Em 1955, Ernesto Guevara encontrou-se com os revolucionários cubanos no México e em 9 de outubro de 1967 foi assassinado na Bolívia. Portanto, foram pouco mais de 10 anos de intensa militância revolucionária. Podemos dizer que ele foi, fundamentalmente, um homem de ação
Por Augusto C. Buonicore*
A GUERRA DE GUERRILHAS
Os pontos positivos dos textos sobre a guerra de guerrilha são os que se referem: 1º ao papel necessário da luta revolucionária no processo de transformação social na América Latina no século XX, dominada por governos autoritários e ditatoriais; 2º à definição do inimigo principal dos povos, o imperialismo estadunidense; 3º à importância do internacionalismo, especialmente a solidariedade com os países dominados e agredidos por esse mesmo imperialismo.
Ele via com incredulidade a possibilidade de mudanças efetivas nos países latino-americanos nos marcos da legalidade burguesa, através das eleições. Qualquer tentativa nesse sentido seria barrada pela ação violenta das classes dominantes. Escreveu: "Quando se fala em alcançar o poder pela via eleitoral, nossa pergunta é sempre a mesma: se um movimento popular ocupa o governo sustentado por ampla votação popular e resolve em consequência disto iniciar grandes transformações sociais que constituem o programa pelo qual se elegeu, não entrará imediatamente em choque com os interesses das classes reacionárias desse país? O Exército não tem sido um instrumento de opressão a serviço destas classes? Não será então lógico imaginar que o Exército tomará partido por sua classe e entrará em conflito com o governo eleito? Em consequência pode ser derrubado por meio de um golpe de Estado e aí recomeça de novo a velha história.”
Che escreveu estas palavras premonitórias em 1962 no momento em que o movimento comunista internacional estava se inclinando ao reformismo que emanava da URSS, dirigida por Kruschev. No Brasil, o PCB advogava a via pacífica para a conquista de um novo regime social e, inclusive, defendia o caráter democrático das forças armadas. Nos anos seguintes se confirmaram, de maneira trágica, as teses defendidas por Guevara: em 1964 um golpe militar derrubou o governo democrático de João Goulart e em 1973 caía Salvador Allende no Chile. Na segunda metade da década de 1970, a maioria dos países da América Latina estava dominada por ditaduras militares apoiadas pelos EUA.
É bom ressaltar que Guevara, em várias passagens de sua obra, procurou não absolutizar a luta armada, particularmente a guerrilha rural, e levantou a necessidade da utilização dos mais variados métodos de luta: pacíficas e nãopacíficas. Os revolucionários, afirmou ele, "não podem prever de antemão todas as variantes táticas a serem utilizadas no processo de sua luta por um programa libertador. A qualidade de um revolucionário se mede por sua capacidade de encontrar táticas adequadas a cada mudança de situação, em ter sempre em mente as diversas táticas possíveis e explorá-las ao máximo. Seria um erro imperdoável descartar, por princípio, a participação nos processos eleitorais. Em determinado momento ela pode significar um avanço no programa revolucionário.”
Apesar dessa afirmação correta, ele mesmo tendeu, em vários momentos, a subestimar a luta institucional e por reformas nos marcos do capitalismo. Referindo-se à política adotada pela maioria dos partidos de esquerda na América Latina, afirmou: "Nos países onde esses erros tão graves são cometidos, o povo mobiliza suas legiões, ano após ano, para conquistas que lhe custam imensos sacrifícios e que não têm o mínimo de valor (grifo nosso). São apenas colinas dominadas pelo fogo serrado da artilharia inimiga. O nome delas é: parlamento, legalidade, greve econômica legal, reivindicação por aumento salarial (...). E o pior de tudo é que para ganhar estas posições tem que intervir no jogo político do Estado burguês e, para obter autorização de entrar neste jogo perigoso, é preciso demonstrar que atuará dentro dos estritos limites da legalidade.”
Guevara, neste trecho específico, não reconhece qualquer importância às lutas realizadas nos marcos da legalidade – e da institucionalidade burguesa–, como momentos necessários no processo de acumulação de forças visando à construção de uma alternativa revolucionária. As eleições e as greves, quando bem utilizadas, podem ser importantes instrumentos na formação política das massas trabalhadoras. Todas as conquistas populares, por menores que sejam, podem ter um valor inestimável quando educam as massas para a necessidade de sua organização e da luta. A própria história da revolução cubana é a comprovação viva desta tese leninista.
