terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Gramsci sobre a legalidade


Por Antonio Gramsci

(em Socialismo e Fascimo. L’Ordine Nuovo 1921-1922, via Capitalismo em desencanto. Imagem via AsymptoticWay.)


Sem qualquer ilusão na democracia formal, que alguns de seus intérpretes parecem ter, Gramsci critica duramente a esquerda que se permite enganar com as garantias legais do estado burguês. O texto que segue, publicado originalmente sob o título “Legalidade”, é de extrema atualidade para o estudo da teoria marxista do direito e do Estado.

Até onde vão os limites da legalidade? Em que momento deixam de ser respeitados? É certamente difícil fixar qualquer limite, dado o caráter bastante elástico que assume o conceito de legalidade. Para qualquer governo, toda ação que se manifesta no campo da oposição contra ele supera os limites da legalidade. Contudo, pode-se dizer que a legalidade é determinada pelos interesses da classe que detém o poder em cada sociedade concreta. Na sociedade capitalista, a legalidade é representada pelos interesses da classe burguesa.

Quando uma ação busca atingir de algum modo a propriedade privada e os lucros que dela derivam, tal ação se torna imediatamente ilegal. Isso é o que ocorre no plano da substância. No plano formal, a legalidade se apresenta de modo diverso. Já que a burguesia, ao conquistar o poder, concedeu igual direito de voto ao patrão e seu assalariado, a legalidade foi aparentemente assumindo o aspecto de um conjunto de normas livremente reconhecidas por todos os segmentos de um agregado social. Houve então quem confundisse a substância com a forma, dando assim vida à ideologia liberal-democrática. 

O Estado burguês é o Estado liberal por excelência. Nele, todos podem expressar livremente seu pensamento através do voto. Na verdade, no Estado burguês, a legalidade reduz-se a isto: ao exercício do voto. A conquista do sufrágio pelas massas populares apareceu aos olhos dos ingênuos ideólogos da democracia liberal como a conquista decisiva para o processo social da humanidade. Jamais se levou em conta que a legalidade tem uma dupla face: uma interna, a substancial; outra externa, a formal.

Confundindo estas duas faces, os ideólogos da democracia liberal enganaram por alguns anos as grandes massas populares, levando-as a acreditar que o sufrágio as libertaria de todas as suas cadeias. Nesta ilusão, desgraçadamente, não caíram apenas os míopes defensores da democracia liberal. Muita gente que se considerava e se considera marxista acreditou que a emancipação da classe proletária tinha de se realizar por meio do exercício soberano do direito ao voto. Alguns imprudentes chegaram mesmo a se servir do nome de Engels para justificar essa crença. Mas a realidade destruiu todas essas ilusões. A realidade mostrou, do modo mais evidente possível, que a legalidade é uma só e existe somente enquanto se concilia com os interesses da classe dominante, ou seja, na sociedade capitalista, com os interesses da classe patronal. A particular experiência deste fato nos últimos tempos contém, na verdade, muitos e importantes ensinamentos.

A classe operária, valendo-se do seu direito de voto, conquistou um grande número de governos municipais e provinciais. Suas organizações alcançaram um poderoso crescimento numérico e conseguiram impor contratos vantajosos para os operários. Mas, no dia em que o sufrágio e o direito de organização se tornaram meios de uma ofensiva contra a classe patronal, esta última renunciou a qualquer legalidade formal e passou a obedecer apenas à sua verdadeira lei, à lei do seu interesse e da sua conservação. 

Uma a uma, as prefeituras foram sendo arrancadas pela violência das mãos da classe operária; as organizações foram dissolvidas com o uso da força armada; a classe operária e camponesa foi expulsa das posições conquistadas, a partir das quais ameaçava para além da conta a existência da propriedade privada. Surgiu assim o fascismo, que se afirmou e impôs fazendo da ilegalidade a única coisa legal. Nenhuma organização, salvo a fascista; nenhum direito de voto, a não ser quando dado aos representantes dos latifundiários e dos industriais. É esta a legalidade que a burguesia reconhece quando é obrigada a repudiar a legalidade formal. Portanto, a experiência destes últimos tempos não é privada de ensinamentos para os que antes haviam honestamente acreditado na eficácia das garantias legais concedidas pelo Estatuto liberal burguês.

