentais, estamos avançando.

Inovações estão surgindo justamente onde temos os maiores problemas. Trata-se dos bens públicos (commons), por exemplo a água, e bens de consumo coletivo como por exemplo saúde, educação, cultura, segurança. Vemos aqui idas e vindas com privatizações (em geral desastrosas), Organizações Sociais (em definição), retomadas pela administração pública direta (frequentemente com pesadas burocracias), terceirizações (que tendem a reproduzir a burocracia mas sem o controle correspondente) e diversas formas de parcerias. No conjunto, uma grande fragilidade e insegurança organizacional, busca insegura de novos arranjos institucionais.

No pano de fundo, está o fato de que no caso dos bens públicos, a apropriação privada leva à liquidação das florestas e dos recursos pesqueiros oceânicos, à contaminação dos rios e dos lençóis freáticos e assim por diante. Quem protege o que parece não ter dono? Aqui a competição de grupos privados associada à falta de regulação leva a uma corrida por quem arranca o pedaço maior, e com as novas tecnologias e o crescimento do consumo no mundo estamos correndo ao desastre.

Dilema análogo encontramos nas áreas de consumo coletivo, onde a saúde privatizada vira indústria da doença, a educação indústria do diploma, a cultura indústria do enlatado e da publicidade e semelhantes. Um sistema privado de saúde está interessado em ter clientes, e se possível de renda elevada, e não tem nenhum interesse em sistemas preventivos que reduzem as doenças, e por tanto a clientela. Há contradições que são estruturais. Produzir saúde, criar um ambiente comunitário culturalmente rico, gerar paz social não são “produtos” da mesma natureza que produzir automóveis.

Um estudo particularmente interessante, de Hilary Wainwright, e publicado pelo Public Services International em colaboração com o Transnational Intitute, organiza de maneira muito feliz os argumentos no sentido de se reorientar as parcerias público privadas do seu sentido Estado-Empresa para uma visão de articulação mais rica entre o Estado e as diversas formas de organização de usuários e de sindicatos. Para um país como o nosso, que acaba de aprovar o marco regulatório das organizações da sociedade civil e uma Política Nacional de Participação, estas ideias têm muita relevância. Intitulado The Tragedy of the Private:the Potential of the Public (A tragédia do privado: o potencial do público), o estudo vai no contrapé do famoso Tragedy of the Commons dos anos 1960, frequentemente utilizado para justificar privatizações.

Wainwright trabalha numa linha inovadora, que é de ver como funcionam, em diversas partes do mundo, as administrações municipais onde a solução dominante passou a ser uma aliança entre o interesse dos funcionários e da administração em geral em serem mais produtivos e valorizados, e o interesse dos usuários por serviços mais eficientes. As sua intenção é de “pesquisar os mecanismos de mudança quando esta é guiada pelos objetivos de serviços públicos democráticos mais do que pelo lucro”.(29)

O exemplo inicial é o da administração da água. “Das lutas transnacionais muito efetivas contra a privatização da água emergiu uma ideia inovadora de parceria público-público, ou público-civil, em que as organizações públicas e organizações da sociedade civil que administram serviços públicos colaboram por cima das fronteiras nacionais para dividir experiências, colaborar na busca de financiamentos, e de maneira geral para fortalecer o poder das instituições públicas e civis na gestão de serviços e utilidades públicas. Este modelo público-público/público-civil está se tornando uma ferramenta institucional cada vez mais central na luta contra a privatização e na busca de uma gestão pública de alta qualidade”.(7)

O ponto de apoio desta visão é que com a generalização da educação e dos meios de informação, já não temos um hiato tão profundo entre elites com elevado nível de formação (mas também de interesses privados) e a massa de funcionários e de usuários desinformados. Continuamos sem dúvida com um grande elitismo em termos de dinheiro e de poder, mas a compreensão das prioridades reais da sociedade está se generalizando. “O ponto de partida dos esforços que relatamos, de uma transformação centrada na democratização e na melhoria dos serviços públicos, é o know-how e a criatividade tanto dos funcionários de serviços públicos quanto dos que usam os serviços”. (7)