A fórmula anterior chegou a um impasse quando se agregou a ela a constatação de que nos países onde existissem governos democráticos, eleitos pelo voto popular, e que nos quais se mantivesse certa aparência de legalidade, "o surgimento do foco guerrilheiro seria impossível por não se terem esgotado todas as possibilidades da luta parlamentar”. Mas, se nas democracias burguesas as táticas guerrilheiras estariam de antemão excluídas, só restaria ali a utilização de métodos não-armados, como participação nas eleições, nos sindicatos, nas greves econômicas ou políticas. Neste caso, a luta armada teria uma função defensiva.
Outro problema na avaliação de Guevara era quanto ao papel desempenhado pelo espaço urbano, considerado essencialmente nãorevolucionário. A industrialização e a concentração urbana seriam fatores negativos no processo de ruptura com o capitalismo e o imperialismo. Escreveu ele: "Os países nos quais existem altas concentrações populacionais em grandes centros, devido a um processo inicial de industrialização, têm mais dificuldades em preparar a guerrilha. A influência ideológica dos centros urbanos inibe a luta guerrilheira e incentiva as lutas de massas organizadas pacificamente”. O ambiente urbano reforçaria o processo de "institucionalização” das esquerdas, propiciaria a proliferação de ideias reformistas. Por isto, continuou ele, "mesmo levando em consideração países em que o predomínio urbano é muito grande, continuamos achando que o foco central político de luta deve desenvolver-se no campo”. Essa era a mesma opinião dos defensores da Guerra Popular Prolongada de inspiração chinesa, que defendiam o cerco da cidade pelo campo.
O modelo de revolução de Guevara dava muita ênfase ao "foco guerrilheiro”, embora sua visão sobre ele tivesse passado por importantes mudanças ao longo de sua obra. Depois de afirmar que "nem sempre devemos esperar que todas as condições para a revolução já estejam dadas: o foco insurrecional pode criá-las”, ele sente a necessidade de precisar tal afirmação e completa: "naturalmente não pensamos que todas as condições para a revolução são criadas somente pelo impulso que lhe é dado pelo foco guerrilheiro. Sempre teremos que verificar se existem condições mínimas para o estabelecimento e a consolidação do primeiro foco. É importante destacar que a luta guerrilheira é uma luta de massa, é uma luta popular: a guerrilha, enquanto núcleo armado, é a vanguarda combatente do povo, sua grande força assentada na massa da população (...). Por isto temos que recorrer à guerra de guerrilha quando se tem o apoio majoritário da população (...). O guerrilheiro tem que contar com o apoio da população local. É uma condição sine qua non.” Em poucos anos, Che e seus companheiros passariam, na prática, a negar a necessidade da existência de condições objetivas e subjetivas para a eclosão dos movimentos revolucionários, caindo em posições espontaneístas e voluntaristas que teriam para ele trágicas consequências.
A experiência da guerrilha boliviana revelou os equívocos de muitas das concepções defendidas pelos revolucionários cubanos, entre elas a afirmação de que já existiriam as condições objetivas para a eclosão de uma revolução socialista em toda a América Latina, cabendo apenas a ação enérgica de um pequeno grupo de revolucionários para se constituírem as condições subjetivas. Nos seus derradeiros momentos, Guevara escreveu: "Dia de angústia que em certo momento pareceu ser o nosso último dia. (...) O exército está mostrando maior efetividade de ação. E a massa camponesa não nos ajuda em nada e se converte em delatores”. Eram 17 homens, contingente maior que aquele que havia se alojado na Sierra Maestra, mas as condições eram agora completamente adversas. O camponês boliviano não se assemelhava ao camponês cubano, que Che descreveu em seu artigo "Cuba, exceção histórica?”. A realidade boliviana era completamente diferente da existente em Cuba no final da década de 1950.
Se, de um lado, era correta a compreensão de Che de que a revolução deveria ser continental, que levou a uma valorização do internacionalismo, particularmente da solidariedade hemisférica; de outro, acabou levando à construção de uma tática esquemática e anti-histórica. Os revolucionários cubanos não conseguiram compreender que, apesar da semelhança de muitos de seus problemas, os países latino-americanos possuíam profundas diferenças entre si. As revoluções não poderiam simplesmente pular as fronteiras nacionais. Em novembro de 1967 um documento do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) afirmava: "A revolução será feita em cada país pelo seu próprio povo. O problema nacional é um dos fatores básicos da luta emancipadora nas nações oprimidas pelo imperialismo. Todo país tem suas peculiaridades, sua formação histórica e suas tradições, sua cultura e composição étnica, seus hábitos e costumes. Todo povo terá que encontrar as formas específicas de abordar a revolução”. A verdadeira revolução não poderia ser importada ou exportada.
