segunda-feira, 30 de abril de 2012

Primeiro de maio: relembrando o massacre de Chicago

Por Aluizio Moreira
Trabalhadores, despertai! - Serov
O dia que deu origem às comemorações internacionais do 1º. de maio, não foi um dia qualquer. Não foi decorrente de qualquer tipo de acontecimento que justificasse qualquer tipo de festividade, recheado por discursos de parlamentares e atos presidenciais estabelecendo um novo salário mínimo. Aquela manhã de maio de 1886, foi mais um dia de luta da classe operária pela conquista das 8 horas de trabalho. A limitação da jornada de trabalho, remonta a 1817 quando Roberto Owen, industrial  e socialista utópico inglês, na sua proposta de criação de comunidade igualitária, fixava a jornada de trabalhos em 8 horas diárias.

A luta pela jornada de 8 horas ganhou novos impulsos com o surgimento de organizações dos operários, a nível nacional e internacional. Desde os primeiros Congressos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), fundada em Londres em 1864 por iniciativa dos operários franceses e ingleses, a reivindicação da redução da jornada de trabalho, fazia sempre parte das suas  pautas em Congressos e Conferências dos trabalhadores. No seu 2º. Congresso ocorrido em 1866 na cidade de Genebra, a Primeira Internacional discutiu em plenário a questão das 8 horas, considerada tão importante que era vista como "o primeiro passo para a emancipação do trabalhador". Nos Congressos seguintes o tema sempre fez parte das discussões nos encontros internacionais como era Bandeira de luta nas mobilizações empreendidas pelos trabalhadores industriais.
  
Naquela época, que marcou o início da organização operária a nível internacional, além das aviltantes condições de trabalho, dos salários insuficientes até mesmo para a reprodução da própria força de trabalho, da exploração da mão-de-obra das mulheres e crianças, o regime de trabalho nas indústrias dos países capitalistas chegava a 12, 14, 16 horas diárias, com no máximo uma hora para refeições, como denunciou Friedrich Engels em "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra"

Fora da Europa, até então centro industrial do mundo, nos países que adotaram o modo capitalista de produção, os mesmos problemas eram vivenciados pelos trabalhadores, como conseqüência da própria lógica do capital: desemprego, baixos salários, condições desumanas de vida e de trabalho, exploração da mão-de-obra feminina e infantil, horas exaustivas de trabalho, péssimas condições de saúde e de moradia. 

No norte dos Estados Unidos a situação dos trabalhadores se identificava a dos trabalhadores europeus. E o movimento sindical norte-americano surgiu já em 1827, ano em que os operários realizaram a primeira greve, com a criação da União das Associações dos Trabalhadores da Filadélfia. Em 1866 num Congresso Operário realizado em Baltimore, uma das resoluções aprovadas em Assembléia dizia respeito à adoção da jornada de 8 horas de trabalho, que deveria, segundo o Congresso, estender-se a todos os trabalhadores do País. Evidente que os patrões não iriam acatar a decisão de uma Assembléia Operária. Como não iriam acatar a decisão do Senado americano que em 1868 determinou o regime de 8 horas para todos os empregados da União.

Em 1877, os ferroviários nos Estados Unidos entram em greve especificamente pela implantação da jornada de 8 horas: os trabalhadores perderam 30 companheiros mortos pelas forças policiais.

Na década de 1880, os Estados Unidos atravessavam uma  grande crise econômica de superprodução, provocando uma onda de desemprego que atingiu milhares de operários em vários centros industriais norte-americanos: Nova Iorque, Detroit, Chicago e Cincinnati. Mas não era só o desemprego que agravava a situação dos trabalhadores das indústrias naquele país. O crescimento da utilização da  mão-de-obra de mulheres e de crianças (mais barata que a mão-de-obra masculina), o aumento do custo de vida, o aumento da jornada de trabalho, inclusive com o trabalho nos domingos e feriados,  eram os mecanismos utilizados pelos empresários para minorar o impacto da crise sobre seus lucros.

Em 1884 a Federação Americana do Trabalho (American Federation of Labor - AFL), fundada em 1881, promoveu um Congresso de Trabalhadores em Chicago, centro que congregava milhares de operários. Nessa ocasião o Secretário da AFL, Frank K. Foster, propõs a realização de uma greve geral nacional a fim de forçar os patrões a reduzirem o horário da jornada de trabalho. O operário Gabriel Edmonston ao endossar a proposta de Foster, foi mais longe: sugeriu que a partir de 1º. de maio de 1886 os trabalhadores deveriam considerar o dia de trabalho de 8 horas, paralisando suas atividades naquelas indústrias que não acolhessem a decisão daquele Congresso. A Assembléia se manifestou favoravelmente às palavras de Edmonston.

O movimento operário cresce em organização e intensidade, consequência da situação lastimável dos trabalhadores. Cresce o número de organizações da classe operária,sobretudo nos anos 1882-1885; surgem no país mais de trezentos jornais produzidos pelos próprios trabalhadores e por grupos socialistas e anarco-sindicalistas: “Laborer” (Massachusetts), “Craftsman” (Washington), “Labor Tribune” (Pittsburg), “New-Ypor”, “Volks-Zeitung”, “Der Sozialist”, “The Alarm”, “Arbeiter-Zeitung". Estes dois últimos dirigidos respectivamente por Albert Parsons e August Spies, duas vitimas do massacre de Chicago.

A crise se aprofunda e o movimento operário se amplia, tendo como principal reivindicação a redução da jornada de trabalho. Por volta de 1886, o número de participantes nas manifestações aumenta doze vezes. Cerca de 320 mil trabalhadores  saem às ruas em diversos estados, em cumprimento à resolução do Congresso de Trabalhadores acontecido em 1884, promovido pela  Federação Americana do Trabalho (AFL).

Os principais centros industriais dos Estados Unidos paralizam suas atividades no dia 1º de maio de 1886, pra o desespero dos empresários e políticos norte-americanos.

O massacre de Chicago

Repressão policial - Chicago 1886
Em Chicago, cidade considerada centro do anarco-sindicalismo nos Estados Unidos, ALBERT PARSONS e AUGUST SPIES lideraram uma passeata naquela manhã de sábado, após uma Assembleia realizada na praça Haymarket, reivindicando a redução da jornada de trabalho e melhoria das condições de trabalho.  As mobilizações continuaram no domingo e na segunda-feira. Neste dia, em frente à fábrica McCormick Harvester, a polícia disparou vários tiros contra uma multidão de operários desarmados, bombas foram lançadas contra a multidão, cujo saldo somou 6 mortos, 50 feridos e mais de cem trabalhadores presos. Entre os presos se encontravam os líderes sindicais ALBERT PARSONS, AUGUST SPIES, SAM FIELDEN, OSCAR NEEB, ADOLPH FISCHER, MICHEL SCHWAB, LOUIS LINGG e GEORG ENGEL.

Uma onda de repressão se abateu sobre o movimento operário: a imprensa conservadora intensificou uma campanha difamatória contra os operários; as organizações e os jornais operários  foram fechados; prisões em massa foram efetuadas sem qualquer formalização de culpa; os operários identificados como líderes do movimento foram levados a julgamento, acusados de incitar o povo à violência, como autores dos disparos  e das bombas e consequentemente pelas mortes decorrentes da manifestação.

No dia 21 de junho do mesmo ano teve inicio o julgamento dos operários. 

No dia 9 de outubro de 1886 foi proferida a sentença:ALBERT PARSONS, AUGUST SPIES, ADOLPH FISCHER, GEORGE ENGEL, e LOUIS LINGG, foram condenados à morte por enforcamento. SAMUEL FIELDEN e MICHAEL SCHWAB, à prisão perpétua. OSCAR NEEBE, a quinze anos de prisão.


À caminho da forca
Um ano depois, no dia 11 de novembro de 1887, os condenados á morte foram enforcados publicamente, exceto LOUIS LINGG que estranhamente  suicidou  na prisão acendendo com uma ponta de cigarro, o pavio de uma bomba de dinamite.(Atualmente a maioria dos historiadores admite que Lingg tenha sido assassinado).

