Por Nildo Viana (*)
A história do marxismo, no período posterior a Marx e Engels, foi obscurecida, por um lado, pela historiografia oficial, e, por outro, pelo “marxismo” oficial. Este último reduz a história do marxismo à história da social-democracia e do bolchevismo. No entanto, “tanto a social-democracia quanto o bolchevismo nada tem a ver com o movimento operário” (Rosenberg, 1986). Este é motivo pelo qual vários teóricos que desenvolveram a teoria marxista foram marginalizados e esquecidos na história do marxismo, tal como é o caso de Anton Pannekoek.
Anton Pannekoek foi um dos principais representantes do comunismo conselhista. Ele nasceu 1873 na Holanda e morreu em 1960. Escreveu obras fundamentais para o movimento comunista revolucionário, tais como: Os Conselhos Operários; Lênin, Filósofo; Revolução Mundial e Tática Comunista; e uma diversidade de artigos e outras obras.
Segundo Paul Mattick, outro teórico conselhista,
“como outros socialistas holandeses notaram, Pannekoek saiu da classe média, e como ele próprio uma vez acentuou, o seu interesse pelo socialismo provinha de uma tendência científica bastante poderosa, para envolver a um tempo a sociedade e a natureza. Para ele, o marxismo era a ciência aplicada aos problemas sociais e a humanização da ciência era um aspecto da humanização da sociedade. Sabia conciliar o seu gosto pelas ciências sociais com a sua paixão pelas ciências da natureza; ele torna-se não só um dos teóricos dirigentes do movimento operário radical, mas também um astrônomo e um matemático de reputação mundial” (Mattick, 1976, p. 6).
Pannekoek publicou também várias obras que tratam de temas considerados das ciências naturais, tal como História da Astronomia; Marxismo e Darwinismo; e Antropogênese – Estudo sobre a Origem do Homem (há tradução para o esperanto desta obra: Pannekoek, 1978), entre outras.
Pannekoek foi um militante revolucionário desde sua juventude. Segundo Mattick, “ainda jovem estudante em ciências naturais, e especializando-se em astronomia, Pannekoek entrou no Partido Operário Social-Democrata da Holanda e situou-se imediatamente na sua ala esquerda ao lado de Hermann Gorter e Frank van der Goes” (Mattick, 1976, p. 10-11). Neste partido, fundado por Domela Nieuwenhuis, de origem anarco-sindicalista, Pannekoek e Gorter fundaram um jornal que representava as posições de sua esquerda e logo a degeneração reformista fez com que eles rompessem com ele e fundassem o Partido Social Democrata. Este também seria abandonado tão logo passasse a ser seguidor da linha bolchevique. Neste período, Pannekoek assumiu uma posição antimilitarista (era a época da primeira guerra mundial), rejeitou o parlamentarismo como meio de transformação social e se opôs à expulsão dos anarquistas da II Internacional.
A explosão da primeira guerra mundial e o apoio da social-democracia serviu para unir os vários grupos oposicionistas. Na Alemanha, Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt e outros militantes, formaram a Liga Spartacus, que, futuramente – junto com os comunistas internacionalistas (Rühle e outros) – formariam o Partido Comunista Alemão; Na Holanda, os oposicionistas à guerra imperialista se aglutinaram em torno de Pannekoek, Gorter, Roland-Host.
Ocorre, nesse período, a Revolução Russa. Rosa Luxemburgo e os comunistas holandeses demonstraram não oferecer apoio incondicional, como a maioria na época fez. Sem dúvida, os militantes de esquerda possuem uma necessidade inconsciente de se agarrar a experiências e movimentos em outros países para se sentirem “do lado do desenvolvimento histórico”, o que demonstra a insegurança psíquica de muitos revolucionários, que assim apelam para o modelo soviético, cubano ou “guevarista”, ou qualquer outro. Rosa Luxemburgo escreveu textos de crítica ao bolchevismo e à revolução russa, demonstrando receio em relação ao autoritarismo bolchevique. Todos eles (Rosa Luxemburgo, Pannekoek, etc.), ofereceram “apoio crítico”, colocando já as discordâncias em relação a um processo que ainda não estava claro para pessoas de outros países.
