sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Cresce pressão mundial para que EUA ponha fim a bloqueio contra Cuba


Por Marcela Belchior


O fim do bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos a Cuba desde 1960 é cada vez mais uma demanda mundial. No último dia 28 de outubro, durante Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em sua sede em Genebra, capital da Suíça, 188 dos 193 países que integram a entidade votaram em favor da reabertura da relação econômica entre os dois países. Essa é a terceira vez consecutiva que a quase totalidade das nações aprova a resolução contra o bloqueio.

Dentre os blocos das nações favoráveis à retomada das relações diplomáticas entre os dois países estão o Movimento dos Países Não Alinhados, a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), os países membros do Mercado Comum do Sul (Mercosul), a Comunidade do Caribe, entre outros. Dos cinco países restantes na votação, EUA e Israel votaram contra o fim do bloqueio, enquanto Palau, Micronésia e Islas Marshall, todos situados na mesma região do Oceano Pacífico, se abstiveram.

Antes mesmo da reunião da cúpula, países como Venezuela, Bolívia, Rússia, Argélia, Jamaica, Coreia do Sul, África do Sul, El Salvador, Tuvalu, Sri Lanka, Síria, Vietnã, Peru e Tanzânia, já haviam firmado sua adesão ao fim do bloqueio vigente há 52 anos e que gera múltiplas consequências negativas não só para Cuba e os EUA, como também para outras várias partes do mundo. Todos coincidem em qualificar a política estadunidense como "imoral” e "injustificada”, ainda mais quando viola a legislação internacional no que se refere a justiça, direitos humanos e crescimento socioeconômico, garantidos pela Carta das Nações Unidas.

Durante a Assembleia, o chanceler de Cuba, Bruno Rodríguez, explicou que o apoio da comunidade internacional reflete o prejuízo que as nações sofrem. Ele reitera a manutenção da política socialista cubana. "Cuba nunca renunciará de sua soberania nem do caminho livremente escolhido por seu povo, (...) tampouco desistirá da busca por uma ordem internacional distinta”, ressalvou Rodríguez. "Convidamos o Governo dos EUA a manter uma relação amistosa, com bases recíprocas, igualdade soberana, com respeito à Carta das Nações Unidas e, especialmente, um diálogo respeitoso. Viver de uma forma civilizada dentro de nossas diferenças”, sustentou o chanceler.

Chanceler cubano Bruno Rodríguez afirma que mesmo
com fim de embargo, Cuba manterá soberania.
Foto: ONU
Representante do Irã na ONU, Mohamed Jayad Sharif afirmou que as restrições estadunidenses aos cubanos impactam negativamente em todos os setores da sociedade e de sua economia, em particular na saúde pública, alimentação, transações financeiras e nas tecnologias. Para o embaixador do Equador, Xavier Lasso, os países devem seguir condenando as sanções contrárias. "Não importa que não sejam vinculadas às iniciativas adotadas pela Assembleia, elas ficam na consciência planetária”, disse, em Genebra.

Felicitando Cuba pelo apoio que recebeu dos 188 países durante a Assembleia Geral, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, afirmou que a resolução rechaça um "bloqueio criminoso” dos EUA contra a nação caribenha. "Presidente [Barack] Obama, levante o bloqueio. Já basta desses mecanismos de opressão e tortura contra o povo cubano. (...) Que viva Cuba, abaixo o bloqueio!”, afirmou durante evento em Caracas, capital da Venezuela.

No Peru, um grupo de parlamentares apresentou uma moção, no Congresso Nacional peruano, no qual solicitam o fim do embargo. Eles expressam solidariedade com o povo cubano e afirmam reconhecer sua contribuição e ajuda ao enfrentamento de catástrofes naturais e enfermidades em qualquer parte do mundo, como atualmente atuam com o envio de médicos a países da África Ocidental que sofrem da epidemia de Ebola.

EUA mantêm negativa

Mesmo diante da forte pressão mundial e politicamente isolado nas Nações Unidas, os EUA mantêm sua rejeição à resolução. O país capitalista afirma que a economia de Cuba prosseguirá sem se desenvolver até que a ilha abra seus monopólios à iniciativa privada. Considerado ainda longe de concordar com o fim do bloqueio, os EUA têm mantido em vigor as leis, disposições e práticas que o sustentam. Além disso, têm reforçado mecanismos políticos, administrativos e repressivos para instrumentalizar o embargo de maneira mais eficaz e deliberada.

A primeira consulta sobre o tema aos países componentes da ONU ocorreu em 1992. Na ocasião, 59 nações votaram a favor do fim do bloqueio, três votaram contra e 71 se abstiveram. Com o passar dos anos, a posição foi gradualmente se fortalecendo, contando a proposta de fim do bloqueio, desde 2005, com a adesão de mais de 180 países do globo. Confira os votos dos países anualmente:



Sobre o embargo

O embargo econômico, comercial e financeiro imposto a Cuba pelos Estados Unidos se iniciou em 7 de Fevereiro de 1962. Foi convertido em lei em 1992 e em 1995. Em 1999, o presidente Bill Clinton ampliou este embargo comercial proibindo que as filiais estrangeiras de companhias estadunidenses de comercializar com Cuba. Desde então, o bloqueio sobrevive a 11 administrações da Casa Branca, cujo prejuízo econômico é estimado em 1.112.534 bilhão de dólares, além violar o princípio de não intervenção e os direitos humanos dos cubanos.


FONTE: Adital

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O Brasil numa encruzilhada: breves comentários


Por Aluizio Moreira


Passado o clima tenso das disputas eleitorais com a vitória de Dilma Rousseff, é fundamental que procuremos entender o “novo” quadro politico brasileiro, para além do voto. 

Esse “novo quadro politico” (nem tão novo assim!) surgido com as eleições deste outubro, já vinha, creio eu, se desenhando antes mesmo da posse de Lula em janeiro de 2003, quando as possíveis alianças que começavam a ser delineadas do PT com a chamada esquerda socialista, foram frustradas  em junho de 2002, com o lançamento da “Carta ao povo brasileiro”, que jogava na lata do lixo o “Programa dos 100 dias”, que congregava o PCB, o próprio PT, o PDT, o PSB e o PCdoB, na tentativa e estabelecer-se uma plataforma politica voltada para os interesses democráticos e populares.

Na referida Carta, que enterrou de vez o “Programa dos 100 dias”, Lula procurava acalmar o mercado financeiro e as oposições politicas e empresariais internas, que se aglutinavam contra sua possível vitória eleitoral, levantando naquela ocasião, a bandeira da mudança “para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos.”

Permitam-me reproduzir algumas passagens da “Carta ao povo brasileiro” que orientaria o Governo petista por 16 anos e que paulatinamente o foi conduzindo para os impasses atuais, sobretudo pelo abandono das pautas reformistas, ao assumir o poder.

Êis como a “Carta ao povo brasileiro” procurava justificar o lançamento de uma candidatura que, convenhamos! abriu um espaço para confiança nas mudanças significativas na nossa sociedade:

“Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz um balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.”

Mais adiante:

“O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se.”

A partir dai o PT acena para as mudanças pretendidas, como parte de um Programa Politico amplo e capaz de mobilizar um grande contingente de apoiadores, pelo menos por um número razoável de setores progressistas e da classe média: crescimento econômico, geração de emprego e renda, redução da criminalidade, respeito de nossa “presença soberana e respeitada no mundo”, criação de um “amplo mercado interno de consumo de massa”, reforma tributária, reforma agrária, redução das carências energéticas, revisão das privatizações tucanas, diminuição do déficit habitacional, reforma da previdência, reforma trabalhista, institucionalização de programas contra a fome e insegurança pública.

Para realização de todo este Programa o Governo empossado necessitaria de “uma ampla negociação nacional”, que deveria conduzir a uma politica de alianças pelo pais, a um novo “contrato social”, capaz de “assegurar o crescimento com estabilidade”, dinamizando nossas exportações, investimento na infraestrutura, prioridade para geração de divisas, valorização do agronegócio. Tudo isto só seria possível, na medida em que o PT estivesse “disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade”. (Mera coincidência com o discurso da presidente após sua reeleição?)