Seis anos depois, pressões internacionais e nos Estados Unidos, fizeram com que o processo fosse revisto e a sentença fosse anulada, o que favoreceu SAM FIELDEN, MICHAEL SCHWAB e OSCAR NEEB.

Os acontecimentos de Chicago marcaram para sempre o Movimento Operário Internacional e passaram a ser lembrados em vários encontros da classe trabalhadora em vários países.

No Segundo Congresso da IIa. Internacional (fundada em Paris em 1889) realizado em Bruxelas no mês de setembro de 1891, foi aprovada a proposta que tornou permanente a celebração do 1º. de maio como marco da luta e da solidariedade internacional dos trabalhadores.

O movimento sindical e políticos liberais nos Estados Unidos e no mundo, não deixaram de protestar e se mobilizar internacionalmente contra as condenações dos operários.

Em 26 de julho de 1893, a justiça norte-americana concedeu o “perdão absoluto” aos sobreviventes Fielden, Neebe e Schwab.

A institucionalização do 1º. de maio porém não foi facilmente aceita pela classe dominante em   muitos países, ou quando aceita, procurou-se descaracterizar o seu significado, transformando a data num feriado a mais nos calendários nacionais. Mas apesar de toda tentativa de se esvaziar a importância dessa data, de se procurar ocultar o verdadeiro sentido do 1º. de maio, o movimento operário tem mantido vivo o espírito de luta de 1886.

Tinha razão August Spies, quando em sua defesa diante das autoridades que condenavam-no, se expressou com as seguintes palavras:

Monumento aos mártires de 1886
Praça Haymarket - Chicago
"Se com o nosso enforcamento vocês pensam em destruir o movimento operário - este  movimento do qual  milhões de seres humilhados que sofrem na pobreza e na miséria, esperam a redenção - se esta é sua opinião, enforquem-nos. Aqui terão apagado uma faísca, mas lá e acolá, atrás e na frente de vocês, em todas as partes, as chamas crescerão. É um fogo subterrâneo e vocês não podem apagá-lo". 

Já no local de execução, minutos antes do seu enforcamento, Spies pela última vez se dirige aos seus algozes:

"Adeus, o nosso silêncio será muito mais potente do que as vozes que vocês estrangulam". 

E mais uma vez Spies tinha razão.

O 1º de maio no Brasil

Quando o Segundo Congresso da IIª Internacional, reunido em Bruxelas no mês de setembro de 1891 estabeleceu a celebração permanente do 1º de maio, íamos completar dois anos de regime republicano.

As organizações dos trabalhadores eram associações de resistência, de auxilio mútuo, que congregavam artesãos de diversos ramos de atividades, preponderantemente manufatureiras e de serviços. 

A situação dos operários brasileiros, agrupados nas poucas indústrias que iam surgindo, era a mesma de seus companheiros de um capitalismo nascente na Europa um século antes: exploração do trabalho de mulheres e menores, baixos salários, precárias condições de vida, longas jornadas de trabalho.

Teixeira Mendes
Talvez por esses motivos, a primeira tentativa de se reduzir a jornada de trabalho, não tenha partido dos próprios trabalhadores, mas de representantes de uma elite intelectual e política: Teixeira Mendes e Miguel Lemos. Juristas, positivistas ortodoxos, elaboraram um anteprojeto encaminhado ao Ministro da Guerra, ainda durante o governo provisório, no qual propunham o estabelecimento de um salário mínimo, aposentadoria, 15 dias de férias anuais, seguro contra acidentes do trabalho e limite de 7 horas de trabalho diário, beneficiando as oficinas públicas, isto é, os trabalhadores dependentes do Estado. O anteprojeto simplesmente desapareceu entre uma sala e outra dos Ministérios.

No mesmo ano de 1890, meses depois das “preocupações” dos dois juristas, há noticias da primeira iniciativa operária de proposta da jornada de 8 horas de trabalho: em São Paulo, trabalhadores reunidos no salão do Teatro São José, para formação de um Partido Operário, encarregaram Francisco Cascão, Miguel Ribeiro e Carlos Hermida, de elaborarem um Programa para o Partido a ser criado. Fizeram constar no item 2º do referido Programa “promover a fixação de oito horas de trabalho”. O Partido muito cedo desapareceu, e com ele o seu Programa.

Telles Junior 
Em 1891, um projeto via legislativo, de autoria do deputado Teles Júnior, é encaminhado à Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, fixando em 8 horas o dia normal de trabalho. Para uns historiadores, o projeto não foi aprovado. Para outros foi aprovado com uma emenda de outro deputado que acrescentava ao art. 1º do referido projeto, “salvo em casos em que as partes resolvam o contrário”. Emenda que na verdade anulava a obrigatoriedade da jornada de 8 horas. 

No Rio de Janeiro, em 1892, no artigo 26 do Programa de um novo Partido Operário que se tentava criar naquela ocasião, constava a jornada de trabalho de 8 horas. Não se teve mais noticias, nem do Partido, nem do Programa.

No que se refere à comemoração do  1º de maio, tudo indica que a iniciativa só foi acontecer em 1894, oito anos após o Massacre de Chicago. Em São Paulo, no mês de abril daquele ano, socialistas e anarquistas aprovam em reunião, as Resoluções do Segundo Congresso de 1891 da IIª Internacional, e propuseram celebrar o 1º de maio a partir daquele mesmo ano (1894). A policia informada a respeito, invade o local da reunião e prende seus organizadores.

Em Santos, no entanto, a ideia se concretizou. Em lugar ignorado pela policia, um grupo de socialistas consegue promover uma reunião comemorativa da data.

Nos anos seguintes, outras comemorações registradas por militantes anarquistas e socialistas aconteceram em alguns Estados, com apresentação de peças teatrais, conferências e lançamentos de jornais operários e socialistas com títulos alusivos à data. Paralelamente às comemorações do 1º de maio, trabalhadores mobilizados para os eventos, voltaram a reivindicar, embora isoladamente por associação, pela conquista das 8 horas de trabalho.

1º Congresso Operário Brasileiro - 1906
Foi com a realização do Primeiro Congresso Operário Brasileiro em 1906, do qual  participaram delegados representando várias organizações operárias de todo país, que numa Assembleia bastante disputada, se discutiram e aprovaram resoluções que motivaram as lutas posteriores pela conquista das 8 horas e se programaram celebrações de maiores envergaduras do 1º de maio, não como uma “festa do trabalho” – dizia a resolução – mas “como protesto de oprimidos e explorados”.  Ficou deliberado naquele encontro, que no ano seguinte (1907) as organizações operárias ali representadas, se empenhariam em promover as comemorações daquela data, como marco histórico da luta dos trabalhadores em todo mundo.

As informações que temos dão conta das violências praticadas pelas forças policiais em todo país naquela manhã de 1907. Mas também dão conta da capacidade de luta e de organização do operariado brasileiro, que respondeu às arbitrariedades com greves que se sucederam em várias partes do território nacional, reivindicando a redução da jornada de trabalho. Tamanha foi a pressão dos trabalhadores, que alguns industriais, a fim de evitarem novos conflitos, portanto queda na produção fabril, chegaram a entrar em acordo com seus operários, aceitando a redução da jornada de trabalho. Mas as lutas continuaram. As campanhas pela limitação do horário de trabalho e pela celebração do 1º de maio, cada ano mobilizavam maior numero de organizações e ao mesmo tempo repressões cada vez mais violentas pelas autoridades no intuito de impedir que tais movimentos acontecessem.

Manifestação 1º de maio de 1915
Praça da Sé - São Paulo
Em 1914 a imprensa operária denunciava as manobras do governo e empresariado para esvaziarem o 1º de maio, transformando-o em feriado, o que aliás já vinha acontecendo com o enfraquecimento do chamado “sindicalismo revolucionário” e com a ascensão das alas moderadas do movimento operário.

Em 26 de setembro de 1924, um decreto presidencial determinava: “É considerado feriado nacional o dia 1º de maio consagrado à confraternização universal das classes operárias e às comemorações dos mártires do trabalho; revogadas as disposições em contrário”.  O objetivo da luta pela conquista das 8 horas de trabalho não tinha sido atingido. E as mobilizações continuaram.

