sábado, 28 de setembro de 2019

Socialismo e religião



                                                                                   So­ci­a­lista, ca­tó­lico, na­ci­o­na­lista: 
                                                          textos de James Con­nolly chegam ao Brasil pela pri­meira vez

Retrato de Mike O'Dea

Em 24 de abril de 1916, durante a Se­mana Santa, cen­tenas de ir­lan­deses se le­van­taram em armas, ocu­param pontos-chaves da ci­dade de Du­blin e pro­cla­maram a in­de­pen­dência da Ir­landa frente ao do­mínio bri­tâ­nico. A "Re­volta de Páscoa" ou "Le­vante de Páscoa", como o epi­sódio ficou co­nhe­cido, acabou der­ro­tada seis dias de­pois. Mais de 60 re­beldes foram mortos em com­bate, e 16 foram exe­cu­tados.

Dentre eles es­tava James Con­nolly, um dos lí­deres do Co­mitê Mi­litar que, se­ve­ra­mente fe­rido pelos com­bates, ficou im­pos­si­bi­li­tado de ficar de pé frente ao pe­lotão de fu­zi­la­mento e foi le­vado para a morte em uma maca e su­pli­ciado amar­rado a uma ca­deira.

"Apesar James Con­nolly ser um dos mais im­por­tantes lí­deres so­ci­a­listas do sé­culo 20 - quando seu filho vi­sitou Lênin na Rússia, com quem seu pai trocou inú­meras cartas, em 1922, al­guns jor­nais so­vié­ticos o des­cre­viam como o 'Lênin ir­landês' - ele é um ilustre des­co­nhe­cido no Brasil. Suas obras nunca foram pu­bli­cadas em por­tu­guês, e mesmo na in­ternet é raro en­con­trar seus ar­tigos tra­du­zidos. É por isso que o pu­bli­camos", diz Pedro Marin, editor da Bai­o­neta, que acaba de lançar uma co­le­tânea de ar­tigos do líder ir­landês, So­ci­a­lismo e Re­li­gião.

"Um dos as­pectos in­te­res­santes da obra é que ela é bas­tante an­te­rior à Con­fe­rência de Me­dellín e à ex­plosão da Te­o­logia da Li­ber­tação na Amé­rica La­tina. Como na Ir­landa a re­li­gião se de­sen­volveu como um vetor so­cial e po­lí­tico na se­pa­ração das iden­ti­dades dos co­lo­ni­zados ir­lan­deses e dos ocu­pantes bri­tâ­nicos, um de­bate po­lí­tico forte sempre foi feito ao redor dela", com­pleta.

O livro reúne sete textos de Con­nolly - dentre eles "Tra­balho, Na­ci­o­na­li­dade e Re­li­gião", pu­bli­cado como livro em 1910, e "As Cri­anças, o Sin­di­cato dos Tra­ba­lha­dores e Trans­portes Ir­lan­deses e o Ar­ce­bispo", es­crito du­rante o Lo­caute de Du­blin, em 1913 - em que o fun­dador do Par­tido So­ci­a­lista Re­pu­bli­cano Ir­landês e do Exér­cito Ci­dadão Ir­landês, ele mesmo um ca­tó­lico, de­bate a re­lação entre re­li­gião, so­ci­a­lismo e a for­mação po­lí­tica da Ir­landa.

Por vezes, os em­bates pú­blicos são feitos até com clé­rigos: "Essa ati­vi­dade po­lí­tica no pas­sado, como a opo­sição cle­rical ao so­ci­a­lismo no pre­sente, era e é uma ten­ta­tiva de servir a Deus e a Mammon - uma ten­ta­tiva de com­binar os ser­viços d’Ele que em Sua hu­mil­dade montou um ju­mento, com o ser­viço da­queles que mon­taram ca­valos com fer­ra­duras para passar por cima dos co­ra­ções e almas e es­pe­ranças da hu­ma­ni­dade so­fre­dora", res­ponde Con­nolly ao padre Ro­bert Kane em um dos ar­tigos.



O livro foi lan­çado du­rante o V Salão do Livro Po­lí­tico, em São Paulo, e já está à venda no site da edi­tora.