O fato é que o Governo Lula abandonou uma politica de pretendidas reformas sociais, favorecendo o grande capital com a transferência de recursos públicos, beneficiando o capital financeiro, o agronegócio, procurando favorecer as empresas multinacionais com a politica de precarização do trabalho e da flexibilização do direito trabalhista. O grande arco de alianças para manter a chamada “governabilidade”, tornou-se uma prática politica, além de cooptações de organizações sindicais, partidos políticos de uma autodenominada esquerda, com o loteamento de cargos e ministérios entre seus aliados.

Após dezesseis anos de mandato petista, o que restou da reforma agrária, da reforma tributária, da demarcação das terras indígena, da defesa das comunidades negras e quilombolas, da prometida revisão das privatizações, da auditoria da divida publica prevista na nossa Constituição? O que dizer da implantação da mercantilização do ensino universitário, da saúde, da previdência social?

Em junho de 2013 testemunhamos a eclosão de um movimento de grande amplitude nacional, que punha em cheque a falta de sensibilidade politica e de compromisso com as questões sociais e populares do Governo petista. Foi o sinal de um “esgotamento” de toda uma politica social e econômica, que parecia repetir o esgotamento identificado por Lula na sua “Carta ao povo brasileiro” de 2002. A grande diferença qualitativa, é que no bojo daqueles movimentos sociais e populares de 2013, conservadores e direitistas mesclaram-se com esses movimentos, fazendo coro contra o governo, contra a politica e contra partidos. 

O discurso das mudanças ganhou novamente as ruas: contra a corrupção, pelo descaso da educação, da saúde, em defesa da segurança publica e da mobilidade urbana. Mas há mudanças e mudanças. As mudanças podem ser canalizadas para a esquerda ou para a direita.

Arrisco dizer que há uma ligação direta entre o junho de 2013 e o outubro de 2014. Com um saldo que pende para o conservadorismo e para a direita, sobretudo pelo discurso preconceituoso e agressivo e sintomaticamente antissocialista. Como se o espectro do comunismo tivesse rondando os lares dos brasileiros: em pauta, a critica agressiva à Venezuela, à Cuba, ao Mais Médicos, que ganharam as redes sociais.

Quais as perspectivas politicas para o Brasil daqui para adiante? 


sábado, 25 de outubro de 2014

Textos Revisitados I - “O Partido Socialista e o Revolucionarismo sem cunho partidário”



V. I. Lênin

2 de Dezembro de 1905 


O movimento revolucionário da Rússia, ao abarcar rapidamente novos e novos setores da população, está criando toda uma série de organizações à margem dos partidos. A necessidade de união manifesta-se com força tanto maior quanto mais tempo foi contida e perseguida. As organizações, de uma ou de outra forma, se bem que frequentemente ainda não cristalizadas, surgem sem cessar, o seu caráter é extremamente original. Aqui não há limites nitidamente assinalados semelhantes aos das organizações europeias. Os sindicatos adquirem caráter político. A luta política funde-se com a econômica — por exemplo, sob a forma de greves — criando tipos mistos de organizações temporárias ou mais ou menos permanentes.

Qual é o significado desse fenômeno? Qual deve ser a atitude da social-democracia diante dele?

O rigoroso espírito de partido é consequência e resultado de uma luta de classes altamente desenvolvida. E, ao contrário, no interesse de uma ampla e aberta luta de classes é necessário o desenvolvimento de um rigoroso espírito de partido. Por isso, o partido do proletariado consciente, a social-democracia, combate sempre com absoluta razão a ideia de se situar à margem dos partidos, esforçando-se invariavelmente para criar um Partido Operário Socialista coeso e fiel aos princípios. Esse trabalho tem êxito entre as massas à medida em que o desenvolvimento do capitalismo divide todo o povo, cada vez mais profundamente, em classes, aguçando as contradições entre elas.

É perfeitamente compreensível que a presente revolução na Rússia tenha engendrado e engendre tantas organizações situadas à margem dos partidos. Por seu conteúdo econômico-social, esta revolução é democrática ou, melhor, burguesa. Essa revolução derruba o regime autocrático-feudal, abrindo campo livre ao regime burguês, satisfazendo assim as reivindicações de todas as classes da sociedade burguesa, sendo, nesse sentido, uma revolução de todo o povo. Isso não significa, é claro, que nossa revolução não tenha caráter de classe; naturalmente que o tem. Mas esta revolução é dirigida contra as classes e castas que caducaram ou estão caducando do ponto de vista da sociedade burguesa, classes e castas estranhas a essa sociedade e que impedem o seu desenvolvimento. E como toda a vida econômica do país já é burguesa em todos os seus traços fundamentais, como a imensa maioria da população já vive de fato em condições burguesas de existência, os “contrarrevolucionários são, portanto, insignificantes em número, são na realidade “um punhado” em comparação com “o povo”. O caráter de classe da revolução burguesa manifesta-se, pois, inevitavelmente, no seu caráter “popular”. E por isso, à primeira vista, sem caráter de classe, mas como luta de todas as classes da sociedade burguesa contra a autocracia e a servidão.

A época da revolução burguesa distingue-se, tanto na Rússia como em outros países, por um desenvolvimento relativamente incompleto das contradições de classe da sociedade capitalista. É verdade que na Rússia o capitalismo está, hoje, muito mais desenvolvido do que na Alemanha de 1848, sem falar da França de 1789; mas não há dúvida de que as contradições puramente capitalistas ainda estão bastante encobertas em nosso país pelas contradições entre a “cultura” e o asiatismo, o europeísmo e o tartarismo, o capitalismo e o regime de servidão, isto é, no primeiro plano se apresentam reivindicações cuja satisfação impulsionará o desenvolvimento do capitalismo, o depurará da escória do feudalismo e melhorará as condições de vida e de luta, tanto do proletariado como da burguesia.

Com efeito, se examinarmos o número infinito de reivindicações, exigências e doléances (queixas) hoje formuladas na Rússia em cada fábrica ou escritório, em cada regimento, seção da guarda municipal, paróquia, centro de ensino, etc, etc, comprovaremos facilmente que a imensa maioria delas são, se é possível exprimir-se assim, reivindicações de caráter estritamente “cultural”. Quero dizer que não são, propriamente falando, reivindicações específicas de classe, mas exigências de sentido fundamentalmente jurídico, exigências que, longe de destruir o capitalismo, colocam-nos nos marcos do europeísmo e libertam-no da barbárie, da selvageria, do suborno e de outros restos “russos” do regime de servidão. Na realidade, também as reivindicações proletárias limitam-se, na maioria dos casos, a exigir transformações plenamente realizáveis nos limites do capitalismo. O proletariado da Rússia reclama, hoje, de maneira imediata, não o que mina o capitalismo, mas o que o purifica e o que acelera e impulsiona seu desenvolvimento.

Naturalmente, a situação especial do proletariado na sociedade capitalista faz com que a inclinação dos operários para o socialismo, a união dos operários com o partido socialista, abra caminho espontaneamente nas próprias fases iniciais do movimento. Mas as reivindicações nitidamente socialistas são ainda coisa do futuro, e na ordem-do-dia figuram as reivindicações democráticas dos operários na política; bem como as reivindicações econômicas dentro dos limites do capitalismo, no terreno da economia. Inclusive o proletariado faz a revolução, por assim dizer, dentro dos limites do programa mínimo e não do programa máximo. Não é nem mesmo preciso falar do campesinato, dessa gigantesca massa da população, esmagadora por seu número. Seu “programa máximo”, seus objetivos finais, não vão além das fronteiras do capitalismo, que se desenvolveria com mais amplitude e força se toda a terra passasse às mãos dos camponeses e de todo o povo. A revolução camponesa é atualmente uma revolução burguesa, por muito que essas palavras “ofendam” o ouvido sentimental dos cavalheiros sentimentais de nosso socialismo pequeno-burguês.