As experiências soviética e alemã influenciaram Pannekoek. Ele era um marxista declarado. Ele concordava com os princípios básicos do marxismo, sendo que o modo de produção era considerado por ele como elemento fundamental para a explicação da sociedade. É o modo de produção da vida material que fornece a determinação fundamental do conjunto das demais relações sociais. Assim, ele observava o que passava na esfera da produção e sua relação com o movimento político geral da sociedade. A luta de classes torna-se o “motor da história”, como em Marx, e a luta operária se manifesta como o embrião do comunismo e é por isso que toda sua obra será dedicada a analisar a forma de emancipação dos trabalhadores e a experiência histórica e concreta da luta operária lhe inspirará na sua constituição de sua teoria dos conselhos operários.
A experiência russa dos sovietes (conselhos operários), que também ocorreu na Alemanha, foi fundamental para Pannekoek assumir sua posição conselhista. Segundo Mattick,
“Pannekoek reconheceu neste movimento dos conselhos o princípio de um novo movimento operário revolucionário, e ao mesmo tempo o início de uma reorganização socialista da sociedade. Este movimento não podia nascer e manter-se senão opondo-se às formas tradicionais. Estes princípios atraíram a parte mais militante do proletariado em revolta, para grande desgosto de Lênin que não concebia um movimento escapando ao controle do Partido ou do Estado e que procurava castrar os sovietes da Rússia. Não podia tolerar um movimento comunista internacional fora do controle absoluto do seu próprio partido. Primeiro recorrendo a intrigas, e depois em 1920 abertamente, os bolcheviques esforçaram-se por combater as tendências antiparlamentares e anti-sindicais do movimento comunista, sob o pretexto de que era preciso não perder o contato com as massas que aderiam às antigas organizações. O livro de Lênin, O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo, era sobretudo dirigido contra Gorter e Pannekoek, porta-vozes do movimento dos conselhos comunistas. O Congresso de Heidelberg em 1919 dividiu o partido comunista alemão numa minoria leninista e numa maioria que aderiu aos princípios do antiparlamentarismo e do anti-sindicalismo sobre os quais o partido tinha sido fundado inicialmente. Nova controvérsia se junta à primeira: ditadura do partido ou ditadura de classe? Os comunistas não leninistas adotaram o nome de Partido Operário Comunista da Alemanha (KAPD). Uma organização similar foi mais tarde fundada na Holanda. Os comunistas de partido se opuseram posteriormente aos comunistas de conselhos e Pannekoek colocou-se ao lado dos segundos” (Mattick, 1976, p. 16-17).
Assim nasce a mais importante e desenvolvida corrente do marxismo mundial: o comunismo conselhista. A partir deste momento, vai se firmando cada vez mais esta corrente e sua posição diante do bolchevismo vai se clarificando. Korsch já colocara, anteriormente, o princípio fundamental para a análise da história do marxismo: a aplicação do materialismo histórico ao próprio materialismo histórico (Korsch, 1977). E procedendo desta forma, ele concebeu três fases na história do marxismo, sendo que a última corresponderia à retomada do seu caráter revolucionário acompanhando a emergência das lutas revolucionárias do proletariado no início do século 20, sendo expresso por teóricos como Rosa Luxemburgo, Hermann Gorter, Anton Pannekoek, Otto Rühle, entre outros. Esta corrente deveria, necessariamente, entrar em confronto tanto com a ala reformista social-democrata quanto com a ala bolchevista, o que ocorreu embrionariamente já desde os confrontos de Rosa Luxemburgo contra a social-democracia (Bernstein e Kautsky) e Lênin, e se solidificou com os desdobramentos da Revolução Russa e das demais tentativas de revolução proletária na Europa.
