sábado, 31 de janeiro de 2015

Da leitura de Bernstein e Kautsky à teoria e prática Marxistas de Lenine



Por Miguel Urbano Rodrigues


A obra teórica de Lénine tem para os comunistas uma importância que cresce à medida que os anos passam. A derrota transitória do socialismo não diminui o seu significado. Ela ajuda-nos aliás a enraizar no tacticismo dos revisionistas do início do seculo XX as opções ideológicas e o discurso político dos oportunistas do Partido da Esquerda Europeia que, mascarados de marxistas, são hoje instrumento inconsciente das classes dominantes e do imperialismo.




Reli há dias textos de Eduard Bernstein e de Karl Kautsky.

Foi um trabalho útil. O revisionismo de ambos ajuda a compreender lutas e desafios do presente.

Bernstein iniciou a campanha. Vendo no marxismo apenas um método para estudar os problemas sociais criticou o materialismo histórico e sustentou que era possível chegar ao socialismo sem revolução através de conquistas irreversíveis da classe operaria resultantes de reformas do capitalismo. A sua famosa sentença «o movimento é tudo, a meta final nada» motivou a réplica de Rosa Luxemburgo, para a qual a meta final, o socialismo, era tudo.

Na social-democracia alemã, as teses do chamado «socialismo evolutivo» de Bernstein semearam confusão, mas não contaram inicialmente com o apoio de Kautsky. O líder do Partido Social Democrata - SPD só mudou de posição nas vésperas da I Guerra Mundial. Partido mais votado nas eleições de 1912, o SPD deu uma brusca guinada à direita. Kautsky defendeu então o apoio à burguesia alemã ao começar a guerra imperialista.

Foi alvo de uma crítica devastadora de Lenin. O revolucionário russo, que o tinha admirado na juventude, qualificou-o então de renegado.

A polémica que na época dividiu o SPD teve por fulcro a questão do Estado.

Para Kautsky o Estado era uma máquina que, estando nas mãos da classe dominante, deveria ser conquistada pelo proletariado.

Para quê destruir o estado burguês – argumentava - se ele iria no decurso da luta cair mas mãos da classe operária?

Partindo de Marx, a posição de Lenin era antagónica.

No seu livro O Estado e a Revolução escrito em dois meses na Finlândia, após as Jornadas de Julho, o grande revolucionário fustigou o kautskismo. A tese do dirigente do SPD conduziria inevitavelmente à integração gradual das organizações operárias no sistema do mecanismo capitalista.

Citando, fora do contexto, a hipótese formulada por Marx de que na Inglaterra, excecionalmente, os trabalhadores poderiam chegar ao poder pela via pacífica, Kautsky, acompanhando Bernstein, defendeu uma estratégia que considerava a revolução desnecessária para a tomada do poder.

Como afirmou Bukharine, uma ala da social-democracia alemã de 1914 usava ainda uma «fraseologia marxista, símbolos marxistas, uma capa verbal marxista, mas já sem qualquer conteúdo marxista».

Transcorrido um século, e desaparecida a União Soviética, a ofensiva revisionista repete-se com uma linguagem diferente. O Partido da Esquerda Europeia, que agrupa a grande maioria dos partidos comunistas do Continente, também invoca Marx mas, tal como a velha social-democracia alemã, cultiva uma ideologia inseparável de uma prática oportunista.

A burguesia europeia acompanhou com simpatia o aparecimento do PEE. Viu nele um instrumento de neutralização da combatividade da classe operária. Na área internacional as posições que tem assumido são também muito negativas.

Às críticas que atingem o PEE, vindas de organizações que o responsabilizam pela crise do Movimento Comunista Internacional, os seus dirigentes respondem que o mundo mudou profundamente desde a época em que Marx produziu a sua obra e que colocar a questão da via para o socialismo e a temática do Estado citando textos seus é negar a própria essência do marxismo.

A argumentação desses revisionistas revela, essa sim, desconhecimento do marxismo.

O marxismo não é apenas uma metodologia científica criada para a transformação do mundo; é simultaneamente o instrumento indispensável para a colimação desse objetivo revolucionário.

Precisamente por ter compreendido que o marxismo não era estático, uma doutrina imóvel, mas sim dinâmica, Lenin soube extrair as lições implícitas nas profundas alterações que o capitalismo apresentava no início do seculo XX.

A criação do Partido marxista de novo tipo, o Bolchevique, foi uma delas, aliás decisiva para a vitória da Revolução Russa de Outubro.

Em vida de Marx o capitalismo tradicional não evoluíra ainda para capitalismo monopolista de estado, definido por Lenin como fase superior do Imperialismo. E somente a partir do final do seculo XIX o colonialismo assumiu importância decisiva no imperialismo.

O leninismo, filho do marxismo, não teria sido possível se o seu criador, além de notável estratego, não fosse também um tático atento a todos os aspetos inovadores nas sociedades do começo do século XX.

«Em grande parte – advertiu - os erros resultam de um facto: as palavras de ordem, as iniciativas que eram totalmente corretas num certo período da história e numa determinada situação, são mecanicamente transferidos noutro contexto histórico, noutra relação de forças».

Concluía daí pela necessidade de se colocarem questões que «permitissem uma síntese da destruição do antigo e da construção do novo, uma síntese desses aspetos num todo novo».

A obra teórica de Lénine tem para os comunistas uma importância que cresce à medida que os anos passam. A derrota transitória do socialismo não diminui o seu significado. Ela nos ajuda aliás a enraizar no tacticismo dos revisionistas do início do seculo XX as opções ideológicas e o discurso político dos oportunistas do Partido da Esquerda Europeia que, mascarados de marxistas, são hoje instrumento inconsciente das classes dominantes e do imperialismo.

O debate sobre a Questão do Estado não perdeu atualidade. Os defensores da via institucional para o socialismo sustentam que não será necessário destruir o estado burguês, mas transformá-lo através de reformas revolucionárias. Mas no Chile, quando dois partidos marxistas – o Socialista de Allende e o Comunista - chegaram ao governo, o desfecho da experiência foi um sangrento golpe militar. Na Venezuela bolivariana, as forças progressistas no poder optaram também pela via institucional. Mas apesar de mudanças muito positivas, a Venezuela continua a ser um país capitalista e o futuro imediato apresenta-se ali carregado de incertezas. O mesmo acontece na Bolívia.

Serpa, 2 de Janeiro de 2015


O original deste artigo foi publicado em espanhol pela revista web  La Haine

FONTE: ODiario.info

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Com Syriza a Grécia continua atrelada à Troika, à OTAN e ao mercado!


Por Achille Lollo*

De Roma para o Correio da Cidadania

Pouco antes do Natal, o influente jornal alemão, Handelsblatt, publicava um editorial onde eram citadas as declarações do carismático líder do Syriza (Partido da Esquerda Radical), Aléxis Tsipras, provocando o desencanto em muitos setores da sociedade grega que, ao votar no novo partido, acreditavam que com ele a Grécia poderia reconquistar a soberania e reconstruir a economia depois dos desastres provocados pela “Troika” (União Europeia, FMI e BCE).

No editorial do Handelsblatt, Aléxis Tsipras dava a entender, bem claramente, que acabou a fase dos protestos de rua e das palavras de ordem contrárias à União Europeia, visto que com a transformação do movimento em partido, a prioridade foi dotar o Syriza do necessário pragmatismo político para gerenciar o futuro governo de colisão que Aléxis Tsipras deverá formar após as eleições de 25 de janeiro.

Por isso, para tranqüilizar o mercado e, sobretudo, os tecnocratas da União Européia, Alexis Tsipras declarou ao Handelsblatt:”...O governo liderado por Syriza respeitará todas as obrigações que a Grécia assumiu, enquanto membro efetivo da Eurozona, visando alcançar o equilíbrio orçamental e procurando atingir os objetivos fixados no âmbito da União Européia...”