O caráter bem delimitado da revolução em desenvolvimento origina organizações à margem dos partidos, em um processo inteiramente natural. Todo o movimento, em seu conjunto, adquire inevitavelmente o selo da independência externa em relação aos partidos, a aparência da falta de filiação política; mas, está claro, somente a aparência. A necessidade de uma vida “humana” e culta, da união, da defesa da própria dignidade e dos direitos do homem e do cidadão abarca tudo e todos, agrupa todas as classes, diminui com gigantesco ímpeto qualquer limite partidário, perturba as pessoas que ainda estão muito longe de ser capazes de se elevar até às posições partidárias. A urgência da conquista dos direitos e reformas imediatas, fundamentalmente necessárias, relega, por assim dizer, a segundo plano, qualquer ideia e pensamento sobre o que virá mais tarde. A paixão pela luta atual, necessária e legítima, sem o que não seria possível o êxito, obriga a idealizar esses objetivos imediatos e elementares, pinta-os de cor-de-rosa e inclusive envolve-os às vezes em roupagem fantástica; o simples democratismo, o vulgar democratismo burguês, é confundido com o socialismo e classificado como socialismo. Tudo é, ao que parece, “independente dos partidos”; tudo se funde, por assim dizer, em um só movimento “libertador” (que, na realidade, liberta toda a sociedade burguesa); tudo adquire um leve verniz superficial de “socialismo”, principalmente graças ao papel de vanguarda do proletariado socialista na luta democrática.

A ideia da posição independente na luta dos partidos não pode deixar de, pelo menos, alcançar, em tais condições, determinadas vitórias passageiras. A independência em relação aos partidos não pode, pelo menos, deixar de passar a ser uma palavra de ordem da moda, pois a moda se agarra impotente ao reboque dos acontecimentos, e uma organização sem cunho partidário aparece precisamente como o fenômeno mais “comum” da superfície política; democratismo à margem dos partidos, movimento grevista à margem dos partidos, revolucionarismo à margem dos partidos.

Pergunta-se agora: qual tem que ser, diante desse fato, a posição independente com respeito aos partidos, e diante dessa ideia da independência com respeito aos partidos, a atitude dos partidários e representantes das diferentes classes? Não no sentido subjetivo, mas objetivo, isto é, não no sentido de qual deva ser a atitude diante desse fato, e sim no sentido de que atitude se impõe inevitavelmente subordinada aos interesses e aos pontos de vista das diferentes classes.

II

Como já indicamos, a independência a respeito dos partidos é um produto ou, se quereis, uma expressão do caráter burguês de nossa revolução. A burguesia não pode deixar de, pelo menos, tender para essa independência, pois a ausência de partidos entre os que lutam pela liberdade da sociedade burguesa significa a ausência de uma nova luta contra esta mesma sociedade burguesa. Quem desenvolve uma luta “independente dos partidos” pela liberdade, ou não compreende o caráter burguês da liberdade, ou consagra esse regime burguês, ou adia para as calendas gregas(1) a luta contra ele, o “aperfeiçoamento” do referido regime. E, pelo contrário, quem consciente ou inconscientemente se mantém ao lado da ordem de coisas burguesas, não pode deixar de, pelo menos, sentir inclinação pela ideia de se situar à margem dos partidos.

Numa sociedade baseada em classes, a luta entre as classes hostis converte-se de maneira infalível, numa determinada fase de seu desenvolvimento, em luta política. A luta entre os partidos é a expressão mais perfeita, completa e acabada da luta política entre as classes. A falta de cunho político significa indiferença diante da luta dos partidos. Mas essa indiferença não equivale à neutralidade, à omissão na luta, pois na luta de classes não pode haver neutros, na sociedade capitalista não é possível “abster-se” de participar da troca de produtos ou da força de trabalho. E essa troca engendra infalivelmente a luta econômica e, a seguir, a luta política. Por isso, a indiferença diante da luta não é, na realidade, inibição diante da luta, abstenção dela ou neutralidade. A indiferença é o apoio tácito ao forte, ao que domina. Quem era indiferente na Rússia diante da autocracia antes de sua queda durante a Revolução de Outubro(2) apoiava tacitamente a autocracia. Quem é indiferente na Europa contemporânea diante do domínio da burguesia, apoia, tacitamente, a burguesia. Quem mantém uma atitude de indiferença diante da ideia do caráter burguês da luta pela liberdade, apoia, tacitamente, o domínio da burguesia nesta luta, o domínio da burguesia na nascente Rússia livre. A indiferença política não é outra coisa senão a saciedade política. Aquele que está farto é “indiferente” e “insensível” diante do problema do pão de cada dia; porém o faminto será sempre um homem “de partido” nessa questão. A “indiferença e insensibilidade” de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não significa que não necessite de pão, mas que o tem sempre garantido, que nunca precisa dele, que se acomodou bem no “partido” dos que estão saciados. A posição negativa diante dos partidos na sociedade burguesa não é senão uma expressão hipócrita, velada e passiva de quem pertence ao partido dos que estão empanturrados, o partido dos que dominam, o partido dos exploradores.

A posição negativa diante dos partidos é uma ideia burguesa. O espírito de partido é uma ideia socialista. Essa tese, em geral, é aplicável a toda a sociedade burguesa. Naturalmente, é preciso saber aplicar esta verdade geral às diferentes questões e casos particulares. Mas esquecer essa verdade em certos momentos em que a sociedade burguesa em seu conjunto se lança contra a servidão e a autocracia, significa renunciar de fato e por completo à crítica socialista da sociedade burguesa.

A revolução russa, apesar de encontrar-se ainda em sua fase inicial, já proporciona material suficiente para comprovar as considerações acima expostas. O rigoroso espírito de partido foi e é defendido, exclusivamente, pela social-democracia, pelo partido do proletariado consciente. Nossos liberais, representantes dos pontos de vista da burguesia, não podem transigir com o espírito socialista de partido, nem querem ouvir falar da luta de classes: recordem-se, pelo menos, os discursos recentes do senhor Roditchev, que repetiu pela enésima vez o que já havia sido dito e repetido, tanto por Osvobojdenie, editado no estrangeiro, como pelos inúmeros e submissos órgãos do liberalismo russo. Por último, a ideologia da classe média, da pequena burguesia, foi claramente expressa nos pontos de vista dos “radicais” russos de diferentes matizes, começando por Nasha Jizn, os “radical-democratas”, e terminando pelos “socialistas revolucionários”. Onde esses últimos confirmaram com maior clareza sua mescla de socialismo e democratismo foi na questão agrária, e precisamente na palavra de ordem de “socialização” (da terra, sem socialização do capital). É sabido também que são transigentes com o radicalismo burguês e intransigentes com a ideia do espírito social-democrático de partido.

Em nosso tema não entra como se refletem os interesses das diferentes classes no programa e a tática dos liberais e radicais russos de todos os matizes. Abordamos, aqui, somente de passagem, esse interessante problema, e devemos passar agora às conclusões políticas práticas sobre a atitude de nosso Partido diante das organizações sem cunho partidário.

É admissível a participação dos socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos? Se é, em que condições? Que tática é preciso seguir nessas organizações?

A primeira pergunta não pode ser respondida com  um não absoluto, baseado nas considerações de princípios. Seria erro afirmar-se não ser admissível, em nenhum caso e em nenhuma circunstância, a participação dos socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos (quer dizer, burguesas, mais ou menos consciente ou inconscientemente). Na época da revolução democrática, a renúncia a participar em organizações independentes dos partidos equivaleria, em certos casos, a renunciar em participar na revolução democrática. Mas, sem dúvida, os socialistas devem circunscrever estreitamente esses “certos casos”, só admitindo essa participação em condições determinadas e limitadas de modo rigoroso. Pois se as organizações independentes dos partidos são engendradas, como já dissemos, por um nível relativamente baixo de desenvolvimento da luta de classes, de outro lado, o rigoroso espírito de partido é uma das condições que transformam a luta de classes numa luta consciente, clara, precisa e fiel aos princípios.