Guevara acertou na compreensão de que os Estados Unidos eram o principal inimigo dos povos latino-americanos; no entanto, a tática elaborada, particularmente após 1965, não correspondeu exatamente a esta visão. Ele concluiu que o caráter da revolução em todo o continente já era socialista e havia passado, sem as mediações necessárias, a construir uma tática e estratégia assentadas nessa conclusão imprecisa. Assim, reduziu-se o campo de alianças possíveis no combate ao imperialismo estadunidense e às ditaduras implantadas em quase toda a América Latina.
Esta era uma negação da própria experiência revolucionária cubana. Poucos anos após a revolução cubana, em 1962, Guevara havia escrito: "Não podemos considerar como excepcional o fato de que a burguesia, ou pelo menos boa parte dela, se mostre favorável à guerra revolucionária contra a tirania (...). E, se levarmos em consideração as condições em que se deu a guerra revolucionária e a complexidade das tendências políticas opostas à tirania, não podemos tampouco estranhar a atitude neutra ou pelo menos não diretamente ofensiva de certos elementos latifundiários frente às forças insurrecionais”. Continuou ele: "é compreensível que a burguesia nacional, estrangulada pelo imperialismo e a tirania (...), visse com bons olhos esses jovens rebeldes das montanhas castigando o exército de mercenários, braço armado do imperialismo. Foi assim que forças nãorevolucionárias ajudaram de fato a facilitar o caminho do advento do poder revolucionário.”
Neste trecho ele falava de uma burguesia que se mostrava favorável à "guerra revolucionária contra a tirania” e até da postura neutra de "elementos latifundiários” diante da revolução em curso. Esse fenômeno – que foi muito bem aproveitado por Fidel Castro – ajudou os revolucionários cubanos a chegarem ao poder e, depois de uma série de fases, a implantarem o socialismo.
O documento do PCdoB, polemizando contra aqueles que advogavam a revolução socialista imediata em toda a América Latina, afirmava: "Para lutar consequentemente contra o domínio dos Estados Unidos nos países latino-americanos e em todo o mundo é preciso adotar uma política capaz de mobilizar o máximo de forças contra esse inimigo (...). Quando se coloca, na atual etapa da luta, o socialismo como objetivo imediato, na prática restringe-se o campo das forças revolucionárias e amplia-se o do imperialismo (...). O exemplo de Cuba mostra que não foi com bandeiras socialistas que ali se iniciou e se tornou vitoriosa a revolução”. As bandeiras que unificaram o povo para derrubada de Batista foram, fundamentalmente, democráticas e nacionais. A revolução radicalizou-se e assumiu seu caráter socialista em 1961, após a malograda tentativa imperialista de invasão através de Playa Giron (Baía dos Porcos). Cuba foi um típico caso de revolução em duas etapas.
Na sua última carta endereçada aos seus pais, antes de partir para sua última trincheira na Bolívia, Guevara escreveu: "Outra vez sob meus calcanhares o lombo de Rocinante, retomo o caminho com meu escudo no braço (...). Muitos dirão que sou aventureiro, eu sou de fato, só que de um tipo diferente, daqueles que entregam a pele para demonstrar suas verdades”.Apesar de possíveis erros cometidos, Che era acima de tudo um revolucionário socialista. Para ele, valeria a mesma descrição que Lênin fez a respeito de Rosa de Luxemburgo, utilizando um velho ditado russo: "Às vezes as águias descem e voam entre as aves do quintal, mas as aves do quintal jamais se elevarão até as nuvens”. Essa é a diferença entre o aventureiro pequeno-burguês e um verdadeiro revolucionário.
OS PROBLEMAS DA TRANSIÇÃO SOCIALISTA
Após a revolução, Guevara assumiu a direção do setor industrial do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA); em 18 de novembro de 1959 foi indicado à presidência do Banco Nacional de Cuba e, por fim, ministro da Indústria de Cuba. Assim, se tornou o principal responsável pela direção dos assuntos econômicos do poder popular e socialista; e justamente ele: um médico que gostava de dizer que jamais estudara seriamente economia. Uma das suas primeiras medidas à frente do Banco de Cuba foi baixar o seu próprio salário de cinco mil para mil e duzentos pesos. O exemplo pessoal era uma arma poderosa na luta ideológica que se travava.
