sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Löwy: quando Capitalismo não rima com Democracia


"Os 'exsperts' que comandam a 'salvação'  da Europa foram funcionários de um dos
bancos diretamente responsáveis pela crise iniciada nos Estados unios, em 2008

Para pensamento político tradicional, dois conceitos são complementares. Mas Europa demonstra algo que Max Weber já intuia: liberdade não pode florescer sob leis de mercado


Por Michael Löwy | Tradução: Gabriela Leite

Vamos começar com uma citação de um ensaio sobre a democracia burguesa na Rússia, escrita em 1906, após a derrota da primeira revolução, de 1905:

“É profundamente ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre o grande capitalismo, da maneira como atualmente é importado para a Rússia, e bem estabelecido nos Estados Unidos (…), e a ‘democracia’ ou ‘liberdade’ (em todos os significados possíveis da palavra); a questão verdadeira deveria ser: como essas coisas podem ser mesmo ‘possíveis’, a longo prazo, sob a dominação capitalista?” [1]

Quem é o autor deste comentário perspicaz? Lenin, Trotsky ou, talvez, Plekhanov? Na verdade, ele foi feito por Max Weber, o conhecido sociólogo burguês. Apesar de Weber nunca ter desenvolvido essa ideia, ele está sugerindo aqui que existe uma contradição intrínseca entre o capitalismo e a democracia.

A historia do século XX parece confirmar essa opinião: em muitos momentos, quando o poder da classe dominante pareceu ameaçado pelo povo, a democracia foi jogada de lado como um luxo que não pode ser mantido, e substituída pelo fascismo — na Europa, nos anos 1920 e 1930 — ou por ditaduras militares, como na América Latina, entre os anos 1960 e 1970.

Por sorte, esse não é o caso da Europa atual, mas temos, particularmente nas últimas décadas, com o triunfo do neoliberalismo, uma democracia de baixa intensidade, sem conteúdo social, que se reduziu a uma concha vazia. É claro que ainda temos eleições, mas elas parecem ser de apenas um partido, o PMU, Partido do Mercado Unido, com duas variantes que apresentam diferenças limitadas: a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social liberal.

O declínio da democracia é particularmente visível no funcionamento oligárquico da União Europeia, onde o Parlamento Europeu tem muito pouca influência, enquanto o poder está firmemente nas mãos de corpos não eleitos, como a Comissão Europeia ou o Banco Central Europeu. De acordo com Giandomenico Majone, professor do Instituto Europeu de Florença, e um dos teóricos semioficiais da UE, a Europa precisa de “instituições não-majoritárias”. Ou seja, “instituições públicas que, propositalmente, não sejam responsáveis nem diante dos eleitores, nem de seus representantes eleitos”: essa é a única maneira de nos proteger contra “a tirania da maioria”. Em tais instituições, “qualidades tais quais expertise, discrição profissional e coerência (…) são muito mais importantes que a responsabilidade democrática e direta” [2]. Seria difícil imaginar uma desculpa mais descarada da natureza oligárquica e antidemocrática da UE.

Com a crise atual, a democracia decaiu a seus níveis mais baixos. Em um recente editorial, o jornal francês Le Figaro escreveu que a situação é excepcional, e explica por que os procedimentos democráticos não podem ser sempre respeitados; apenas quando voltarmos aos tempos normais, poderemos restabelecer sua legitimidade. Temos, então, um tipo de “estado de exceção” econômico/político, no sentido que descreveu Carl Schmitt. Mas quem é o soberano que tem o direito de proclamar, de acordo com Schmitt, o estado de exceção?

Por algum tempo, entre 1789 e a proclamação da República Francesa, em 1792, o rei teve o direito constitucional de veto. Não importavam as resoluções da Assembleia Nacional, ou quaisquer que fossem os desejos e aspirações do povo francês: a última palavra pertencia a Sua Majestade.

Na Europa de hoje, o rei não é um Bourbon ou Habsburgo: o rei é o Capital Financeiro. Todos os atuais governos europeus — com a exceção do grego! — são funcionários deste monarca absolutista, intolerante e anti-democrático. Quer sejam de direita, “extremo-centro” ou pseudoesquerda, quer sejam conservadores, democratas cristãos ou social-democratas, eles servem fanaticamente ao poder de veto de Sua Majestade.

O soberano absoluto e total hoje, na Europa, é, no entanto, o mercado financeiro global. Os mercados financeiros ditam a cada país os salários e aposentadorias, os cortes em despesas sociais, as privatizações, a taxa de desemprego. Há algum tempo, eles nomeavam diretamente os chefes de governo (Lucas Papademos na Grécia e Mario Monti na Itália), escolhendo os chamados “experts”, que eram servos fiéis.

Vamos olhar mais atentamente a alguns desses tais todos-poderosos “experts”. De onde eles vêm? Mario Draghi, chefe do Banco Central Europeu, é um antigo administrador do banco internacional de investimentos Goldman Sachs; Mario Monti, ex Comissário Europeu, também é um antigo conselheiro da Goldman Sachs. Monti e Papademos são membros da Comissão Trilateral, um clube muito seleto de políticos e banqueiros que discutem estratégias internacionais. O presidente desta comissão é Peter Sutherland, antigo Comissário Europeu, e antigo administrador no Goldman Sachs; o vice-presidente, Vladimir Dlouhr, antigo Ministro da Economia tcheco, é agora conselheiro na Goldman Sachs para a Europa Oriental. Em outras palavras, os “experts” que comandam a “salvação” da Europa da crise foram funcionários de um dos bancos diretamente responsáveis pela crise financeira iniciada nos Estados Unidos, em 2008. Isso não significa que existe uma conspiração para entregar a Europa à Goldman Sachs: apenas ilustra a natureza oligárquica dos “experts” de elite que comandam a UE.