Con­fira o pró­logo, as­si­nado por Pedro Marin:

James Con­nolly nasceu em 5 junho de 1868. Sua vida deu li­ção de sua gran­deza: co­me­çou a tra­ba­lhar aos onze anos, se alistou no Exé­rcito Bri­tânico aos qua­torze, fal­si­fi­cando seus do­cu­mentos, e pelos seus vinte se tornou so­ci­a­lista. Em maio de 1896, fundou o Par­tido So­ci­a­lista Re­pu­bli­cano Ir­lan­dês (IRSP). Par­ti­cipou ati­va­mente do “Lo­caute de Du­blin”, em 1913, que durou seis meses e en­volveu 20 mil tra­ba­lha­dores, e neste mesmo ano, em res­posta ao lo­caute, fundou o Exé­rcito Ci­da­dão Ir­lan­dês (ICA), um grupo ar­mado e bem trei­nado com o fim de de­fender os tra­ba­lha­dores da bru­ta­li­dade da Po­li­cia Me­tro­po­li­tana de Du­blin.

Em 24 de abril de 1916, Con­nolly co­mandou a Bri­gada de Du­blin du­rante a Re­volta de Pá­scoa, que tomou a Ir­landa por seis dias de com­bate por sua in­de­pen­dê­ncia, no mais im­por­tante mo­vi­mento ir­lan­dês desde a re­be­lião de 1798. Foi em fun­ção dessa Re­volta que, amar­rado a uma ca­deira, James Con­nolly foi fu­zi­lado em 12 de maio de 1916, aos 47 anos de idade, sem poder ver triunfar a pri­meira re­vo­lu­ção so­ci­a­lista da his­to­ria, que ex­plo­diria na Rú­ssia no ano se­guinte.

Apesar de uma vida tão de­vota à causa da in­de­pen­dê­ncia de seu país, e a des­peito de ter sido um dos mais im­por­tantes li­d­eres so­ci­a­listas do se­culo 20, James Con­nolly é um des­co­nhe­cido no Brasil. Seus es­critos nunca foram pu­bli­cados, e mesmo na in­ternet tra­du­ções são es­cassas. Isso é o que nos ins­pira a pu­blicá-lo.

Mas o que mo­tiva o tema dessa pri­meira co­le­ta­nea de James Con­nolly, sobre so­ci­a­lismo e re­li­gião, é um fato tri­vial: além de todas as con­di­ções ex­postas acima, Con­nolly era tam­bém re­li­gioso. Mais es­pe­ci­fi­ca­mente, ca­tólico. Du­rante os ritos antes de sua morte, re­a­li­zados pelo frade ca­pu­chinho Aloy­sius Tra­vers, Con­nolly de­clarou, frente a um pe­dido de que re­zasse pelos seus ca­pa­tazes: “eu re­zarei em nome de todo homem que faça suas obri­ga­ções de acordo com suas luzes”.

Assim, a fim de im­pedir ações in­justas, re­a­li­zadas por falta de cla­reza, pre­ten­demos com esse livro, antes de tudo, jogar novas luzes sobre o so­ci­a­lismo para aqueles que têm fé. Muitas das acu­sa­ções pre­sentes hoje no mundo re­li­gioso contra a dou­trina so­ci­a­lista re­montam, de fato, ao século pas­sado. E Con­nolly as res­pondeu, uma por uma, como so­ci­a­lista - mas tam­bém como ca­to­lico. Sua es­crita agu­çada, sua pre­o­cu­pa­ção com seu povo e na­ção, seu co­nhe­ci­mento his­to­rico e te­o­lógico, e, acima de tudo, seu senso de honra - de­mons­trado na frase pro­fe­rida antes de seu vil fu­zi­la­mento - sem dúv­idas será um grande alu­miar para os co­ra­ções e mentes que creem, in­de­pen­dente do credo.

Em se­gundo lugar, o pu­bli­camos para dar prova, agora aos so­ci­a­listas, de que a fé de um homem não ne­ces­sa­ri­a­mente im­plica em um dis­tan­ci­a­mento com os fla­gelos ter­renos, e por muitas vezes é na ver­dade a “raiz moral” para a ação contra eles. Assim, não deve nunca ser des­pre­zada, como Con­nolly de­monstra.