Ano a ano, a celebração do  1º de maio que originalmente era organizada pelos diversos sindicatos, associações de trabalhadores, federações, centrais operárias, partidos socialistas,  marcada por passeatas, comícios, palestras alusivas à data, protestos, sempre com apresentação de reivindicações em beneficio dos trabalhadores, passou a ser promovida pelos governos (federal e estaduais) como uma festividade, recheada de discursos de parlamentares e premiações para o operário padrão do ano.  Despolitizou-se, desideologizou-se o 1º de maio.  Ou melhor, politizou-se, ideologizou-se em sentido oposto.

Atualmente o peleguismo, a política de compromisso, a esperança de setores do movimento operário pela solução  parlamentar para seus problemas e a paulatina tutela do sindicalismo pelo Estado, a partir de Getulio Vargas, selou até hoje o destino do sindicalismo brasileiro.




Obras consultadas:

BARRET, François. Historia del trabajo. Tradução: Alberto Pla, Buenos Aires: Editorial Universitaria, 1975.
BATALHA, Claudio Henrique de Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 
CARONE, Edgard. Classes sociais e movimento operário. São Paulo: Ática, 1989.
DOMMANGET, Maurice. Historia del primero de mayo. Barcelona: Laia, 1976.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução: Anália C. Torres, Porto: Afrontamento, 1975.
FERREIRA, Jorge Luiz. O movimento operário norte-americano. São Paulo: Ática, 1995.
HOBSBAWM, Eric J. Mundo do trabalho: novos estudos sobre história operária. Tradução: Waldea Barcellos e Sandra Bedran, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
LEFRANC, Georges. O sindicalismo no mundo. Mem Martins: Europa-America, 1974.
MORELLI, Leonardo (Org.) El sindicalismo revolucionário en el Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1988.
RODRIGUES, Edgar. Os libertários: ideias e experiências anárquicas. Petrópolis: Vozes, 1988.
_____.Socialismo e sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969.
_____.Alvorada operária: os congressos operários no Brasil. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979.



Nota do Autor: 
Este artigo foi originalmente publicado no “Diário da Borborema”, Campina Grande (PB), em 1º de maio de 1992. Postamos a matéria nesta data (1º de maio de 2012), reproduzindo-a sem qualquer alteração no seu conteúdo e forma, com exceção das fotos incluídas nesta edição.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A crise do capitalismo e a perspectiva revolucionária na Hungria.

Por Dr. Gyula Thürmer (*)



Tanto na Europa como na Hungria, as forças capitalistas realizam enormes esforços para ocultar o fato de que o capitalismo contemporâneo está em uma profunda crise. Não podem negar a existência de sérios problemas do capitalismo, mas tentam demonstrar que todos esses problemas podem ser solucionados dentro do próprio capitalismo e através de reformas capitalistas. A verdade é que a importante crise interna do capitalismo não pode ser solucionada através de reformas capitalistas tradicionais. Torna-se cada vez mais real a perspectiva revolucionária para solucionar os problemas do capitalismo.

A Hungria é um dos elementos mais frágeis do capitalismo europeu contemporâneo. O capitalismo húngaro está numa profunda crise, independentemente da crise mundial. Mas esta crise está se intensificando em virtude da crise geral do capitalismo. A crise está longe de ser resolvida, e ninguém pode prever suas consequências. Sob essas condições, não só devemos criticar o sistema, mas também devemos, ao mesmo tempo, demonstrar ao povo a possibilidade real de criar um novo mundo. Devemos demonstrar que o socialismo é uma alternativa real ao capitalismo existente.

Isto significa que, na Hungria, o movimento comunista deve entrar numa nova situação, o que representa o surgimento de novas possibilidades e novas tarefas.

A Crise do Capitalismo Húngaro

O capitalismo húngaro está em crise, e a crise geral do capitalismo faz com que a crise húngara seja ainda mais profunda. A crise do capitalismo húngaro contemporâneo pode ser explicada pelos seguintes fatores: 

1. A imensa maioria dos setores da economia, tais como a indústria, o sistema financeiro, o comércio e os serviços húngaros foram vendidos para o capital estrangeiro.

A Hungria foi o primeiro país da Europa Central e Oriental a abrir sua economia para investidores estrangeiros em 1989. Conforme as estatísticas da organização da ONU encarregada dos investimentos estrangeiros (UNCTAD), no final dos anos 90 o investimento estrangeiro direto (IED) na Hungria somava 1,7% do PIB. Hoje esta proporção chega a mais de 70%. Na União Européia esta proporção é de apenas de 40,9%, e na Romênia é de 36,7%.

Quase 100% dos bancos pertencem ao capital estrangeiro. 80% da produção industrial procede de companhias multinacionais. A economia húngara depende muito mais do capital estrangeiro que qualquer outro país da Europa. Depois de 2011, existe o perigo real de que a superfície agrícola húngara possa ser comprada pelo capital estrangeiro.

O papel decisivo do capital estrangeiro é uma das características do capitalismo húngaro. Faz 20 anos, a contrarrevolução capitalista foi resultado da atividade do capitalismo internacional, da traição interna das forças revisionistas do partido comunista no poder e da atividade da oposição burguesa.

Não havia uma classe dominante húngara forte. A nova classe foi criada, de certa forma, a partir de elementos da antiga elite governante do sistema socialista, aqueles que utilizaram sua política para tomar parte ativa na privatização da propriedade estatal, assim como, de certa forma, a partir de intelectuais e empresários do período socialista e, em parte, também, por novas gerações que apareceram em cena nas últimas décadas. 

O extraordinariamente importante papel do capital multinacional é resultado de diferentes momentos. Em primeiro lugar, as forças capitalistas eram conscientes do fato de que o período de socialismo havia sido um período exitoso na história húngara e que as forças sociais da sociedade socialista, a classe operária e os trabalhadores rurais cooperativistas, eram muito fortes. As forças capitalistas estavam interessadas em liquidar estas classes e grupos sociais. Só viram um caminho: engajar-se ao capital internacional. Em segundo lugar, os intelectuais liberais sempre foram voltados para os Estados Unidos, Israel e para as forças capitalistas multinacionais e sempre consideraram o importante papel do capital estrangeiro como algo absolutamente normal.

Todos os governos húngaros apoiaram os investimentos estrangeiros, ao dar subvenções recomendadas por decisões governamentais, promover isenções de impostos, conceder subvenções para a formação e a criação de empregos, etc.

A classe capitalista húngara está formada por diferentes grupos. Em primeiro lugar, um pequeno, porém, influente grupo de grandes capitalistas que têm posição na área financeira, no comércio e nos serviços. Estão vinculados estreitamente ao capital multinacional. Em segundo lugar, centenas de milhares de micro, pequenos e médios empresários nos âmbitos da indústria e do comércio. Sua posição é muito frágil. Estão sob a pressão do capital da UE e do capital chinês. Sem um grande apoio estatal, estão condenados à morte.

Estes fatos, agora que o sistema capitalista está em crise, têm importantes consequências. Em primeiro lugar, o capital estrangeiro controla as áreas básicas da economia húngara. Tem poder absoluto na área financeira e controla a área mais sensível, o comércio interno. Já que não há uma forte produção nacional, há poucas possibilidades de que a Hungria se defenda por seus próprios meios. Pode-se ver claramente que as companhias multinacionais, ao tentar resolver seus próprios problemas, reduzem a produção e fecham suas fábricas na Hungria, o que contribui para o crescimento do desemprego.

2. A brecha entre ricos e pobres na sociedade ficou enorme. Esta é a outra razão da crise do capitalismo húngaro. A acumulação primitiva de capital fez com que o povo fosse privado de seus recursos. É resultado da política de inflação, da política fiscal e da política de crédito dos governos capitalistas dos últimos 20 anos.