O comunismo de conselhos via nos conselhos operários (Sovietes, na Rússia) como a forma de auto-organização revolucionária do proletariado, tal como se pode ver embrionariamente na Comuna de Paris e posteriormente em 1905, na primeira Revolução Russa, bem como nas diversas tentativas de revolução proletária na Europa, sem falar na Revolução Russa de 1917. Os conselhos operários também seriam as instituições de autogestão social na reorganização comunista da sociedade. Neste contexto, se desenvolvia a crítica aos partidos políticos e sindicatos. Otto Rühle, por exemplo, seria o mais ferrenho crítico dos partidos políticos, não a determinados partidos, mas aos partidos em geral, tal como se vê em seu artigo A Revolução não é Tarefa de Partido.
Os sindicatos também sofreram várias críticas dos teóricos conselhistas. Ao invés de organizações que representariam os interesses do proletariado, os sindicatos representavam, na verdade, os interesses da classe dominante. Segundo Pannekoek, “As condições existentes nos sindicatos atuais os transformaram, mais que nunca, em órgãos de dominação do capitalismo monopolista sobre a classe operária” (Pannekoek, 1977, p. 102).
Pannekoek também era um crítico da social-democracia reformista e do parlamentarismo. Para ele, o parlamento é um freio para o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado e a democracia burguesa é uma forma de escravizar e não de libertar a classe proletária (Pannekoek, 1978).
Depois do confronto na III Internacional, os teóricos conselhistas (Pannekoek, Rühle, Wagner, Gorter, etc.) vão cada vez mais aprofundando sua crítica ao bolchevismo e ao regime ditatorial russo. A Rússia passa a ser caracterizada como um capitalismo de estado. Segundo Pannekoek,
“a consolidação do capitalismo de estado na Rússia foi a razão determinante do caráter que tomou o Partido Comunista. Enquanto que na sua propaganda no exterior, continuava falando de comunismo e de revolução mundial, criticava o capitalismo e chamava os trabalhadores a se unirem na sua luta pela libertação, escondia o fato de que na Rússia os trabalhadores não eram mais que uma classe submetida a uma ditadura opressiva e implacável, privada de liberdade de expressão, de imprensa e associação, muito mais duramente submetida que as classes operárias dos países ocidentais” (Pannekoek, 1977, p. 129).
A posição de Pannekoek e dos comunistas de conselhos se torna antibolchevista. O bolchevismo passa a ser visto como um movimento contra-revolucionário que atua dentro do movimento operário. Tal como colocou Mattick,
“enquanto a luta de Lênin contra a ‘ultra-esquerda’ era o primeiro sintoma das tendências contra-revolucionárias do bolchevismo, o combate de Pannekoek e Gorter contra a corrupção leninista do novo movimento operário foi o começo de um antibolchevismo dum ponto de vista proletário” (Mattick, 1976, p. 18-19).
O capitalismo estatal russo transformou o marxismo em ideologia da burocracia “soviética”. Em Lênin, Filósofo, Pannekoek buscava analisar a filosofia leninista e demonstrou que o seu materialismo, oposto ao idealismo de Mach e Avenarius, exposto em Materialismo e Empireocriticismo, revela mais um fundamento do caráter semiburguês do bolchevismo, pois ele criticava estes autores com base no materialismo burguês, aquém do materialismo histórico.
Segundo Pannekoek,
“O materialismo burguês identifica a matéria física com a realidade objetiva; portanto, deve-se considerar tudo o mais, também o espiritual, com um atributo, uma propriedade desta matéria. Logo, não é estranho que encontremos as mesmas idéias em Lênin” (Pannekoek, 1973, p. 13).