Existe um momento na história em que a burguesia é obrigada a repudiar o que ela mesma criou. Estamos vivendo este momento na Itália. Não levar em conta a experiência que disso resulta ou é suma ingenuidade, que merece as mais severas sanções, ou é má-fé, que deve ser impiedosamente punida. 

Tal nos parece, com efeito, o caso daqueles organizadores socialistas que hoje revelam espanto porque, por exemplo, o deputado Beneduce não consegue fazer com que os contratos de trabalho sejam respeitados. Tudo isso é grave em pessoas que continuam pretendendo se situar no terreno da luta de classes. Será que é permitido, a um organizador que pretenda não ter renegado os princípios da luta de classes, perguntar a um ministro quais são os recursos de que este dispõe para impedir a violação dos contratos de trabalho pelos patrões? Tais perguntas não podem deixar de gerar dúvidas e incertezas na classe operária. 

É natural que o ministro do Trabalho não disponha de nenhum recurso, salvo o de ser um instrumento nas mãos dos latifundiários e dos industriais. Enquanto os organizadores socialistas não souberem fazer mais do que dirigir-se ao ministro do Trabalho solicitando-lhe que peça aos patrões o cumprimento dos contratos, a classe operária continuará a sofrer todas as violações, sem nem mesmo poder organizar sua própria defesa.

Os industriais retiram-se das juntas de arbitragem. E esta é também uma consequência lógica da situação. Os industriais querem hoje retomar todo o seu poder. Os industriais não querem mais reconhecer limites de nenhuma espécie à sua própria vontade. Aceitaram as juntas de arbitragem no momento em que o ímpeto revolucionário das massas ameaçava a existência deles. Agora, quando a situação parece favorável a qualquer iniciativa reacionária, os patrões nem mesmo se preocupam em conservar qualquer escrúpulo. Escolheram abertamente o caminho da retomada integral e despótica do poder sobre as massas operárias. Que atitude os organizadores socialistas imaginam que deve ser tomada diante destas tendências da classe patronal? Tudo o que os organizadores socialistas sabem fazer é denunciar à opinião pública a inadimplência patronal e a impotência do ministro do Trabalho. Mas, enquanto isso, a classe operária sofre todas as consequências do comportamento patronal e da incerteza dos seus dirigentes. Enquanto estes apresentam solicitações ao ministro do Trabalho, cresce a fome, a miséria se multiplica, a reação se reforça. 

Aqueles organizadores socialistas que, durante a guerra, apertavam as mãos ensanguentadas dos generais nos comitês de mobilização são os mesmos que agora pedem a ajuda e a intervenção dos ministros do Trabalho. Ontem se faziam cúmplices dos assassinos que haviam desencadeado a guerra, ao frearem o ímpeto revolucionário das massas através das decisões das juntas de arbitragem; hoje deixam indefesa a classe operária, enquanto por toda parte os patrões não mais respeitam os acordos e os violam a seu bel-prazer.

Somente a proposta do Comitê Sindical Comunista é capaz de organizar uma defesa operária contra o assalto capitalista; somente se unirmos todas as forças operárias num exército compacto será possível pensar numa séria oposição aos capitalistas, os quais, obedecendo a uma palavra de ordem, visam a reduzir à escravidão toda a classe operária. Mas, para os senhores organizadores socialistas, até mesmo pedir o respeito aos acordos hoje é demasiadamente revolucionário.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

De Eduard Bernstein ao novo reformismo - Revisionismo



Por Miguel Urbano Rodrigues


A história do movimento operário e do movimento comunista é riquíssima em ensinamentos. Tendo, como sempre teve, que procurar soluções novas para uma sociedade nova em quadros de extrema complexidade e perante uma relação de forças em regra muito desigual, seria talvez inevitável que fossem muitos os erros cometidos, muitas as opções que, em vez de reforçar o movimento, o enfraqueceram e conduziram a derrotas. E é com os erros que mais há a aprender. Evitar repeti-los é evitar repetir derrotas.