A Hungria tem uma população de 10 milhões de habitantes, 9 milhões dos quais podem ser considerados como pessoas que vivem em condições de vida muito precárias ou, inclusive, em condições de pobreza, e somente um milhão deles podem se considerar beneficiados com as mudanças sociais, com a entrada na UE, etc.

Como mostram as seguintes cifras, o número dos desesperadamente pobres, de quem vive abaixo do umbral da pobreza, aumentou drasticamente nos últimos anos. (O umbral de pobreza é a soma dos rendimentos de uma família que permite a seus membros alimentar-se e vestir-se, e pagar por calefação e eletricidade). Em 1993, segundo estatísticas confiáveis, 27% da população húngara vivia abaixo do umbral de pobreza. Na Hungria havia aproximadamente um milhão de pobres em 1980. Hoje, seu número excede os 2,5 milhões. A décima parte mais rica da sociedade faz 7,3 vezes mais dinheiro que a décima parte mais pobre. Talvez sejam as crianças as que estejam em situação mais difícil, pois quase a metade da população com menos de 18 anos vive numa família que se encontra abaixo do umbral de pobreza. Nos últimos anos, em 53% dos lares o salário real baixou. Isto significa que, nestas famílias, o aumento dos rendimentos foi menor que o aumento dos preços.

Está aumentando o número dos chamados pobres de longo prazo. Os pobres de longo prazo na Hungria provêm de distintos grupos sociais: os sem-teto, a população rural, especialmente os que vivem em micro-comunidades, os desempregados ou expulsos do mercado de trabalho, os lares com mais de três crianças, as famílias com apenas um dos genitores, as anciãs solteiras e a população cigana. Um terço dos pobres de longo prazo é de etnia cigana, embora este grupo só represente 5% da população húngara.

Nos primeiros meses de 2009, a renda média na Hungria foi de 402 euros. Os trabalhadores manuais percebem 295 euros; os intelectuais, 511 euros. O salário mínimo é de 250 euros. Temos que levar em conta que os preços de consumo são praticamente iguais aos da UE.

Nos últimos 20 anos, a classe operária perdeu suas economias obtidas na época socialista. Agora os trabalhadores utilizam suas últimas reservas, e muitos deles já não têm mais reservas. Pode-se dizer o mesmo dos intelectuais, dos professores e dos trabalhadores da área da saúde. A maioria da classe operária e os intelectuais se endividaram amplamente para comprar um apartamento, um carro, uma televisão ou simplesmente para cobrir os custos da vida diária. Esses grupos sociais não podem mobilizar novos recursos para fazer frente às consequências da atual crise.

3. A terceira razão e elemento característico da crise no capitalismo húngaro é o extraordinário alto nível de corrupção.

A Hungria é o número 39 na lista de 179 países relacionados no índice de Corrupção da Transparência Internacional, em 2007. Apesar das leis anticorrupção, a falta de transparência cria contínuos rumores sobre casos de corrupção na gestão do governo.

As razões destes fenômenos estão vinculadas ao próprio capitalismo húngaro. Em primeiro lugar, a privatização da propriedade estatal foi praticamente um roubo livre. Agora, os diferentes círculos políticos e econômicos lutam por uma maior participação no dinheiro da UE, nas ordens estatais e nos investimentos centrais. Em segundo lugar, o sistema legal é muito confuso, o que beneficia aos que atuam na economia informal. Hoje em dia, aproximadamente 30% do PIB é produzido na economia informal. Em terceiro lugar, o atual sistema político e legal é o resultado de acordos entre diferentes grupos da classe capitalista realizados há 20 anos. Muitos de seus elementos já perderam sua validez. Como resultado dessa situação, o Estado capitalista não pode cumprir algumas funções básicas, incluindo o trabalho policial, a administração local, etc.

Possíveis vias de desenvolvimento

O desenvolvimento futuro do capitalismo húngaro depende do desenvolvimento capitalista internacional e dos processos que envolvem os diferentes grupos sociais da Hungria.

1. As forças capitalistas internacionais não querem perder a Hungria. A Hungria foi um dos primeiros países a trocar o socialismo pelo capitalismo, e serviu como exemplo para a política dos Estados Unidos e da Alemanha, como uma forma de contrarrevolução pacífica. Esta é uma razão. A segunda é que o capital internacional investiu grandes somas de dinheiro na Hungria. Atualmente, as dívidas da Hungria chegam a 97% do PIB do país. As forças capitalistas internacionais querem recuperar seu dinheiro e por isso estão dispostas a ajudar. Em 2009, a Hungria recebeu 20 bilhões de euros como créditos stand-by.

O FMI e as forças capitalistas internacionais querem uma situação política mais ou menos estável na Hungria, para o que pedem a repressão a qualquer movimento anticapitalista, mas utilizando meios “de acordo com as normas da UE”. A administração Obama parece entender, melhor que os países da UE, que o colapso do capitalismo húngaro pode conduzir a uma série de colapsos na região. Mas ainda não conseguiu convencer seus sócios da UE a investir muito mais dinheiro na consolidação do capitalismo húngaro.

Para os Estados Unidos é indiferente que grupo da classe capitalista governe politicamente a Hungria. De qualquer governo húngaro é exigida absoluta fidelidade aos Estados Unidos e à OTAN, assim como a participação nas missões militares da OTAN. Na política interna, a administração dos Estados Unidos espera uma luta consequente e exemplar contra o antissemitismo e as forças comunistas.

Os países dirigentes da UE não expressam especial preocupação com a situação dos capitalistas húngaros. Estão convencidos, a partir de sua própria experiência, de que, numa Hungria pertencente à UE e à OTAN, não pode haver revoluções sociais, nem sequer levantes sociais de grande envergadura. Os diferentes grupos políticos da UE expressam sua simpatia por diferentes partidos políticos da Hungria. Parece que tanto a Alemanha quanto a França não estão satisfeitos com a atuação do partido Socialista Húngaro e não se oporiam a uma mudança de governo.

2. A classe capitalista húngara está formada por diferentes grupos. O Partido Socialista Húngaro (MSZP) e a Aliança de Democratas Livres (SZDSZ) representam o grande capital que está estreitamente relacionado com o capital multinacional. Tradicionalmente, estão voltados política e economicamente para os Estados Unidos e Israel.

A coalizão dos socialistas e liberais foi uma ótima solução para as forças capitalistas internacionais durante muito tempo. A Hungria participa ativamente em todas as ações militares iniciadas pelos Estados Unidos e pela OTAN, de Kosovo ao Afeganistão. A maior parte da economia húngara foi privatizada e vendida, em primeiro lugar, para o capital estrangeiro durante os governos desses partidos, entre 1994 e 1998, e desde 2002 até agora. O governo encabeçado pelo Partido Socialista Húngaro foi capaz de dividir os sindicatos que lutavam contra o governo e de garantir a “paz social”. Os socialistas foram capazes de subordinar ao MSZP todas as organizações políticas e civis de esquerda, com exceção do Partido Comunista Operário Húngaro. A coalizão dos socialistas e dos liberais declarou guerra ao antissemitismo e garantiu excelentes possibilidades de desenvolvimento para os que pertencem à comunidade judaica na Hungria. Segundo as estatísticas de diferentes organizações judaicas, na Hungria vivem entre 50.000 e 200.000 judeus. A taxa de casamentos entre judeus está em torno de 60%.

O governo MSZP-SZDSZ faz grandes esforços, entre outras coisas, para mudar a constituição e tornar ilegais “a negação do Holocausto e a incitação pública ao ódio racial”. O governo, preocupado pelo fato de a Hungria ter sido o lugar da Europa onde aconteceram alguns dos piores incidentes neonazistas dos últimos meses, planejou a reforma em resposta à indignação pública por estas provocações.

Apesar de todos esses acontecimentos, as forças capitalistas internacionais não estão satisfeitas com a atual atuação da coalizão socialista-liberal. A política econômica neoliberal levou a uma importante piora das condições de vida. Milhões de pessoas estão insatisfeitas e começam a expressar, de diferentes formas, sua atitude antigovernamental e, inclusive, anticapitalista. A piora das condições de vida fortaleceu duas tendências na Hungria: o antissemitismo e as ações contra os ciganos.