A salvaguarda da independência ideológica e política do partido do proletariado é obrigação constante, invariável e incondicional dos socialistas. Quem não cumpre esta obrigação, deixa de fato de ser socialista, por mais sinceras que sejam suas convicções “socialistas” (socialistas de palavras). Para um socialista, a participação nas organizações sem cunho partidário é permissível só como exceção. E os próprios fins desta participação e seu caráter, as condições que ela exige, etc, devem estar inteiramente subordinados à tarefa fundamental preparar e organizar o proletariado socialista para a direção consciente da revolução socialista.

As circunstâncias podem obrigar-nos a participar em organizações independentes dos partidos, sobretudo na época da revolução democrática, e, em particular, de uma revolução democrática em que o proletariado desempenhe papel relevante. Tal participação pode ser necessária, por exemplo, para propagar o socialismo entre um auditório democrático não definido, ou em benefício da luta conjunta de socialistas e democratas revolucionários diante da contrarrevolução. No primeiro caso, a participação será um meio de tornar os nossos pontos de vista conhecidos; no segundo, um pacto de luta visando à realização de determinados objetivos revolucionários. Em ambos os casos, a participação só pode ser temporária. Em ambos os casos, a participação só é admissível com a condição de se resguardar inteiramente a independência do partido operário e sob a condição de que todo o Partido, em seu conjunto, controle e dirija obrigatoriamente os seus membros e grupos “delegados” às associações ou conselhos situados à margem dos partidos.

Quando a atividade de nosso Partido era secreta, a realização desse controle e dessa direção ofereciam enormes dificuldades, às vezes quase insuperáveis. Agora, quando a atividade do Partido é cada vez mais aberta, esse controle e essa direção podem e devem ser efetuados com a maior amplitude, e indiscutivelmente não apenas pela “cúpula”, mas também pela “base” do Partido, por todos os operários organizados que integram o Partido. Os informes sobre a atuação dos social-democratas nas associações ou conselhos independentes dos partidos e sobre as condições e os objetivos dela, bem como as resoluções de qualquer tipo de organizações do Partido a propósito da referida atuação devem, imediatamente, começar a fazer parte do trabalho prático do partido operário. Só uma tal participação real do Partido em seu conjunto, uma participação na orientação de todas as atividades desse caráter, pode contrapor de fato o trabalho verdadeiramente socialista ao trabalho democrático geral.

Que tática devemos aplicar nas associações independentes dos partidos? Em primeiro lugar, aproveitar toda possibilidade para estabelecer nossos próprios vínculos e para propagar nosso programa socialista na íntegra. Em segundo lugar, determinar as tarefas políticas imediatas do momento, do ponto de vista da realização mais completa e decidida da revolução democrática, colocar palavras de ordem políticas na revolução democrática, formular o “programa” das transformações que a democracia revolucionária em luta deve levar a cabo, de modo diverso da tratante democracia liberal.

Só colocando o problema dessa maneira pode ser admissível e fecunda a participação dos membros de nosso Partido nas organizações revolucionárias independentes dos partidos, hoje criadas pelos operários, amanhã pelos camponeses, depois de amanhã pelos soldados, etc. Só colocando dessa maneira o problema estaremos em condições de cumprir a dupla tarefa do partido operário na revolução burguesa: levar até o fim a revolução democrática, ampliar e reforçar os quadros do proletariado socialista, que necessita de liberdade para desencadear uma luta impiedosa pela derrubada do domínio do capital.

_____
(1) Calendas: no antigo calendário romano, é o primeiro dia de cada mês. Os gregos não tinham esta denominação. Adiar até às calendas gregas: expressão irônica que expressa um tempo que não chegará nunca. 
(2) Referência à greve geral política de outubro de 1905 na Rússia e ao desprestígio da autocracia em todos os setores da população, durante o período da aguda crise revolucionária. 

domingo, 19 de outubro de 2014

Eleições 2014: os dilemas da esquerda socialista no segundo turno


Por Marcelo Badaró Mattos 



Desde 1994, as eleições presidenciais no Brasil são polarizadas por disputas entre os candidatos do PSDB e do PT. Após doze anos à frente do governo federal, o PT chega novamente a um segundo turno contra uma candidatura do PSDB. Nada de novo no ar?

Há uma inegável continuidade de um quadro partidário que multiplica legendas, mas tende a uma polarização bipartidária, determinada pelas características de um regime democrático que restringe a participação às eleições e transforma o processo eleitoral em uma disputa pautada pelos “investimentos” em marketing, cuja eficácia depende da “generosidade” das empresas que “doam” recursos à campanha.

Há, no entanto, algo de diferente nessas eleições. Guilherme Boulos, em instigante artigo publicado na Folha de São Paulo, identifica uma “onda conservadora”, que associa ao fato de os campeões de voto para a Câmara Federal serem figuras nefastas da vida política brasileira: defensores da pena de morte, da redução da maioridade penal, viúvas da ditadura, que se esmeram em representar o conservadorismo homofóbico, racista e elitista.

É com base no mesmo vento à direita que se pode explicar o crescimento, na reta final do primeiro turno, da candidatura de Aécio Neves, do PSDB, que de fato representa hoje o perfil eleitoralmente viável das tendências mais reacionárias da classe dominante brasileira. Eleitoralmente tão viável que conquista votos entre setores da classe trabalhadora urbana, apresentando-se como representação dos anseios por “mudança”.

Boulos é particularmente feliz em apontar como tais anseios por mudança podem ser associados ao clamor das ruas nas jornadas de junho de 2013. Não se trata de fazer uma associação apressada e dizer que, em meio às disputas políticas que atravessaram aquelas manifestações, o reacionarismo das classes dominantes tenha predominado claramente. Pelo contrário, as jornadas acabaram por impulsionar movimentos grevistas, ocupações urbanas e outras formas de luta que podem ter um efeito multiplicador de médio prazo na correlação de forças sociais, tão desfavorável à classe trabalhadora nas duas últimas décadas. Mas, justamente porque as jornadas abriram um novo horizonte na luta de classes, as forças da reação se rearmaram e puseram-se em posições mais abertamente agressivas.

A ideia do ‘mal menor’ se desgastou

Nesse quadro, a proposta de conciliação de classes do discurso petista parece não dar conta de simular atender ao clamor de mudanças expresso nas ruas e, ao mesmo tempo, manter a confiança dos setores do capital que objetivamente representa no governo, em torno de sua eficácia na contenção das lutas sociais. Aí pode estar uma chave para compreendermos o inegável avanço conservador no quadro eleitoral.

É frente a essa realidade desafiadora que a esquerda socialista necessita se posicionar. Os posicionamentos mais simples passam por recomendar o voto (contra Aécio; em Dilma, com ou sem crítica; nulo; ou qualquer outra recomendação). Acredito, porém, que, para que o debate em torno a esse ponto possa ser mais interessante e pedagógico, para o setor mais organizado da classe e o eleitorado dos partidos de esquerda, a simples recomendação de voto é insuficiente como política de esquerda.

De fato, há razões objetivas muito fortes para se combater a candidatura de Aécio Neves. Os(as) militantes que viveram ativamente a década de 1990 recordam vivamente a amplitude da política privatista, a submissão ao setor financeiro e às diretrizes do FMI/Banco Mundial, o avanço do desemprego, a retirada de direitos sociais, os ataques aos sindicatos, o desmanche dos serviços públicos, em particular na saúde e educação, a conivência com os assassinatos de trabalhadores rurais sem terra, os avanços na militarização e criminalização no trato com os setores mais organizados, assim como os mais precarizados da classe trabalhadora, entre muitas outras faces da caixa de Pandora neoliberal dos dois mandatos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso. Como este artigo é escrito para leitores de esquerda, acredito que não é necessário ir além para caracterizar o caráter reacionário da candidatura tucana.

Mas isso não pode bastar para taparmos o nariz e recomendarmos o voto no “menos pior”, representado pelo PT de Dilma. Fazer isso, assim sem mais, é simplesmente passar uma borracha sobre tudo aquilo que a esquerda criticou nos governos do PT nos últimos anos.