Depois, no dia 20, isto é na véspera das eleições, Aléxis Tsipras para ganhar o voto dos moderados e dos indecisos e assim alcançar um majoritário 35%, recorreu ao jornal conservador britânico, Financial Times, para prometer:”...O futuro governo chefiado por Syriza vai manter todos os compromissos que a Grécia assumiu anteriormente com a União Europeia em matéria orçamental e para eliminar o déficit. No mesmo tempo pretendemos introduzir na Grécia um novo contrato social para fechar o ciclo da austeridade e, consequentemente, alcançar a estabilidade política e a segurança econômica...”.

Os “brokers” do mercado adoraram as declarações de Tsipras, enquanto em Bruxelas, o poliglota presidente do BCE, Mario Draghi, comentava alegremente em francês “...Enfin Aléxis c’est pás um enfant terrible! (Afinal esse Aléxis não é um garoto mau!). Consequentemente a bolsa de valores de Atenas voltou a subir, depois da recaída no fim de novembro, quando a revista alemã Der Spigel, alinhando-se a posição dos falcões do Parlamento Europeu, publicou uma reportagem sobre a possível saída da Grécia da Eurozona, enfocando, por isso, a antiga militância comunista de Aléxis Tsipras e as vertentes esquerdistas (maoístas e trotskistas) do novo partido Syriza, como elementos fundamentais para impor ao novo governo a decisão de abandonar a União Européia e de voltar a inflacionadissima drakma, a antiga moeda da Grécia.

A provocatória reportagem do Der Spigel não teve efeitos e foi desmentida até por Ângela Merkel, visto que os emissários do BCE e, sobretudo, da Comissão Europeia estavam negociando “em off” com Alexis Tsipras o futuro programático da Grécia, do momento que o governo do direitista Antonis Sâmara estava com os dias contados. Não é casual que o presidente do BCE, Mario Draghi, nesses dias foi citado em todos os noticiários das TV européias dizendo: “...haverá uma flexibilização orçamental para aumentar a liquidez em cada país da União Europeia, o que permitirá a economia de respirar com novas fontes de financiamentos...”.

Imediatamente Alexis Tsipras se alinhava às posições de Mario Draghi explicando que o novo curso da Grécia não vai desatender as regras fixadas em Bruxelas visto que : “...o governo liderado por Syriza vai renegociar a divida e alongar os tempos para seu pagamento, de forma a permitir a economia de sair da austeridade para assumir o crescimento...”

A crise econômica e a evolução do SYRIZA

Em 2008 a crise econômica global atacou profundamente a economia da Grécia que não estava minimamente preparada para reagir como fizeram os outros paises da União Européia. Pelo contrario, a crise se aprofundou tornando-se sistêmica ao multiplicar as nefastas conseqüências desse processo, isto é: especulação, recessão, corrupção, fraudes, evasão fiscal, perda da soberania, economia ilegal (trabalho negro, contrabando e narcotráfico) e, sobretudo o desemprego, que em 2009 atingiu 9,65% da população ativa.

Este contexto evoluiu ao ponto de desagregar por completo a economia da Grécia, que com as rígidas medidas de austeridades impostas pela “Troika” (União Europeia, FMI. e BCE) implodiu. Por isso, hoje, 26,4% da população ativa grega está desempregada. Porém, na computação dos efeitos da crise se deve somar mais 6% de trabalhadores gregos desempregados que renunciaram procurar emprego pelos canais oficiais do momento que trabalhavam sem contrato. A metade desse “exército de reserva” não recebe mais o subsídio desemprego ou outras formas de auxilio econômico, a não ser a ajuda alimentar das igrejas e dos inúmeros grupos de “mútuo socorro solidário”, que surgiram sobretudo em Atenas, Salonicco, Patrasso, Peristeri e Larissa.

A Grécia conta com uma população de quase 11 milhões, de que quatro vivem em regime de pobreza. Outros dois milhões de gregos sobrevivem no âmbito da pobreza absoluta e um milhão e meio já está rebaixado no nível zero, isto é vivem em condições abaixo da pobreza. Por isso tudo, para os estrategistas de Bruxelas a evolução política e econômica da Grécia, se tornou um pesadelo do momento que o Partido Comunista da Grécia e a Frente Militantes de Todos os Trabalhadores (PAME) fatores da ruptura política com a União Europeia e a OTAN, poderiam fazer explodir a qualquer momento a rebelião popular.

Por absurdo, todas as vezes que a PAME conclamou as forças da esquerda para manifestar unitariamente nas greves gerais, houve sempre uma dissensão com a nova esquerda (Synaspismos, Akoa, DEA e KEDA). que depois, em 2004, com a formação do SYRIZA (Coalizão da Esquerda Radical) manifestou abertamente sinais de hostilidade política aprofundando a campanha anti-comunista.

Um processo que a imprensa helênica e a europeia exploraram “ad hoc”, contribuindo ao fortalecimento do mito do SYRIZA, que é apresentado como a formação política mais radical da esquerda grega, chefiada por lideranças que haviam rompido com o marxismo-leninismo do KKE, juntamente a outras de origem maoísta, trotskista, ecologista e social-democratas que questionam a política financeira da União Européia sem desejar a ruptura.

Foi nesse âmbito que Aléxis Tsipras, em 2006, concorreu à prefeitura de Atenas liderando a lista “Anohiti Poli” (Cidade Aberta). Durante a campanha eleitoral Tsipras prometeu um amplo programa de medidas radicais em favor dos pobres tornando-se, assim, o novo líder da então Coalizão da Esquerda Radical (Syriza).

Esquerda ou Social-democracia?

A complexa evolução da crise econômica que atacou a União Europeia nos últimos dois anos e a atrelagem da Grécia à Alemanha, foram os elementos políticos do chamado “pragmatismo levantino”, com o qual Aléxis Tsipras direcionou a transformação do SYRIZA em um novo partido social-democrata, que nas eleições antecipadas de 25 de janeiro deverá enxugar ainda mais o antigo partido socialista reformista (PASOK), além de conquistar o voto dos moderados que ficaram descontentes com o partido direitista de Sâmaras e sobretudo dos indecisos da classe média que querem recompor seus privilégios econômicos.

Por isso, Aléxis Tsipras ao fechar a campanha eleitoral na praça Omionia de Atenas declarou:”...O medo acabou, a Grécia e a Europa vão mudar...Domingo vamos escrever uma nova história sem virar página. Simplesmente vamos mudar o tempo onde o SYRIZA vai assumir a responsabilidade histórica de abrir caminhos para uma política alternativa na Europa...A Grécia deixará a experiência neoliberal para seguir um modelo de proteção social e de crescimento...Realizando a renegociação da divida sem ações unilaterais...O nosso partido vai encontrar o meio para por fim a catástrofe da austeridade...”

Filtrando as palavras de Tsipras resulta evidente que SYRIZA, por um lado - mesmo com a maioria absoluta no Parlamento - vai fazer um governo de coalizão com o novo partido de centro-esquerda “To Potami” (O Rio), criado pelo jornalista Stavros Theodorakis, que no governo do direitista Sâmaras, foi nomeado governador do Banco da Grécia e que, segundo algumas fontes se entende muito bem com o presidente da BCE, Mario Draghi.

Por outro lado, o novo governo liderado por Aléxis Tsipras para diluir a promessa de realizar reformas estruturais radicais deverá recorrer aos programas emergenciais para poder controlar e atenuar as pressões das bases eleitorais que, de imediato, vão exigir medidas radicais para acabar com os programas de austeridade da União Europeia e com a agenda financeira imposta pela “Troika” (União Européia, FMI e BCE).

Se considerarmos que, em dezembro de 2012, o Comitê Central de SYRIZA aprovou uma moção que reafirma a manutenção da Grécia na União Europeia e que, portanto assume a participação no esquema estratégico da OTAN, é praticamente impensável que o novo governo irá em direção de uma ruptura política com Bruxelas. Também, é fora de discussão esperar que o governo de Syriza vá rejeitar a famosa agenda de austeridade imposta pela Comissão Europeia, inclusive por que o Banco da Grécia tem tempo até dia 25 de fevereiro para pagar uma parcela de sua divida, usando para isso a última cota de 1,8 bilhão de euros do pacote financeiro fixado pela “Troika” em 2013. Se o Banco da Grécia não efetua este pagamento no fim de fevereiro as agencias de rating e os institutos financeiros oficializarão o default (bancarrota) da Grécia.

