domingo, 19 de agosto de 2018

Marxismo e natureza humana



Para argumentar que o capitalismo é inevitável, seus defensores associam
ser humano à cobiça, rivalidade e ostentação. Marx desmontou tal crença.

Por Valério Arcary *, editor do Blog Convergência



                                Se se entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrar
em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada?
Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade?
Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade? 

        Karl Marx, Os debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha



O argumento que defende a justiça da propriedade privada foi sempre a pedra angular do liberalismo. Se o direito à propriedade privada fosse ameaçado, argumentaram os liberais, a liberdade seria destruída. Se a possibilidade de acumulação ilimitada de capital fosse reduzida, ou o direito de herança condicionado, as restrições à busca do enriquecimento teriam conseqüências catastróficas: o crescimento econômico seria sacrificado, a inovação tecnológica inibida e o espírito de iniciativa amputado. A sociedade estaria condenada ao atraso, à estagnação e até à preguiça.

Depois da restauração capitalista na Rússia e no Leste Europeu, inventaram-se eufemismos para garantir dignidade a valores desmoralizados diante da sociedade na etapa histórica anterior pela experiência social. Depois da derrota do nazi-fascismo a idéia da solidariedade humana tinha estabelecido raízes sólidas na maioria das sociedades urbanizadas. Para desqualificar os princípios mais elementares de justiça e solidariedade, a ganância foi validada como ambição legítima. A cobiça foi  promovida a aspiração de aquisitividade. A rivalidade ganhou ares respeitosos como competição pela eficiência. E a ostentação foi reconhecida como exibição da prosperidade.

O homem como lobo do homem

Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem –, o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os homens e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso egoísta ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se.

Uma humanidade dominada pela mesquinhez, pela ferocidade, ou pelo medo precisaria de uma ordem política disciplinada, portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas internas como uma forma de “redução de danos”.

Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a causa da desigualdade, mas uma consequência da desigualdade natural. É porque são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que, segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, existe a propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. Em consequência, o capitalismo seria o horizonte histórico possível e o limite do desejável. Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer um poderia disputar o direito ao enriquecimento. Os liberais sempre se apressaram em admitir que nem todos o conseguirão, por certo, para mascarar sua defesa com um tempero de realidade.

Esses argumentos não têm, no entanto, o mais mínimo fundamento científico.  Em oposição à visão de uma natureza humana inflexível, o marxismo nunca defendeu a visão simétrica e ingênua de uma humanidade generosa e solidária. Nem fundamentou a necessidade da igualdade social em uma suposta igualdade natural. O que o marxismo afirmou é que a natureza humana tem dimensão histórica e, portanto, se transforma.  O que o marxismo preservou foi a idéia de que a diversidade de capacidades não permite explicar a desigualdade social que nos divide. É a exploração de uns pelos outros a causa da desigualdade, e não o contrário.

O capitalismo não é meritocrático

A injustiça do mundo que nos cerca não repousa em critérios meritocráticos. A diferença de talentos e a variedade de capacidades não têm relação direta com o lugar que cada ser humano ocupa nas sociedades estratificadas em classes. Não há nenhum mérito em nascer em uma família burguesa, proletária ou de classe média. Não há nenhum valor em nascer na Nigéria ou na Noruega, na Grécia ou na Alemanha.

Na sociedade contemporânea, a condição de classe é determinada pelo direito de herança, na mesma proporção em que em outras épocas era garantida pelo berço familiar. Pior, na maior parte do mundo, as oportunidades de ascensão social ou permaneceram estagnadas ou vieram diminuindo no último quarto de século. A geração mais jovem desconfia que não irá melhorar suas condições de vida, comparativamente, às de seus pais.

A mobilidade social foi reduzida, tanto no centro como na periferia do capitalismo. As possibilidades de melhorar de vida pelo talento ou pelo esforço vieram sendo reduzidas. A inteligência ou a perseverança, a criatividade ou a audácia são aptidões que podem ser encontradas em todas as classes. Porém, a ironia é que será encontrada, com maior freqüência, entre os trabalhadores.

Estas qualidades serão descobertas em maior número entre os filhos do trabalho manual pela mesma razão que entre eles se encontrarão, também, a maioria dos que têm gripe, a maioria dos estrábicos ou a maioria dos que têm nariz grande: porque são as maiorias. A desigualdade do mundo que nos cerca não é nem justa, nem racional. Sua explicação, para os socialistas, é o capitalismo. Ser socialista é ser um inimigo irreconciliável do direito ilimitado à propriedade privada.

 A causa mais elevada do tempo que nos coube viver

O interesse pelo tema da natureza humana ressurgiu nos primeiros anos do século XXI provocado por novas linhas investigativas da biologia evolucionista e da antropologia cultural. Não foi a primeira vez que os caminhos da biologia se cruzaram com os da história. A tese de Darwin de que a espécie humana teria sido desenhada pelo seu passado revolucionou a biologia a partir de 1859, quando da publicação daOrigem das espécies, e foi uma das maiores realizações científicas de todos os tempos. Mudou profundamente a percepção que a humanidade tinha sobre si própria.