Os governos da Europa estão indiferentes aos protestos públicos, greves e manifestações maciças. Não se importam com a opinião ou os sentimentos da população; estão apenas atentos — extremamente atentos — à opinião e sentimentos dos mercados financeiros e seus funcionários, as agências de avaliação de risco. Na pseudodemocracia europeia, consultar o povo em um referendo é uma heresia perigosa, ou pior, um crime contra o Deus Mercado. O governo grego, liderado pelo Syriza, a Coalizão da Esquerda Radical, foi o único que teve coragem para organizar tal consulta popular.

O referendo grego não tinha apenas a ver com questões fundamentais econômicas e sociais, foi também e acima de tudo sobre democracia. Os 61,3% de gregos que disseram não são uma tentativa de desafiar o veto real das finanças. Esse poderia ter sido o primeiro passo em direção à transformação da Europa, de monarquia capitalista a república democrática. Mas as atuais instituições da oligarquia europeia têm pouca tolerância à democracia. Imediatamente puniram o povo grego por sua tentativa insolente de recusar a austeridade. A “catastroika” está de volta à Grécia com uma vingança, impondo um programa brutal de medidas economicamente recessivas, socialmente injustas e humanamente insustentáveis. A direita alemã fabricou este monstro, e forçou ao povo grego com a cumplicidade de falsos “amigos” da Grécia (entre outros, o presidente francês, François Hollande, e o primeiro-ministro da Itália Matteo Renzi).

* * *

Enquanto a crise agrava-se, e o ultraje público cresce, existe uma crescente tentação, por parte de muitos governos, de distrair a atenção pública para um bode expiatório: os imigrantes. Deste modo, estrangeiros sem documentos, imigrantes de países não-europeus, muçulmanos e ciganos estão sendo apresentados como a principal ameaça aos países. Isso abre, é claro, enormes oportunidades para partidos racistas, xenófobos, semi ou completamente fascistas, que estão crescendo, e já são, em muitos países, parte do governo — uma ameaça muito séria à democracia europeia.

A única esperança é a crescente aspiração por uma outra Europa, que vá além das políticas de competição selvagem e austeridade brutal, e das dívidas eternas a serem pagas. Outra Europa é possível — um continente democrático, ecológico e social. Mas não será alcançado sem uma luta comum das populações europeias, que ultrapasse as barreiras étnicas e os limites estreitos do Estado-nação. Em outras palavras, nossa esperança para o futuro é a indignação popular, e os movimentos sociais, que estão em ascensão, particularmente entre os jovens e mulheres, em muitos países. Para os movimentos sociais, está ficando cada vez mais óbvio que a luta pela democracia é contra o neoliberalismo e, em última análise, contra o próprio capitalismo, um sistema antidemocrático por natureza, como Max Weber já apontou, cem anos atrás.


________
[1] Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland», Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik,     Band 22, 1906, Beiheft, p. 353.
[2] Citado in Perry Anderson, Le Nouveau Vieux Monde, Marseile, Agone, 2011, pp. 154,158.


domingo, 23 de agosto de 2015

Cuba acelera ajustes para combinar socialismo e mercado


Por Daniella Cambaúva e Breno Altman | Enviados especiais a Havana 

Reformas lideradas por Raúl Castro buscam abrir novo ciclo de desenvolvimento



No mundo das estatísticas, Cuba até que vinha fazendo a lição de casa desde as mudanças adotadas em seguida ao colapso da União Soviética. Após perder 34% de seu PIB (Produto Interno Bruto) entre 1990 e 1993, o país tinha alcançado um crescimento médio de 4,5% entre 1994 e 1999. Pulou para 5,6% em 2000, retornou a 3% no ano seguinte e zerou em 2002. Voltou ao patamar de 3% entre 2003 e 2004. Acelerou para 8% em 2005, bateu o recorde com 9,5% em 2006, cresceu a 6,5% em 2007, escorregou para 4,3% um ano depois. Tragada pela crise mundial e três sucessivos furacões, Cuba capengou em uma média de 1,5% entre 2009 e 2010. Todos esses dados são do insuspeito CIA World Factbook.


Esses números áridos, sem rosto ou cor, fazem parte do diagnóstico que levou o presidente Raúl Castro a deslanchar, a partir de 2011, um dos mais ambiciosos programas de reformas desde a vitória da revolução cubana. No VI Congresso do Partido Comunista, em abril do ano passado, foi sacramentado o nome de atualização do modelo socialista às políticas de mudança então decididas. Apesar do conceito cauteloso, as medidas têm grandes objetivos. E indica um novo olhar sobre a história da economia cubana.

    Agência Brasil
 Alarcón| " precisamos entender qual o socialismo possível,
capaz de trazer desenvolvimento e prosperidade"
“O socialismo não é a propriedade pública de todos os meios de produção”, afirma Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular (parlamento cubano) e alto dirigente do Partido Comunista. “A luta política e nosso próprio voluntarismo conduziram a exageros no passado, que precisam ser retificados. Não podemos mais compreender o empreendedorismo privado, sob controle do Estado, apenas como uma concessão temporária. Essa atividade deve ter seu lugar em nosso modelo socialista.”