Por isso, o ministro alemão das finanças, Wolfgang Schaeuble, no dia 18 de janeiro, no momento em que todas as agências de pesquisas e de sondagens eleitorais gregas e européias garantiam a vitória de SYRIZA, declarou com a máxima tranqüilidade:”...As novas eleições na Grécia não mudarão absolutamente nada na divida publica da Grécia. Qualquer governo que será eleito deverá respeitar e assumir os compromissos de seus precedecessores...”

De fato, Aléxis Tsipras garantiu a realização imediata de programas emergenciais para retirar da indigência e da pobreza extrema um ou até dois milhões de gregos e assim revitalizar a economia com o consumo. Algo que, de longe, faz lembrar a assistencial “Bolsa Família” do presidente Lula. Programas que não modificam o “status quo” dos títulos da divida, de que 80% estão em mãos da “Troika” e apenas 10% na posse dos bancos gregos.

Por outro lado, o SYRIZA nunca questionou a metodologia do pacote de ajuda financeira da “Troika” (254,4 bilhões de euro), de que 81,3 bilhões serviram para pagar as dividas contraídas com os bancos alemães franceses e britânicos; 48,2 para recapitalizar os bancos gregos e as filiais dos bancos estrangeiros operantes na Grécia; 40,6 para pagar os juros dos institutos financeiros e 34,6 para reembolsar as dividas dos privados. Praticamente 81% da ajuda financeira da “Troika” (204,7 bilhões de euro) foram desviados para o setor financeiro e apenas 4% (11,7 bilhões) foram destinados para cobrir as “necessidades de caixa” que a corrupção e as fraudes realizadas durante o governo de Antonis Samaras conseguiram esgotar em breve tempo.

Para finalizar a experiência neoliberal, impor um modelo de proteção social, redefinir o crescimento da economia e no mesmo tempo realizar a renegociação da divida o novo governo de SYRIZA deveria aprovar de imediato uma tríplice reforma: fiscal, tributária e patrimonial, para fazer pagar o custo da divida a todos aqueles que se beneficiaram: bancos, multinacionais, industriais, latifundiários, especuladores e a grande parte da classe média. Além disso Aléxis Tsipras deveria propor uma lei extraordinária para reduzir o orçamento das Forças Armadas que nesses anos de crise nunca baixou!!!

É claro que, hoje, o partido SYRIZA não é mais a Coligação da Esquerda Radical de 2004. Tornou-se um partido social-democrata que quer ficar no poder. Por isso, deverá garantir o controle social com a implementação de eficazes medidas emergenciais que atenuam o peso das medidas de austeridade. Por outro lado deverá responsabilizar-se pelo reforço da lucratividade dos financiamentos efetuados pela BCE, pelas novas normas de competitividade que serão introduzidas na economia (privatização e flexibilização), pela sistematização dos serviços públicos e “dulcis in fundo” por regulamentar, definitivamente nas costas dos gregos, o pagamento dos 254,4 bilhões que a “Troika” emprestou em 2013.

*Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália, editor do programa TV “Quadrante Informativo” e colunista do "Correio da Cidadania"


FONTE: Portal do PCB

Sobre a posição do KKE (Partido Comunista da Grécia) consultar aqui

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A Revolução não é uma Tarefa de Partido


Por Otto Ruhle

I

O parlamentarismo apareceu com a dominação da burguesia.

Com os parlamentos apareceram os partidos políticos.

A época burguesa encontrou nos parlamentos a arena histórica das suas primeiras disputas com a coroa e a nobreza. Organizou-se politicamente e deu à legislação uma forma correspondente às necessidades do capitalismo. Mas o capitalismo não é homogêneo. As diversas camadas e os diversos grupos de interesse no interior da burguesia fizeram valer cada um as suas reivindicações de natureza diferente. Foi para levar a cabo estas reivindicações que nasceram os partidos que enviavam os seus representantes e atores aos parlamentos. O parlamento transformou-se assim num Fórum, lugar de todas as lutas, primeiro pelo poder econômico, político e legislativo, depois no quadro do sistema parlamentar, também pelo poder governamental. Porém as lutas parlamentares, tal como as lutas entre partidos, não passam de combates de palavras. Programas, polêmicas jornalísticas, panfletos relatórios para as reuniões, resoluções, discursos parlamentares, decisões - só palavras. O parlamento degenerou em salão de tagarelices (cada vez mais à medida que o tempo passava), apesar de, desde o primeiro dia, os partidos não passarem de simples máquinas de preparar eleições. Não é por acaso que se declaravam inicialmente "uniões eleitorais".

Burguesia, parlamentarismo, partidos políticos condicionam-se mutuamente. Cada um é necessário ao outro. Marcam a fisionomia política do sistema burguês, da época capitalista-burguesa.

II

A Revolução de 1848 foi travada desde o início. Porém, o ideal da era burguesa, a república democrática, foi erigido.

A burguesia, impotente e cobarde por natureza, arreou a bandeira perante a coroa e a nobreza, contentou-se com o direito de explorar economicamente as massas e reduziu o parlamentarismo a uma paródia.

Resultou então daí o dever para a classe operária de enviar representantes seus ao parlamento. Estes retomaram as reivindicações democráticas das mãos pérfidas da burguesia. Fizeram-lhes uma enérgica propaganda, tentaram inscrevê-las na legislação. A social-democracia atribui-se com esta finalidade um programa mínimo. Um programa de reivindicações actuais e práticas, adaptadas à época burguesa. A sua ação no parlamento estava determinada por este programa. Dominada pela preocupação de obter para a classe operária, e para a sua atividade política, as vantagens de um campo de manobra legal, construindo e acabando a democracia formal burguesa-liberal.

Quando Wilhelm Liebknechet propôs o abstencionismo [1], tratava-se de um desconhecimento da situação histórica. Se a social-democracia queria ser eficaz como partido político, devia entrar no parlamento. Não havia nesse caso nenhuma outra possibilidade de agir e de se fazer valer politicamente.

Quando os sindicatos se desviaram do parlamentarismo e pregaram o antiparlamentarismo, faziam honra à sua apreciação sobre a vaidade e a corrupção crescente da prática parlamentar. Mas, na prática, exigiam da social-democracia qualquer coisa de impossível. Exigiam que se tomasse uma decisão que ia ao encontro da necessidade histórica, que a social-democracia renunciasse a si própria. Esta não podia adoptar tal ponto de vista. Devia ir ao parlamento porque era um partido político.

III

Também o K.P.D. [1N] se tornou um partido político. Um partido no sentido histórico, como os partidos burgueses, como o S.P.D. [2N] e o U.S.P.D.[3N].

Os chefes têm a palavra em primeiro lugar. Falam, prometem, seduzem, comandam. As massas quando estão presentes, encontram-se perante um facto consumado. Têm de pôr-se em formação e marchar alinhados. Têm de acreditar, calar-se e pagar. Têm de receber ordens e instruções e executá-las. Têm de votar.

Os chefes querem entrar no parlamento. Têm só que se apresentar às eleições. Depois do que, mantendo-se as massas numa submissão muda e numa passividade devota, são os chefes que fazem alta política no parlamento.

Também o K.P.D. se tornou um partido político.

Também o K.P.D. quer chegar ao parlamento.

A central do K.P.D. mente quando diz às massas que só pretende entrar no parlamento para o destruir.

Mente quando garante que não quer levar a cabo no parlamento nenhum trabalho positivo.

Não destruirá o parlamento, não pretende faze-lo nem pode. Fará um "trabalho positivo" no parlamento, a isso é obrigada e assim o quer. Vive disso.

O K.P.D. tornou-se um partido parlamentar como os outros. Um partido do compromisso, do oportunismo da crítica e da luta oratória.