Afinal, se a maior parte do serviço já havia sido cumprida pela privataria tucana, o PT continuou privatizando (vide aeroportos, leilões de petróleo, PPPs variadas etc.), assim como continuou governando para o grande capital, com a manutenção de metas elevadas de superávit primário, juros altos, privilégios e subsídios ao setor industrial de bens duráveis (com presença predominante do capital estrangeiro) e ao agronegócio dirigido pelas multinacionais do agrotóxico e dos organismos geneticamente modificados. No plano dos direitos sociais, é preciso sempre lembrar que o primeiro mandato petista à frente do governo federal se iniciou com Lula utilizando-se do “lubrificante monetário” para garantir uma base aliada no Congresso disposta a aprovar a toque de caixa a sua (contra)reforma da previdência.

Ao que se seguiu uma (contra)reforma trabalhista fatiada, que continua em curso. Foi com a supervisão geral, ou a participação direta (com envio de tropas militares treinadas no Haiti), do governo federal petista que o processo de criminalização e militarização da gestão da questão social nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras avançou para o modelo consagrado no Rio de Janeiro com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). E quando duas senhoras à minha frente apontam para uma manchete de jornal sobre a corrupção na Petrobrás e balançam a cabeça, como que a dizer “no PT não voto”, posso avaliar criticamente o uso eleitoral dessas denúncias, mas nunca poderia negar que os governos petistas foram atravessados pela corrupção. E governar exatamente como os partidos da ordem sempre fizeram no país tem um custo enorme do ponto de vista da consciência social.

Afinal, como confiar nos partidos de esquerda se quando aquele que representava as lutas da classe trabalhadora brasileira (ao menos na década de 1980), quando chegou ao poder, fez “tudo igual”? Daí porque sejam ridículas as tabelas e quadros que vejo circular nas redes sociais fazendo um ranking da corrupção no Brasil recente, medida em bilhões de reais, para tentar convencer de que a corrupção nos governos petistas foi menor que nos governos do PSDB. A que ponto chegamos...

O que poderia levar a um voto no segundo turno?

Resta, para a defesa do voto em Dilma, o “reformismo quase sem reformas” (para usar a expressão de Valério Arcary): as políticas sociais compensatórias e focalizadas, mas de massas, como o Bolsa Família; o acesso ao mercado pelos setores mais pauperizados da classe, via essas políticas, pequenos reajustes reais do salário mínimo e expansão do crédito; a expansão do sistema federal de ensino (escolas técnicas e universidades) e a manutenção de patamares menores de desemprego e maiores de formalização. Também esses argumentos pró-voto no “menos pior” precisam ser problematizados.

Após duas décadas de retirada de direitos e desemprego amplo, o custo da força de trabalho caiu a ponto de compensar para o capital empregar formalmente novos contingentes de trabalhadores, ainda assim precarizados, pelos mecanismos da terceirização ou pelo simples fato de que a grande maioria dos novos empregos gerados paga até 1,5 salário mínimo. Algo que dificilmente se sustentará indefinidamente com o agravamento da crise capitalista que se desenha para o próximo período.

Por outro lado, não há razões objetivas para que um eventual governo tucano recue nas políticas sociais compensatórias, afinal o PT demonstrou que o Banco Mundial tinha razão e é muito barato conter os efeitos sociais mais perversos das políticas neoliberais com programas como o Bolsa Família. A ampliação do poder de consumo via crédito representou mais uma enorme fatia de mercado para o sistema financeiro e contribuiu (subsidiariamente à política de juros elevados, alimentando uma dívida pública que remunera o capital portador de juros em escala astronômica) para os maiores lucros da história dos bancos atuantes no Brasil.

E, vindo do meio universitário, bastante suscetível ao apelo corporativo, lembro que a expansão (muito precária no que diz respeito às condições de trabalho/estudo) das instituições federais de ensino se fez após a garantia de subsídio milionário ao setor privado (via bolsas do PROUNI e empréstimos para pagamento das mensalidades do FIES), que se ampliou até o limite do “mercado educacional”, continua a ter um crescimento das matrículas maior que o setor público e hoje abriga quase 75% dos estudantes do nível superior.

Aliás, para os que se preocupam com os concursos públicos – congelados à época dos governos do PSDB e de fato reabertos nos governos petistas -, foi o presidente da CAPES do governo Dilma quem anunciou a intenção de precarizar a contratação de docentes para as federais, através de Organizações Sociais (OS), eufemismo para terceirização com gestão privada da força de trabalho, em modelo semelhante ao já executado por esse governo nos hospitais federais, via Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).

Ainda que a velha fórmula da “farinha do mesmo saco” seja simplista demais para avaliar as diferenças entre as gestões tucanas e petistas, o fato é que uma análise política baseada em critérios de classe, como bem recomenda Valério Arcary em artigo publicado no Correiro da Cidadania , deve destacar que ambos os partidos governam de acordo com os interesses das classes dominantes.

Resta saber se a opção das principais frações da classe dominante, para conduzir os “ajustes” já anunciados por ambas as candidaturas, será pelo PT, com sua capacidade (abalada) de amortecer conflitos, ou pelo “estilo” mais truculento dos tucanos. Teremos instrumentos precisos de medição desse dilema no balanço final do financiamento das campanhas. No primeiro turno, com três candidaturas com chance, Dilma ganhou nesse quesito. Temos então argumentos mais que suficientes para recomendar o voto nulo?

Estabelecer pautas mínimas

Para o leitor que chegou até aqui, peço um pouco de calma e desculpas pela dimensão deste texto, mas lembro que fugir às saídas mais simples exige argumentar com mais elementos. Sim, há argumentos mais que objetivos para a indicação do voto nulo. Mas, se a recomendação for a única proposta nessas semanas finais da campanha eleitoral, como as organizações da esquerda socialista vão manter o diálogo com aqueles (e por onde ando são muitos) que, até o fim do primeiro turno, circulavam com adesivos e material de campanha do PSOL, PSTU e PCB e hoje vestem a camisa da candidatura Dilma, ainda que sob a sintomática simbologia das imagens de uma jovem guerrilheira (simulacro do desejo irrealizável de um voto à esquerda)? E como responderão aos setores bem mais amplos da classe trabalhadora que, na ausência da mudança de fato, acabarão votando em um Aécio disposto a vestir a fantasia de Marina e sua “nova política”?

Neste ponto, temos que reconhecer: a apropriação do discurso da “mudança” pela direita mais reacionária é resultado, principalmente, de uma demonstração inequívoca por parte do PT de que continua a governar para a manutenção da ordem, mas a esquerda socialista também tem sua parcela de responsabilidade. Ao não efetivarem, no plano nacional, desde as “jornadas de junho”, uma Frente de Esquerda reunindo PSOL, PCB, PSTU, como também os movimentos sociais mais combativos da classe trabalhadora, essas organizações perderam a oportunidade de aproveitar o momento eleitoral para apresentar uma alternativa de mudanças pela esquerda que pudesse ter uma audiência mais ampla, disputando de fato a consciência social. Não que o resultado eleitoral pudesse ser muito diferente, mas por certo que, atuando unitariamente, nossa capacidade de intervenção se potencializaria.

Oportunidade perdida. Mas, ainda não totalmente. Com uma boa dose de disposição para a unidade, pode ser possível para a esquerda socialista fazer política neste momento, indo além da simples indicação de voto. Em artigo para a Revista Espaço Acadêmico, Lúcio Flávio Almeida propõe um movimento pela esquerda de indicar o voto em Dilma, desde que atendida uma pauta mínima. É um excelente ponto de partida para discussão. Valério Arcary, em sua defesa do voto nulo, apresenta uma lista semelhante de propostas que o PT não se dispõe a discutir e que poderiam levar a justificativas mais consistentes para um apoio da esquerda a Dilma. Reproduzo, como referência, os exemplos de pauta apresentados por Arcary, que afirma que a situação seria diferente se:

“Dilma estivesse disposta a fazer uma reforma fiscal com impostos rigorosos sobre as grandes fortunas, manifestasse a intenção de romper com as chantagens do rentismo e, apoiada na mobilização dos trabalhadores, realizar uma auditoria e suspensão do pagamento da dívida pública. Se estivesse comprometida em garantir um aumento de verdade no salário mínimo, ou uma política de combate à privatização da educação, da saúde, do transporte urbano e da segurança. Se houvesse uma mínima possibilidade de que Dilma tomasse a iniciativa pela legalização do aborto, pela criminalização da homofobia, pela legalização do consumo de psicotrópicos. Se Dilma anunciasse a retirada das tropas do Haiti”.

