V. I. Lênin
2 de Dezembro de 1905
O movimento revolucionário da Rússia, ao abarcar rapidamente novos e novos setores da população, está criando toda uma série de organizações à margem dos partidos. A necessidade de união manifesta-se com força tanto maior quanto mais tempo foi contida e perseguida. As organizações, de uma ou de outra forma, se bem que frequentemente ainda não cristalizadas, surgem sem cessar, o seu caráter é extremamente original. Aqui não há limites nitidamente assinalados semelhantes aos das organizações europeias. Os sindicatos adquirem caráter político. A luta política funde-se com a econômica — por exemplo, sob a forma de greves — criando tipos mistos de organizações temporárias ou mais ou menos permanentes.
Qual é o significado desse fenômeno? Qual deve ser a atitude da social-democracia diante dele?
O rigoroso espírito de partido é consequência e resultado de uma luta de classes altamente desenvolvida. E, ao contrário, no interesse de uma ampla e aberta luta de classes é necessário o desenvolvimento de um rigoroso espírito de partido. Por isso, o partido do proletariado consciente, a social-democracia, combate sempre com absoluta razão a ideia de se situar à margem dos partidos, esforçando-se invariavelmente para criar um Partido Operário Socialista coeso e fiel aos princípios. Esse trabalho tem êxito entre as massas à medida em que o desenvolvimento do capitalismo divide todo o povo, cada vez mais profundamente, em classes, aguçando as contradições entre elas.
É perfeitamente compreensível que a presente revolução na Rússia tenha engendrado e engendre tantas organizações situadas à margem dos partidos. Por seu conteúdo econômico-social, esta revolução é democrática ou, melhor, burguesa. Essa revolução derruba o regime autocrático-feudal, abrindo campo livre ao regime burguês, satisfazendo assim as reivindicações de todas as classes da sociedade burguesa, sendo, nesse sentido, uma revolução de todo o povo. Isso não significa, é claro, que nossa revolução não tenha caráter de classe; naturalmente que o tem. Mas esta revolução é dirigida contra as classes e castas que caducaram ou estão caducando do ponto de vista da sociedade burguesa, classes e castas estranhas a essa sociedade e que impedem o seu desenvolvimento. E como toda a vida econômica do país já é burguesa em todos os seus traços fundamentais, como a imensa maioria da população já vive de fato em condições burguesas de existência, os “contrarrevolucionários são, portanto, insignificantes em número, são na realidade “um punhado” em comparação com “o povo”. O caráter de classe da revolução burguesa manifesta-se, pois, inevitavelmente, no seu caráter “popular”. E por isso, à primeira vista, sem caráter de classe, mas como luta de todas as classes da sociedade burguesa contra a autocracia e a servidão.
A época da revolução burguesa distingue-se, tanto na Rússia como em outros países, por um desenvolvimento relativamente incompleto das contradições de classe da sociedade capitalista. É verdade que na Rússia o capitalismo está, hoje, muito mais desenvolvido do que na Alemanha de 1848, sem falar da França de 1789; mas não há dúvida de que as contradições puramente capitalistas ainda estão bastante encobertas em nosso país pelas contradições entre a “cultura” e o asiatismo, o europeísmo e o tartarismo, o capitalismo e o regime de servidão, isto é, no primeiro plano se apresentam reivindicações cuja satisfação impulsionará o desenvolvimento do capitalismo, o depurará da escória do feudalismo e melhorará as condições de vida e de luta, tanto do proletariado como da burguesia.
Com efeito, se examinarmos o número infinito de reivindicações, exigências e doléances (queixas) hoje formuladas na Rússia em cada fábrica ou escritório, em cada regimento, seção da guarda municipal, paróquia, centro de ensino, etc, etc, comprovaremos facilmente que a imensa maioria delas são, se é possível exprimir-se assim, reivindicações de caráter estritamente “cultural”. Quero dizer que não são, propriamente falando, reivindicações específicas de classe, mas exigências de sentido fundamentalmente jurídico, exigências que, longe de destruir o capitalismo, colocam-nos nos marcos do europeísmo e libertam-no da barbárie, da selvageria, do suborno e de outros restos “russos” do regime de servidão. Na realidade, também as reivindicações proletárias limitam-se, na maioria dos casos, a exigir transformações plenamente realizáveis nos limites do capitalismo. O proletariado da Rússia reclama, hoje, de maneira imediata, não o que mina o capitalismo, mas o que o purifica e o que acelera e impulsiona seu desenvolvimento.