Um partido que deixou de ser revolucionário.

IV

Observai-o.

Aparece no parlamento. Reconhece os sindicatos. Inclina-se perante a constituição democrática. Faz as pazes com o poder reinante. Coloca-se no terreno das relações das forças reais. Toma parte na obra da restauração nacional e capitalista.

O que o diferencia do U.S.P.D.? Critica em vez de negar. Faz oposição em vez de revolução. Faz comércio em vez de agir. Tagarela em vez de lutar. É por isso que deixa de ser uma organização revolucionária.

Torna-se um partido social-democrata. Só nuances o distinguem dos Scheidemann e dos Daumig. É o avatar do U.S.P.D. Virá a ser em breve um partido do governo, com o de Schidemann e o de Daumig. E será o seu fim.

V

Resta uma consolação às massas: há sempre uma oposição. Esta oposição não toma de início posição pela contra-revolução. Que podia fazer? Que faz? Reuniu-se, uniu-se numa organização política. Seria necessário?

Os elementos mais maduros politicamente, os mais activos de um ponto de vista revolucionário têm o dever de formar a falange da revolução. Só podiam cumprir esse dever sob a forma de falange, isto é, de formação fechada. São a elite do proletariado revolucionário. Pelo caracter fechado da sua organização, reforçam-se e adquirem uma profundidade de discernimento cada vez maior. Manifestam-se enquanto vanguarda do proletariado, como vontade de acção face a indivíduos hesitantes e confusos. No momento decisivo formam o centro magnético de toda a actividade. São uma organização política.

Mas não são um partido político.

Não um partido no sentido tradicional.

A sigla de Partido Comunista Operário (K.A.P.D.) [4N] é o último vestígio exterior - em breve supérflua - de uma tradição que um simples passar de esponja infelizmente não chega para resgatar de uma ideologia política de massas, ainda à pouco tempo viva, mas hoje já ultrapassada.

Também este vestígio será apagado.

A organização das primeiras fileiras comunistas da revolução não deve ser um partido habitual, sob risco de morte, sob risco de reproduzir a sorte que coube ao K.P.D.

A época da fundação de partidos passou, porque passou a época dos partidos políticos em geral.

O K.P.D. é o último partido. A sua bancarrota é a mais vergonhosa, o seu fim o mais desprovido de dignidade e de glória.. Mas o que será feito da oposição? O que será feito da Revolução?

VI

A revolução não é uma tarefa de partido. Os três partidos social-democratas têm a loucura de considerar a revolução como tarefa sua, própria de partido e de proclamar como seu objectivo partidário a vitória da revolução.

A revolução é tarefa política e económica da totalidade da classe proletária.

Só o proletariado enquanto classe pode levar a revolução à vitória.

Tudo o resto é superstição, demagogia, charlatanismo político.

Trata-se é de conceber o proletariado como classe e de desencadear a sua actividade para a luta revolucionária, na mais larga base e no mais vasto quadro.

É por isso que todos os proletários prontos para o combate revolucionário, não importa a proveniência nem a base sob a qual se recrutam, devem ser reunidos nos ateliers e nas empresas em organizações revolucionárias de empresa e no quadro da A.A.U. (União Geral dos Trabalhadores).

A União Geral dos Trabalhadores não é uma salada, nem uma formação fortuita. É o reagrupamento de todos os elementos proletários, prontos para uma actividade revolucionária, que se declaram a favor da luta de classe pelo sistema dos conselhos e pela ditadura do proletariado.

É o exército revolucionário do proletariado.

Esta União Geral dos Trabalhadores enraíza-se nas empresas e edifica-se a partir dos ramos das indústrias, de baixo para cima, federativamente na base e organizada no topo por meio de homens de confiança revolucionários. Desenvolve-se de baixo para cima a partir das massas operárias. Cresce em conformidade com elas: é a carne e o sangue do proletariado; a força que lhe dá impulso, é a acção das massas, sua alma e sopro incandescente da revolução.

Não é uma criação de chefes. Não é uma construção subtilmente cozinhada. Não é um partido político com tagarelice parlamentar e bonzos pagos. Também não é um sindicato.

É o proletariado revolucionário.

VII

Que há de fazer o K.A.P.D? Criará organizações revolucionárias de empresa. Propagará a União Geral dos Trabalhadores.

Trabalhando de empresa em empresa, de ramo industrial em ramo industrial, formará os quadros das massas revolucionárias. Formá-los-á para o assalto, consolidá-los-á e dar-lhes-á forças para o combate decisivo, até que toda a resistência do capitalismo, prestes a desabar, possa ser vencida.

Insuflará às massas combatentes a confiança da sua própria força, garantia de qualquer vitória na medida em que esta confiança os libertará dos chefes ambiciosos e traidores.

E a partir da União Geral dos Trabalhadores começando nas empresas, estendendo-se pelas regiões económicas e finalmente por todo o país, desenvolver-se-á vigorosamente o movimento comunista.

O novo "partido" comunista, que já não é um partido. Mas que é - pela primeira vez- comunista.

Coração e cabeça da revolução.

VIII

Representemos o processo de maneira concreta. Há 200 homens numa empresa. Uma parte deles pertence à A.A.U. e faz-lhe propaganda, inicialmente sem sucesso. Porém o primeiro combate, no qual os sindicatos naturalmente, cedem, rompe os antigos laços. Imediatamente 100 homens passam para a União. Há entre eles 20 comunistas, sendo o resto composto por pessoas do U.S.P.D., por sindicalistas e desorganizados. No início, o U.S.P.D. inspira maior confiança. A sua política domina a táctica dos combates na empresa. No entanto, lenta mas seguramente, a política do U.S.P.D. revela-se falsa, não revolucionária. A confiança dos trabalhadores no U.S.P.D. atenua-se. A política dos comunistas afirma-se. De 20 os comunistas passam a 50, depois a 100 e mais, em breve o grupo comunista domina politicamente a totalidade da empresa, determina a táctica da União, domina nos combates com objectivo revolucionário. Será assim em pequenas ou grandes proporções. A política comunista implantar-se-á de empresa em empresa, de região económica em região económica. Realizar-se-á, ganhará o comando, tornar-se-á corpo, cabeça e ideia directriz.

É a partir das células dos grupos comunistas nas empresas, a partir dos sectores comunistas de massa nas regiões económicas que se constitui - na edificação do sistema dos conselhos - o novo movimento comunista.

E então? Uma "revolucionarização" dos sindicatos, uma "restruturação"? Quanto tempo durará o processo? Anos? Dezenas de anos? De modo nenhum.

O objectivo não é o de demolir, de destruir o colosso de argila das centrais sindicais com os seus 7 milhões de membros, para os reconstruir depois sob outra forma.

O objectivo é a conquista dos comandos nas empresas preponderantes para a indústria, para o processo de produção social, e desse modo para conquistar poder de decisão no combate revolucionário. Apoderar-se do dispositivo que pode derrotar o capitalismo em ramos e regiões industriais inteiros.

Nestas circunstâncias é isto que a disponibilidade resoluta para a acção de uma organização única pode conseguir mais eficazmente que uma greve geral.

É assim que o David da empresa abate o Golias da burocracia sindical.

IX

O K.P.D. deixou de encarnar o movimento comunista na Alemanha. Bem pode reclamar-se ruidosamente de Marx, Lenine e Radek! Não passa de último membro da frente única da contra-revolução. Em breve se apresentará em perfeito acordo com o S.P.D. e o U.S.P.D., no quadro de uma frente única para um Governo operário "puramente socialista". A promessa de uma "oposição legal" aos partidos assassinos que traíram os operários é uma etapa desse processo.

Renunciar a exterminar de forma revolucionária os Erbert e os Kautsky (consultar Die Rote Fahne (9) de 21 de Março de 1920), é já aliar-se a eles.