Os es­critos aqui co­le­tados es­tão apre­sen­tados por ordem his­tórica, do mais an­tigo ao mais novo. Damos es­pe­cial aten­ção a “Tra­balho, Na­ci­o­na­li­dade e Re­li­gião”, livro que Con­nolly pu­blicou em 1910, res­pon­dendo ao padre Kane. Ali está a prova maior de seus co­nhe­ci­mentos te­o­lóg­icos e his­tór­icos, e de sua ca­pa­ci­dade ar­gu­men­ta­tiva.

Tam­bém des­ta­camos “So­ci­a­lismo e Re­li­gião: O des­co­nhe­cido e o in­cog­nos­ci­vel”, que ins­pira o ti­tulo desta co­le­ta­nea, e que, es­crito em 1899, aclara ques­tões vi­gentes ainda hoje quando tra­tamos dos temas. Por fim, res­sal­tamos a im­por­tâ­ncia de “As Cri­an­ças, o Sin­di­cato dos Tra­ba­lha­dores de Trans­portes Ir­lan­deses e o Ar­ce­bispo”, es­crito no de­correr do Lo­caute de 1913, e onde fica claro o senso de honra e a dis­po­si­ção re­vo­lu­ci­o­na­ria do autor, que de­clara: “Sua Graça, nós es­tamos de­ter­mi­nados para lutar até contra a morte - a morte da qual al­guns de nós já so­fremos, a morte para a qual o seu hu­milde servo olhou na face sem pes­ta­nejar. Seria pre­fe­ri­vel en­tregar no­va­mente os tra­ba­lha­dores de Du­blin ao in­ferno da es­cra­vi­dão da qual eles es­tão emer­gindo. Sua graça, nós vamos lutar!”


terça-feira, 17 de setembro de 2019

Afinal, o que querem os partidos-movimento?



Eles prometem uma nova esquerda, indispensável. Mas, como mostra Alexandria Ocasio, talvez seja a hora de construir programas claros, e uma estrutura orgânica que vá além da eterna “consulta às bases”




Por Artur Araújo



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O núcleo de qualquer projeto hegemônico efetivo tem que ser uma nova economia política que ancore a revolução nos valores que os populistas de esquerda estão, corretamente, interessados em atingir. Nesse sentido, Margaret Thatcher foi uma gramsciana muito melhor do que muitos de seus epígonos quando explicou as premissas básicas de seu projeto político: “economia é o método; o objeto é mudar o coração e a alma”.


The Digital Party, de Paolo Gerbaudo

Foi o trecho acima — de um artigo de Chris Maisano publicado em 11 de fevereiro passado pela revista Jacobin — que me levou a aceitar de vez o desafio do editor do Outras Palavras, Antonio Martins: escrever uma coisa meio inusitada, a resenha de uma resenha de um livro que não li. Ambos havíamos gostado muito do texto de Maisano, mesmo sem poder confrontá-lo com a obra resenhada – The Digital Party: Political Organization and Online Democracy, de Paolo Gerbaudo. Antônio me convenceu que valia a pena tentar. Que os leitores julguem o resultado da invenção.

O título da resenha já provoca: The Party Has Logged On (O Partido Se Conectou, em tradução muito livre). E Maisano se dedica, muito bem, a desenvolver ideias próprias, a partir de pontos de relevância que identifica no trabalho de Gerbaudo. A análise se concentra no surgimento – e, principalmente, nas contradições e problemas – de formações políticas com concepções e estruturas radicalmente diversas dos clássicos partidos de massas e quadros da esquerda. O foco está nos Partidos Piratas (Escandinávia, Alemanha, Holanda, Leste europeu); no Movimento Cinco Estrelas (Itália); no Podemos (Espanha); no França Insubmissa; no Momentum, do Partido Trabalhista britânico; nos Socialistas Democráticos da América (EUA).

A premissa de que parte Gerbaudo, segundo Maisano, é que, independentemente de seu posicionamento ideológico, esses novos partidos (que denominam “digitais”) compartilham um compromisso com a “democracia real”, expressa na transparência, na participação direta e na “proximidade” viabilizada pelas plataformas digitais. No entanto, mesmo buscando responder aos desafios contemporâneos e à insatisfação generalizada com os partidos tradicionais, os “digitais” compartilham também sérias fragilidades.