Naturalmente, a situação especial do proletariado na sociedade capitalista faz com que a inclinação dos operários para o socialismo, a união dos operários com o partido socialista, abra caminho espontaneamente nas próprias fases iniciais do movimento. Mas as reivindicações nitidamente socialistas são ainda coisa do futuro, e na ordem-do-dia figuram as reivindicações democráticas dos operários na política; bem como as reivindicações econômicas dentro dos limites do capitalismo, no terreno da economia. Inclusive o proletariado faz a revolução, por assim dizer, dentro dos limites do programa mínimo e não do programa máximo. Não é nem mesmo preciso falar do campesinato, dessa gigantesca massa da população, esmagadora por seu número. Seu “programa máximo”, seus objetivos finais, não vão além das fronteiras do capitalismo, que se desenvolveria com mais amplitude e força se toda a terra passasse às mãos dos camponeses e de todo o povo. A revolução camponesa é atualmente uma revolução burguesa, por muito que essas palavras “ofendam” o ouvido sentimental dos cavalheiros sentimentais de nosso socialismo pequeno-burguês.
O caráter bem delimitado da revolução em desenvolvimento origina organizações à margem dos partidos, em um processo inteiramente natural. Todo o movimento, em seu conjunto, adquire inevitavelmente o selo da independência externa em relação aos partidos, a aparência da falta de filiação política; mas, está claro, somente a aparência. A necessidade de uma vida “humana” e culta, da união, da defesa da própria dignidade e dos direitos do homem e do cidadão abarca tudo e todos, agrupa todas as classes, diminui com gigantesco ímpeto qualquer limite partidário, perturba as pessoas que ainda estão muito longe de ser capazes de se elevar até às posições partidárias. A urgência da conquista dos direitos e reformas imediatas, fundamentalmente necessárias, relega, por assim dizer, a segundo plano, qualquer ideia e pensamento sobre o que virá mais tarde. A paixão pela luta atual, necessária e legítima, sem o que não seria possível o êxito, obriga a idealizar esses objetivos imediatos e elementares, pinta-os de cor-de-rosa e inclusive envolve-os às vezes em roupagem fantástica; o simples democratismo, o vulgar democratismo burguês, é confundido com o socialismo e classificado como socialismo. Tudo é, ao que parece, “independente dos partidos”; tudo se funde, por assim dizer, em um só movimento “libertador” (que, na realidade, liberta toda a sociedade burguesa); tudo adquire um leve verniz superficial de “socialismo”, principalmente graças ao papel de vanguarda do proletariado socialista na luta democrática.
A ideia da posição independente na luta dos partidos não pode deixar de, pelo menos, alcançar, em tais condições, determinadas vitórias passageiras. A independência em relação aos partidos não pode, pelo menos, deixar de passar a ser uma palavra de ordem da moda, pois a moda se agarra impotente ao reboque dos acontecimentos, e uma organização sem cunho partidário aparece precisamente como o fenômeno mais “comum” da superfície política; democratismo à margem dos partidos, movimento grevista à margem dos partidos, revolucionarismo à margem dos partidos.
Pergunta-se agora: qual tem que ser, diante desse fato, a posição independente com respeito aos partidos, e diante dessa ideia da independência com respeito aos partidos, a atitude dos partidários e representantes das diferentes classes? Não no sentido subjetivo, mas objetivo, isto é, não no sentido de qual deva ser a atitude diante desse fato, e sim no sentido de que atitude se impõe inevitavelmente subordinada aos interesses e aos pontos de vista das diferentes classes.
II
Como já indicamos, a independência a respeito dos partidos é um produto ou, se quereis, uma expressão do caráter burguês de nossa revolução. A burguesia não pode deixar de, pelo menos, tender para essa independência, pois a ausência de partidos entre os que lutam pela liberdade da sociedade burguesa significa a ausência de uma nova luta contra esta mesma sociedade burguesa. Quem desenvolve uma luta “independente dos partidos” pela liberdade, ou não compreende o caráter burguês da liberdade, ou consagra esse regime burguês, ou adia para as calendas gregas(1) a luta contra ele, o “aperfeiçoamento” do referido regime. E, pelo contrário, quem consciente ou inconscientemente se mantém ao lado da ordem de coisas burguesas, não pode deixar de, pelo menos, sentir inclinação pela ideia de se situar à margem dos partidos.