A última fase do capitalismo na sua agonia. O último "socorro político" da burguesia alemã.
O fim. O fim dos próprios partidos, da política de partido, do logro dos partidos, da traição dos partidos.É o novo começo do movimento comunista. O Partido Comunista Operário. As organizações de empresas revolucionárias, reagrupadas na União Geral dos Trabalhadores. Os conselhos revolucionários. O congresso dos conselhos revolucionário. O governo dos conselhos revolucionários. A ditadura comunista dos conselhos.



Notas:
[1] Em 1875, Liebknechet propôs o abstencionismo, contrariamente a Marx e Engels.
[1N] K.P.D. - Kommunistische Partei Deutschlands - Partido Comunista da Alemanha, fundado em Dezembro de 1918.
[2N] S.P.D. - Sozialdemokratische Partei Deutschlands - Partido Social-Democrata Alemão, fundado em 23 de maio de 1863.
[3N] U.S.P.D. - Unabhängige Sozialdemokratische Partei Deutschlands - Partido Social Democrata Independente da Alemanha, fundado em 6 de abril de 1917.
[4N] K.A.P.D. - Kommunistischen Arbeiter-Partei Deutschlands - Partido Comunista Operario da Alemanha, fundado em abril de 1920 em Heidelberg a partir da cisão do K.P.D.


Otto Rhule
Nasceu em 1874 em Freiberg, Saxe e morreu em 1943 no México. Durante a revolução de Novembro de 1918 desempenha um papel de relevo como membro do Conselho operário e militar de Dresde. Em 1919 é expulso do partido (K.P.D.). Entra para o K.A.P.D. É expulso pouco depois por exigência de Moscou. A partir de 1920 torna-se o principal teórico da A.A.U.-E.
A actividade de Otto Rühle no movimento operário alemão esteve ligada ao trabalho de pequenas minorias restritas no interior e no exterior das organizações operárias oficiais. Os grupos aos quais aderiu directamente não tiveram em nenhum momento uma verdadeira importância. E mesmo se no interior destes grupos ocupou uma posição especial, não chegou nunca a identificar-se completamente com nenhuma organização. Não perdeu nunca de vista os interesses gerais da classe operária qualquer que fosse a estratégia política especial que tivesse apoiado em determinado momento particular.


domingo, 18 de janeiro de 2015

Notas sobre o socialismo


Por Wladimir Pomar


Claudio Katz, economista argentino e investigador do CONICET, publicou um texto com o interessante título de “Imaginários Socialistas”. Segundo ele, “o socialismo reapareceu na América  Latina em quatro projetos de futuro”. Na Venezuela, adotando o “enunciado centenário” de “socialismo do século XXI”. Na Bolívia, assumindo o perfil singular de “socialismo comunitário”. Em Cuba, atualizando-se como “renovação socialista”. E, na ALBA, como “formulação continental” de “socialismo latino-americano”. Em todos os casos o horizonte de longo prazo estaria sendo combinado com “propostas nacionais (ou regionais) imediatas”.

Apesar de sua introdução instigadora, Katz se pergunta “o que significa o socialismo? Qual o balanço de suas experiências? Como volta a se apresentar neste momento?” Ele próprio responde que o socialismo se converteu num grande movimento popular no final do século 19, quando “encarnou o antigo sentimento de emancipação social” de os oprimidos construírem “uma sociedade de igualdade e justiça”. Seus “partidários consequentes” teriam se confrontado “abertamente com o capitalismo” e adotado “um perfil revolucionário” ao compreenderem que “este sistema não pode ser reformado, nem humanizado”. O socialismo se definiria, então, por “oposição ao capitalismo”, “antítese de um regime que funciona acrescentando os sofrimentos populares, as tensões bélicas e a destruição do meio ambiente”.

Para ser franco, tal definição tem o defeito de ser parcial. O “antigo sentimento de emancipação social” dos oprimidos, e sua visão de “igualdade e justiça” variaram muito, sendo diferentes em cada momento da história. Em cada um desses momentos, “os partidários consequentes” desses ideais se confrontaram, abertamente ou não, com o modo de produção historicamente dominante. Espártaco se bateu contra o escravismo romano para retornar ao comunismo primitivo da Trácia. Os “diggers” ou “cavadores” ingleses, mais de mil anos depois, pretenderam criar um sistema comunitário contra o feudalismo no momento em que o capitalismo dava seus primeiros passos como sistema econômico e social.

Por outro lado, não foi o socialismo, mas sim o comunismo, que se converteu em grande movimento popular no final do século 19, dando surgimento ao Manifesto do Partido Comunista e à Internacional dos Trabalhadores. Nessa ocasião, o socialismo era um movimento utópico que procurava humanizar o capitalismo através do cooperativismo (Robert Owen e Fourier) e da educação (Saint Simon). Apesar disso, tendo em vista a necessidade de conquistar os setores intermediários da sociedade na luta contra o capitalismo, o socialismo se transformou em bandeira de luta dos partidos operários e socialdemocratas, cuja matriz era comunista.

Portanto, o comunismo e o socialismo surgiram como oposição ou antítese do capitalismo, como afirma Katz. Mas eles surgiram também como resultado do desenvolvimento do próprio capitalismo. E não só porque o sistema capitalista funciona causando sofrimentos, guerras e destruições ambientais. Mas, principalmente, porque em seu desenvolvimento histórico o capitalismo tende a criar uma contradição antagônica entre o elevado desenvolvimento social das forças produtivas e a apropriação privada das riquezas geradas pelo trabalho humano. Sem tal desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo o socialismo tende a ser apenas uma utopia sem condições materiais de realizar-se.

A condição básica para o desenvolvimento de uma sociedade socialista e, mais adiante, de uma sociedade comunista, reside no desenvolvimento das forças produtivas, na capacidade da sociedade produzir os meios para atender às necessidades físicas, ambientais, culturais e científicas de todos os seus membros. O que exige transformar a propriedade privada capitalista dos meios de produção em propriedade social, administrada pelo conjunto da sociedade. O socialismo se define, então, como oposição e antítese da propriedade privada capitalista, mas em concordância com o aproveitamento do patrimônio técnico e científico gestado pelo capitalismo.

Nesse sentido, o projeto socialista não se limita a “gestar uma sociedade sem opressores nem oprimidos”, ou a liquidar a exploração dos trabalhadores, como supõe Katz. Mesmo porque o socialismo não conseguirá “reverter a desigualdade que recria um sistema assentado na competição para incrementar o lucro”, nem “erradicar progressivamente uma rivalidade que socava a convivência humana”, se não tiver as condições materiais de suprir as necessidades de todos os seus membros. Para chegar ao socialismo é preciso ter passado pelo capitalismo, apesar dos sonhos de bordejar ou evitar essa necessidade histórica.

Numa sociedade de escassez e pobreza, mesmo que sobre ela seja estendido o manto socialista, acabarão por se reproduzir os “dramáticos choques entre distintos grupos da sociedade”, como demonstraram as experiências socialistas onde as forças produtivas eram atrasadas. Tais sociedades podem estar baseadas em “regimes econômicos de maior participação da propriedade pública e de sistemas políticos de crescente autoadministração popular”, mas sucumbirão se as forças produtivas forem incapazes de atender às necessidades de toda a população.

Ao contrário do que pensa Katz, o que Marx percebeu como antecipação na Comuna de Paris não foi a infraestrutura socialista, mas sua superestrutura política. E o que Marx supôs emergir na Europa foi a revolução comunista, tendo em conta o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo nessa região do globo. Mas Marx não viveu o suficiente para ver a evolução do capitalismo em imperialismo. Isto é, não pode acompanhar a disputa feroz pela exploração das colônias e semicolônias, travada pelas potências capitalistas desenvolvidas. Exploração que lhes permitiu arrancar lucros extraordinários do sistema colonial e semicolonial e redistribuir parte deles entre seus operários para minar suas lutas de classe.