Como Arcary e como Guilherme Boulos, no artigo já citado, também não acredito que o PT vá “apontar o rumo de transformações populares para o próximo mandato, o que não fez nos últimos doze anos”. No entanto, entendo que teria um efeito pedagógico exemplar, se os partidos de esquerda e as organizações mais combativas do movimento social se reunissem nos próximos dias e apontassem uma pauta de compromissos mínimos que viabilizaria o voto em Dilma no segundo turno das eleições. Para o processo eleitoral, tal procedimento teria um efeito limitado, sinalizando o que seria uma resposta realmente pela esquerda para o anseio por mudanças.

Ainda assim, diante da (falta de) resposta petista a tal pauta, os que apontam o voto em Dilma poderiam ir além do voto “útil”, em direção de fato a um voto “crítico”, assim como os defensores do voto nulo teriam ainda mais elementos para reforçar sua posição. De qualquer forma, um movimento nessa direção poderia ter uma importância muito mais ampla, contribuindo para construir a necessária frente de forças políticas e sociais que possa dar suporte para as lutas da classe trabalhadora no próximo período, no qual os “ajustes” já anunciados indicam tempos ainda mais difíceis, qualquer que seja o resultado das urnas.


Marcelo Badaró Mattos é historiador


sábado, 11 de outubro de 2014

Os 150 anos da Internacional



Em 28 de setembro de 1864, em Londres, nascia o ponto de referência das organizações do movimento operário: a Associação Internacional dos Trabalhadores.

Marcello Musto


Em 28 de setembro de 1864, a sala do St. Martin's Hall, um edifício situado no coração de Londres, estava lotado. Estavam reunidos cerca de dois mil trabalhadores e trabalhadores para participar de um comício de sindicalistas ingleses e colegas parisienses. Graças a esta iniciativa, nascia o ponto de referência do conjunto das principais organizações do movimento operário: a Associação Internacional de Trabalhadores.

Em poucos anos, a Internacional despertou paixões por toda a Europa. Graças a ela, o movimento operário pode compreender mais claramente os mecanismos de funcionamento do modo de produção capitalista, adquiriu maior consciência de sua própria força e inventou novas formas de luta. De forma contrária, nas classes dominantes, causou terror a notícia da formação da Internacional. A ideia de trabalhadores reclamarem maiores direitos e um papel ativo na história suscitou repulsa nas classes acomodadas e foram muitos os governos que a perseguiram com todos os meios a seu alcance.

As organizações que fundaram a Internacional eram muitos diferentes entre si. Seu centro motor inicial foram os sindicatos ingleses, que passaram a considerá-la o instrumento mais idôneo para lutar contra a importação de mão de obra de fora durante as greves. Outro importante ramo da associação foi a dos mutualistas, a componente moderada fiel à Teoria de Proudhon, predominante na França à época, enquanto o terceiro grupo, por ordem de importância, foram os comunistas, reunidos em torno da figura de Marx.

Inicialmente, fizeram parte também da Internacional grupos de trabalhadores que reivindicavam teorias utópicas, núcleos de exilados inspirados por concepções vagamente democráticas e defensoras de ideias interclassistas, como alguns seguidores de Mazzini. O empenho em fazer com que convivessem todas estas almas na mesma organização foi indiscutivelmente obra de Marx. Seus dotes políticos lhe permitiram conciliar o que não parecia conciliável, assegurando um futuro à Internacional. Foi Marx quem outorgou à Associação a clara finalidade de realizar um programa político não excludente, apesar de ser fortemente de classe, como garantia de um movimento que aspirava ser de massas e não sectário. Foi sempre Marx, alma política do Conselho Geral de Londres, que redigiu quase todas as resoluções principais da Internacional. Entretanto, diferentemente do que foi propagado pela liturgia soviética, a Internacional foi muito mais do que apenas Marx.

Desde o final de 1866, intensificaram-se as greves em muitos países europeus, o coração vibrante de uma época de luta significativa. A primeira grande batalha vencida graças ao apoio da Internacional foi a dos bronzistas de Paris no inverno de 1867. Neste período, tiveram também o vitorioso desenlace nas greves dos trabalhadores das fábricas de Marchienne, as dos operários das bacias mineiras de Provenza, dos mineiros de carvão de Charleroi e dos pedreiros de Genebra. Em cada um destes acontecimentos, repetiu-se de modo idêntico a pauta: arrecadação de dinheiro em apoio aos grevistas, graças aos chamamentos redigidos e traduzidos pelo Conselho Geral e depois enviados aos trabalhadores de outros países, e à compreensão de que estes últimos não fizessem ações fura greve.

Todo isso obrigou os patrões a buscar um compromisso e a aceitar muitas das demandas dos operários. Iniciou-se uma época de progresso social, durante a qual os movimentos dos trabalhadores conseguiu maiores direitos para aqueles que ainda não gozavam deles, como prescreviam as receitas liberais da direita. Depois do êxito de todas estas lutas, centenas aderiram à Internacional em todas as cidades em que foram registradas greves.

Apesar das complicações derivadas da heterogeneidade das línguas, culturas políticas e países implicados, a Internacional conseguiu reunir e coordenar mais organizações e numerosas lutas nascidas espontaneamente. Seu maior mérito foi o de ter sabido indicar a absoluta necessidade da solidariedade de classe e da cooperação transnacional. Objetivos e estratégias do movimento operário mudaram de maneira irreversível e são atuais ainda hoje, 150 anos depois.

A proliferação de greves mudou também os equilíbrios no interior da organização. O Congresso de Bruxelas de 1868 votou a resolução sobre a socialização dos meios de produção. Tal ação representou um passo decisivo no decorrer da definição das bases econômicas do socialismo e, pela primeira vez, um dos baluartes reivindicativos do movimento operário ficou integrado ao programa político de uma grande organização. Entretanto, depois de ter derrotado os partidários de Proudhon, Marx teve que enfrentar seu novo rival interno, o russo Bakunin, que se somou à Internacional em 1869.

O período compreendido entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70 foi rico em conflitos sociais. Muitos dos trabalhadores que fizeram parte dos protestos neste intervalo de tempo receberam apoio da Internacional, cuja fama ia sendo difundida cada vez mais. Da Bélgica à Alemanha e da Suíça à Espanha, a Associação aumentou seu número de militante e desenvolveu uma eficiente estrutura organizativa em quase todo o continente. Foi também para além do oceano, graças à iniciativa dos imigrantes reunidos nos Estados Unidos.

O momento mais significativo da história da Internacional coincidiu com a Comuna de Paris. Em março de 1871, após o fim da guerra franco-prussiana, os operários expulsaram o governo Thiers e tomaram o poder. Este foi o acontecimento político mais importante da história do movimento operário do século XIX. Desde aquele momento, a Internacional esteve no olho do furacão e adquiriu grande notoriedade. Na boca da burguesia, o nome da organização se tornou sinônimo de ameaça à ordem constituída, enquanto na dos trabalhadores se tornou a esperança de um mundo sem exploração e injustiças. A Comuna de Paris deu vitalidade ao movimento operário e levou-o a tomar posições mais radicais. Uma vez mais, a França mostrou que a revolução era possível, que o objetivo podia e devia ser a construção de uma sociedade radicalmente diferente da capitalista, mas também que, para alcançá-lo, os trabalhadores teriam que criar formas de associação política estáveis e bem organizadas.