Alarcón se refere a um momento específico, quando o governo de Fidel Castro desatou, nos idos de 1968, a chamada “ofensiva revolucionária”. Por influência da experiência soviética e pelo apoio que parte dos pequenos empresários dava aos núcleos saudosos do antigo regime, praticamente toda a propriedade passou às mãos do Estado. Barbearias, cabeleireiros, restaurantes, bares, mercearias, oficinas de reparo: quase todos os setores foram encampados pelo poder público.

Os custos desse gigantismo estatal, aos quais se somavam verbas para fundar e manter o sistema de bem-estar social, um dos mais amplos do planeta, afetavam fortemente a capacidade de investimento na infraestrutura e no desenvolvimento das atividades econômicas. O modelo funcionou bem enquanto pode contar com a poupança externa representada pela União Soviética e os demais países socialistas. Entrou em colapso quando essa fonte de financiamento desapareceu. Ganhou uma sobrevida quando as relações com Venezuela, China, Rússia e Brasil repuseram parte dos recursos internacionais perdidos.

Sinal de alerta

Mas o fraco crescimento do triênio 2008-2010 acendeu a luz vermelha. “Sem aprofundarmos e acelerarmos as reformas iniciadas nos anos 1990, não teremos como resolver os problemas estruturais”, analisa o deputado Osvaldo Martinez, presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Parlamento e diretor do Centro de Investigações da Economia Mundial. “Precisamos atrair mais capital internacional, expandir o trabalho por conta própria, reduzir os gastos estatais com custeio e melhorar a eficiência econômica.”

                                                                                                               Yenni Muoña/Opera Mundi
Uma das principais mudanças proporcionadas foi a
permissão do trabalho por conta própria, como para
cabeleireiros
Um dos principais formuladores das reformas emergenciais dos anos 1990, Martinez não hesita em contestar alguns dogmas do passado: “O pleno emprego não é suportável pela economia estatal”, afirma. Essa crença levou Raúl Castro a planejar o corte de até um milhão de empregos públicos, paulatinamente absorvidos nas atividades privadas que estão sendo liberadas. “Não estamos fazendo uma terapia de choque, mas temos que cortar todas as gorduras possíveis”, insiste Martinez. “O que precisamos é melhorar a qualidade orçamentária do Estado e das empresas, para aumentar a poupança interna e os investimentos necessários para alavancar nossa economia.”

A liberação de centenas de atividades pa ra exploração de empreendedores privados, que já ultrapassam os 500 mil registros, segundo o Ministério do Trabalho, vai além de um mecanismo compensatório para os cortes de pessoal nas instituições estatais ou de uma ferramenta para ampliar a oferta de serviços. “Precisamos fortalecer o mercado interno, fundamental para a diversificação de nossa produção industrial”, aponta Martinez. “O empreendedorismo é um fator permanente nessa estratégia, um instrumento facilitador do socialismo.”

Foco das reformas

O pacote de medidas ultrapassa, e muito, a reforma do sistema de trabalho. Mais terras foram entregues a camponeses, com liberdade para explorá-las individualmente ou de forma cooperativa. Atualmente cerca de 50% dos alimentos consumidos na ilha são importados. Se parte dessas compras puder ser substituída por produção interna, a economia de divisas será formidável.

    Cubaencuentro.com
"O pleno emprego não é suportável pela economia estatal",
diz Osvaldo Martinez, um dos principais nomes em Cuba

Restabeleceu-se o direito de compra e venda de imóveis, ainda que tenham sido mantidas regulamentações que impedem a concentração da propriedade urbana. Também foram abolidas limitações para aquisição de carros, celulares, computadores e outros produtos eletroeletrônicos, bem como proibições para que os cubanos possam se hospedar em hotéis pagos em peso conversível. “Eram medidas administrativas destinadas a controlar a desigualdade social, provocada pela existência de duas moedas. Algo como, se não podem todos, não pode ninguém”, explica Martinez. “Viraram obstáculos para a expansão econômica e o incentivo ao trabalho, por isso foram extintas.”

As empresas estatais e mistas igualmente estão abrangidas pelos ajustes. Sua autonomia foi ampliada, mas progressivamente irão perdendo subsídios e terão que se virar com as próprias pernas. Se derem prejuízo, poderão ser fechadas ou incorporadas por outras mais rentáveis. “O Estado continuará a ser o ente planificador e regulador”, salienta o professor Joaquin Infante Ugarte, diretor do Orçamento Nacional entre 1976-1991 e colaborador de Ernesto Che Guevara quando o argentino presidiu o Banco Central cubano. “Mas estamos substituindo os mecanismos administrativos pelos econômico-financeiros. Se uma determinada empresa não conquistar mercado, não demonstrar eficiência e não obtiver rentabilidade, deixará de existir.”

Outro objetivo das reformas é cr iar um sistema tributário equilibrado, que impeça a excessiva concentração de renda através de impostos progressivos sobre a renda e a propriedade, ao mesmo tempo em que amplia a base de arrecadação. “Os cubanos passaram a achar que era parte das conquistas da revolução não pagar impostos”, ironiza Martinez.

Os novos empreendedores, muitos deles antes trabalhando ilegalmente, agora terão que pagar taxas para licenciar suas empresas e impostos conforme a envergadura de suas atividades. Há bastante choro e ranger de dentes, mas o fato é que a nova época não oferece delícias sem dores. “Nossa revolução foi muito paternalista”, afirma Infante Ugarte. “Não podemos confundir igualdade de direitos e oportunidades com igualitarismo. Mas também tem o outro lado: quem g anha mais pagará mais impostos.”
                                                                                                        
                                                                                                                 Yenni Muoña/Opera Mundi
O chaveiro é outro exemplo de "contrapropista",
os trabalhadores autônomos 
O ovo de Colombo, no caso, é limpar as contas do Estado de custos improdutivos e engordá-las com receita tributária, rentabilidade de suas empresas e substituição de importações. O fortalecimento dos fundos públicos, em aliança com a integração regional e a atração de investimentos estrangeiros, parece ser a aposta do governo cubano para preservar o padrão de Educação, Saúde e Cultura construído pela revolução. “Nossa economia precisa criar as condições para pagar as contas das conquistas sociais e abrir novos caminhos para a juventude”, ressalta Martinez. “A atração da poupança externa não pode ser o eixo de nosso modelo de desenvolvimento, mas um complemento.”