A Fidesz – União Cívica Húngara – representa, em grande parte, os pequenos e médios capitalistas, embora não rejeite o grande capital. Está mais direcionada à Europa e à UE, de um modo geral. A Fedesz, que foi originalmente um partido liberal, é hoje um partido que tenta unificar todas as forças conservadoras e nacionalistas. Coopera, estreitamente, com o Partido Popular Cristão-Democrata (KDNP).

Durante seu governo, entre 1998 e 2002, a Fidesz basicamente cumpriu as expectativas do capital internacional. A Hungria participou ativamente da guerra contra a Iugoslávia e o “processo de democratização” da Europa Oriental. A política do governo da Fidesz, de apoiar as demandas de autonomia nacional das minorias húngaras na Romênia, Eslováquia e outros países, fez com que recebesse críticas de alguns países da UE. Os círculos políticos dos Estados Unidos criticaram a Fidesz porque, segundo suas análises, não lutavam o suficiente contra o antissemitismo. A Fidesz, enquanto apoiava o capital multinacional, levou a cabo muitas medidas de apoio ao capital húngaro, principalmente aos capitalistas médios.

Desde 2002, a Fidesz demonstrou que é o maior partido da oposição e que é capaz de influenciar nos processos políticos na Hungria. Organizou as grandes manifestações antigovernamentais em 2005-2006 e impulsionou um referendo sobre assuntos básicos de política educativa e sanitária do governo MSZP-SZDSZ. O congresso da Fidesz declarou que é necessário criar uma “nova maioria”, incluindo não somente os aliados tradicionais da Fidesz, mas também outras forças políticas e também sindicatos e organizações civis.

Ao mesmo tempo, a Fidesz demonstrou que não quer exceder o marco da democracia parlamentar ou violar as normas gerais de comportamento político da UE. A Fidesz não apoiou as grandes manifestações sociais de 2007-2009, embora isso pudesse ter-lhes trazido bons resultados. A ideia de uma nova maioria não se concretizou, e a Fidesz não se abriu de forma clara a outros partidos.

Os dois grupos da classe capitalista húngara, representados pelos partidos políticos principais, têm interesses comuns e distintos. Todos eles estão interessados em manter o sistema capitalista. Não querem mudar o sistema político existente. Por isso, não se modificará o limite de 5% para entrar no parlamento. Todos os grupos da classe capitalista lutam para conseguir uma melhor posição nas privatizações, em obter dinheiro da UE e nos grandes investimentos estatais. Ao mesmo tempo, todos eles sabem que sua luta interna não pode ameaçar o interesse comum da classe capitalista. O MSZP quer manter o poder, e a Fidesz quer alcançá-lo. Ambos entendem que a União Europeia só permite utilizar métodos parlamentaristas.

O MSZP utiliza diferentes métodos para conservar o poder. Em primeiro lugar, interessa-lhes a atividade do Movimento por uma Hungria Melhor (Jobbik). O Jobbik é a força de choque da classe capitalista, desempenhando um papel similar ao que previamente desempenhou o MIÉP. O Jobbik cumpre diferentes funções. Ao utilizar os sentimentos nacionais e slogans radicais anticapitalistas, busca manipular as pessoas, sendo capaz, assim, de obter votos da Fidesz. Ao mesmo tempo utiliza outras “armas” não usadas por outros capitalistas: o anticapitalismo, o antissemitismo e as consignas contra os ciganos. Pode tirar votos também das forças comunistas. O Jobbik registrou a Magyar Gárda, o movimento extremista paramilitar Guarda Húngara, em junho de 2007, como “organização cultural” para “preparar a juventude, espiritual e fisicamente, para situações extraordinárias quando for necessário mobilizar o povo”. Conforme disse o Instituto Progressista em um relatório, há uma maior receptividade hoje na Hungria aos movimentos extremistas devido à pobreza e à perda de empregos resultantes da atual crise econômica.

Em segundo lugar, os socialistas tentam obter todos os votos de esquerda. Não puderam subordinar o Partido Comunista Operário Húngaro ao MSZP, mas foram capazes de criar, em 2006, o “Partido Operário Húngaro de 2006”, partido revisionista, que critica verbalmente o capitalismo, mas apóia o governo socialista-liberal;

Em terceiro lugar, ajudaram no nascimento de novas organizações como o partido “Pode haver outra política”, o qual, juntamente com o Partido Humanista, visa criar uma alternativa aos liberais.

3. Nestas condições, há duas vias básicas por onde pode transitar a sociedade húngara: a via do capitalismo e a via da revolução socialista.

Do ponto de vista da alternativa capitalista, é de decisiva importância o fato de que o campo de atuação do capitalismo húngaro esteja, principalmente, determinado pela enorme influência do capital multinacional na economia húngara, pela dependência política, militar e ideológica da Hungria com relação aos Estados Unidos, à OTAN e à UE.

Dentro do desenvolvimento capitalista – insistimos, dentro do capitalismo e não como alternativa ao mesmo – há diferentes rumos possíveis. Um deles é uma maior subordinação da Hungria ao FMI, à UE e a outros centros capitalistas. Os governos húngaros servirão aos interesses do capital multinacional liberando completamente todas as áreas do mercado húngaro, liquidando os restos das empresas húngaras e reprimindo qualquer forma de protesto das classes trabalhadoras. É a via de abandono pleno da soberania nacional da Hungria, a via de limitação e opressão dos direitos democráticos.

Esta política será mantida, se os socialistas continuarem no poder. Assim o declaram abertamente, manifestando seu acordo com a política atual.

Não temos ilusões e nem podemos tê-las. Esta política pode se manter de uma forma ou de outra, inclusive, se a Fidesz alcançar o poder. A Fidesz também é um partido do grande capital, como o MSZP. A única diferença, entre ambos, é que na base social da Fidesz há muito mais representantes da pequena e média burguesia.

Os comunistas húngaros não devem apoiar esta via, como de fato jamais o faremos. Os comunistas devem saber que a via neoliberal, pró-FMI, piorará as condições do povo e pode levar a uma maior radicalização das massas. Os comunistas devem estar preparados para esta situação. Devemos lutar contra tal sucesso, que conduziria a uma virada radical direitista na política. Não há verdadeiro perigo de que as forças fascistas ou, inclusive, de direita radical cheguem ao poder. As atuais forças extremistas não são suficientemente fortes, e tal fato conduziria a uma imediata intervenção da UE, como pudemos ver na Áustria há alguns anos. Mas existe a ameaça real de que as forças capitalistas utilizem a crise na Hungria e o fortalecimento das forças extremistas de direita para estabelecer uma “ditadura democrática” dirigida a “salvar a democracia”. 

No marco da via capitalista de desenvolvimento, também podemos imaginar um rumo que dê mais oportunidades ao capital nacional, às pequenas e médias empresas húngaras. Tampouco podemos descartar a possibilidade de que, para evitar o ressentimento das massas e a aparição de conflitos sociais em grande escala, o capital faça algumas concessões às massas e tente mitigar os problemas econômicos e sociais do povo. Quanto à política exterior, também pode ocorrer que a Hungria siga um rumo mais equilibrado enquanto mantém seu compromisso com a UE e a OTAN. Por exemplo: pode desenvolver relações mais estreitas com países árabes ou latino-americanos. Podemos observar o desenvolvimento de uma alternativa similar dentro do sistema capitalista em muitos países da América Latina.

Essa via é possível nas condições do capitalismo. O atual governo e o Partido Socialista Húngaro se opõem a isto. O principal partido da oposição, Fidesz, que representa os interesses dos capitalistas médios húngaros, expressa sua disposição em pôr limites ao capital multinacional, a apoiar os empresários húngaros e a limitar os rendimentos do grande capital e dar mais às massas. A questão é: se a Fidesz – ao chegar ao poder – realmente levará a cabo tais pretensões ou buscará um acordo com o capital internacional.

Esta via não satisfaz plenamente os interesses da classe operária e as melhorias são unicamente temporárias. Mas esta via oferece algumas vantagens para as massas trabalhadoras. Permite ao PCOH cooperar com a pequena e média burguesia sobre a base da luta comum contra o capital multinacional, os grandes mercados e a exploração estrangeira.