Por esta razão, durante a Conferência de Londres de 1871, Marx propôs uma resolução sobre a necessidade de a classe trabalhadora se dedicar à batalha política e construir onde fosse possível um novo instrumento de luta considerado indispensável para a revolução: o partido (utilizado até então apenas pelos operários da Confederação Germânica). Muitos, entretanto, opuseram-se a esta decisão. Para além do grupo de Bakunin, contrário a qualquer política que não fosse a da destruição imediata do Estado, várias federações se uniram em sua impaciência e rebeldia em relação {a proposta do Conselho Geral, ao considerar que a eleição de Londres era uma ingerência na autonomia das federações locais.

O adversário principal da campanha iniciada por Marx foi uma atmosfera ainda resistente em aceitar o salto qualitativo proposto. Desenvolveu-se assim um enfrentamento que fez da direção da organização algo ainda mais problemático, enquanto ela se estendia na Itália e se ramificava na Holanda, Dinamarca, Portugal e Irlanda.

Em 1872, a Internacional era muito diferente do que havia sido no momento de sua fundação. Os componentes democratico-radicais tinham abandonado a Associação, depois de terem sido encurralados. Os mutualistas haviam sido derrotados e suas forças drasticamente reduzidas. Os reformistas já não constituíam a parte predominante da organização (salvo na Inglaterra) e o anticapitalismo tinha se transformado na linha política de toda a Internacional, também das novas tendências – como a anarquista, dirigida por Mijail Bakunin, e a blanquista – que haviam se somado no decorrer dos anos. O cenário, por outro lado, havia mudado radicalmente também fora da Associação. A unificação da Alemanha em 1871 sancionou o inicio de uma nova era em que o Estado nacional se afirmou definitivamente como forma de identidade política, jurídica e territorial.

O novo contexto tornava pouco plausível a continuidade de um organismo supranacional em que as organizações de vários países, apesar de dotadas de independência, deviam ceder uma parte considerável da direção política.

A configuração inicial da Internacional estava superada e sua missão original era concluída. Não se tratava de preparar e coordenar iniciativas de solidariedade em escala europeia, em apoio a greves, nem de convocar congressos para discutir acerca da utilidade da luta sindical ou da necessidade de socializar a terra e os meios de produção. Estes temas haviam se transformado em patrimônio coletivo de todos os componentes da organização. Depois da Comuna de Paris, o verdadeiro desafio do movimento operário era a revolução, ou seja, como se organizar para colocar fim ao modo de produção capitalista e derrocar as instituições do mundo burgues.

Durante sucessivas décadas, o movimento operário adotou um programa socialista que se estendeu primeiro por toda a Europa e depois por todos os rincões do mundo, construindo novas formas de coordenação supranacional que reivindicavam o nome e o ensino da Internacional. Esta imprimiu na consciência dos trabalhadores a convicção de que a libertação do trabalho do jugo do capital não podia ser obtida dentro das fronteiras de um país apenas, mas era, pelo contrário, uma questão global. E igualmente, graças à Internacional, os operários compreenderam que sua emancipação poderia ser conquistada somente por eles mesmos mediante sua capacidade de organização, uma conquista que não poderia ser delegada a outros. Em suma, a Internacional difundiu entre os trabalhadores a consciência de que sua escravidão terminaria somente com a superação do modo de produção capitalista e do trabalho assalariado, posto que as melhoras no interior do sistema vigente não transformariam sua condição estrutural.

Em uma época em que o mundo do trabalho se encontra acuado, também na Europa, sofrendo com condições de exploração e legislações semelhantes às do século XIX e em que velhos e novos conservadores tratam, uma vez mais, de separar o que trabalha do desempregado, precário ou migrante, a herança política da organização fundada em Londres recobra uma extraordinária relevância. Em todos os casos em que se comete uma injustiça social relativa ao trabalho, cada vez que se pisa em um direito germina a semente da nova Internacional.


Tradução: Daniella Cambaúva


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

‘Resultados eleitorais mostram guinada impressionante para a direita’


Por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação



Terminaram as eleições gerais, restando apenas algumas disputas de segundo turno para cargos executivos, como o federal. Como se previa largamente, candidaturas conservadoras foram bem sucedidas, enquanto aquelas que carregavam anseios populares demonstrados nas ruas tiveram pouquíssimas vitórias. É assim que a socióloga e professora da UNESP Maria Orlanda Pinassi analisa o pleito, em entrevista ao Correio da Cidadania.

“Parece que vivemos num sistema unipartidário com duas alas de direita se alternando. No Planalto, com hegemonia do PT; em São Paulo, do PSDB. Isso demonstra que os dois partidos acabam se complementando num projeto de desenvolvimento para o país”, afirma Pinassi, que, no decorrer da conversa, mostrou muito mais preocupação com as novas configurações dos parlamentos, tanto estaduais como federais, do que com o segundo turno.

“Nas três esferas, deputados estaduais, federais e senadores, houve uma guinada impressionante para a direita. Em termos políticos, é uma crise estrutural muito grande, um quadro preocupante. Vi uma clara fascistização nesse processo eleitoral”, pontuou. “Tenho um sentimento de que, até para acompanhar a direitização de todas as esferas parlamentares, veremos também uma direitização do Executivo”, diz ela, que dessa forma minimiza a importância, ao menos para os setores progressistas, de tomar lado em 26 de outubro.

Sobre a impressionante queda de Marina, Pinassi foi sucinta. “Ela não conseguiu aproveitar a oportunidade e sustentar, de fato, um projeto de mudança. E sua Rede da Sustentabilidade está fadada a reproduzir um discurso vazio de sentido político, já que existem dois partidos que oferecem condições melhores ao capital”, explicou a professora, que encerrou a entrevista com uma análise dos reflexos de junho de 2013 no processo eleitoral de 2014.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Primeiramente, o que pensa do fato de que, desinflada a ‘bolha’ Marina, PT e PSDB novamente estarão no duelo final pelo Planalto?

Maria Orlanda Pinassi: De certa forma, aconteceu o que eu previa em um artigo escrito antes da morte do Eduardo Campos, portanto, antes da bolha Marina. Até fiz uma nota de que, independentemente de Marina concorrer ou não como cabeça de chapa, não mudaria, de jeito nenhum, a regra do jogo que se repete há mais de 20 anos. Parece que vivemos num sistema unipartidário com duas alas de direita, PT e PSDB, se alternando. E repetindo a fórmula em São Paulo. É uma espécie de reflexo de nível nacional do que acontece no maior estado do país. No Planalto, com hegemonia do PT; em São Paulo, do PSDB.

Isso demonstra que os dois partidos acabam se complementando num projeto de desenvolvimento para o país, no sentido de que quem oferecer as melhores condições ao capital levará vantagem.

Correio da Cidadania: Em sua visão, o que proporcionou a queda de Marina Silva na reta final da eleição e a votação inesperada em Aécio Neves?

Maria Orlanda Pinassi: A Marina entrou nesse processo, num primeiro momento, porque ela vinha apresentando uma proposta de mudança política. A comoção da morte de Campos impactou, mas não foi o único ponto de sua ascensão.

A mudança política propalada por ela caiu num vazio, pois não conseguiu sustentar como se daria tal mudança. Como ela falava o tempo todo de “utilizar os melhores quadros de todos os partidos”, não parecia uma mudança efetiva. Ela não conseguiu aproveitar a oportunidade e sustentar, de fato, um projeto de mudança. E sua Rede da Sustentabilidade está fadada a reproduzir um discurso vazio de sentido político, já que existem dois partidos que oferecem condições melhores ao capital.

Correio da Cidadania: De modo geral, como enxerga os resultados eleitorais verificados Brasil afora? Quais forças sobem e descem no jogo político-institucional?

Maria Orlanda Pinassi: Mais do que forças subindo ou descendo, vejo uma guinada radical para a direita. Forças que representam o pior conservadorismo no jogo político-institucional. É um quadro assustador, independentemente de quem vai assumir a presidência. Se a Dilma ganhar, será extremamente difícil conseguir governar com um parlamento tão à direita. Assim como imagino que será difícil a convivência para os partidos de esquerda – fundamentalmente o PSOL, que teve desempenho muito interessante nas eleições –, no sentido de emplacar algum projeto socialmente relevante. Mais do que conservador, trata-se de um parlamento reacionário, no sentido mais profundo da palavra.