Há uma consequência não pretendida no uso reiterado de mecanismos de consulta direta a filiados e simpatizantes por parte dos partidos “digitais”: a extinção dos quadros intermediários que, nos partidos tradicionais, sempre fizeram a mediação entre direção central e bases e, muitas vezes, atuaram como elemento de redução de tentações “caudilhescas” das principais lideranças partidárias.

“A análise de Gerbaudo indica que esses processos, ostensivamente mais horizontais, participativos e democráticos, frequentemente fortalecem a posição dos líderes partidários em relação aos demais membros do partido. (…) [Sem uma estrutura intermediária], como Gerbaudo aponta, [os partidos] se arriscam a criar uma ‘aristocracia da participação’, na qual membros com mais tempo ou outros recursos disponíveis desfrutam de influência desproporcional na vida organizativa”, afirma Maisano.

Os partidos “digitais” se apoiam em uma base social bem diferente dos partidos tradicionais. “Enquanto os clássicos partidos de massas estavam umbilicalmente ligados a classes sociais bem definidas, os partidos digitais buscam uma base de suporte muita mais amorfa e instável. Gerbaudo os chama de ‘Povo da Rede’, uma massa de “outsiders conectados’, cujo níveis de educação relativamente altos são confrontados com uma precariedade econômica persistente e com uma sensação generalizada de alienação em relação à política tradicional e às instituições. Eles tendem a ser jovens, não organizados em sindicatos, partidos ou outras organizações sociais e extremamente confiantes nas tecnologias de comunicação digital e nas plataformas de mídia social.”

A obsessão pela participação direta, no entanto, tem levado a uma preponderância de forma sobre conteúdo e mascarado o surgimento de novas hierarquias internas, ainda mais verticalizadas. “Todos os novos partidos digitais são intimamente associados a uma liderança carismática, cujo nome é virtualmente sinônimo da própria organização. Como Gerbaudo argumenta, esses partidos são definidos por uma dinâmica organizacional bem distinta, que ele denomina ‘centralização distribuída’: um ‘hiperlíder’ cercado por uma pequena coterie no topo e, embaixo, uma ‘superbase’, engajada mas principalmente reativa. (…) Na visão de Gerbaudo, a mediação, longe de ter sido eliminada, tornou-se mais disfarçada e mais centralizada.”

Gerbaudo argumenta que o carisma pessoal do “hiperlíder’, a despeito de seus óbvios riscos, pode oferecer uma solução temporária para a fraqueza – ou mesmo desmonte – das organizações coletivas dos trabalhadores, provocada pela onda liberal, Diz Maisano: “Atualmente, figuras de liderança continuarão a jogar um papel decisivo, dando voz ao descontentamento generalizado e arregimentando pessoas de posições sociais disparatadas em torno de um projeto político mais coerente.”

As novas formações partidárias têm tentado uma “engenharia reversa”, oposta à tradição de longa construção dos antigos partidos de massas da esquerda: chegar ao poder de Estado o mais rapidamente possível para, a partir dele, consolidar sua base de apoio na sociedade.

Como escreve Maisano, há lógica nessa estratégia, mas também há um risco considerável de “deixar suspenso no ar” um governo de esquerda, sem força social real, como tristemente exemplificado pelo Syriza na Grécia. As experiências de Jermy Corbyn (Reino Unido) e Bernie Sanders (EUA) seriam movimentos no sentido contrário, buscando ter uma base social mais orgânica e com um núcleo de classe mais definido.

A “transversalidade” social dos partidos “digitais” busca ganhar apoio em todo o espectro da sociedade. Tem sido bem sucedida como tática eleitoral mas, ao dar pouca importância aos interesses materiais e ao buscar representar “todos que concordam”, torna-se politicamente incoerente e tem grande dificuldade em explicitar o que exatamente o partido fará se e quando chegar ao poder de Estado.

Para Maisano, apesar dos partidos associados a um “populismo de esquerda” reivindicarem seguidamente a herança de Gramsci, é difícil conciliar tais afirmações com a recusa a uma política de classe. Afinal, foi o sardo quem escreveu, nos Cadernos do Cárcere: “a reforma intelectual e moral tem que estar ligada a um programa de reforma econômica – de fato, o programa de reforma econômica é precisamente a forma concreta pela qual toda reforma intelectual e moral se apresenta.”