Este rumo terá êxito se formos capazes de transformar o ressentimento popular em força organizada e, assim, forçarmos os governos capitalistas a pôr restrições ao capital. O partido Comunista Operário Húngaro participa da luta sindical, do movimento contra as demissões, nas ações civis para aumentar a influência dos comunistas e instituir as forças do ressentimento das massas.

Lênin escreveu em Duas táticas da socialdemocracia na Revolução democrática: “O proletariado deve levar a cabo a revolução democrática, atraindo a massa do campesinato, para esmagar, pela força, a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve realizar a revolução socialista, atraindo a massa dos elementos semiproletários da população, para destroçar, pela força, a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade do campesinato e da pequena burguesia”.

Outra via é a da revolução socialista. Está claro que os problemas básicos da classe operária só podem ser resolvidos na via da revolução socialista que supere o capitalismo. Os comunistas húngaros sempre mantiveram esta posição, mas desde a contrarrevolução de 1989-1990 não havíamos falado da possibilidade da revolução socialista. Agora devemos fazê-lo!

“A atual crise é uma expressão de uma crise mais profunda, intrínseca ao sistema capitalista, que demonstra os limites históricos do capitalismo e a necessidade da sua derrocada revolucionária”. Isto pode ser lido na declaração conjunta dos partidos comunistas e operários em São Paulo. Nossos partidos também declararam: “Ao enfatizar que a bancarrota neoliberal representa não só o fracasso de uma política de gestão do capitalismo, mas o fracasso do próprio capitalismo, e confiantes na superioridade dos ideais e do projeto comunista, afirmamos que a resposta às aspirações emancipatórias dos trabalhadores e dos povos só pode ser achada na ruptura com o poder do grande capital, com os blocos e alianças imperialistas e por meio de profundas transformações de caráter libertador e antimonopolista... Convencidos da possibilidade de outro mundo, um mundo livre da exploração de classe e da opressão do capital, declaramos nosso compromisso com a continuação do caminho histórico de construção de uma nova sociedade livre de exploração de classe e opressão, ou seja, o Socialismo”.

O Partido Comunista Operário Húngaro seguirá a via da revolução socialista. Agora consideramos que nossa tarefa básica e mais importante é demonstrar ao povo húngaro que o capitalismo não é a única forma de vida. Devemos demonstrar que o capitalismo nunca nos dará uma vida melhor, nunca nos dará um lugar nos parlamentos. Devemos obtê-los por meio da luta consequente e séria. Esta via é realista e podemos criar um novo mundo, o socialismo.

Naturalmente, recordamos as palavras de Lênin: “Toda revolução traz uma mudança brusca nas vidas de muitas pessoas. A menos que o momento esteja maduro para tal mudança, nenhuma revolução real pode acontecer”. Agora mesmo não podemos falar de uma situação revolucionária na Hungria, mas podemos falar da possibilidade de que o desenvolvimento geral da crise do capitalismo internacional e suas consequências na Hungria possam levar ao surgimento de uma situação revolucionária.

Consideramos que nossa tarefa principal é preparar o Partido Comunista para tal situação. Fortalecemos nossa formação marxista-leninista. Os membros e ativistas do partido devem entender a atual situação e o verdadeiro significado da via revolucionária.

Estudamos a experiência histórica das revoluções socialistas na Hungria com o objetivo de utilizar as experiências que possam ser aplicadas hoje.

Estudamos a experiência de partidos comunistas da Grécia, Portugal, Brasil, Venezuela e outros países na busca da organização de uma maior atividade das massas.

O partido organiza seus dirigentes sobre novas bases. Estamos criando “centros locais revolucionários” com o equipamento de informática necessário.

Criamos “grupos de combate” móveis que possam participar em diferentes manifestações, ações de rua e atos solidários.

Construímos uma nova organização juvenil com jovens profundamente dedicados à ideia da revolução.

Vamos indo diretamente às fábricas para falar com os trabalhadores. As experiências são muito positivas. Estamos abertos a toda iniciativa anticapitalista e antimonopolista, e participaremos de toda ação social voltada à luta contra os grandes mercados, contra a política de moradia neoliberal, contra os cortes de quem não pode pagar o gás ou a eletricidade.

Criamos um sistema mais efetivo de meios alternativos, utilizando o jornal semanal Szabadsag, a internet e outros meios. Criamos um amplo sistema de páginas web de organizações locais, utilizando a tecnologia do Youtube e outras novas tecnologias da internet.

Lutamos por uma cooperação mais efetiva de forças comunistas no âmbito internacional. O PCOH abandonou o PEE (Partido da Esquerda Europeia) porque não está de acordo com a política revisionista e oportunista do PEE. Temos certeza de que não precisaremos de uma “nova cultura política europeia”, mas sim de uma luta consequente contra o capitalismo, pelos direitos das massas trabalhadoras. Não devemos somente criticar o capitalismo, mas organizar a luta diária dos trabalhadores. Queremos acabar com o capitalismo. A Esquerda Européia quer melhorá-lo. Baseamo-nos no marxismo-leninismo, na teoria e na prática da luta de classes e nos princípios do internacionalismo proletário. A Esquerda Europeia, desgraçadamente, baseia-se no reformismo. A Esquerda Europeia luta contra o capitalismo apenas verbalmente, mas na prática ajuda a fortalecer a imagem “democrática” de uma União Europeia, do Parlamento Europeu e do sistema capitalista em geral.

Lênin disse: “Não se pode predizer o momento e nem o rumo da revolução. Esta é governada por suas próprias leis, mais ou menos misteriosas, mas quando chega é irresistível”.

Devemos estar preparados. 


(*) Presidente do Partido Comunista Operário Húngaro

FONTE: Pravda.ru

sábado, 21 de abril de 2012

Os movimentos sociais e os processos revolucionários na América Latina: uma crítica aos pós-modernistas

Por Edmilson Costa*


A ideologia pós-modernista é responsável por grande parte das derrotas dos movimentos sociais nestas duas décadas. Não só porque esse modismo teórico influenciou parte da juventude e lideranças dos movimentos sociais, como também porque levou à frustração milhares de lutadores sociais. Isso porque as lutas fragmentadas geralmente se desenvolvem de maneira espontânea. No início tem uma trajetória de ascenso, empolga milhares de pessoas, mas logo depois o movimento vai enfraquecendo até ser absorvido pelo sistema.


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Os anos 90 do século passado e os primeiros dez anos deste século foram marcados por intenso debate entre as forças de esquerda sobre o papel dos movimentos sociais, das minorias, das lutas de gênero e das vanguardas políticas nos processos de transformação econômica, social e política da sociedade. Colocou-se na ordem do dia a discussão sobre novas palavras de ordem, novos agentes políticos e sociais, novas formas de luta, novas concepções sobre a ação prática política.

Esses temas e concepções ocuparam o vazio político nesse período em funções de uma série de fenômenos que ocorreram na década de 80 e 90, como a queda do Muro de Berlim, o colapso da União Soviética e dos países do Leste Europeu, o refluxo do movimento sindical, a redução das lutas operárias nos principais centros capitalistas, a perda de protagonismo dos partidos revolucionários, especialmente dos comunistas,além da ofensiva da ideologia neoliberal em todas as partes do mundo, sob o comando das forças mais reacionárias do capital.

A conjuntura de derrota das forças progressistas favoreceu a todo tipo modismo teórico e fetiche ideológico. Sob diversos pretextos, certas forças políticas, inclusive alguns companheiros de esquerda, começaram a questionar a centralidade do trabalho na vida social, o papel dos partidos políticos como vanguarda dos processos de transformações sociais e políticas, a atualidade da luta de classes como instrumento de mudança da história e o próprio socialismo-comunismo como processo que leva à emancipação humana.