Diversificação

Mais que tudo, Cuba precisa criar empresas e empregos que tragam prosperidade a uma das populações mais bem educadas e preparadas do mundo. Nos últimos anos, além do Turismo, o país ampliou a produção de níquel (detém 34% das reservas mundiais), tabaco e fármacos. Aliás, a biotecnologia está se tornando um nicho no qual os cubanos adquirem cada vez mais força e prestígio, com exportações para mais de 30 países, apesar do bloqueio. Mas ainda é pouco para garantir sustentabilidade.

O desequilíbrio entre formação de mão-de-obra e ofertas internas de trabalho tem levado o país, por exemplo, a ter na exportação de serviços médicos uma de suas maiores rubricas comerciais. Apesar de ser um fator positivo para o balanço de pagamentos, esse cenário pode vir a afetar a qualidade interna do atendimento à população e estimular a atração de seus profissionais pelas esperanças migratórias.

Por essas e outras, as reformas lideradas pelo presidente Raúl Castro são encaradas como um esforço de guerra cuja meta é criar as condições para a ilha viver em um espaço econômico integrado, mas por conta própria e sem abdicar do sistema esculpido desde janeiro de 1959. “Nossa batalha, a batalha da geração que fez a revolução, é defender o socialismo cubano e levá-lo ao futuro”, afirma Ricardo Alarcón. “Para essa tarefa, precisamos entender qual o socialismo possível, capaz de trazer desenvolvimento e prosperidade para as novas gerações. Não temos medo de criticar nossos próprios erros, pois não há outra forma de construir um projeto histórico de nação.”


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

BEBEL, August



Nasceu em Deut, na Alemanha, em 1840. Filho de militar prussiano, trabalhou na adolescência como aprendiz em uma oficina, e após quatro anos de aprendizagem, obteve o titulo de mestre torneiro.

Autodidata, cedo se ligou ao movimento operário. Visto como de grande capacidade de organização e tática politica, ocupou lugar importante na Associação dos Trabalhadores alemães (Arbeitervereine).

Em 1861 mudou-se para Leipzig, onde abriu um negócio próprio, se filiando a uma sociedade de artesãos, iniciando sua atuação politica. 
  
Em 1865, por influência de Liebknecht, Bebel converteu-se ao socialismo cientifico, se aproximando de Marx e Engels. 

Elegeu-se em 1867 deputado para o  Parlamento (Reichstag), na Alemanha do Norte, participando no ano seguinte no Congresso de Nuremberg, no qual Bebel e Liebknecht decidiram incorporar-se  na 1ª Internacional.

"A mulher e o socialismo"
Em agosto de 1869, juntamente com Wilhelm Liebknecht, fundou em Eisenach, o Partido Operário Social-Democrático (ou Partido Social-Democrata dos Trabalhadores - SDAP), cuja meta era abolir o “Estado de classes” e implantar um “Estado Livre Popular”, contrapondo-se Lassalle, que defendia a colaboração de classe e a manutenção do Estado burguês.

O SDAP de Bebel e Liebknecht fundiu-se com a Associação Geral dos Trabalhadores alemães – ADAV) liderada por Lassalle, num Congresso realizado na cidade de Gotha (Alemanha) nos dias 22 a 27 de maio de 1875.

Este fato recebeu duras criticas de Karl Marx na obra “Critica ao Programa de Gotha”, escrita por ocasião do Congresso, mas só publicada por Engels em 1891 na revista Neue Zeit, portanto 8 anos após o falecimento do seu autor.

"Charles Fourier, sua vida
e sua teoria"
Desse Congresso de unificação de eisenachianos  e lassallianos surgiria em 1890 o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD).

Com a eclosão da guerra franco-prussiana, liderou a oposição, à politica expansionista de Bismarck, que ordenou sua prisão. Solto foi novamente preso, condenado a dois anos de reclusão, acusado por alta traição por ter votado contra os créditos de guerra. 

Novamente eleito deputado, assumindo oposição à politica do Governo, consolidou sua posição entre a cúpula dirigente do Partido Social-Democrata.

Em 1900, com o falecimento de Wilhelm Liebknecht, secretario geral do Partido, Bebel passou a ocupar sua liderança, que se tornou uma das principais formações políticas de esquerda na Alemanha. 

Escreveu: “Cristianismo e socialismo” (1874), “A guerra dos camponeses na Alemanha” (1876),  “A mulher e o socialismo” (1879), “Charles Fourier, sua vida e sua teoria” (1888).

August Bebel, faleceu em  Passugg, na Suiça, em 1913.