A descoberta de que a escala da vida nos remete a um processo de muitas centenas de milhões de anos não desvalorizou a humanidade; ao contrário, ofereceu-nos um sentido de proporções da responsabilidade com a nossa sobrevivência. A maioria das formas de vida que existiram na Terra já foi à extinção, e por mais de uma vez. A revelação de uma ascendência comum com os símios colocou de pernas para o ar a perspectiva de uma humanidade predestinada a ser a coroação da vida. A vida é frágil. Não há um destino à nossa espera. O amanhã nos reserva muitos perigos. Sabemos que a centelha de consciência que nos define foi o produto de uma aventura grandiosa.

As espantosas sugestões da biologia evolucionista não diminuíram as perspectivas de futuro da humanidade. Ajudam a compreender a imponência das realizações humanas na história. Construímos uma civilização tecnológica e, culturalmente, complexa. Mas, podemos nos autodestruir. Se não encontrarmos soluções para os impasses do mundo contemporâneo, com suas terríveis lutas de classes, poderemos perecer. A causa mais elevada do nosso tempo é a defesa da humanidade. Nada é mais importante. Para os socialistas, a permanência do capitalismo é a principal ameaça à vida civilizada.                            

Contra o determinismo biológico

O darwinismo deixou-nos um extraordinário alerta. A vida é delicada e a extinção não é excepcional. A extinção é o padrão mais regular. Porém, o darwinismo exerceu também uma influência duradoura – e desastrosa – sobre as ciências sociais. Os nacionalismos exaltados das potências européias, no final do século XIX, apropriaram-se abusivamente da idéia de uma competição individual pela sobrevivência dos mais adaptados, para justificar a conquista de um Estado sobre outros. Não fosse isso o bastante, defenderam a idéia abjeta do domínio de uma civilização sobre outras e, no limite mais repulsivo do nazismo, de uma suposta raça superior sobre outras. Os mais desenvolvidos economicamente seriam os mais capazes.

A idéia de uma seleção sexual dos mais aptos – aqueles que superaram os obstáculos e foram capazes de deixar descendência – foi transportada para a economia para justificar o mercado como forma mais eficiente, e até natural, de regulação de recursos. A desigualdade social seria, também, natural. E o que é natural, seria irremediável.

No final do século XX, a biologia viveu uma nova revolução científica que coincidiu, em muitas das suas conclusões, com hipóteses sugeridas pela história. Esses avanços científicos estão ampliando as possibilidades da pesquisa histórica e são muito animadores, como alertou Hobsbawm (2004): “Para resumir, a revolução do DNA invoca um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana […] Em outros termos, a história é a continuação da evolução biológica do homo sapienspor outros meios.”

O projeto Genoma enterrou as teorias racistas ao demonstrar, definitivamente, que não existem raças humanas, e as pequenas variações entre as populações de ascendência americana, européia, africana ou asiática são muito recentes. Poderia não ter sido assim, se o intervalo de separação dos grupos humanos tivesse sido mais longo, mas as poucas dezenas de milhares de anos de isolamento, interrompido há 500 anos, não foram suficientes para a fixação de diferenças significativas.

As descobertas do DNA permitiram, por exemplo, por meio da marcação das mitocôndrias (uma molécula herdada em todos os seres humanos por linhagem materna), um novo método de datações. Já está sendo rediscutido que o povoamento original das Américas, pouco antes do fim da última glaciação, teria sido realizado em sucessivas vagas por populações geneticamente mais variadas do que até então se presumia.

As premissas anti-históricas criacionistas de uma natureza humana invariável, e ainda por cima cruel, sinistra e malvada, embora ainda exerçam alguma influência sobre o senso comum, são inaceitáveis.

A humanidade compartilhou a capacidade de amar e odiar, confiar e temer, identificar e repudiar, desejar e rejeitar, admirar e querer, sorrir e desprezar, invejar e imitar, ou seja, todo um repertório de ações e reações dos homens uns com os outros – colaboração e conflito –, impulsionadas pela necessidade de sobrevivência na natureza, que resultaram em experiências históricas, e se concretizaram em relações sociais. Transformamos valores e costumes, através da história, da mesma maneira que melhoramos nossas ferramentas, e podemos sonhar nas mudanças que ainda estão por vir.

A história foi um processo cultural de readaptação da humanidade. Essa capacidade de autotransformação foi uma das constantes que oferecem coerência interna à própria história, e permitem que ela seja compreendida. Por isso, a esperança triunfará.



Referências bibliográfias:

HOBSBAWM, Eric. Manifesto pela renovação da História. Le Monde Diplomatique, 1 dez. 2004.

MARX, Karl. Los debates de la VI Dieta Renana: debates sobre la ley castigando los robos de leña. Traducción y organización de ROCES, Wenceslao. In: Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura Económica, 1987.p.248-283.


*Valério Arcary é Professor no IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo)


sábado, 11 de agosto de 2018

Por que Marx, no século 21?


Sua visão sobre desigualdade brutal e  alienação nunca foi tão atual. Mas o que dizer
de suas concepções sobre o Estado e o horizonte pós-capitalista?