Esse movimento teórico e político envolveu forças difusas, mas influentes junto à juventude e vários movimentos sociais. O objetivo era desconstruir o discurso dos partidos políticos revolucionários, do movimento sindical e do próprio marxismo, como síntese teórica da revolução. Para estas forças, os discursos de temas abrangentes, como a igualdade, o socialismo, a emancipação humana, os valores históricos do proletariado, as soluções coletivas contra a opressão humana, eram coisa do passado e produto de um mundo que já existia mais.

No lugar desses velhos temas, tornava-se necessário colocar um novo discurso, como forma de forma a reconhecer a fragmentação da realidade e do conhecimento, a constatação da diferença, a emergências de novos sujeitos sociais, com características, valores e reivindicações específicas, como os movimentos sociais, de gênero, raça, etnia, etc, e novas formas de formas de luta, inclusive com renúncia à tomada do poder.

O condensamento desse ecletismo conservador, dessa matriz teórica diluidora, pode ser expresso no que se convencionou chamar de pós-modernismo. Essa é a fonte teórica inspiradora de todos os modismos teóricos e fetiches que se tornou moda as duas últimas décadas. Quais são os principais supostos teóricos dos pós-modernistas, que tanta influência tiveram nesses anos de vazio político? Vamos nos ater a três vertentes fundamentais que norteiam os fundamentos dessa corrente teórica.

1) O fim da centralidade do trabalho. Um dos temas mais destacados pelos pós-modernistas é o fato de que as tecnologias da informação, a reestruturação produtiva e a inserção acelerada de ciência no processo produtivo tornaram obsoleto o conceito de classe operária e proletariado, até mesmo porque esses atores estão se tornando residuais num mundo globalizado onde impera a robótica, a internet e a informática avançada. Alguns desses teóricos chegaram a dar adeus ao proletariado, que seria um conceito típico da segunda revolução industrial. Prova disso, seria a constatação de que a classe operária está diminuindo em todo o mundo e, por isso mesmo, perdeu o protagonismo para outros movimentos emergentes no capitalismo globalizado.

Os teóricos pós-modernistas se comportam como o caçador que vê apenas as árvores mas não consegue enxergar a floresta. Olham o mundo a partir de uma perspectiva da Europa ou Estados Unidos. Por isso, não conseguem compreender que o capital possui uma extraordinária mobilidade, em função da busca permanente por valorização. Por isso, são incapazes de perceber que o proletariado está crescendo de maneira expressiva em termos mundiais, com o deslocamento de milhares de indústrias dos EUA e da Europa para a Ásia, processo que está incorporando ao mundo do trabalho centenas de milhões de trabalhadores na China, na Índia e em toda a Ásia, num movimento que está mudando a conjuntura mundial.

Não conseguem entender que o próprio capitalismo é uma contradição em processo, pois quanto mais se moderniza, quanto mais insere ciência na produção, mais amplia sua composição orgânica e, consequentemente, mais pressiona as taxas de lucro para baixo. Por isso, o capitalismo não pode existir sem seu contraponto, o proletariado. Se o capitalismo automatizasse todas suas fábricas o sistema entraria em colapso, pois os robôs são até mais disciplinados que os seres humanos, são capazes de trabalhar sem descanso, não reivindicam salário, nem fazem greve, mas também tem seu calcanhar de Aquiles: não consomem. Se não tem consumidores, os capitalistas não têm para quem vender suas mercadorias. Ou seja, antes de uma automatização total, o sistema entraria em colapso em função de suas próprias contradições.

2) O fim da centralidade da luta de classes. Outro dos argumentos dos teóricos pós-modernos é a alegação de que a luta de classes é coisa do passado. Afinal, dizem, se o proletariado está se reduzindo aceleradamente, não existe mais identidade de classe e, portanto, não teria sentido se falar em luta de classes. Nessa perspectiva, dizem, a reestruturação produtiva pode ser considerada uma espécie de dobre de finados que veio sepultar os velhos agentes do passado, como o movimento sindical. Prova disso, é que os sindicatos perderam o protagonismo e agora agonizam em todo o mundo. E o principal representante teórico do mundo do trabalho, o marxismo, também estaria ultrapassado, em função de sua visão monolítica do mundo.

Novamente, os teóricos pós-modernistas também não compreendem a história e confundem sua submissão ideológica à ordem capitalista com a realidade dos trabalhadores. A luta de classes sempre existiu desde que as classes se constituíram na humanidade e continuará sua trajetória enquanto existir a exploração de um ser humano por outro. Não porque os marxistas querem, mas porque a realidade a impõe. Nos tempos de refluxo as lutas sociais diminuem, parece que os trabalhadores estão passivos e os capitalistas imaginam que conseguiram disciplinar para sempre os trabalhadores.

Nessa conjuntura, o discurso do fim da luta de classe, da passividade dos trabalhadores, chega a influenciar muita gente, afinal, quem não tem uma perspectiva histórica do mundo se atém apenas à superfície dos fenômenos, à aparência das coisas. Mas nos momentos de crise do capitalismo, esse discurso se torna inteiramente inadequado, entra em choque com a realidade, uma vez que a crise coloca a luta de classes naordem do dia com uma atualidade extraordinária, para desespero daqueles que imaginavam o seu fim.

Se observarmos a realidade atual, onde o sistema capitalismo enfrenta sua maior crise desde a Grande Depressão, poderemos facilmente constatar e emergência da luta de classes em praticamente todas as partes do mundo. É só observar as insurreições no Oriente Médio, na África, as lutas na América Latina, as greves e mobilizações na Europa. Além disso, a crise também tornou o marxismo mais atual do que nunca. Mesmo os capitalistas estão lendo O Capital para tentar entender o que está ocorrendo no mundo.

3) As vanguardas políticas não têm mais nenhum papel a desempenhar no mundo globalizado. O terceiro dos argumentos-chave dos teóricos pós-modernistas é o fato de os partidos revolucionários, especialmente os comunistas, não têm mais nenhum papel a desempenhar no mundo atual.A ação política agora deve ser comandada pelos movimentos sociais, pelos movimentos de gênero, minorias étnicas, de raças, sexuais, etc, que são vítimas  de  “opressões específicas”. Isso porque os partidos seriam organizações autoproclamatórias, autoritárias, portadoras de um fetiche autorealizável, que é a revolução socialista.Essas instituições, portadoras de um discurso utópico de emancipação humana, estão também definhando em todo o mundo porque não estariam entendendo a realidade do mundo globalizado.

Mais uma vez os teóricos pós-modernistas não conseguem compreender a totalidade da vida social. Por isso, vêem o mundo sem unidade, fragmentado e disperso. Não entendem que, por trás da “opressão específica” que atinge os movimentos sociais e de gênero, etnia, raça, sexual, está o grande capital apropriando a mais-valia de todos, independentemente de raça, sexo ou orientação religiosa . Não compreendem que os movimentos, por sua própria natureza, têm limites institucionais e de representatividade.

Um sindicato, por mais combativo que seja, deve representar os interesses dos trabalhadores que representa. Da mesma forma que uma entidade estudantil, uma organização de moradores, de mulheres ou de homosexuais tem como objetivo defender os interesses específicos de seus representados, atuam nos limites institucionais da ordem burguesa. Somente o partido político revolucionário, que se propõe a derrotar a ordem capitalista e que junta em suas fileiras todos esses segmentos sociais, possui condições para entender a totalidade da luta política e lançar propostas globais para a transformação da sociedade.

A prática das lutas sociais

Se observarmos as lutas sociais que foram realizadas nos últimos anos, poderemos constatar facilmente que grande parte delas foram derrotadas exatamente porque não existiam vanguardas com capacidade de conduzir e orientar essas lutas para a radicalidade da luta de classes e a emancipação do proletariado. Não se trata aqui de negar a importância das lutas específicas ou dos movimentos sociais. Pelo contrário, são fundamentais para qualquer processo de mudança, servem também como aprendizado da luta dos trabalhadores, mas deixadas por si mesmas, apenas com seu conteúdo espontaneísta, não tem condições de realizaras transformações da sociedade e terminam se esvaziando e sendo derrotadas pelo capital.