(Dados compilados por Aluizio Moreira)

domingo, 16 de agosto de 2015

Para ajudar a compreender a crise da esquerda



Garis do Rio de Janeiro,  protagonistas, em 2014 e 2015, de greves que tiveram
repercussão nacional
Hipótese de Guy Standing sobre reconfiguração das classes sociais pode ser elemento importante na análise do novo conservadorismo brasileiro — e na busca da virada


Por Rafael Evangelista

A bancada sindical, que colabora decisivamente na defesa dos interesses dos trabalhadores assalariados, é muito menor na atual legislatura. São 46 deputados, número bem próximo ao de 1988, quando foram 44. Em 2002, ano da eleição de Lula, os sindicalistas foram 74. Caíram na eleição seguinte para 54, possivelmente sentindo o baque na imagem do PT após o mensalão. Em 2010 a bancada registrou seu maior número, 83 deputados.

Pode-se atribuir isso ao propalado distanciamento do PT de suas bases. Também é possível afirmar que o partido mais identificado com o sindicalismo cometeu erros estratégicos, apostando em nomes errados na hora de construir seu quociente eleitoral. Porém, é preciso registrar que o PT vem perdendo força nas cidades operárias paulistas, seu conhecido reduto eleitoral. Somente em uma delas, Hortolândia (SP), o governador Geraldo Alckmin não teve a maioria dos votos pela sua reeleição no primeiro turno.

Ao mesmo tempo, assistimos à ascensão da bancada conservadora. Nomes como Marco Feliciano, em São Paulo, e Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro, aparecem como grandes puxadores de votos – este último acompanhado por seu filho, também deputado eleito, mas por São Paulo. Essa não parece ser uma tendência restrita a nomes específicos: a pauta conservadora, contra os direitos humanos, a favor da brutalidade policial, contra os direitos sexuais foi encampada por diversos candidatos espalhados pelo país. Estes enxergam a adesão a bandeiras radicais como forma de alavancarem votos. Candidatos progressistas acabam se tornando mais tímidos, com medo de desagradar um eleitorado bastante vocal e que parece crescer.

Os fenômenos parecem ser, então, dois: o declínio de políticos mais identificados com causas trabalhistas e a ascensão de personagens conservadores que flertam com o populismo de direita. A explicação para isso é complexa, mas parte dela pode estar nas mudanças que o mundo do trabalho vive nos últimos anos, com a queda do trabalho regular, assalariado, com benefícios protegidos por lei e o crescimento do setor de serviços e, mais especificamente, do trabalho fragilizado, intermitente, incerto.

O termo precariado, corruptela de precário com proletário, tem sido utilizado para referenciar a emergência do que seria uma nova classe social, um contingente crescente de pessoas que nem gozam de renda estável (vinda do trabalho assalariado ou de renda) nem estão na vala do desemprego crônico. Talvez ele possa nos trazer algumas boas sacadas.

Guy Standing
Há bastante controvérsia sociológica sobre uma precisa definição do grupo (ou mesmo se este constitui uma classe), mas o fenômeno se torna bastante concreto se olharmos a nossa volta e percebermos situações que vêm se tornando comuns no mercado de trabalho atual. Profissionais com formação educacional satisfatória ou muito boa, que conseguem viver e têm períodos de renda estável, porém intercalados com tempos de ganho muito baixo, em que as dívidas crescem e cada vez é mais difícil pagá-las com o dinheiro que aparece quando a maré melhora. Em geral são pessoas que executam funções abaixo de sua formação ou expectativa. Passam muito tempo “trabalhando para trabalhar”, construindo relações ou fazendo favores que podem render alguma recompensa financeira num futuro incerto.

O economista inglês Guy Standing fala de uma nova divisão de classes, tentando encaixar o fenômeno do precariado em um cenário ampliado. Sua tipificação parece por demais europeizada, mas pode ser útil para começar a precisar o que está acontecendo. No topo da pirâmide das classes estariam os grandes herdeiros, as celebridades ou os executivos das grandes empresas, capazes de reunir poupança mais do que suficiente para situações momentâneas de crise.

Bem abaixo estaria o que ele chama de salariado, os funcionários, públicos e privados, que gozam de férias, benefícios e estabilidade no emprego por lei ou porque sua demissão custaria demais aos seus patrões.

Próximo a eles estariam o que Standing chama de proficians, profissionais sem relação fixa de emprego, que trabalham por contrato, mas cuja combinação de habilidades faz com que consigam facilmente se colocar no mercado com ganhos altos ou bastante bons, o suficiente para não viverem momentos muito incertos e ainda gozando de independência.

Abaixo deles estaria o típico trabalhador industrial tradicional, com emprego fixo, relação formalizada. Um grupo que encolhe rapidamente, substituído pela mecanização ou pela inventividade das empresas na reformulação das estruturas tradicionais de trabalho.

O precariado estaria abaixo desses quatro grupos, ladeado pelos desempregados e pelos socialmente desajustados. Em relações efêmeras de emprego ou renda (bolsas, contratos curtos e sazonais de trabalho, bicos) viveria a constante expectativa de ascender a relações mais formais e com benefícios, ou mesmo conseguir se estabilizar como trabalhador independente. Mas também seria constantemente assombrado e psicologicamente torturado pela perspectiva concreta de descenso social a uma situação bastante desumana, sem direito ao mínimo para viver dignamente.

Standing trata o precariado não somente pela via da relação enfraquecida de trabalho, mas também pelo impacto psicossociológico sofrido por essa categoria. Seria um grupo sem senso de futuro, sem perspectiva de carreira e sem relação identitária positiva com a profissão e desligado da sociedade. Vivendo situações que só podem ser classificadas como de alienação, anomia, ansiedade e que levam ao ódio. Nesse sentido, o desligamento da política seria um sinal preocupante. E a classe seria particularmente vulnerável ao neofascismo.