Numa sociedade baseada em classes, a luta entre as classes hostis converte-se de maneira infalível, numa determinada fase de seu desenvolvimento, em luta política. A luta entre os partidos é a expressão mais perfeita, completa e acabada da luta política entre as classes. A falta de cunho político significa indiferença diante da luta dos partidos. Mas essa indiferença não equivale à neutralidade, à omissão na luta, pois na luta de classes não pode haver neutros, na sociedade capitalista não é possível “abster-se” de participar da troca de produtos ou da força de trabalho. E essa troca engendra infalivelmente a luta econômica e, a seguir, a luta política. Por isso, a indiferença diante da luta não é, na realidade, inibição diante da luta, abstenção dela ou neutralidade. A indiferença é o apoio tácito ao forte, ao que domina. Quem era indiferente na Rússia diante da autocracia antes de sua queda durante a Revolução de Outubro(2) apoiava tacitamente a autocracia. Quem é indiferente na Europa contemporânea diante do domínio da burguesia, apoia, tacitamente, a burguesia. Quem mantém uma atitude de indiferença diante da ideia do caráter burguês da luta pela liberdade, apoia, tacitamente, o domínio da burguesia nesta luta, o domínio da burguesia na nascente Rússia livre. A indiferença política não é outra coisa senão a saciedade política. Aquele que está farto é “indiferente” e “insensível” diante do problema do pão de cada dia; porém o faminto será sempre um homem “de partido” nessa questão. A “indiferença e insensibilidade” de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não significa que não necessite de pão, mas que o tem sempre garantido, que nunca precisa dele, que se acomodou bem no “partido” dos que estão saciados. A posição negativa diante dos partidos na sociedade burguesa não é senão uma expressão hipócrita, velada e passiva de quem pertence ao partido dos que estão empanturrados, o partido dos que dominam, o partido dos exploradores.
A posição negativa diante dos partidos é uma ideia burguesa. O espírito de partido é uma ideia socialista. Essa tese, em geral, é aplicável a toda a sociedade burguesa. Naturalmente, é preciso saber aplicar esta verdade geral às diferentes questões e casos particulares. Mas esquecer essa verdade em certos momentos em que a sociedade burguesa em seu conjunto se lança contra a servidão e a autocracia, significa renunciar de fato e por completo à crítica socialista da sociedade burguesa.
A revolução russa, apesar de encontrar-se ainda em sua fase inicial, já proporciona material suficiente para comprovar as considerações acima expostas. O rigoroso espírito de partido foi e é defendido, exclusivamente, pela social-democracia, pelo partido do proletariado consciente. Nossos liberais, representantes dos pontos de vista da burguesia, não podem transigir com o espírito socialista de partido, nem querem ouvir falar da luta de classes: recordem-se, pelo menos, os discursos recentes do senhor Roditchev, que repetiu pela enésima vez o que já havia sido dito e repetido, tanto por Osvobojdenie, editado no estrangeiro, como pelos inúmeros e submissos órgãos do liberalismo russo. Por último, a ideologia da classe média, da pequena burguesia, foi claramente expressa nos pontos de vista dos “radicais” russos de diferentes matizes, começando por Nasha Jizn, os “radical-democratas”, e terminando pelos “socialistas revolucionários”. Onde esses últimos confirmaram com maior clareza sua mescla de socialismo e democratismo foi na questão agrária, e precisamente na palavra de ordem de “socialização” (da terra, sem socialização do capital). É sabido também que são transigentes com o radicalismo burguês e intransigentes com a ideia do espírito social-democrático de partido.
Em nosso tema não entra como se refletem os interesses das diferentes classes no programa e a tática dos liberais e radicais russos de todos os matizes. Abordamos, aqui, somente de passagem, esse interessante problema, e devemos passar agora às conclusões políticas práticas sobre a atitude de nosso Partido diante das organizações sem cunho partidário.
É admissível a participação dos socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos? Se é, em que condições? Que tática é preciso seguir nessas organizações?