O teatro de operações é mais ou menos o seguinte: após um momento de euforia e mobilização os movimentos sociais são capazes de realizar proezas impressionantes, como desacreditar a velha ordem, desafiar as classes dominantes, mas num segundo momento a euforia se esgota em si mesma sem atingir os objetivos por falta de perspectivas. A América Latina é um importante posto de observação para constatarmos essa hipótese, mas também em várias partes do mundo os exemplos são férteis para verificarmos a necessidades de vanguardas políticas.

A Bolívia, por exemplo, foi palco de várias insurreições populares contra governos neoliberais. As massas se sublevaram, foram às ruas aos milhões, derrubaram os governos conservadores, mas o máximo que conseguiram foi eleger um presidente progressista que é fustigado a todo momento pelo capital e não consegue realizar plenamente nem o próprio programa a que se propôs no período das eleições.

No Equador, ocorreram também várias insurreições populares. Em uma delas, os movimentos conquistaram o poder e o entregaram a um militar que depois os traiu e agora é um personagem conservador na política do País. Posteriormente, no bojo de outra insurreição, conseguiram eleger um presidente progressista, mas este não consegue implementar um programa transformador porque o capital não lhe dá trégua. Recentemente quase foi deposto por um setor militar sublevado.

Na Argentina, em função da crise econômica herdada do governo neoliberal de Menem, as massas também se sublevaram aos milhões em várias regiões do País. Em um período curto o País mudou três vezes de presidente. O resultado da sublevação popular foi a eleição de Nestor Kirchner e, posteriormente, de sua companheira, Cristina Kirchner. Nesses anos de poder, os Kirchner também não realizaram nenhuma mudança de fundo. O capitalismo seguiu seu curso como se nada tivesse acontecido.

Mais recentemente, duas grandes insurreições populares derrubaram os governos conservadores da Tunísia, do Egito e do Iêmen. Milhares de pessoas se sublevaram durante vários dias, centenas de pessoas morreram, os ditadores deixaram o poder, mas os movimentos sociais, sem vanguarda política, não conseguiram seus objetivos. Setores da burguesia local encabeçaram a formação de novos governos e os trabalhadores mais uma vez deixaram escapar de suas mãos a revolução.

No Brasil, um grande movimento social, o Movimento dos Sem Terra (MST) enfrentou com bravura os governos neoliberais, tendo como norte a bandeira da reforma agrária. Organizou um movimento original e de massas, com base social em todo o País, especialmente entre a população mais pobre da cidade e do campo. O MST ocupou fazendas dos latifundiários, realizou formação de grande parte dos seus quadros e até mesmo conseguiu construir uma universidade popular para formação permanente dos seus militantes.

No entanto, o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e a emergência do agronegócio criaram uma nova conjuntura no campo brasileiro, onde as relações de produção passaram a se dar predominantemente entre capital e trabalho. Essa conjuntura, aliada ao programa de compensação social do governo Lula, o “Bolsas Família”, uma programa de transferência de renda para a população mais pobre, levou o MST a uma encruzilhada.

Ou seja, a realidade mudou radialmente no campo brasileiro, mas a razão de ser do MST era a reforma agrária. Por isso, o movimento, que se tornara um dos símbolos de luta contra o neoliberalismo e, por isso mesmo obteve simpatia mundial, agora está perdendo protagonismo. Os acampamentos do MST foram reduzidos para menos da metade e o movimento vive grandes dificuldades estratégicas. Afinal, se a maioria dos trabalhadores está nas cidades, se o capitalismo hegemonizou as relações de produção no campo e subordinou a pequena agricultura à lógica do capital, torna-se difícil a sobrevivência no longo prazo de um movimento que tem apenas a bandeira da reforma agrária como luta estratégica.

A condensação mais expressiva da teoria movimentista foi o Fórum Social Mundial (FSM). Por ocasião do primeiro FSM, em Porto Alegre, parecia que todos tinham encontrado a fórmula ideal, a varinha mágica,para as novas lutas sociais. Milhares de lutadores de todo o mundo convergiram para o Rio Grande do Sul para se fazer presentes no lançamento da nova grife da luta mundial autônoma. Foi um sucesso extraordinário e um contraponto ao Foro de Davos, onde os capitalistas tramavam novas estratégias para dominação do mundo.

O sucesso de público e de mídia do FSM parecia ter enterrado de vez a noção de vanguarda política. Agora seriam os movimentos sociais, os movimentos de gênero, etnia, das mulheres, os movimentos sociais que doravante comandariam as lutas no mundo. Adeus partidos políticos, adeus movimento sindical, adeus velhos atores sociais da segunda revolução industrial. Agora eram os movimentos difusos, sem centralidade política, inteiramente autônomos, livres de dogmas e ideologias ultrapassadas que iriam provar ao mundo a nova realidade da luta social e política.

Muita gente sinceramente acreditou que o FSM poderia ser a fórmula mágica, o contraponto contemporâneo ao capital, o substituto das velhas vanguardas políticas e seu discurso autoproclamatório. Mas a realidade aos poucos foi colocando no devido lugar o modismo movimentista. Com o tempo, o FSM foi perdendo fôlego, foi se esvaziando, até o ponto em que hoje ninguém mais acredita que possa ser alternativa a coisa nenhuma. Mas uma vez a vida provou que os movimentos por si só não têm condições de mudar a sociedade, é necessário a vanguarda política para conduzir os processos de transformação.

O significado do pós-modernismo e as lutas sociais

Em outras palavras, a ideologia pós-modernista é responsável por grande parte das derrotas dos movimentos sociais nestas duas décadas, não só porque esse modismo teórico influenciou parte da juventude e lideranças dos movimentos sociais, como também porque levou à frustração milhares de lutadores sociais. Isso porque as lutas fragmentadas geralmente se desenvolvem de maneira espontânea. No início tem uma trajetória de ascenso, empolga milhares de pessoas, mas logo depois o movimento vai enfraquecendo até ser absorvido pelo sistema.

Em outras palavras, o pós-modernismo é o fetiche ideológico típico dos tempos de neoliberalismo e representa a ideologia pequeno-burguesa da submissão sofisticada à ordem do capital. Mas essa ideologia carrega consigo uma contradição insolúvel: no momento em que o capital mais se globaliza, com a internacionalização da produção e das finanças, é justamente neste momento que os pós-modernos pregam a fragmentação da realidade, a setorização das lutas sociais, a especificidade dos combates de gênero, etnia, raça, sexo, etc. Só mesmo quem não quer mudar a ordem capitalista pensa desse jeito.

Na verdade, todos que seguem esse ritual teórico, de maneira direta ou indireta, estão abrindo mão de um projeto emancipatório e escondem sua impotência mediante um discurso cheio de abstrações sociológicas, mas muito conveniente para o capital. Por isso, combatem as lutas gerais, para fragmentá-las em lutas específicas, que não afrontam abertamente o sistema dominante.Trata-se do verejo da política fantasiado de moderno.

Esses setores cumpriram, nos últimos 20 anos e ainda cumprem até hoje, um papel muito especial na luta ideológica atual: eles são a mão esquerda do social-liberalismo capitalista. Influenciam as gerações mais jovens, desenvolvem um discurso com aparência de modernidade, influem na organização das lutas sociais. Com seu discurso eclético e fatalista, cheio de senso comum, desorientam setores importantes da sociedade no que se refere à ação política e, na prática, ajudam a organizar, mesmo que indiretamente, a submissão de vários setores sociais à ordem capitalista e aos valores do mercado.

Essas duas décadas de experiências fragmentadas nos levam à conclusão de que, mais do que nunca, as vanguardas revolucionárias têm um papel fundamental no processo de transformações sociais. São elas exatamente que podem conduzir e orientar os vários movimentos sociais com uma plataforma estratégica de emancipação da humanidade, o que significa derrotar o imperialismo e o capitalismo e transitar para a construção da sociedade socialista.



* Edmilson Costa é doutor em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado na mesma instituição. É autor, entre outros, de A globalização e o capitalismo contemporâneo e A política salarial no Brasil. Professor universitário, é membro da Comissão Política do Comitê Central do PCB.

FONTE. ODiario.info