Como aspecto positivo, Maisano identifica movimentos no rumo de uma política de classe mais explícita tanto no Podemos espanhol como, principalmente, no “New Deal Verde”, proposto pela deputada estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez, que articula a luta contra o aquecimento global a um programa econômico centrado nos interesses materiais dos trabalhadores.

Que Maisano também feche esta resenha da resenha do livro que não li.

“Os velhos partidos de massas da Esquerda se enfraqueceram não somente por terem estruturas organizacionais antiquadas, mas porque implementaram políticas que atacaram e desorganizaram sua base tradicional. Atualizar a forma partido, para que se adeque ao momento presente, é um aspecto indispensável de reconstrução de uma alternativa política ao capitalismo. Porém, se os novos partidos digitais da Esquerda não se comprometerem com um projeto de reorganização da classe trabalhadora que vá ao encontro dos interesses dela, eles poderão se apagar tão rapidamente quanto surgiram.”


quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Utopia concreta em vila anarco-comunista


Terra e trabalho para todos. Jornadas de 6 horas. Salários igualitários. Casa por cem reais. Mobilização permanente. Como o cooperativismo transformou a pequena Marinaleda num oásis, em meio à Europa em regressão social e política




Por Timothy Ginty e Gabriel Bayarri | Entrevista e trabalho de campo: Timothy Ginty e Scott Arthurson


No sul da Espanha, uma pequena vila de 2626 habitantes organiza-se há décadas para administrar comunalmente a propriedade da terra, do trabalho e das casas. A pequena aldeia andaluza de Marinaleda, que se dedica principalmente à agricultura, revelou-se ao mundo com o seu sistema de cooperativas como um exemplo de como este modelo de gestão pode reduzir de forma absolutamente eficaz os níveis de desigualdade e alcançar o pleno emprego. 

Tim Ginty e Scott Arthurson conversaram com o prefeito e líder carismatico do movimento, Juan Manuel Sanches Gordillo, sobre seu papel na organização, educação e agitação da cidade de Marinaleda. 

Entre os olivais do sul espanhol, pedimos aos trabalhadores rurais com seus velhos tratores e vans que nos levassem a Marinaleda. Francisco abre um lugar para nós em seu carro, e enquanto dirige ao longo da estrada local, conta os principais pontos da aldeia: a Casa do Povo, onde o Sindicato dos Trabalhadores do Campo realiza tarefas comuns de educação, ativismo e organização; os serviços públicos como a piscina, as escolas e os centros esportivos.

A"El Humoso", a propriedade rural expropriada  da aristocracia após
o fim do franquismo

Marinaleda, coberta de cal branca como qualquer outra vila da serra sevilhana, tem vários murais pintados nos seus predios: os olhos escuros de Che Guevara observam-nos a partir dos edifícios municipais. As bandeiras de uma Andaluzia vermelha, uma Catalunha independente, um País Basco e uma Palestina livre pintam a cidade de vermelho, verde e azul. Os pombos voam sobre as palavras de paz, rebelião e esperança.

Juan Manuel Sánchez Gordillo é uma figura central no “milagre de Marinaleda”. Prefeito desde 1979, o ano do retorno da democracia após a morte de Franco, ele ganhou as eleições com amplas maiorias absolutas. Intelectual, revolucionário, preso por ocupar terras militares e filho de agricultores, o papel central de Gordillo na construção de Marinaleda como uma “utopia para a paz” comunista, como diz o lema da cidade, ganhou fama e ódio em partes iguais. Os apoiadores de Gordillo comemoram sua liderança nas inúmeras campanhas que transformaram Marinaleda em um oásis de pleno emprego, em uma região onde o desemprego ainda sobe acima de 20% e o desemprego juvenil acima de 40%.  A taxa de desemprego de 5% da Marinaleda é muito inferior à das grandes cidades como Madrid ou Barcelona.