Após a proclamação do Império Alemão, Bismark sentiu a necessidade de enfrentar sem repressão a combatividade da classe operária. Foram aprovadas leis que melhoravam sensivelmente a qualidade de vida dos trabalhadores.

O Partido Social Democrata alemão-SPD, que era marxista e uma referência para todos os partidos revolucionários da Europa, uma vez legalizado, cresceu muito numa época em que a Alemanha se tornara a segunda potência industrial do mundo.

No final do século XIX, um dos seus principais dirigentes, Eduard Bernstein, formulou uma tese em que se distanciava do marxismo, sustentando que era possível atingir o socialismo por meios pacíficos através de sucessivas reformas progressistas no quadro institucional. Segundo Bernstein, o «movimento é tudo», o resto quase nada. Deturpava Marx, preconizava um regresso a Kant e investia contra a dialética hegeliana.

Rosa Luxemburgo respondeu-lhe com uma crítica demolidora, tal como Lenin. Mas no SPD, a tese revisionista de Bernstein dividiu o partido, obtendo a adesão de uma minoria. O próprio Kautsky, que inicialmente se distanciou de Bernstein, evoluiu para posições negativas. Iniciada a I Guerra Mundial recusou-se a condenar o militarismo prussiano. Lenin, que antes o admirava, passou a chamar-lhe o renegado Kautsky.

O MANIFESTO DE CHAMPIGNY

A Revolução de Outubro e as vitórias alcançadas pela União Soviética na guerra civil e na luta contra as potências da Entente, os EUA e o Japão contribuíram para que durante muitas décadas Bernstein fosse esquecido.

Entretanto, após os acontecimentos da Checoslováquia, o Partido Comunista Francês adotou em Dezembro de 1968 um programa que rompia na prática com o marxismo, sem o afirmar explicitamente.

Quem o tornou público num documento conhecido como «O Manifesto de Champigny», foi o então secretário geral Waldeck Rochet. Inspirado na tese de Bernstein, o Manifesto defendia para a futura construção do socialismo uma estratégia diferente da que o Partido de Lenin seguira primeiro na Rússia e depois na União Soviética.

Segundo o Partido Francês, era possível, por meios institucionais, atingir o socialismo sem necessidade de uma rutura revolucionária. Como ?

A luta de massas seria o instrumento de conquistas que gradualmente debilitariam o poder das grandes empresas, enfraquecendo o capitalismo monopolista. A alteração na correlação de forças encaminharia pacificamente a sociedade para o socialismo.

Champigny foi o prólogo de campanhas contra a União Soviética. Delas participaram intelectuais de prestígio mundial como Althusser e Roger Garaudy, ambos membros do Comité Central do PCF. No contexto de intensos debates ideológicos, teses fundamentais de Marx e Engels foram postas en causa. Esses filósofos e Nikos Poulantzas questionaram o conceito de classe tradicional, sustentando que na segunda metade do Século XX ocorrera no setor dos serviços uma proletarização de parcelas significativas da população, derrubando fronteiras sociais. Quadros de profissões liberais – médicos, engenheiros, arquitetos, advogados, etc. - integrados no sistema capitalista eram enquanto assalariados também vítimas de mecanismos de exploração que os tinham proletarizado, afastando-os da burguesia.