Parece problemático transferir automaticamente essas observações a um país como o Brasil, com uma história social complicada e com um mundo do trabalho que só muito recentemente conseguiu alguns frágeis direitos. Mas é justamente esse grupo de trabalhadores industriais tradicionais que liderou as conquistas não somente entre 1970 e 1980, mas desde a fase de expansão industrial no início do século, que vem se enfraquecendo.

Esse processo parece tratar de algo ainda não consolidado. O precariado vem crescendo e diversas formas “criativas” de se explorar esse trabalho estão sendo inventadas, em particular pela indústria de tecnologia, que vem dando vazão a novas formas de conciliar a insegurança financeira e psicológica dos precários com a busca de lucro dos intermediários. É a sharing economy.

Aplicativos como o AirBnB, Uber, Favor e muitos outros são tocados no dia a dia majoritariamente por precários. Pessoas que enxergam nesses sistemas um jeito de entrar no mercado de trabalho de maneira independente e sem burocracia. É difícil argumentar que o Uber, por exemplo, não seja uma viabilização, edulcorada pela ideologia do Vale do Silício, do bom e velho táxi pirata. Boa parte dos imóveis disponíveis no AirBnB não são sofás oferecidos generosamente pelos seus donos a simpáticos viajantes. São imóveis disponíveis para temporada, agenciados por precários que intermedeiam o verdadeiro dono e o hóspede, prestando serviços como arrumar o apartamento e receber o viajante.

Que caminhos políticos tomará essa economia global cada vez mais liberalizada, intermediada por sistemas informacionais e ávida por força de trabalho criativa e barata, é ainda algo incerto. O efeito que terá em países subdesenvolvidos, cujos direitos políticos e civis já são historicamente frágeis, também é algo difícil de prever. Porém, parece ser bastante clara a necessidade de se estudar melhor a dinâmica política do precariado e agir reconstruindo laços de solidariedade e ligações culturais entre grupos explorados.


domingo, 9 de agosto de 2015

A linha vermelha



CARLOS GASPAR – Em três semanas, entre 12 de Junho e 4 de Julho, as bolsas de Shanghai e de Shenzhen cairam trinta por cento, perderam três triliões de dólares (ou 18.6 triliões de Renminbi) e provocaram um momento de pânico na direcção do Partido Comunista da China, forçado a intervir decisivamente para travar os riscos de colapso dos mercados financeiros.

A intervenção das instituições oficiais nos mercados começou por uma redução das taxas de juro, acompanhada pela injecção de 470 mil milhões de Renminbi no sistema bancário, prolongou-se com a proibição aos accionistas de referência e aos chefes de empresa de vender acções, acompanhada pelo compromisso dos fundos estatais em investir 120 mil milhões de Renminbi na aquisição de titulos, e culminou com a ordem de suspender as transacções de títulos da maioria das empresas cotadas, acompanhada pela intervenção do banco central na compra de acções. Desse modo, a direcção do Partido Comunista disciplinou o mercado: o pânico parou a tempo e a ameaça de colapso passou a ser, na fórmula do Goldmann Sachs, uma “correcção rápida e furiosa”, que fez as bolsas perderem o que tinham ganho nos últimos meses e regressar aos níveis, aparentemente mais realistas, de Março deste ano.

O tema das relações entre o Partido Comunista e as crises financeiras é irresistível. Marx jogava, com sucesso, na bolsa de Nova Iorque, mas não teorizou sobre a regulação dos mercados. Lenin não deixou nada escrito sobre a linha correcta para conter o pânico dos investidores ou sobre o modo de submeter as bolsas à vontade do Partido.

Stalin julgou que a Grande Depressão era a crise final do capitalismo e fez a reputação da União Soviética valorizando as virtudes da sua imunidade à instabilidade do capitalismo financeiro. Mas não há nada nos clássicos do marxismo-leninismo que possa orientar a direcção do Partido Comunista da China sobre como responder a uma crise dos mercados financeiros, por uma boa e simples razão: nenhum dos teóricos de referência imaginou ser possível um modelo de comunismo capitalista.

O “socialismo com características chinesas” é um “socialismo de mercado” e, como tal, tão ou mais vulnerável do que as “democracias de mercado” às oscilações bruscas e às flutuações misteriosas do capitalismo financeiro. À partida, as respostas socialistas e as respostas democráticas às crises não devem ser diferentes e, na fase inicial, as instituições chinesas recorreram a medidas convencionais para restaurar a confiança dos investidores — incluindo os 90 milhões de pequenos investidores chineses. Mas, numa fase posterior, perante a persistência dos “comportamentos irracionais”, o Partido recorreu a medidas excepcionais de intervenção estatal que revelam os limites das afinidades entre o regime chinês e os seus primos capitalistas, cuja capacidade (crescente) de inovação neste domínio está circunscrita pelo estado de direito.

Essa questão é séria em si mesma, mas também porque está em causa o sentido da evolução política chinesa, na luta entre duas linhas — a linha negra que quer regresssar ao estatismo nacionalista e proteccionista e a linha vermelha que quer continuar a linha da liberalização e da abertura inaugurada por Deng Xiaoping.

A crise confirmou, desde logo, a necessidade de reformar o sistema financeiro na China. O último relatório do Banco Mundial sublinhava a urgência de “reconfigurar o papel do Estado” para travar os investimentos improdutivos e os excessos de endividamento num sistema bancário com uma regulação demasiado fraca. Por outro lado, a acumulação das dividas dos governos provinciais e das entidades empresariais, que somam 280% do produto interno bruto, revelam uma vulnerabilidade acrescida do modelo de capitalismo de Estado chinês, onde a divida cresce duas vezes mais depressa do que a economia. Por último, segundo as previsões dos planificadores chineses, os ritmos de crescimento tendem, naturalmente, a diminuir para se aproximarem dos 7% anuais, uma mudança que marca o fim de um ciclo excepcional.