Por Yanis Varoufakis | Tradução: Antonio Martins


Para que um manifesto vingue, ele precisa falar para nosso coração como poesia, ao mesmo tempo em que contamina a mente com imagens e ideias que são espantosamente novas. Ele precisa abrir nossos olhos para as verdadeiras causas das mudanças desconcertantes, perturbadoras e excitantes que ocorrem a nosso redor e expor as possibilidades das quais a situação atual está grávida. Ele deve fazer com que nos sintamos desesperançosamente inadequados, por não termos reconhecido nós mesmos estas verdades, e precisa mostrar que agíamos como cúmplices ingênuos, ao reproduzir um passado condenado. Por fim, ele precisa ter o poder de uma sinfonia de Beethoven, convocando-nos a ser agentes de um futuro que encerra o sofrimento desnecessário das maiorias e inspira a humanidade a realizar seu potencial de liberdade autêntica.

Nenhum manifesto fez isso melhor que aquele publicado em fevereiro de 1848, na Liverpool Street, em Londres. Encomendado por revolucionários ingleses, o Manifesto Comunista (ou Manifesto do Partido Comunista, seu título original) foi escrito por dois jovens alemães – Karl Marx, um filósofo de 29 anos interessado no hedonismo de Epicuro e na racionalidade de Hegel, e Friedrich Engels, de 28, herdeiro de uma fábrica em Manchester.

Como trabalho de literatura política, o manifesto permanece atual. Seus trechos mais famosos, incluindo a abertura (“Um espectro assombra a Europa – o espectro do comunismo”) têm qualidade shakespeareana. Como Hamlet, diante do fantasma de seu pai assassinado, o leitor é compelido a refletir: “Será mais nobre sofrer na alma as pedradas e flechadas do destino feroz? Ou pegar em armas contra o mar de angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim?” Na leitura imediata de Marx e Engels, não se tratava de um dilema acadêmico, a debater nos salões da Europa. Seu manifesto foi um chamado à ação. Invocar o espectro do comunismo frequentemente levou a perseguições ou, em alguns casos, a longos anos de cárcere. Hoje, um dilema similar confronta os jovens: conformar-se com uma ordem estabelecida que se desagrega e é incapaz de se reproduzir; ou opor-se a ela, com custos pessoais consideráveis, em busca de novas formas de trabalho, desfrute e vida?

A ambição de todo manifesto é ver além do horizonte. Mas fazê-lo como Marx e Engels – que descreveram com precisão uma era que chegaria apenas um século e meio depois, além de analisarem as contradições e escolhas com que nos defrontamos hoje – é verdadeiramente espantoso. No final dos anos 1840, o capitalismo era tropicante, local, fragmentado e tímido. Mas Marx e Engls enxergaram muito longe e previram um sistema globalizado, financeirizado, inflexível, todo poderoso. Este é o monstro que se tornou real depois de 1991, no exato instante em que o establishment proclamava a morte do marxismo e o fim da História.

Os erros de previsão do Manifesto Comunista foram sempre exagerados. Lembro que, no início dos anos 1970, mesmo os economistas de esquerda criticavam um prognóstico central do manifesto: o de que o capital iria “abrigar-se em toda parte, estabelecer-se em toda parte, lançar conexões em toda parte”. Referindo-se à triste realidade do que eram os então chamados países do “terceiro mundo”, argumentavam que o capital perdera seu impulso bem antes de expandir-se além de sua “metrópole” na Europa, Estados Unidos e Japão.

Empiricamente, estavam corretos. As corporações transnacionais europeias, norte-americanas e japonesas que operavam nas “periferias” da África, Ásia e América Latina limitavam-se ao papel de extratoras de recursos naturais e pareciam incapazes de difundir o capitalismo nestas regiões. Supunham que, em vez de incutir nestes países o desenvolvimento capitalista (conduzindo “todas as nações, inclusive as mais bárbaras, à civilização”), o capital externo reproduzia o subdesenvolvimento no “terceiro mundo”. Era como se o manifesto tivesse apostado demais na habilidade do capital de espalhar-se para todos os cantos e frestas. A maior parte dos economistas, inclusive os simpáticos a Marx, duvidavam da previsão do Manifesto segundo a qual “a exploração do mercado mundial” daria “um caráter cosmopolita à produção e consumo de cada país”.

Como vimos mais tarde, o manifesto estava correto, ainda que tardiamente. Foi necessário o colapso da União Soviética e a inserção de dois bilhões de trabalhadores chineses e indianos no mercado capitalista para que a previsão se cumprisse. Para que o capital se globalizasse plenamente, os regimes que juravam fidelidade ao manifesto precisaram ser feitos em pedaços. Alguma vez a História produziu uma ironia mais deliciosa?

Qualquer leitor atual do Manifesto se surpreenderá ao descobrir uma imagem tão atual de um mundo que se avança, assombrado e temeroso, à beira da inovação tecnológica. Na época do manifesto, era a máquina a vapor que lançava o maior desafio aos ritmos e rotinas da vida feudal. Os camponeses eram varridos para as engrenagens das máquinas e uma nova classe de senhores, os donos das fábricas e comerciantes, usurpava da nobreza o controle sobre a sociedade. Agora, são a inteligência artificial e a automação que aparecem como ameaças disruptivas, prometendo varrer “todas as relações fixas e congeladas”. “A revolução incessante… dos instrumentos de produção”, o manifesto proclama, transforma “o conjunto das relações da sociedade”, promovendo “constante revolução da produção, distúrbio ininterrupto de todas as condições sociais, incerteza e agitação permanentes”.