Em 1960, viajou, pela primeira vez, aos países socialistas e com isso assinou inúmeros tratados comerciais. Aproveitou o momento e estudou atentamente essas diferentes experiências, simpatizando-se por algumas delas. Isso lhe custou muitas críticas do governo estadunidense. Fidel Castro ainda não havia decidido seguir abertamente a via do socialismo– afirmava-se defensor do terceiro-mundismo.
O governo revolucionário buscou o caminho da nacionalização das empresas estratégicas e isto atingiu em cheio os interesses do imperialismo. A maioria dos bancos, das refinarias, das empresas importadoras e exportadoras era dos Estados Unidos e foi atingida diretamente pelas medidas nacionalistas. Em 8 de janeiro de 1961 os EUA romperam relações diplomáticas com Cuba e, em 17 de abril, apoiaram a invasão de Playa Giron por mercenários cubanos. Depois desses atos agressivos, Fidel se declarou marxista-leninista e afirmou que a revolução cubana passaria a seguir a via do socialismo. Reforçou-se a aproximação econômica e política com a URSS e os países do Leste Europeu.
Desenvolvimento Industrial e Estímulos Morais
No início da década de 1960 estabeleceu-se uma rica polêmica sobre quais seriam os caminhos para se reestruturar a economia da nova Cuba que optara pelo socialismo. De um lado, ficou Guevara e, de outro, os economistas soviéticos e seus aliados na ilha, os antigos membros do Partido Socialista Popular (comunista).
No seu plano quadrienal de desenvolvimento Guevara previa aumentar o ritmo da industrialização, diversificar a economia, reduzir a importância da monocultura açucareira, estatizar as grandes empresas e limitar as importações. Este foi o modelo adotado pela União Soviética e China, que havia dado bons resultados.
Os soviéticos, por sua vez, não viam razão para que Cuba abandonasse a monocultura de açúcar, afinal esta era a sua principal atividade econômica. Eles, pelo contrário, se propunham a comprar toda a produção e fornecer as mercadorias industrializadas de que os cubanos necessitavam. Segundo os soviéticos, deveria ser estabelecida uma relação de complementaridade entre a economia cubana e a do Leste Europeu e URSS. A proposta, em curto prazo, parecia muito compensadora aos cubanos. Pensando em longo prazo, as coisas poderiam não ser tão boas assim, pois a economia da ilha seria colocada na dependência do que aconteceria na URSS.
As concepções econômicas de Che poderiam ser encontradas nas palestras que fez logo no início da revolução. Afirmou ele: "todos estes conceitos de soberania política, de soberania nacional são fictícios, se ao lado não existir a independência econômica. (...) Fincamos os pilares da soberania política no dia 1º de janeiro de 1959, mas eles só estarão totalmente consolidados no momento em que conseguirmos a independência econômica absoluta. (...) Ainda não podemos proclamar diante dos túmulos de nossos mártires que Cuba é independente economicamente. Não o pode ser enquanto um simples barco detido nos Estados Unidos provoque a paralisação de uma fábrica em Cuba, enquanto uma ordem qualquer de algum monopólio paralise aqui um centro de trabalho. Cuba será independente quando tiver desenvolvido todos os seus meios, todas as suas riquezas naturais e quando tiver (...) a certeza de que não poderá haver ação unilateral de nenhuma potência estrangeira para impedi-la de manter o ritmo de produção, de manter todas as suas fábricas produzindo o máximo possível dentro da planificação que estamos pondo em prática.” (Soberania Política e independência econômica – 20-03-1960).
Após a célebre decisão de Cuba seguir o caminho do socialismo, este país passou pelas mesmas dificuldades que as demais revoluções vitoriosas: a fuga dos gerentes, dos técnicos, dos engenheiros e até mesmo dos trabalhadores especializados. Este quadro foi agravado pelo estado de desordem em que se encontrava a economia. Era preciso pô-la para funcionar, aumentar a produtividade do trabalho, vencer o absenteísmo e a indolência: formas de resistência à exploração capitalista que acabam se enraizando na consciência social e devem ser superadas após a vitória da revolução socialista.
Continua.
* historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
Fonte: Grabois
BIBLIOGRAFIA
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FONTE: Adital