Esta concepção de matéria, contrária a posição do materialismo histórico, é uma retomada do materialismo burguês, que fornece um fundamento filosófico de caráter burguês ao bolchevismo. E é este o motivo do ataque de Lênin a Joseph Dietzgen, defendido por Pannekoek. O curioso é que Dietzgen foi considerado por Engels como um dos fundadores da dialética materialista (Engels, s/d; Engels, 1990) e, no entanto, foi criticado e abandonado pelos social-democratas e bolchevistas (de Kautsky e Plekhanov até Lênin e os leninistas), apesar de se inspirarem mais em Engels do que em Marx para criar sua ideologia do “materialismo dialético” (Viana, 1997). Mas o que se tem, neste caso, neste uso do materialismo burguês sob a máscara de materialismo histórico, é a criação de uma ideologia de uma nova classe social, a burocracia, ou, segundo Pannekoek, a intelligentsia:
“Esta ideologia leninista, que hoje professam os partidos comunistas e que, em princípio, se adequa à ideologia tradicional do velho partido social-democrata, já não expressa nenhum dos objetivos do proletariado. Segundo Harper [Pannekoek – NV], é muito mais a expressão natural dos objetivos de uma “nova classe”: a intelligentsia” (Korsch, 1973, p. 157).
A Revolução Russa era vista como uma contra-revolução burocrática que sucedia a revolução operária dos sovietes. O bolchevismo, do ponto de vista de Pannekoek, utilizava métodos que “não tem nada a ver com um marxismo revolucionário, nem com a práxis da luta de classes da Europa ocidental, e que inclusive se encontrava em contradição com ambos” (Brendel, 1978, p. 9).
A segunda guerra mundial e a ascensão do nazi-fascismo marcaram a crise do movimento operário e, por conseguinte, do comunismo conselhista. Este sobreviveria marginalmente na sociedade capitalista, tanto através de publicações e coletivos que reivindicavam o comunismo de conselhos quanto através de sua influência nas mais variadas correntes políticas que buscavam apresentar uma alternativa à social-democracia e ao bolchevismo. A hegemonia bolchevista nas organizações burocráticas que dizem representar o movimento operário relegou o conselhismo ao esquecimento junto a militantes e operários, e somente recordado como uma “doença infantil”, chamada “esquerdismo” (Lênin, 1989). Porém, sempre que há emergência do movimento operário, ocorre o ressurgimento do comunismo de conselhos, tal como na rebelião estudantil de maio de 68, no qual a idéia de autogestão fez ressurgir o interesse pela obra dos comunistas conselhistas, inclusive em um dos participantes deste processo que retomava a teoria conselhista do capitalismo de estado para explicar a posição do partido comunista francês (Cohn-Bendit e Cohn-Bendit, 1969).
Em 1947, Pannekoek escreveu sua grande obra Os Conselhos Operários, onde expressou a afirmação teórica da experiência proletária do caminho para a autogestão social. Depois disso, devido ao refluxo do movimento operário na Europa Ocidental, Pannekoek continuaria sua militância basicamente através da teoria, escrevendo e publicando textos, até seu falecimento em 1960. Dentre os teóricos revolucionários, Pannekoek foi o que mais se dedicou ao que ele denominava “novo movimento operário” fundado nos conselhos operários. Ele pode ser considerado o maior teórico dos conselhos operários e, ao contrário do que alguns críticos de esquerda do conselhismo afirmam, sua visão destas formas de auto-organização do proletariado não era fixa e acrítica. Os conselhos operários podiam ser corrompidos, tal como ocorreu na revolução bolchevique e durante a vigência do reformismo. Segundo Pannekoek, os conselhos operários
“não designa uma forma de organização fixa, elaborada de uma vez por todas, a qual só faltaria aperfeiçoar os detalhes; trata-se de um princípio, o princípio da autogestão operária das empresas e da produção. A realização deste princípio não passa, absolutamente, por uma discussão teórica referente aos seus melhores modos de execução. É uma questão de luta prática contra o aparato de dominação capitalista. Em nossos dias, por conselhos operários não se entende a associação fraternal que tem um fim em si mesma; conselhos operários quer dizer luta de classes (na qual a fraternidade tem seu lugar), ação revolucionária contra o poder do Estado” (apud. Bricianer, 1975, p. 310).
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(*) Professor da Universidade Estadual de Goiás; Graduado em Ciências Sociais; Especialista em Filosofia; Mestre em Filosofia; Mestre em Sociologia; Doutor em Sociologia/UnB.