Para Marx e Engels, porém, esta ruptura deve ser celebrada. Ela age como catalisador para o empurrão final de que a humanidade precisa para livrar-se dos preconceitos que escoram a grande barreira entre os que possuem as máquinas e os que as concebem, operam e trabalham. “Tudo o que é sólido desmancha no ar, e tudo o que é sagrado é profanado”, eles escrevem no manifesto sobre os efeitos da tecnologia, “e o ser humano é por fim compelido a encarar, sem ilusões, as reais condições da vida e suas relações com seus semelhantes”. Ao dissolver impiedosamente nossos preconceitos e falsas certezas, a mudança tecnológica nos força, aos chutes e berros, a enxergar como são patéticas nossas relações sociais.

Hoje, constatamos tudo isso em milhões de palavras, impressas ou online, no debate sobre o desencanto com a globalização. Embora celebrem o fato de bilhões terem passado da pobreza abjeta à relativa pobreza, os jornais veneráveis do Ocidente, as personalidades de Hollywood, os empreendedores do Vale do Silício, os bispos e mesmo financistas multibilionários lamentam algumas das consequências menos desejáveis: desigualdade insuportável, ganância sem máscaras, mudança climática, e o sequestro da democracia pelos banqueiros e ultra-ricos.

Nada disso deveria surpreender um leitor do manifesto. “Toda a sociedade”, argumenta o texto, “está se dividindo cada vez mais em dois campos hostis, em duas grandes classes que se confrontam diretamente”. À medida em que a produção é mecanizada e a margem de lucro dos proprietários de máquinas torna-se o motor central de nossa civilização, a sociedade divide-se entre proprietários que não trabalham e trabalhadores despossuídos. A classe média é o dinossauro na sala, à beira da extinção.

Ao mesmo tempo, os ultra-ricos tornam-se culpados e intranquilos, à medida em que veem as vidas de todos os demais afundar na precariedade ou numa escravidão assalariada insegura. Marx e Engels previram que esta minoria extremamente poderosa iria, ao final, mostrar-se “incapaz de governar” sociedades tão polarizadas, por não estar em posição de garantir aos escravos assalariados um existência digna. Entrincheirada em suas comunidades muradas, consumida pela ansiedade e incapaz de desfrutar suas riquezas. Muitos de seus integrantes, suficientemente inteligentes para compreender seu próprio interesse de longo prazo, reconhecem o Estado de bem-estar social como a melhor política possível para a própria segurança. Mas, explica o manifesto, a natureza de sua classe social os levará a não fazer o seguro, e eles agirão incansavelmente para evitar o pagamento dos impostos necessários.

Não é o que aconteceu? Os ultra-ricos são uma minoria insegura, permanentemente aborrecida, entrando e saindo o tempo todo de clínicas detox, buscando consolo em gurus psicológicos ou empresariais. Enquanto isso, toda a sociedade luta para colocar comida na mesa, pagar pela Educação, migrar de um cartão de crédito para outro e lutar contra a depressão. Agimos como se nossas vidas fossem descontraídas e garantimos gostar do que fazemos. Na realidade, choramos ao dormir.

Os políticos do establishment, os economistas acadêmicos e os filantropos – todos respondem a esta situação da mesma maneira, lançando condenações ferozes contra os sintomas (a desigualdade de renda), enquanto ignoram as causas (a exploração que advém dos direitos desiguais de propriedade sobre as máquinas, a terra e os recursos). Alguém duvida que estejamos num impasse, chafurdando num desespero que alimenta os populistas interessados em explorar os piores instintos das massas?

Com o rápido uso da tecnologia avançada, estamos nos aproximando do momento em que teremos de decidir como nos relacionar uns com os outros de maneira racional e civilizada. Não podemos continuar a nos esconder por trás da suposta “inevitabilidade do trabalho” e das normas sociais opressivas que ela impõe. O manifesto dá ao leitor do século 21 a oportunidade de olhar através do caos e reconhecer o que precisa ser feito para que a maioria possa passar da revolta a novos arranjos sociais, em que “o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos”. Ainda que não contenha nenhum manual sobre como chegar lá, o manifesto continua a ser uma fonte incontornável de esperança.

Se o manifesto conserva o mesmo poder de mobilizar, entusiasmar e envergonhar que tinha em 1848, é porque a luta entre as classes sociais é tão velha quanto o tempo. Marx e Engels resumiram isso em 16 palavras audaciosas: “A história de todas as sociedades existentes até hoje é a história da luta de classes”. Das aristocracias feudais aos impérios industrializados, o motor da história sempre foi o conflito entre as tecnologias, que revolucionam, e as convenções de classe anteriores. A cada revolução da tecnologia social, o conflito entre nós muda de forma. As velhas classes morrem e ao final apenas duas permanecem: a que possui tudo e a que não possui nada; a burguesia e o proletariado.