Trata-se aqui de gerar ferramentas institucionais para que esta compreensão se transforme em políticas mais adequadas. E não mais “eficientes” como no caso da privatização, em que a eficiência dos processos se consegue às custas da deformação dos objetivos. A tragédia dos planos privados de saúde, a elitização da educação privada, o travamento dos sistemas de mobilidade urbana (transporte individual privado em detrimento do sistema público) e outros demonstram claramente este dilema. “A lógica do lucro simplesmente não responde aos imperativos das necessidades sociais e dos direitos humanos”.(33)

Há hoje uma certa reversão de tendências. Wainwright cita “o estudo de David Hall para o European Public Service Union (sindicato europeu de serviço público) que mostra claros sinais de que as municipalidades estão continuando a se orientar para a “remunicipalização” e não a privatização em numerosos países da Europa, incluindo a Alemanha, a França e o Reino Unido.”(32)

Paris, por exemplo, como outras cidades, retomou o controle da gestão da água, bem público essencial e de consumo coletivo, desastrosamente administrado após a privatização. “A água em Paris é agora administrada por um conselho que inclui representantes dos trabalhadores e dos usuários, supervisionado de forma independente por cientistas e representantes públicos. Enquanto os preços subiram de forma continuada durante a gestão privada, caíram de 8% depois do primeiro ano de volta à propriedade pública. Os preços agora estão 40% mais baixos do que nas periferias da cidade onde a água ainda é administrada por uma empresa privada.” (26)

O resgate da gestão pública não é aqui um simples retorno ao passado: central neste processo, é a simultânea democratização: “A expansão da ideia de se fortalecer o controle local democrático sobre o dinheiro público está focada no reforço da participação cidadã. A experiência de Newcastle (Reino Unido) eleva a nossa compreensão da democratização ao expor e democratizar os processos normalmente escondidos e rotineiros de gestão dos recursos públicos. Enquanto as formas de organização interna do setor público continuarem a ser de cima para baixo, fragmentadas e desconhecedoras do potencial real dos funcionários, qualquer democracia participativa do mundo poderá ser absorvida e esterilizada ou bloqueada pelas estruturas hierárquicas e procedimentos burocráticos. O processo interno de democratização é portanto fundamental.”(31)

A tendência que Wainwright apresenta nesta revisão de tendências em vários países, é a mobilização dos tão frequentemente criticados funcionários públicos e das suas organizações para a racionalização e a democratização dos próprios serviços, ao gerar arranjos institucionais que permitam a sua efetiva interação com as organizações dos usuários. “A ideia da natureza dual do trabalho implica que o que estamos vendo é uma extensão das prioridades das organizações de trabalhadores públicos para além do valor de troca (por exemplo, o nível de remuneração ou a jornada de trabalho) para incorporar uma preocupação efetiva com o valor de uso (por exemplo, a qualidade do serviço público prestado).(35)

O que este argumento implica, “é que a ideia de ‘participação’ precisa ser ampliada para incluir um envolvimento maior dos trabalhadores no processo decisório público sobre como o seu trabalho é utilizado. Desta maneira, os trabalhadores do serviço público poderão se assegurar de que a sua criatividade será utilizada para o benefício e em colaboração com os seus concidadãos”. (36)

Esta outra visão de arranjos institucionais, envolvendo parceiras já não apenas do Estado com as empresas, e sim envolvendo um resgate da força e da dignidade do servidor público, articulado com os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil em geral, abre perspectivas de uma sociedade ao mesmo tempo mais democrática nos processos decisórios e mais eficiente nos resultados. Este breve estudo, de 48 páginas, com descrição das formas inovadoras de organização e com numerosos exemplos, constitui uma ferramenta importante tanto para pesquisadores como para gestores sociais.


The Tragedy of the Private: the potential of the public – Public Services International, Transnational Institute, 2014, 48p. Documento completo online, em inglês, em http://dowbor.org/2014/07/hilary-wainwright-the-tragedy-of-the-private-the-potential-of-the-public-julho-2014-48p.html/ouhttp://www.world-psi.org/sites/default/files/documents/research/alternatives_to_privatization_en_booklet_web_april.pdf

1 O outro lado da luta por uma transformação centrada na democracia é a construção da democracia no funcionamento interno do setor público. (7)


Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org