Com a evolução de alguns países capitalistas para o patamar imperialista ocorreu o deslocamento do epicentro da luta de classes. Antes fincado no interior dos países capitalistas desenvolvidos, esse epicentro migrou para as disputas entre os países imperialistas e para o interior das colônias e semicolônias, de desenvolvimento capitalista atrasado, ou sem desenvolvimento capitalista. Além disso, os povos desses países assistiram também à migração dos pensamentos contraditórios, liberais e outros, forjados nos países desenvolvidos. Esses deslocamentos modificaram a premissa, defendida por Marx, de as revoluções ocorrerem primeiro nos países capitalistas onde as forças produtivas eram mais avançadas e onde a classe dos trabalhadores assalariados era mais numerosa.

Abriu-se uma era que seria marcada por guerras imperialistas e revoluções nos elos mais fracos do sistema mundial. Na China, em 1900 e em 1911; nas Filipinas, em 1901; na Rússia, em 1905; no México, a partir de 1910; na Nicarágua, desde 1912; e na Albânia, em 1913. Entre 1914 e 1918 ocorreu não só a primeira guerra mundial, mas também as rebeliões dos irlandeses contra o império britânico e dos árabes contra o império otomano. As primeiras revoluções a assumirem um caráter socialista foram a russa, em 1917, e a húngara e alemã, em 1918 e 1919. Depois disso, os coreanos se levantaram contra o Japão, os indianos contra o colonizador britânico, e os chineses contra o múltiplo domínio dos países estrangeiros.

Nos anos 1920, somalis, mongóis, iraquianos, marroquinos, egípcios e turcos levantaram-se contra seus dominadores estrangeiros, enquanto na China tinha início a primeira guerra civil revolucionária. A influência socialista nessas lutas resultou, como reação, em sua falsificação pelos fascistas italianos e pelos nazistas alemães. Eles capitanearam a disputa por uma nova redivisão imperialista do mundo e o desencadeamento da segunda guerra mundial. Mas as consequências desta, como na primeira, foram a expansão socialista em países periféricos da Europa Oriental, o desencadeamento da Guerra Fria, a revolução na China, o empate de forças na guerra da Coréia, a disseminação das guerras e revoluções de libertação nacional e descolonização na África e na Ásia, e a implantação do socialismo em Cuba, Vietnã, Birmânia, Etiópia e Somália, entre 1950 e 1970. Ou seja, o epicentro da luta de classes se manteve na periferia do sistema central capitalista durante todo o século 20.

Katz chama a atenção para o fato de que tudo isso pareceu aterrorizar as classes burguesas e fazê-las oferecer “concessões sociais inéditas” com o estado de bem-estar. Nos anos 1970 e 1980, os “emblemas do socialismo” teriam sido tão populares que se tornou “impossível computar o número de partidos e movimentos que se reivindicavam essa denominação”. No entanto, é preciso frisar que, nessas décadas, o estado de bem-estar ficou circunscrito a alguns países europeus, enquanto no resto do mundo ocorria uma repressão feroz contra qualquer tentativa socialista, ou mesmo democrático-burguesa. Calcula-se que no golpe anticomunista da Indonésia foram assassinadas mais de 700 mil pessoas.

Na América Latina, os anos 1970 foram de expansão de ditaduras terroristas por toda parte. O mesmo ocorreu na África e na Ásia. O bloqueio econômico, político e militar contra a China perdurou até 1972. A guerra de libertação do Vietnã só terminou em 1975. Reivindicar a condição de socialista em muitos países do mundo era o mesmo que procurar sarna para se coçar, ou querer ser preso e torturado.

A impossibilidade de computar o número de partidos e movimentos que se denominavam socialistas era apenas a expressão imediata da perplexidade com que os combatentes socialistas se confrontavam diante do desafio de desenvolver as forças produtivas em países que sequer haviam avançado na primeira revolução industrial capitalista. Perplexidade que permanece ainda hoje, seja em virtude da bancarrota soviética e da “renovação socialista” na China e no Vietnã, anterior à cubana, seja com aquilo que Katz chama de “projetos de futuro” na América Latina.



quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Morte em Paris

Por Antonio Martins



Por que o “Charlie Hebdo” foi atacado. As manifestações e o risco de mais xenofobia na Europa. Os sinais de um sistema em crise profunda


Pela Redação de Outras Palavras


Uma das hipóteses mais lúgubres do sociólogo Immanuel Wallerstein concretizou-se, em parte, esta manhã em Paris. Dois homens encapuzados e vestidos de negro, aparentando (ou simulando) ser fundamentalistas islâmicos, invadiram a sede de um jornal satírico francês, o Charlie Hebdo, e executaram, a rajadas de metralhadoras, ao menos doze pessoas. Entre os mortos estão o editor da publicação e outros três chargistas de enorme talento e renome internacional. Charlie Hebdo é irreverente, inclinado à esquerda e crítico às instituições religiosas. Esta postura levou-o, algumas vezes, a provocar o islamismo, religião de milhões de imigrantes oprimidos e discriminados na Europa.

Sejam quais forem os responsáveis pelo atentado, as consequências são potencialmente trágicas: aumento da onda xenófoba – especialmente anti-islâmica – na Europa. Crescimento dos partidos de extrema-direita. Reforço à postura ultra-agressiva que os Estados Unidos, com notável apoio da França, já adotam no Oriente Médio. Risco ampliado de guerras de provocação. Wallerstein adverte que a crise do capitalismo é profunda, mas poderá abrir espaço tanto para um sistema mais democrático e igualitário quanto para o oposto. Ao entrar em declínio, a ordem hoje hegemônica liberta a emergência e expansão de valores de um pós-capitalismo; mas engendra, ao mesmo tempo, riscos de um mundo ainda mais hierarquizado, violento e desigual. As circunstâncias do atentado e seu contexto parecem validar a hipótese.

Armados de fuzis, os dois assassinos chegaram à redação de Charlie Hebdo, no centro de Paris, por volta das 11h. Sob ameaça, obrigaram a cartunista Corrine Rey (“Coco”), que entrava com sua filha, a abrir a porta do prédio. Ela relatou que falavam “um francês perfeito” e disseram pertencer à Al-Qaeda. Subiram dois andares e começaram a fuzilaria.

Chegaram num momento preciso. Às quartas pela manhã, a redação reunia-se, para definir a pauta do número seguinte. Estavam presentes o diretor, Charb, mais três cartunistas – CabuTignous e Wolinski (este último mais conhecido do público brasileiro, por publicar, em abril de 2011, em Piauí, a sequência “Meio século de sexo”) – e quatro redatores (entre eles, o economista Bernard Maris, ex-membro do Conselho Científico do movimento ATTAC, em favor do controle social sobre o sistema financeiro).

Todos foram mortos na hora, junto com mais dois funcionários do jornal e dois policiais. Os assassinos teriam gritado, segundo testemunhas que os jornais franceses não identificam claramente, “Allahu Akbar” [“Alá é o Maior”] e se vangloriado de que “vingamos o Profeta”. Mas fugiram de carro, ao invés de se auto-martirizarem, como é comum em atentados cometidos pelo terror islâmico. Além disso, até o fechamento deste texto, nenhum grupo havia assumido o ato.

Fundado em 1992, o atual Charlie Hebdo (que resgata o nome de uma publicação anterior) não é um jornal de extrema-esquerda, ao contrário do que se afirmou no Brasil. Parte de sua equipe esteve presente em revistas humorísticas ligadas à revolta de 1968. Mas seu foco central não são os grandes temas políticos franceses ou mundiais – mas a crítica às instituições religiosas e à ultradireita.

Nos últimos anos, voltou-se especialmente contra o islamismo. Em 2005, reproduziu uma série de charges publicadas originalmente no jornal dinamarquês Jyllands Posten, consideradas ofensivas ao profeta Maomé. Manteve a mesma postura por anos a fio, o que despertou críticas de analistas importantes do Islã – como Alan Gresh, redator do Le Monde Diplomatique. Num texto publicado em 2012, ele defendeu, obviamente, a liberdade de expressão do Charlie Hebdo, mas criticou sua linha anti-islâmica. Lembrou que, além de discriminados, os muçulmanos sofrem, há anos, restrições às liberdades políticas (em 2014, o governo francês chegaria a proibir manifestação contra o ataque israelense aos palestinos da Faixa de Gaza). Diante deste contexto, Gresh indagava: seria correto, em 1931, em plena ascensão do nazismo, uma publicação alemã de esquerda estampar charges ridicularizando aspectos retrógrados da religião judaica?