É neste dilema que nos encontramos hoje. Embora devamos ao capitalismo o fato de ter reduzido todas as distinções de classe ao abismo entre os proprietários e os não-proprietários, Marx e Engels querem que percebamos: o sistema não é capaz de sobreviver às tecnologias que engendra. É nosso dever de romper com a velha noção dos meios de produção privados e forçar uma metamorfose, que deve levar à propriedade social das máquinas, da terra e dos recursos. Agora, que novas tecnologias espalharam-se também entre sociedades limitadas pelas relações de trabalho primitivas, a miséria generalizada instalou-se. Nas palavras inesquecíveis do Manifesto, “uma sociedade que conjurou meios tão gigantescos de produção e troca é como o feiticeiro que já não é capaz de controlar os poderes do mundo infernal que convocou com suas palavras”.

O feiticeiro sempre imaginará que seus aplicativos, motores de busca, robôs e sementes geneticamente modificadas trarão riqueza e felicidade a todos. Mas, uma vez lançadas em sociedades divididas entre proprietários e trabalhadores despossuídos, estas maravilhas tecnológicas comprimirão os salários e os preços a níveis que geram lucros reduzidos para a maior parte dos negócios. Apenas os setores de alta tecnologia, a indústria farmacêutica e as poucas corporações que exercem poder excepcionalmente grande sobre nós realmente se beneficiam. Se continuarmos a assinar os contratos de trabalho entre empregadores e empregados, os direitos de propriedade privada governarão a sociedade e dirigirão o capital para limites desumanos. Só abolindo a propriedade privada dos instrumentos de produção maciça, e substituindo-a por um novo tipo de propriedade comum, que atue em sintonia com as novas tecnologias, será possível enfrentar a desigualdade e buscar a felicidade coletiva.

Segundo a teoria de história de Marx e Engels, resumida em 16 palavras, o atual impasse entre trabalhadores e proprietários sempre esteve assegurado. “Igualmente inevitável”, o manifesto sentencia, é “a queda de burguesia e a vitória do proletariado”. Até agora, a História não cumpriu tal previsão, mas os críticos esquecem-se de que o manifesto, como qualquer outra peça importante de propaganda, apresenta a esperança na forma de certeza. Assim como Lord Nelson dirigiu-se a seus soldados, antes da batalha de Trafalgar, dizendo-lhes que a Inglaterra “esperava” que cumprissem seu dever (tendo muitas dúvidas de que o fariam), o manifesto coloca sobre o proletariado a expectativa de que cumprirá seu dever, inspirando-o a unir-se e libertar-se da escravidão assalariada.

Ele o fará? Nas condições atuais, parece improvável. Mas, de novo, foi preciso esperar que a globalização surgisse, nos anos 1990, para que a avaliação do manifesto sobre o poder do capital pudesse ser plenamente realizada. Será que o novo, e cada vez mais precário, proletariado global precisará de mais tempo para jogar o papel histórico que o manifesto antecipou? Enquanto o julgamento não se completa, Marx e Engels nos dizem que se temermos a retórica da revolução, ou tentarmos nos distrair de nosso dever uns com os outros, seremos colhidos por uma espiral vertiginosa, em que o capital impregnará e dissolverá o espírito humano. A única certeza, segundo o manifesto, é que viveremos um futuro distópico, a não ser que o capital seja socializado.

A respeito da distopia, o leitor cético provocará: e a própria cumplicidade do manifesto ao legitimar regimes autoritários e temperar o espírito dos guardas de Gulags? Em vez de responder de forma defensiva, lembrando que ninguém culpa Adam Smith pelas loucuras de Wall Street, ou o Novo Testamento pela Inquisição, podemos especular como os autores do manifesto poderiam ter respondido a esta acusação. Acredito que, com o benefício da retrospetiva, Marx e Engels confessariam um importante erro de sua análise: reflexividade insuficiente. Significa que eles foram incapazes de refletir suficientemente, e mantiveram um silêncio judicioso, sobre o impacto que sua própria análise teria sobre o mundo que estavam analisando.

O manifesto lançou uma narrativa potente em linguagem incisiva, construída para tirar os leitores da apatia. O que Marx e Engels foram incapazes de prever é que textos poderosos e prescritivos tendem a reunir discípulos, fiéis – mesmo igrejas – e que estes seguidores poderiam usar o poder outorgado a eles pelo manifesto em seu próprio favor. Ao fazê-lo, eles poderiam oprimir outros camaradas, construir sua própria base de poder, ganhar posições ou influência, tomar o controle do Politburo e aprisionar quem quer que resistisse.

De modo similar, Marx e Engels não souberam avaliar o impacto de seu texto sobre o próprio capitalismo. Assim como o manifesto ajudou a construir a União Soviética, seus satélites na Europa oriental, Cuba de Fidel, a Iugoslávia de Tito e diversos governos social-democratas no Ocidente, estes desenvolvimentos não provocariam uma reação em cadeia capaz de frustrar as previsões e análises do manifesto? Depois da Revolução Russa e da II Guerra Mundial, o medo do comunismo forçou os regimes capitalistas a adotar sistemas de aposentadoria, de saúde pública e até a ideia de obrigar os ricos a pagarem para que os estudantes pobres e pequeno burgueses frequentassem universidades liberais. Ao mesmo tempo, a hostilidade à União Soviética desertou a paranóia e criou um clima de medo que se mostrou particularmente fértil em figuras como Joseph Stalin e Pol Pot.