A evolução da História demonstrou que essa teoria era uma fantasia sem base científica. A crise brasileira do ano 64 demonstrou que a chamada burguesia nacional, isto é quadros liberais vítimas da exploração, perante a ameaça de revolução, aliam-se à classe dominante. O mesmo ocorreu no Chile em Setembro de 1973.

O Manifesto criou o ambiente que abriu as portas ao chamado Eurocomunismo. Os três maiores partidos comunistas, o francês, o italiano e o espanhol, foram contaminados e dirigentes como Georges Marchais, Enrico Berlinguer e Santiago Carrillo desempenharam um papel importante no terramoto ideológico que atingiu esses partidos e gradualmente o movimento comunista internacional.

Berlinguer, com a sua defesa do «compromisso histórico» e da «questão moral» levou o PCI a aproximar-se da Democracia Cristã, enquanto se distanciava da URSS.

Tem cabimento também recordar Gorbatchov que, invocando Lenin, conduziu o PCUS e a URSS, com «o novo pensamento» e a perestroika, ao desastre e ao capitalismo.

O desfecho do Eurocomunismo - cujas raízes mergulhavam no browderismo norte-americano - foi contrário ao imaginado pelos seus ideólogos. O PCI acabou por desaparecer após rápida metamorfose de transição. O PCF (que no seu apogeu elegera 150 deputados) entrou em decadência acelerada na sua deslocação para a direita; hoje é um pequeno partido. O Partido Comunista de Espanha diluiu-se na Esquerda Unida e esta acabou diluindo-se no populista Podemos de Iglesias.

ALASTRAM O REFORMISMO E O REVISIONISMO

A desagregação da URSS em 1991 e a restauração do capitalismo na Rússia e nas democracias populares do leste europeu contribuíram para o agravamento a nível mundial da crise do socialismo.

Numa atmosfera de confusão ideológica, os governos e os media do Ocidente promoveram campanhas de criminalização da União Soviética que afetaram profundamente a maioria dos Partidos Comunistas. Intelectuais que durante décadas se tinham declarado marxistas, resvalaram rapidamente para posições anticomunistas. Algum, invocando a revolução técnica cientifica, apoiaram governos de direita. Uma debandada! Da crítica a Marx passaram para a rejeição de Lenin. As teses neoliberais do austríaco Sylvio Hayek foram recuperadas e marcaram o rumo do neoliberalismo.

Foi nesse contexto histórico que, na transição do milénio, se assistiu à ressurreição do reformismo de Bernstein. Das universidades transitou para a direção de muitos partidos comunistas.

Em Maio de 2004 foi criado em Roma o chamado Partido da Esquerda Europeia. Recebido com simpatia pelos governos da União Europeia, agrupa presentemente mais de duas dezenas de partidos comunistas (ou afins) do Continente, isto é a quase totalidade. Nele se filiou o português Bloco de Esquerda, organização nascida de uma fusão de trotsquistas e maoistas, mas hoje uma organização oportunista despojada de qualquer ideologia.

A retórica discursiva do Partido da Esquerda Europeia não tem o poder de ocultar o objetivo da sua criação: confundir a classe operária dos países membros, desmobilizar os trabalhadores na luta contra o capitalismo.

Registo no entanto que há partidos fiéis aos valores e princípios do marxismo-leninismo que tem desenvolvido uma permanente denúncia do papel desempenhado pelo PEE como instrumento ideológico da burguesia.

O panorama atual na Europa não é animador.

A maioria dos partidos comunistas adotou uma política de alianças incompatível com a tradição marxista, argumentando que é necessário atender a reivindicações populares prementes e contribuir para melhorar os padrões de vida dos trabalhadores. Alguns, participaram (Rifondazione italiano, PCF, AKEL) ou apoiaram governos de tendência social-democrata.

Quais as consequências históricas do desvio de direita desses partidos?

A resposta à pergunta seria especulativa. Os efeitos das estratégias oportunistas diferem de país para país, cabendo em cada um à respetiva classe operária lutar contra o reformismo.