A primeira pergunta não pode ser respondida com um não absoluto, baseado nas considerações de princípios. Seria erro afirmar-se não ser admissível, em nenhum caso e em nenhuma circunstância, a participação dos socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos (quer dizer, burguesas, mais ou menos consciente ou inconscientemente). Na época da revolução democrática, a renúncia a participar em organizações independentes dos partidos equivaleria, em certos casos, a renunciar em participar na revolução democrática. Mas, sem dúvida, os socialistas devem circunscrever estreitamente esses “certos casos”, só admitindo essa participação em condições determinadas e limitadas de modo rigoroso. Pois se as organizações independentes dos partidos são engendradas, como já dissemos, por um nível relativamente baixo de desenvolvimento da luta de classes, de outro lado, o rigoroso espírito de partido é uma das condições que transformam a luta de classes numa luta consciente, clara, precisa e fiel aos princípios.
A salvaguarda da independência ideológica e política do partido do proletariado é obrigação constante, invariável e incondicional dos socialistas. Quem não cumpre esta obrigação, deixa de fato de ser socialista, por mais sinceras que sejam suas convicções “socialistas” (socialistas de palavras). Para um socialista, a participação nas organizações sem cunho partidário é permissível só como exceção. E os próprios fins desta participação e seu caráter, as condições que ela exige, etc, devem estar inteiramente subordinados à tarefa fundamental preparar e organizar o proletariado socialista para a direção consciente da revolução socialista.
As circunstâncias podem obrigar-nos a participar em organizações independentes dos partidos, sobretudo na época da revolução democrática, e, em particular, de uma revolução democrática em que o proletariado desempenhe papel relevante. Tal participação pode ser necessária, por exemplo, para propagar o socialismo entre um auditório democrático não definido, ou em benefício da luta conjunta de socialistas e democratas revolucionários diante da contrarrevolução. No primeiro caso, a participação será um meio de tornar os nossos pontos de vista conhecidos; no segundo, um pacto de luta visando à realização de determinados objetivos revolucionários. Em ambos os casos, a participação só pode ser temporária. Em ambos os casos, a participação só é admissível com a condição de se resguardar inteiramente a independência do partido operário e sob a condição de que todo o Partido, em seu conjunto, controle e dirija obrigatoriamente os seus membros e grupos “delegados” às associações ou conselhos situados à margem dos partidos.
Quando a atividade de nosso Partido era secreta, a realização desse controle e dessa direção ofereciam enormes dificuldades, às vezes quase insuperáveis. Agora, quando a atividade do Partido é cada vez mais aberta, esse controle e essa direção podem e devem ser efetuados com a maior amplitude, e indiscutivelmente não apenas pela “cúpula”, mas também pela “base” do Partido, por todos os operários organizados que integram o Partido. Os informes sobre a atuação dos social-democratas nas associações ou conselhos independentes dos partidos e sobre as condições e os objetivos dela, bem como as resoluções de qualquer tipo de organizações do Partido a propósito da referida atuação devem, imediatamente, começar a fazer parte do trabalho prático do partido operário. Só uma tal participação real do Partido em seu conjunto, uma participação na orientação de todas as atividades desse caráter, pode contrapor de fato o trabalho verdadeiramente socialista ao trabalho democrático geral.
Que tática devemos aplicar nas associações independentes dos partidos? Em primeiro lugar, aproveitar toda possibilidade para estabelecer nossos próprios vínculos e para propagar nosso programa socialista na íntegra. Em segundo lugar, determinar as tarefas políticas imediatas do momento, do ponto de vista da realização mais completa e decidida da revolução democrática, colocar palavras de ordem políticas na revolução democrática, formular o “programa” das transformações que a democracia revolucionária em luta deve levar a cabo, de modo diverso da tratante democracia liberal.
Só colocando o problema dessa maneira pode ser admissível e fecunda a participação dos membros de nosso Partido nas organizações revolucionárias independentes dos partidos, hoje criadas pelos operários, amanhã pelos camponeses, depois de amanhã pelos soldados, etc. Só colocando dessa maneira o problema estaremos em condições de cumprir a dupla tarefa do partido operário na revolução burguesa: levar até o fim a revolução democrática, ampliar e reforçar os quadros do proletariado socialista, que necessita de liberdade para desencadear uma luta impiedosa pela derrubada do domínio do capital.
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(1) Calendas: no antigo calendário romano, é o primeiro dia de cada mês. Os gregos não tinham esta denominação. Adiar até às calendas gregas: expressão irônica que expressa um tempo que não chegará nunca.
(2) Referência à greve geral política de outubro de 1905 na Rússia e ao desprestígio da autocracia em todos os setores da população, durante o período da aguda crise revolucionária.