A luta mais importante da aldeia azeitoneira foi a campanha de doze anos para tomar a terra da aristocracia moderna e devolver a propriedade ao povo que a cultivava, os trabalhadores diaristas. A partir de 1979, a luta pela reivindicação da coletivização da terra começou com uma greve de fome de mais de 700 vizinhos que durou meio mês. O processo continuou com inumeráveis ocupações de lotes privados, e longas disputas e negociações legais que finalmente lhes renderam, em 1991, a propriedade legal de uma vasta extensão de terra chamada El Humoso, um latifúndio de 1200 hectares que era propriedade do Duque del Infantado e que hoje é administrado como uma cooperativa pelos trabalhadores de Marinaleda

O prefeito Gordillo:: anarquismo e comunismo, com um toque cristão

Na entrada da propriedade lê-se um grande letreiro: “Esta terra é para os trabalhadores diaristas desempregados de Marinaleda”. No Humoso, a agricultura é 100% ecológica, os campos são irrigados e completados com oliveiras, estufas e viveiros. Foi também impulsada uma fazenda de criação de cabras e ovelhas e uma fábrica local de conservas de legumes. Os pilares da produção são o pimentão, o feijão, a alcachofra e o azeite de oliva.

Reconhecendo que sua luta não foi apenas uma batalha local pela terra, os moradores de Marinaleda tornaram-se os líderes morais do movimento contra a austeridade na Espanha após o colapso do sistema habitacional em 2008. E durante longos anos de crise econômica, Gordillo alcançou fama nacional por suas políticas contra a pobreza, o desemprego e a falta de moradia que dispararam durante anos de recessão. 

Entrando em seu escritório, a bandeira da Segunda República Espanhola – símbolo da esquerda antifranquista – brilha com seu tricolor vermelho, amarelo e roxo no canto, enquanto uma fotografia de Che Guevara dirigindo-se às Nações Unidas fica ao seu lado. A peça central da sala se assenta numa mesa redonda: uma escultura de punhos grandes erguidos, tratando de se libertar das correntes de ferro que prendem os pulsos. Abaixo do punho se lê gravado:”MARINALEDA”

A entrada de El Humoso, cooperativa de onde vem parte da riqueza
compartilhada

A filosofia política de Gordillo amadureceu à medida que o regime fascista espanhol se enfraquecia; após a morte de Franco, Gordillo se envolveu com o Sindicato de Trabalhadores do Campo, uma união agrária que se aliou ao Coletivo de União dos Trabalhadores (CUT) para apresentar Gordillo como candidato a prefeito nas primeiras eleições municipais espanholas em 1979, após o colapso do regime de Franco.

Depois de ganhar a prefeitura, Gordillo lançou uma campanha após a outra com o objetivo de satisfazer as necessidades básicas das pessoas: alimentação, água, moradia e eletricidade. O passo mais audacioso nesses primeiros anos foi a histórica greve de fome e ocupação que buscava transferir vastas terras privadas para os camponeses sem terra. Explicando a razão desta greve de fome e desta ocupação, Gordillo conta: “Compreendemos que a luta contra o desemprego significava uma luta pela terra.” Este confronto com os proprietários privados fez do gabinete de Gordillo um gabinete de prefeitos que enfrentou os problemas em suas raízes; um gabinete raro e radical.

Uma História de Consciência Política

Em nosso encontro, Gordillo enfatiza que a ação coletiva deve ser baseada em uma educação política que desenvolva a consciência de classe: “as pessoas expropriadas devem organizar-se e identificar-se como expropriadas. Mesmo as classes médias também são expropriadas – da terra, do capital, do poder. E em Marinaleda, a consciência de classe é uma alta prioridade. Os murais contra-culturais que pintam as paredes do povo são testemunho da esperança que leva este povo à ação.”

Mas Gordillo não é um dogmático. Ele se inspira em todas as fontes, em qualquer ser humano que tenha sonhado em “construir um mundo diferente no qual os recursos sejam colocados a serviço das pessoas e não de interesses privados”. Cita Gandhi, Che Guevara, Jesus Cristo, junto com a experiência de nações que ainda lutam para serem reconhecidas como tais; os curdos, os saarauis, os palestinos. Ele diz: “Você tem que tirar um pouco de cada um; você tem que tirar um pouco do anarquismo, do socialismo, do marxismo, do Che, de algumas coisas de Lênin, de algumas coisas de todos e, acima de tudo, da sua própria experiência”. A filosofia política de Gordillo é um mosaico de ideias endurecido na experiência do genocídio que a esquerda viveu durante o regime de Franco, a guerra civil e a ditadura, e moldado na memória histórica do nacionalismo andaluz. Questionado sobre o que aprendeu com sua própria experiência, ele responde: “A não-violência pode realizar qualquer coisa no mundo. Que tudo é possível”.