A hipótese de que o atentado de hoje seja de autoria de fundamentalistas islâmicos é real. Num sinal da descoesão ocidental, apontada por Wallerstein, o New York Times lembra hoje que, entre os militantes do grupo ultrafundamentalista ISIS, criador de um califado no Iraque, há milhares de europeus (além de norte-americanos, seria justo acrescentar…).

Mas a pergunta clássica – cui profit, a quem beneficia o crime – sugere não ficar apenas nesta hipótese. Quase quinze anos após os atentados de 11 de Setembro, não foram respondidas as teorias segundo as quais a derrubada das Torres Gêmeas não poderia ocorrer sem algum tipo de participação das agências de inteligência dos Estados Unidos, nem as crônicas sobre o estranho comportamento do presidente George W. Bush ao ser informado de sua derrubada.

Mais de 100 mil pessoas saíram às ruas esta noite, em dezenas de cidades francesas, em solidariedade à redação de Charlie Hebdo. O clima foi de óbvia consternação e de defesa das liberdades. Manifestaram-se os que se sentem próximos de um jornal irreverente e sarcástico. Mas e a Europa profunda? Na própria França, as pesquisas colocam em primeiro lugar, na preferência dos eleitores para a próxima eleição à Presidência, Marinne Le Pen, da Frente Nacional, xenófoba e de extrema-direita. Na Alemanha, ressurgem, pela primeira vez depois da II Guerra Mundial, manifestações contra estrangeiros, articuladas por um movimento que se apresenta como contrário à suposta “islamização do Ocidente”. Que efeito terá o atentado de hoje sobre estes sentimentos já em ascensão?

As doze vítimas de hoje merecem tantas homenagens quanto cada um dos mais de 500 mil mortos no Iraque, desde a invasão norte-americana, ou as mais de 2.400 pessoas seletivamente assassinadas pelo governo norte-americano, por meio de drones, só entre 2009 e 2014.

Porém, mais que os mortos, está em questão o futuro do humanidade. Para Wallerstein, é impossível saber, hoje, o que virá após o declínio do capitalismo. É uma disputa que se prolongará por décadas e será definida em “uma infinidade de nano-ações, adotadas por uma infinidade de nano-atores, em uma infinidade de nano-momentos”.

O atentado de hoje chama atenção para os riscos inerentes a este cenário de crise. Mas pode, num sentido oposto, ecoar o apelo à ação feito, na sequência, pelo mesmo sociólogo. Ele diz: “Em algum ponto, a tensão entre as duas soluções alternativas vai pender definitivamente em favor de uma ou outra. É o que nos dá esperança. O que cada um de nós fizer a cada momento, sobre cada assunto imediato, importa”.


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Socialismo e comunismo, modo de uso: manual didático


Segundo matéria recente publicada no Globo, o capitalismo deu muito certo. Pelo menos para as 85 pessoas mais ricas do mundo ou cerca de 1% da população.

  
Por Rita Almeida


Ainda me surpreendo com gente que afirma repudiar os ideais comunistas ou socialistas porque eles “não deram certo” em parte alguma. Em resposta a essa afirmação o que me vem em mente é uma pergunta: Então o capitalismo deu certo?

Bom, parece que segundo matéria recente publicada no Globo, o capitalismo deu muito certo. Pelo menos para as 85 pessoas mais ricas do mundo ou cerca de 1% da população. Segundo a pesquisa citada, essa elite de 85 pessoas acumula a mesma riqueza que os 3,5 bilhões mais pobres do planeta. A matéria afirma ainda que cerca de 1% da população detém a metade da riqueza mundial. Sendo assim, minha pergunta também pode ser feita de outro modo: Se é que o capitalismo deu certo, deu certo pra quem?

Suspeito que, quando se supõe que o capitalismo tenha “dado certo”, se queira dizer que o capitalismo trinfou. Infelizmente, disso eu não tenho dúvidas. Se é eticamente permitido que ao dividirmos uma pizza gigante ao meio, metade dela seja fatiada para 85 pessoas e a outra metade seja fatiada para 3,5 bilhões de pessoas, então só podemos confirmar que o capitalismo triunfou. Ou seja, os melhores e maiores pedaços de pizza serão sempre para quem pode pagar por eles. E o mais cruel é que se você quiser um pedaço melhor de pizza, terá que disputa-lo competindo com os que, como você, têm acesso à segunda metade da pizza. Ou você acredita mesmo que poderá alcançar uma migalha que seja da primeira metade? Esqueceu? Estamos falando de capitalismo. Os tais 1% que desfrutam da primeira metade da pizza têm dinheiro suficiente para não deixar que você nem mesmo sinta o cheio dela.

E melhor, eles têm poder suficiente para fazer você acreditar que essa história de comunismo ou socialismo são ideias retrógradas de gente do mal que não sabe respeitar o pedaço de pizza alheio. Ou seja, para protegerem seus pedaços de pizza eles precisam nos fazer acreditar que é ultrapassada a ideia de compartilharmos de maneira mais igualitária essa pizza gigante. Cada um tem o pedaço de pizza que lhe cabe e ponto. Se alguns têm um pedaço de pizza bem maior que do outro, e outros não têm nenhum pedaço de pizza, paciência! Ao invés de ficarmos fomentando essa coisa de socialismo ou comunismo, lendo Marx ou citando Badiou, tratemos de trabalhar com dedicação e persistência para conseguirmos nosso próprio pedação da pizza, fazendo assim que o capitalismo também dê certo para nós.

Sintetizando: Se o capitalismo não deu certo pra você é apenas por culpa sua. Porque se ele deu certo para alguns pode dar certo para você também, basta que você tenha fé e trabalhe.

No entanto, existe um grande problema com essa teoria do capitalismo, chamada de meritocracia, que é um problema matemático. Vamos supor que essa teoria funcione e que 99% da população mundial resolva, com fé e trabalho, conquistar o mesmo pedaço de pizza que o seleto grupos dos 1%. Matematicamente, para que isso seja possível, teríamos que aumentar essa pizza (inteira) pelo menos 99 vezes, só assim todos teriam a possibilidade de ter pedaços de pizza parecidos com as dos 1%, não é mesmo?

Entretanto, tal estratégia tem dois problemas graves. Primeiro: a pizza, por uma limitação ecológica, jamais poderá ser ampliada 99 vezes sem que entremos em colapso. Para se ter uma ideia, se todos os habitantes da terra consumissem como um americano médio (eu disse médio), nos seriam necessários quatro planetas Terra. Segundo: na medida em que a pizza cresce e as mesmas regras capitalistas são mantidas, o mais provável é que os pedaços extras de pizza fiquem para os que já têm pizza suficiente, afinal, eles são os mesmos que têm recursos de sobra para adquiri-los. Não é obvio?

Se você ainda não desistiu do texto e acompanhou meu raciocínio até aqui, já começou a entender o que move os ideais comunistas ou socialistas. Eles pensam em estratégias para que nossa pizza gigante seja dividida de forma mais equânime, para que não tenhamos distorções tão injustas como as que vemos.

Mas aí vem outra questão importante para socialistas e comunistas. Como faremos para que a riqueza que está acumulada nas mãos dos 1% mais ricos ou dos 85 (os mais ricos dentre os mais ricos), seja melhor distribuída, chegando especialmente, aos mais pobres e miseráveis? Antes de tentar responder esta pergunta, preciso abrir outro parágrafo.