Acredito que Marx e Engels teriam lastimado não antecipar o impacto do manifesto nos partidos comunistas que o texto antecipou. Estariam culpando s si mesmos por negligenciarem o tipo de dialética que tanto gostavam de analisar: como os Estados dirigidos por trabalhadores iriam se tornar cada vez mais totalitários em resposta à agressão capitalista e como, em sua resposta ao medo do comunismo, estes Estados capitalistas iriam tornar-se crescentemente civilizados.

Abençoados, é claro, são os autores cujos erros resultam do poder de suas palavras. Ainda mais abençoados são aqueles cujos erros são auto-corrigíveis. Hoje, os Estados de trabalhadores inspirados pelo manifesto quase já se foram, e os partidos comunistas desagregaram-se ou se perderam. Livre da competição com os regimes inspirados pelo manifesto, o capitalismo globalizado age como se estivesse determinado a criar um mundo… que só pode ser explicado pelo manifesto.

O que torna o manifesto realmente inspirador hoje são suas recomendações no aqui e agora, num mundo em que nossas vidas são constantemente conformadas pelo que Marx descreveu, em uma obra anterior – os Manuscritos Econômicos e Filosóficos – como “uma energia universal que rompe cada limite e cada vínculo para estabelecer-se como a única política, a única universalidade, o único limite e o único vínculo”. Dos motoristas do Uber aos ministros de Finanças, aos executivos bancários e aos tristemente pobres, todos podemos nos desculpar quando nos sentimos esmagados por sua “energia”. O alcance do capitalismo é tão persuasivo que pode às vezes parecer impossível imaginar um mundo sem ele. Apenas um pequeno passo separa os sentimentos de impotência de sucumbir à ideia de que não há alternativa. Mas, espantosamente (afirma o manifesto) é precisamente quando estamos prostrados diante de tal ideia que as alternativas abundam.

O que menos precisamos no atual cenário são sermões sobre a injustiça do sistema, denúncias de desigualdade crescente ou vigílias para nossa soberania democrática que se esvai. Também não deveríamos suportar atos desesperados de escapismo regressivo: exigir o retorno de algum Estado pré-moderno ou pré-tecnológico onde poderemos nos agarrar ao seio do nacionalismo. O que o manifesto oferece em momentos de dúvida e submissão é uma explicação clara e objetiva sobre o capitalismo e seus males, vistos através da luz fria e dura da racionalidade.

O manifesto argumenta que o problema do capitalismo não é produzir muita tecnologia, ou ser injusto. O problema do capitalismo é ser irracional. O sucesso do capital ao ampliar seu alcance por meio da acumulação pela acumulação é obrigar os trabalhadores a trabalhar como máquinas por ninharias, enquanto os robôs são programados para produzir o que os trabalhadores já não podem comprar e o que eles próprios, robôs, não precisam. O capital é incapaz de fazer uso racional das máquinas brilhantes que engendra, condenando gerações inteiras à privação, a um meio-ambiente decrépito, ao desemprego e a lazer real zero – tudo em busca de ocupação e sobrevivência. Até os capitalistas reduzem-se a autômatos conduzidos pela angústia. Vivem sob o medo permanente de que, a não ser que mercantilizem os demais humanos, deixarão de ser capitalistas – engrossando as fileiras desoladas do precariado-proletariado em expansão.

Se o capitalismo parece injusto é porque escraviza a todos, ricos e pobres, desperdiçando recursos humanos e naturais. A mesma “linha de produção” que produz riquezas incalculáveis também gera infelicidade profunda e insatisfação em escala industrial. Por isso, nossa primeira tarefa – segundo o manifesto – é reconhecer a tendência desta “energia” toda poderosa a destruir a si própria.

Quando indagado por jornalistas sobre quem ou o quê é a maior ameaça ao capitalismo hoje, contrario suas expectativas respondendo: “o capital”! É, claro uma ideia que plagio há décadas do manifesto. Dado que não é nem possível nem desejável anular a “energia” do capitalismo, o truque é acelerar o desenvolvimento do capital (para que ele queime como um meteoro cruzando a atmosfera), ao mesmo tempo em que resistimos (por meio de ação coletiva e racional) a sua tendência a vaporizar o espírito humano. Em poucas palavras, a recomendação do manifesto é que empurremos o capital até seus limites, enquanto limitamos suas consequências e nos preparamos para socializá-lo.

Precisamos de mais robôs, melhores painéis solares, comunicação instantânea, redes sofisticadas de transporte não poluente. Mas ao mesmo tempo, precisamos nos organizar politicamente para defender os fracos, empoderar as maiorias e preparar terreno para reverter os absurdos do capitalismo. Em temos práticos, isso significa tratar a ideia de que não há alternativas com o desprezo que ela merece, enquanto rejeitamos todos os apelos a um “retorno” a uma existência menos modernizada. Nada havia de ético na vida sob formas anteriores de capitalismo. Programas de TV que investem maciçamente em nostalgia calculada, como Downton Abbey, deveriam nos tornar felizes por viver em nossa época. Ao mesmo tempo, deveriam nos encorajar a pisar no acelerador da mudança.