As paredes brancas cobertas de murais

Perguntando a sua citação de Cristo entre os seus heróis, ele nos explica que vê Cristo como o primeiro comunista. “Cristo era um revolucionário, e assim eles se livraram dele. Cristo o pacifista, Cristo o agitador, o reformador que declarou que o reino de Deus está dentro do homem, não em outro lugar, e certamente não dentro de um papa”.

É esta tradição social cristã, a mesma desenvolvida pela Teologia da Libertação na América Latina, que Gordillo reivindica. Ele insiste que “o cristianismo e o marxismo, o cristianismo e o comunismo são perfeitamente compatíveis”, e reconhece o papel de um elemento mais profundo — pessoal ou espiritual — no humanismo político, demonstrando que, em contraposição aos projetos neofascistas ou da “supremacia teológica”, pode-se reconstruir uma tradição cristã progressista. 

Marinaleda e a Solução Cooperativa

Os sucessos sócio-econômicos da aldeia, como o pleno emprego, salários igualitários de 1200 euros por mês (aproximadamente 4450 reais) em jornadas de 6 horas de trabalho ou a inexistência de polícia fazem-nos pensar sobre como o modelo cooperativo de Marinaleda seria transferível para outras regiões. O modelo cooperativo tem sido acompanhado por um sistema participativo no qual todas as decisões estratégicas do município são tomadas em uma Assembléia Popular, bem como as políticas de gestão de terras e habitação, oferecendo habitação a partir de 15 euros por mês (aproximadamente 66 reais)

O modelo cooperativista não apresenta inviabilidade estratégica. Em vez de canalizar lucros para executivos e acionistas que agregam pouco valor produtivo, uma cooperativa reinveste no capital da empresa, permitindo-lhe prosperar em tempos bons e sobreviver em tempos difíceis. É um modelo que salvaguarda aspirações sociais, econômicas, políticas e culturais conjuntas por meio de empresas de propriedade coletiva e controladas democraticamente.

O conflito entre a gestão e os trabalhadores é minimizado graças à representação democrática e à tomada de decisões, e o exemplo de cooperativas bem sucedidas como El Humoso de Marinaleda pode ser visto em outros lugares – como no caso representativo da cooperativa de Mondragon, a maior do mundo. Localizada no País Basco, norte da Península Ibérica, ela emprega atualmente cerca de 81 mil trabalhadores e realiza um volume de negócio anual de mais de 11 bilhões de euros (aproximadamente 50 bilhões de reais).

No atual declínio da social-democracia, substituída por um neoliberalismo social no contexto espanhol, as cooperativas são um mecanismo capaz de iniciar modelos transformadores de gestão de recursos. O caso de Marinaleda revela o potencial de sucesso destes mecanismos intersetoriais, capazes de enfrentar as desigualdades estruturais resultantes do sistema atual. Num contexto de crise sistêmica, econômica, ambiental, social e política, materializada no ascenso das extremas direitas, estas práticas oferecem formas eficazes de ação coletiva.

No entanto, somente através desta ação coletiva, mobilizada pelas diversas organizações pró-cooperativistas, bem como pelos sindicatos, será possível promover uma consciência social efetiva, capaz de exigir políticas que promovam a cooperativização da economia através de uma série de incentivos fiscais e creditícios

Marinaleda demonstra que uma comunidade dominada pela agricultura familiar terá uma estrutura social mais igualitária e uma vida institucional mais rica, colaborando não só em relações sócio-econômicas bem-sucedidas, como também na geração de vínculos emocionais e psico-afetivos, permitindo que essa gestão seja, como diz Gordillo, “uma forma de educação política e de aquisição de consciência de classe”. 

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Gabriel Bayarri é um escritor e antropólogo espanhol

Timothy Ginty é um escritor australiano. Escreve em seu blog, Lives and Times: Writing on the World Around Us.

Scott Arthurson é um escritor australiano.