Correio da Cidadania: Desse modo, a nova composição do Congresso talvez seja o produto mais preocupante das eleições?

Maria Orlanda Pinassi: Não tenha dúvida. Nas três esferas, deputados estaduais, federais e senadores. Houve uma guinada impressionante. Não sei se isso revela um descontentamento da população, até por haver uma ignorância política historicamente forte no país, que acaba carreando votos para um projeto quase fascista. Vi uma clara fascistização nesse processo eleitoral.

De outro lado, temos uma quantidade expressiva de votos nulos e brancos, que não podem ser desprezados. As duas dimensões, o “voto de protesto” nos Tiriricas da vida, personagens que servem muito bem a um projeto complicado de país, e tal quantidade de votos nulos e brancos, demonstram uma insatisfação muito grande.

Não podemos deixar de considerar tais dimensões do eleitorado brasileiro. Trata-se de um desafio para a esquerda, em todos os sentidos. Tanto a esquerda organizada em partidos políticos, como aquela fora dos partidos, mas que também está pensando o Brasil e todo o processo que vivemos.

Em termos políticos, a crise estrutural é muito grande, um quadro preocupante. Temos de pensar profundamente a respeito do que aconteceu, ao invés de nos centrarmos numa preocupação excessiva com o segundo turno, que é o que já percebo.

Não estou tão preocupada com o segundo turno.

Correio da Cidadania: O que espera, de todo modo, da disputa pelo segundo turno presidencial, entre Dilma e Aécio, a quarta consecutivo entre PT e PSDB?

Maria Orlanda Pinassi: Eu vejo uma grande possibilidade de o Aécio Neves ser a bola da vez do capital. Mas é bom ter claro que o PT e as forças que apostam no PT oferecem também grandes vantagens para o capital.

Basta ver o discurso da Dilma no recente encontro sobre o clima da ONU recentemente, quando perguntada sobre a questão do desmatamento. O PT, em fóruns internacionais, em geral, se posiciona de uma forma relativamente progressista sobre a questão ambiental. Mas, dessa vez, ela foi muito clara e falou: “o desmatamento é necessário para continuar em curso o processo do desenvolvimento”. Assim, conclui-se que Dilma é contra medidas que venham a barrar o desmatamento e a destruição ambiental. Ela acenou para os grandes grupos capitalistas, que estão aqui no Brasil, e suas grandes transacionais: “olha, eu não vou opor nenhum obstáculo para vocês”.

Dilma não é uma carta fora do baralho, mas me parece que – estou falando três dias depois das eleições – não tem definição alguma do quadro, dos apoios que vão ser dados, seja para um candidato, seja para o outro. No entanto, tenho um sentimento de que, para acompanhar a direitização de todas as esferas parlamentares, veremos também uma direitização do Executivo.

Posso errar completamente, mas parece haver uma tendência de as forças da ordem e do capital jogarem pesado no Aécio, porque as alianças do PSDB oferecem mais vantagens, neste momento histórico, para o tipo de desenvolvimento que o Brasil vem instalando desde os anos 90, alternando PSDB e PT. Temos um projeto de desenvolvimento  profundamente destrutivo e avassalador, e o capital exige uma política de desregulamentações cada vez mais agressiva, para que se dê o livre curso dos processos da mineração, do agronegócio etc. Processos que implicam em lógicas que têm acabado com a questão ambiental no Brasil, com as comunidades indígenas, camponesas, quilombolas. E têm acabado com a periferia das grandes cidades. Um projeto avassalador para o país e a América Latina.

Aécio e o PSDB oferecem, portanto, condições melhores para que essa agressividade capitalista se instale no país ainda mais. Por fim, uma conjectura pura: quem sabe o PT, tão competente na despolitização das classes trabalhadoras e na oferta de políticas de “alívio social”, volte daqui a uns 8 anos, para minimizar os estragos que o eventual período de PSDB e aliados no governo federal venham a causar?

Correio da Cidadania: Diante disso, acredita que as correntes de esquerda, o PSOL entre elas, devam declarar apoio em Dilma, como se fez majoritariamente em 2010?

Maria Orlanda Pinassi: Particularmente, para ter coerência com o que tenho defendido, penso que não se deve declarar apoio. Individualmente, tudo bem, como no caso do Marcelo Freixo. O próprio PCB indica um apoio crítico, naquela linha de “derrotar Aécio nas urnas e Dilma nas ruas”. Enfim, são opções. Esta não é a minha opção no momento. Penso que as esquerdas não deveriam se posicionar por um ou outro partido, porque não vejo diferença efetiva entre eles.

Correio da Cidadania: Como viu os resultados dos partidos mais à esquerda do espectro político nesse primeiro turno?

Maria Orlanda Pinassi: O PSOL, como disse, foi o partido de esquerda de melhor resultado, obviamente em função do fato de a Luciana Genro ter participado dos debates na televisão e, também, pelo seu ótimo desempenho, que achei brilhante. Teve posições muito firmes e claras e diria que, entre todos estes candidatos, ela foi a única que parecia ter um projeto social para o país. Isso acabou se refletindo na votação, digamos, expressiva em todos os setores do PSOL que disputaram as eleições.

Já os demais partidos foram prejudicados, porque não apareceram nos debates. E, quando apareciam, era de forma meio acachapante, humilhante, com tempos curtíssimos para falar... Me senti mal de ver pessoas muito respeitáveis no âmbito da esquerda tendo de se submeter a esse tipo de campanha, como se em um minuto se pudesse esclarecer algo ao público.

É claro que o atual sistema político e eleitoral prejudica profundamente a esquerda. A estrutura do debate impede qualquer participação efetivamente democrática. É um pluripartidarismo quimérico, pois não reflete todos os partidos. O desempenho foi, em consequência, condizente com a participação pífia que as esquerdas tiveram.

Algo a se repensar é se vale a pena continuar participando desse “jogo democrático”. Eu tenho sérias dúvidas sobre a efetividade dessa participação, que acredito expor a fragilidade de parte da esquerda organizada em partidos e que disputa o pleito. Uma parte que não reflete toda a esquerda, e que se mostra muito fragilizada quando aparece em meio a esse jogo.

Correio da Cidadania: Finalmente, é possível dizer que junho esteve em algum momento representado nas campanhas eleitorais?

Maria Orlanda Pinassi: Vi junho, sim. Ao contrário de algumas pessoas que dizem que não. Principalmente aquela segunda-feira, 17 de junho, em que as forças de direita foram para as ruas gritar “contra a corrupção” e exigir uma limpeza política no país. Ali houve uma mudança brutal de foco das reivindicações, que eram populares e legítimas, pelo transporte público gratuito, para uma “politicização” (conceito de inserção política alienada das decisões econômicas) do processo. Claro que não de forma geral, mas aquelas grandes manifestações acabaram refletindo muito isso, sobretudo, pelo papel da grande imprensa.

As palavras de ordem dos jovens da classe média reacionária – os coxinhas - que foram para as ruas no segundo momento dos protestos acabaram exitosas na eleição. Antes disso, foram responsáveis pela reforma política demandada por Dilma na ocasião, o que acabou refletindo no recente pedido de plebiscito. É incrível como aquela classe média teve força no processo. Esse é outro aspecto para reflexão.

Assim, as eleições, de maneira alguma, refletiram qualquer interesse pelas necessidades efetivas da população brasileira, da população mais pobre. Em nenhum momento, os candidatos que irão disputar o segundo turno discutiram ou apresentaram projeto interessado em solucionar qualquer problema social. E são muitas coisas acontecendo, greves explodindo no país, manifestações de indígenas, quilombolas, populações urbanas removidas para dar espaço para o “progresso”. Na maior parte delas, são manifestações muito críticas e descrentes da institucionalidade brasileira... Essas, de jeito nenhum e em momento algum, apareceram nos debates.

Portanto, as manifestações populares de junho não apareceram no debate. O que apareceu foi um anseio de uma classe média reacionária “anticorrupção”. Essa, sim, a maior protagonista dos debates e bastante bem sucedida nas eleições.