Nenhum desses problemas é inesperado, tal como a quebra nas bolsas era previsível, mais tarde ou mais cedo. Nesse sentido, não há nenhuma razão para rever as avaliações sobre a restauração gradual da posição internacional da China como uma grande potência, que representa o essencial do programa do regime comunista.

Porém, não é evidente quais são as consequências da crise para a luta entre as duas linhas. A crise tanto pode servir para demonstrar os malefícios do capitalismo e a interferência de “forças estrangeiras hostis” que querem derrubar o regime comunista na China, como para sustentar a urgência de modernizar o modelo do comunismo capitalista para o tornar mais competitivo, mais aberto e mais responsável, quer no domínio social, quer no domínio ecológico.

O Presidente Xi Jinping e o primeiro-ministro Li Keqiang querem dar mais força ao mercado, ao mesmo tempo que resistem à liberalização política, os seus adversários internos querem dar mais força ao Estado e inverter a liberalização económica. Os primeiros reconhecem a necessidade de manter a estabilidade internacional para a China poder continuar concentrada no seu processo de modernização, os seus adversários entendem ter chegado o momento de demonstrar o poder acrescido da China para impor a sua hegemonia regional.

Na China, a linha negra é o autoritarismo nacionalista e proteccionista e a linha vermelha a combinação entre o regime comunista, a modernização do sistema capitalista e a abertura externa: se a primeira prevalecer, a transição internacional vai acelerar.

Texto postado originalmente em:

http://publico.uol.com.br/mundo/noticia/a-linha-vermelha-1702679


domingo, 2 de agosto de 2015

Anarquistas e libertários


Causa espanto a indiferença e a tolerância dos “anarquistas” em relação às apropriações mais ou menos indevidas que muitos andaram fazendo do rótulo de “libertário”. Mas eles rebatem dizendo que delimitar o termo equivaleria a contrariar os próprios princípios que o norteiam


Por Jean-Pierre Garnier


Por muito tempo, os termos “anarquista” e “libertário” foram considerados indissociáveis. As organizações que os adotavam viam nessas expressões uma forma de definir seu posicionamento na esfera política – mais precisamente fora dela ou em seu limiar. 

Muitos os combatiam ou os reprovavam. Além dos guardiões oficiais da ordem burguesa, seus principais adversários eram os membros de outros partidos, tanto de esquerda como de direita, jornalistas de toda sorte e a “opinião pública”, que sempre enfiava os anarquistas e os libertários dentro do mesmo saco. 

Hoje em dia, a associação entre as duas palavras continua pertinente aos olhos dos interessados pelo tema, ainda que eles façam questão de precisar por que essas denominações não são sinônimas. O anarquismo, dizem, é a teoria política que escora as duas noções e tem como fim último a autoemancipação coletiva dos trabalhadores diante dos poderes que os oprimem. Tal objetivo implica a autolibertação dos indivíduos – emblema da vertente libertária – em relação às instituições, às normas e às crenças que os alienam. Colocada dessa forma, a distinção entre as duas noções na verdade ressalta ainda mais sua complementaridade semântica e política. 

Em contrapartida, fora dos círculos restritos cujos integrantes acreditam que a existência do Estado continua sendo uma ameaça às liberdades, tudo indica que a associação entre anarquistas e libertários deixou de ser tão óbvia assim. De fato, tornou-se uma atitude comum entre políticos, intelectuais e jornalistas opor de maneira dicotômica os termos “anarquista” e “libertário”. De um lado, o anarquismo tende agora a substituir o falecido comunismo no papel de figura do Mal, ao lado do fundamentalismo islâmico. De outro, o epíteto “libertário” acabou constituindo um rótulo cultural fartamente veiculado na mídia, muito utilizado pelos “revoltados de butique” de toda laia, que disfarçam sua adesão à ordem estabelecida por meio de um verniz anticonformista1. 

O caos niilista

Vale lembrar que esse duplo processo de demonização e de neutralização não é exatamente uma novidade. A partir do final do século XIX, o anarquismo poderia ter sido facilmente identificado com o terrorismo por sua “propaganda por meio do fato” – atentados realizados por alguns grupos na Rússia e na França. E de maneira mais geral, o anarquismo seguiu mantendo por muito tempo o significado de um caos social niilista, afastando-se da concepção da vida em sociedade que o geógrafo Elysée Reclus resumiria na fórmula “a ordem sem o poder”2.   

Posteriormente, o anarquismo não tardou a ser alvo de outra descaracterização linguística, só que dessa vez destinada a valorizar artistas e escritores que se dedicavam abertamente a “atropelar os códigos estéticos burgueses”. Ao longo do século XX, muitos se enquadraram nessa vertente, desde os protagonistas do movimento Dadá e da “revolução surrealista” que lhe sucedeu, até os “turbulentos” cineastas da Nouvelle Vague, passando por certos romancistas ou ensaístas reacionários do pós-guerra que se colocavam como “anarquistas de direita”. 

Mais tarde, o qualificativo de “libertário” tomou seu lugar, entre outros, no campo da música popular francesa, a “chanson”, com Georges Brassens, Jacques Higelin e Renaud. Após ter sido dissociado de um anarquismo que acabara classificado como doutrina de transformação social obsoleta3, esse termo acompanhou uma liberação dos costumes e das mentes, particularmente afinada com a liberalização da economia, a ponto de dar à luz o seguinte oximoro mutante: o do “liberal-libertário”.