Suspeito que o que chamei antes de triunfo do capitalismo, se deu por um motivo bastante simples. O capitalismo é um modelo econômico que repete o nosso modo mais primitivo de existência que é a chamada Lei da Selva, onde os mais fortes e mais aptos sobrevivem. Uma vez regidos pela Lei da Selva (daí o termo “capitalismo selvagem”) os mais frágeis, incapazes de vencer a luta pela sobrevivência, simplesmente não merecem viver, essa é a ordem natural das coisas. Isso faz com que a sustentação ideológica mais forte do capitalismo seja sua naturalização. Digamos, então, que o socialismo e o comunismo vieram para subverter a ordem natural das coisas. Vieram para desnaturalizar a Lei da Selva e inventar uma nova ordem, a de que todos merecem ter uma chance de sobreviver, mesmo os mais frágeis. Pensando na nossa pizza gigante, a utopia socialista-comunista é que todos deveriam ter acesso a pedaços dignos de pizza, de forma mais igualitária possível e ninguém deveria poder esbanjar pizza, enquanto outros não recebem uma migalha sequer.

Voltando à nossa última pergunta: Quais as maneiras que socialistas e comunistas imaginam que sejam eficazes para redistribuir melhor essa pizza riqueza?

Socialismo e comunismo - modo de usar

Existem inúmeros teóricos e teorias que pensaram e pensam sobre o modo de uso do socialismo e do comunismo. Algumas teorias acreditam que um governo comprometido com os mais frágeis só surgirá por meio da chamada Revolução, onde os mais pobres (a maioria) se unem e tomam para si o poder e a responsabilidade de repartir a pizza-riqueza. Em nome do bem comum, estatizarão a pizza, assim ela deixará de ser um bem privado, que beneficia uma minoria, para ser socializada em benefício da coletividade. Outras teorias defendem a presença do chamado Estado Forte, ou seja, um Estado que seja responsável por regular a economia, para que ela proteja os mais frágeis e redistribua de forma mais igualitária a riqueza circulante. Algumas correntes acreditam que seja possível implantar os ideais comunistas e socialistas por meios de leis mais justas, serviços públicos de qualidade, programas sociais e de redistribuição de renda. E há ainda os que, em nome do comunismo ou socialismo, cometem equívocos e abusos, alguns deles absurdos e contraditórios. Mas, vale lembrar, que isso não é uma particularidade do comunismo ou do socialismo. Todo tipo de atrocidade já foi cometida em nome das mais nobres causas. Guerras estúpidas são travadas em nome da democracia. Assistimos recentemente a violação da privacidade de pessoas e Nações, tudo feito em nome da paz. Ao longo da história, povos inteiros já foram escorraçados e dizimados em nome de Jeová, Jesus Cristo, de Alá... A lista de absurdos é vasta.

Apesar das várias correntes e nuances comunistas e socialistas, o que elas têm em comum é que todas buscam evitar que a Lei da Selva do capitalismo prevaleça sem intervenções, tal como desejaria o capitalismo liberal (liberado de qualquer intervenção do governo), ou sua forma mais moderna, o neoliberal. Por isso, a concepção de Estado Mínimo – um Estado que tenha o mínimo de influência na sociedade, especialmente na economia – é a que mais favorece que o capitalismo floresça em toda a sua plenitude, alcançando toda a crueldade e selvageria que lhe seja permitido.

Mas você pode agora estar se perguntando se poderíamos ter um capitalismo mais humanizado, menos competitivo e cruel. Citando Marx, o capitalismo se fundamenta na mais-valia e no exercito de reserva. Simplificando, é necessário que sempre haja pobres (o maior número possível a fim de baratear o preço da mão de obra) dispostos a trabalhar para sobreviver (exercito de reserva), para que a riqueza possa, então, ser deles extraída (mais-valia) e se acumule nas mãos de alguns poucos. Sendo assim, não há humanismo no capitalismo, é o homem sendo o lobo do homem.

Para quem perdeu as aulas de história, vale lembrar que socialismo e comunismo são irmãos gêmeos do capitalismo, nasceram juntos. De fato, o socialismo e o comunismo nasceram para questionar e problematizar as contradições impostas pelo capitalismo. Em última análise, vieram para injetar humanismo no capitalismo. Por exemplo, sabemos que nas primeiras fábricas capitalistas os trabalhadores (homens, mulheres e até crianças) mantinham jornadas de até 16 horas diárias e sem direito a descanso semanal, férias e qualquer outra garantia trabalhista ou proteção social. Sendo assim, todas as conquistas dos trabalhadores desde o início do capitalismo, foram alcançadas pelo jogo de forças que impediam – não sem muita luta – que a ordem natural do capitalismo seguisse seu fluxo. Foram os ideais comunistas e socialistas que sempre fizeram, e sempre farão, contraponto ao desejo capitalista de acumular mais e mais à custa da exploração de outro ser humano e da miséria de muitos outros.

Socialismo e Comunismo fracassaram?

Lanço agora uma outra pergunta: Se acreditamos que o capitalismo triunfou em certa medida, isso quer dizer que socialismo e comunismo fracassaram ou sucumbiram? Na minha opinião, não, e vou explicar. Marx concebia o comunismo como movimento que reage aos antagonismos do capitalismo e não como um modelo de sociedade ideal. Sendo assim, enquanto o capitalismo existir, com suas contradições e desigualdades, a “hipótese comunista”, como diz Alain Badiou, permanecerá viva. Badiou afirma ainda: “se essa hipótese tiver de ser abandonada, então não vale mais a pena fazer nada na ordem da ação coletiva. (...) Cada indivíduo pode cuidar de sua vida e não se fala mais nisso”.

Um dado curioso é que os defensores do Estado Mínimo, em geral adeptos do capitalismo, criticam os governos socialistas e comunistas por nutrirem um Estado Forte que intervém constantemente na economia, na política e nas corporações. Todavia, quando em 2009 a economia americana entra em colapso (mais uma vez), é nas portas desse mesmo Estado que os banqueiros americanos vêm bater pedindo socorro. O que quer dizer mais ou menos o seguinte: “Nós, que fazemos parte da elite dos 1% que detém a metade pizza estamos tendo problemas em administrar nossa metade e estamos temerosos em perde-la por completo, sendo assim, precisamos da ajuda do governo para que possam usar da sua parte da pizza, a que serve para socorrer os que tem pouca pizza ou pizza alguma, para nos reerguermos". É quando os ideais comunistas e socialistas servem, desta vez, para socializar o prejuízo, já que o lucro é sempre privatizado.

Socialismo e comunismo abrigam uma sociedade ideal?

Já ficou claro que capitalismo, comunismo ou socialismo são modos de organização econômica, são maneiras diferentes de pensar a divisão da pizza, sendo que, todos eles podem florescer em diferentes formas de governos, mais ou menos democráticos, mais ou menos corruptos, mais ou menos agressivos, mais ou menos estúpidos, mais ou menos sanguinários e mais ou menos paranoicos. Não existe um ideal de sociedade. Capitalismo, socialismo e comunismo podem abrigar virtudes e mazelas.

Por outro lado, sempre haverá uma tensão intransponível entre o individual e o coletivo, entre o privado e o público, entre o singular e o universal. Freud afirmava que a civilização só foi possível porque o ser humano foi capaz de abrir mão da satisfação de suas pulsões egoístas em nome da coletividade. Todavia, sabemos que essa renuncia não se dá sem angústias e tensões. Digamos então que os ideais socialistas e comunistas nos auxiliam a pensar o mundo para além do nosso próprio umbigo. Investem na constante construção de um mundo onde os interesses individuais precisam ser considerados, entretanto jamais poderão ser maiores ou mais importantes que os interesses da coletividade.

Eu não acredito numa sociedade ideal, num sistema de governo ideal, num sistema econômico ideal. No entanto, eu não posso viver num mundo onde 85 pessoas tenham mais importância do que 3, 5 bilhões, sobretudo se eu sei que esses últimos não vivem, apenas sobrevivem, quando sobrevivem. E é por isso, que eu me recuso terminantemente a abandonar os ideais socialistas e comunistas, pois são essas bandeiras que me permitem ter esperança. Se eu não puder ao menos me envergonhar e me indignar por tanta injustiça e desigualdade e acreditar que temos rotas de fuga possíveis em direção a um outro mundo, duvido que conseguisse levantar da cama todos os dias pela manhã.


FONTE: Carta Maior