O manifesto é um destes textos emotivos que nos falam de modo diferente em épocas distintas, refletindo nossas próprias circunstâncias. Há alguns anos, eu me dizia um marxista errático e libertário e era fustigado tanto por não-marxistas quanto por marxistas. Logo a seguir, encontrei-me numa posição política de certa proeminência, num período de intenso conflito entre o governo grego de então e alguns dos agentes mais poderosos do capitalismo. Reler o manifesto para escrever este texto foi um pouco como convocar os fantasmas de Marx e Engels a expressar um misto de censura e apoio em meu ouvido.

Adults in the Room, minha memória do tempo em que fui ministro das Finanças da Grécia, em 2015, conta como a primavera grega foi esmagada por um combinação de força bruta (da parte dos credores do país) e divisão em meu próprio governo. É tão honesto e acurado quanto pude fazê-lo. Vistos da perspectiva do manifesto, no entanto, os verdadeiros agentes históricos são reduzidos a figuras de camafeu ou ao papel de vítimas quase passivas. “Onde está o proletariado em sua história?” – quase posso ouvir Marx e Engels gritando-me agora. “Ele deveria ser o sujeito a confrontar os poderes do capitalismo, com seu apoio apenas lateral.”

Felizmente, reler o manifesto ofereceu também algum consolo, ao endossar minha visão de que se trata de um texto libertário. Onde o manifesto ataca as virtudes burguesas-liberais, ele o faz devido a sua dedicação e mesmo amor a estas. Liberdade, felicidade, autonomia, individualidade, espiritualidade, desenvolvimento autoconduzido são ideais que Marx e Engels valorizavam acima de tudo. Se eles se encolerizam com a burguesia, é porque esta tenta negar à maioria qualquer oportunidade de ser livre. Dada a aderência de Marx e Engels à fantástica ideia hegeliana segundo a qual ninguém é livre enquanto alguém estiver aprisionado, sua disputa com a burguesia é que esta sacrifica a liberdade e individualidade de todos no altar capitalista da acumulação.

Embora Marx e Engels não fossem anarquistas, eram avessos ao Estado e seu potencial para ser manipulado por uma classe contra outra. No máximo, eles o veem como um mal necessário, que sobreviveria num futuro pós-capitalista coordenando uma sociedade sem classes. Se esta leitura do manifesto tem força, a única forma de ser comunista é ser libertário. Seguir o apelo do manifesto: “Uni-vos!” é na verdade inconsistente com ser um stalinista de carteirinha ou com perseguir a reconstrução do mundo à imagem dos regimes comunistas passados.

Quando tudo já foi feito e dito, qual a base essencial do manifesto? E por que alguém deveria hoje – especialmente os jovens – preocupar-se com história e política?

Marx e Engels basearam seu manifesto numa resposta simples e tocante: pela felicidade humana autêntica e a liberdade genuína que deve acompanhá-la. Para eles, estas são as duas únicas coisas que realmente importam. Seu manifesto não se assenta em invocações germânicas estritas ao dever, ou apelos às responsabilidades históricas que nos inspiram a agir. Ele não moraliza nem aponta o dedo. Marx e Engels tentaram superar as fixações da filosofia moral alemã, e os motores do lucro capitalista, com um apelo racional, porém empolgante, aos valores básicos compartilhados em nossa natureza humana.

É central a sua análise o abismo cada vez maior entre os que produzem e os que possuem os instrumentos de produção. O nexo problemático entre capital e trabalho assalariado impede-nos de apreciar nosso trabalho e nossos artefatos, e converte patrões e trabalhadores, ricos e pobres, em bonecos trêmulos e descerebrados, obrigados a viver uma existência sem sentido por forças que não controlam.

Mas por que precisamos da política para lidar com isso? A política não é embrutecedora – especialmente a socialista, que segundo dizia Oscar Wilde, “ocupa muitas noites”? A resposta de Marx e Engels é: porque não podemos acabar individualmente com esta idiotia; porque não virá do mercado um antídoto a esta estupidez. A ação política coletiva e democrática é nossa única chance de liberdade e alegria. Para tanto, as longas noites são um pequeno preço a pagar.

Humanity may succeed in securing social arrangements that allow for “the free development of each” as the “condition for the free development of all”. But, then again, we may end up in the “common ruin” of nuclear war, environmental disaster or agonising discontent. In our present moment, there are no guarantees. We can turn to the manifesto for inspiration, wisdom and energy but, in the end, what prevails is up to us.

A humanidade pode ser capaz de construir os arranjos sociais que permitam “o livre desenvolvimento de cada um”, como “condição para o livre desenvolvimento de todos”. Mas — vale repetir –, podemos acabar na “ruína comum” da guerra nuclear, do desastre ambiental ou da insatisfação mortificante e sem perspectivas. Na situação atual, nada está garantido. Podemos nos voltar ao manifesto para inspiração, compreensão e energia mas, ao fim, o que irá prevalecer está em nossas mãos.

Texto adaptado de Yanis Varoufakis’s introduction to The Communist Manifesto, publicdo pela Vintage Classics


FONTE:   Outras Palavras

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Marxismo e Cristianismo



Por Antonio Inácio Andrioli




A teoria marxista surgiu da reflexão crítica e científica sobre os mais importantes movimentos de trabalhadores surgidos na história e é, sem dúvida, a teoria mais relevante para entender a economia capitalista e a possibilidade de emancipação dos oprimidos. Iniciado pelo filósofo alemão Karl Marx, o marxismo continuou sendo desenvolvido e aperfeiçoado por outros pensadores, como Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo, Wladimir Lênin, Leon Trotski, Antônio Gramsci, Georg Lukács, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Ernst Bloch. A maior vantagem do marxismo, como teoria, é que ele é um movimento crítico e, por isso, ele renasce com nova força da reflexão sobre seus próprios erros e permite que continue sendo interpretado e experimentado com maior rigor e eficácia. O marxismo é um pensamento em movimento, diferente do positivismo que é estático e conservador.