Antes de ser sacramentada como um conceito, no sentido publicitário do termo, essa expressão fora proferida como acusação por um sociólogo do Partido Comunista Francês (PCF), para fustigar o advento de um “capitalismo da sedução”, simultaneamente repressivo no plano “social” e permissivo no plano “societário”. 

Trata-se de uma descrição precisa dos tropeços direitistas de certos líderes da revolta de maio de 1968, que passaram a menosprezar a revolução, valorizando apenas aquela das subjetividades4. O mais destacado entre eles é ninguém menos que Daniel Cohn-Bendit, atualmente deputado europeu pelo partido ecologista alemão Die Grünen. Como tantos outros, ele passou “do ‘detestar os poderosos’ para a paixão pelo poder; do ‘não’ sistemático da contestação para o ‘sim’ extasiado do assentimento; da candura e da intransigência de um levante iminente para as posturas e as imposturas de um conformismo servil”5. 

Transgressão individual

Ao longo dos anos, com o aumento das desigualdades, da precariedade e da pobreza no mundo, a dupla “liberal-libertário” aos poucos perdeu a credibilidade. Isso, porém, não resultou numa reaproximação com o anarquismo. Ao contrário: a dissociação entre os dois só se aprofundou. Enquanto este último é cada vez mais criminalizado, principalmente em função da retomada das lutas baseadas na ação direta, uma reação ao agravamento da marginalização em massa e ao endurecimento da repressão, o posicionamento libertário goza de prestígio entre as elites. Prova disso é o fascínio crescente do filósofo Michel Onfray, cujo “individualismo hedonista e ateu” criou certa ilusão nos meios anarquistas, apesar do seu apetite publicamente assumido por uma “gestão libertária do capitalismo”. 

Causa espanto a indiferença e a tolerância dos “anarquistas” em relação às apropriações mais ou menos indevidas que muitos andaram fazendo do rótulo de “libertário”. Mas eles rebatem dizendo que delimitar o termo equivaleria a contrariar os próprios princípios que norteiam esse rótulo. E acrescentam a seguinte pergunta: as recuperações e os desvirtuamentos dos quais a expressão tem sido objeto não seriam uma prova, afinal, de que a causa libertária vem ganhando popularidade? Esses supostos anarquistas simplesmente parecem não perceber que toda essa movimentação leva à perda do radicalismo crítico, que é monopolizado e absorvido por uma culturalização individualista e desengajada da política.

Dentro de um contexto de restauração política e ideológica, estamos assistindo a uma disputa na qual os adversários opõem o “social”, assimilado ao alistamento militar e à uniformização, ao “societário”, que é o epicentro de todas as “libertações”, para deixar claro que a submissão às “obrigações geradas pela economia” de maneira alguma implica a renúncia aos valores contestatórios do passado. Daqui para frente, preocupado acima de tudo com seu desenvolvimento pessoal imediato, o neopequeno-burguês “libertário” rejeitará toda perspectiva de autoemancipação coletiva, que ele enxergará como uma ameaça contra a democracia e o Estado de direito. 

Limitada ao modo de vida concebido como “estilo de vida”, a “não-conformidade” não tem mais motivo para investir contra os códigos e as normas oficiais, uma vez que sua “transgressão” individual, institucionalizada, subvencionada e mercantilizada participa da renovação da dominação capitalista. Em contrapartida, agora que contam com aprovação – espalhafatosa ou tácita – dos beneficiários dessas liberalidades, os governantes poderão se dar ao luxo de reprimir toda forma de luta, comportamento ou palavra que represente um obstáculo para essa dominação. Isso equivale a dizer que os “neolibertários” nada fazem senão acrescentar o indispensável prefixo “neo” a um conservadorismo reforçado.


Notas

1   Vale lembrar que o neologismo “libertário” nasceu no final dos anos 1850 da escrita corrosiva de um anarquista, Joseph Déjacque, que dedicou sua vida a espinafrar os compromissos e os comprometimentos da pequena burguesia republicana da época. 
2   De modo algum isso significa que se possa “mudar o mundo sem tomar o poder”, segundo afirmarão alguns teóricos importantes em sua busca de alternativas à globalização neoliberal. Em primeiro lugar, porque é imprescindível tomar o poder da burguesia para mudar o mundo. Em segundo, porque o poder de mudar o mundo exclui, para os anarquistas, que alguém possa exercê-lo “sobre o povo”, já que é precisamente este último que, auto-organizado, deteria o poder em vez de delegá-lo.    
3   A “velha guarda” anarquista francesa não raro se mostra vulnerável a essa depreciação. Atolada no culto aos grandes ancestrais e às polêmicas datadas – como aquela de Proudhon e Bakunin versus Marx e Engels –, reduzindo o pensamento em torno da filosofia de Marx ao marxismo de aparelho (partidário ou estatizante), ignorando os pensadores mais importantes do comunismo libertário (A. Pannekoek, O. Rühl e P. Mattik) e movida por um antimarxismo visceral, ela acaba deixando de lado a análise materialista das transformações do capitalismo, arriscando-se a não entender mais nada do processo e chegando até mesmo a dar crédito às análises de alguns defensores do sistema em vigor, tais como Stéphane Courtois. 
4   Michel Clouscard, Néo-fascisme et idéologie du désir, Denoël, 1973 ; Le capitalisme de la séduction, Éditions sociales, 1981. 
5   François Cusset, La décennie – Le grand cauchemar des années 1980, La Découverte, 2006.


Jean-Pierre Garnier é sociólogo, autor do  livro Contra os territórios de poder.