O cristianismo, maior expressão religiosa do ocidente, surgiu antes do capitalismo, e baseia sua fundamentação na vida e ação de Jesus Cristo. O ideal da vida cristã é a partilha, a comunhão. Este é o sentido da comunidade, expressando a idéia de uma vida em comum-unidade com os outros. Não cabe ali a propriedade privada, a exploração e a desigualdade social. Por defender o ideal de uma sociedade onde o importante é o comum, aquilo que é de todos, Cristo foi crucificado pelos poderosos de sua época, os romanos e fariseus, e, inclusive, os sumo-sacerdotes (religiosos que não comungavam dos ideais cristãos).

Entretanto, em torno do século VI, no reinado de Constantino, o cristianismo foi utilizado como ideologia a serviço da dominação pelo Império Romano. Os senhores feudais negaram o cristianismo e constituíram sociedades injustas, instrumentalizando ideologicamente a crença cristã para integrá-la politicamente ao Estado. Mais tarde, com o advento do capitalismo, os burgueses tentaram conciliar sua forma de vida parasitária com a fé cristã. Entretanto, os capitalistas mais autênticos se assumiram como liberais e se contrapuseram à Igreja, na tentativa de superar o cristianismo e acabar com a hegemonia do feudalismo.

Podemos afirmar que tanto os capitalistas que se “autodenominam cristãos” como aqueles que se identificam como liberais, negam a vida em comunhão e pregam a acumulação pessoal com o sacrifício da maioria. Seu combate é o mesmo, a luta contra o comunismo, termo que, até hoje, utilizam para confundir as pessoas. E essa é uma luta política, como não poderia deixar de ser, embora os opressores continuem afirmando que só eles é que podem fazer “política”. Como negar que o cristianismo é político se o maior líder de uma Igreja cristã é chefe de um Estado, o Vaticano, que em toda sua história organiza movimentos políticos em todo o mundo? Cristo foi morto como “preso político”, por defender idéias que contestavam a estrutura injusta da sociedade. Assim, todo cristão que vive o evangelho de forma coerente, desagrada àqueles que oprimem o povo.

Há mais de um século, o marxismo passou a ser a principal expressão do pensamento da esquerda mundial, tendo em vista que a teoria liberal se converteu em ideologia do capitalismo. Esta, além de ser anterior ao marxismo, não consegue apresentar perspectivas à esmagadora maioria da população, principalmente aos problemas da exclusão social e da destruição ambiental. Onde estariam os liberais cristãos? Teoricamente sua base é contraditória e conflituosa. Sua ação é, em sua maioria, disfarçada, secreta e geralmente hipócrita. A maioria dos capitalistas, não se revela como liberal (inclusive partidos deixam de declarar publicamente como liberais) para não assustar a população, reunindo-se em torno de movimentos empresariais, claramente opostos ao cristianismo e, mesmo assim, mantendo a aparência de “cristãos devotos” na sociedade.

Como o liberalismo passou a legitimar a opressão capitalista, para manter os privilégios de classe, muitos liberais negam o saber ao povo, se apresentando, eles mesmos, como estudiosos e “colecionadores” de obras do marxismo, mas reprimindo e discriminando a leitura marxista à população em geral. Atualmente, é freqüente verificarmos que os mesmos que estiveram a serviço da ditadura militar, que mataram e torturam pessoas para manter os capitalistas no poder, vêm a público combater o marxismo. Aliás, assumem a mesma prática dos que mataram Cristo: não querem que o povo conheça realmente o ideal cristão, assustando as pessoas sobre teorias que possam alterar a ordem que favorece aos poderosos. Da mesma forma que reprimiram a leitura do marxismo no período de ditadura militar, prendendo, perseguindo e assassinando marxistas no Brasil. São esses os liberais brasileiros que se apresentam como defensores da democracia.

Partindo do entendimento do significado do marxismo e do cristianismo, podemos verificar que as duas correntes de pensamento, em sua origem, convergem para o mesmo sentido: a vida em comum, o comunismo. O que não é possível é ser capitalista e cristão ao mesmo tempo e os liberais demonstram isso claramente em sua teoria, que surgiu, objetivamente, para combater o cristianismo, em torno do século XVII. Os equívocos de algumas experiências socialistas com relação ao cristianismo são evidentes, assim como foram contraditórias com o próprio marxismo, instrumentalizado para legitimar o poder de Estados autoritários e burocratizados. Mas, o marxismo permanece vivo, lado a lado com o cristianismo, com inúmeros cristãos marxistas, adeptos da Teologia da Libertação, o que não ocorre com o liberalismo.

Como o marxismo estimula o pensamento livre, sua leitura e debate devem ser oportunizados a todos, sem distinção. Através do marxismo tornou-se possível aos trabalhadores compreender a exploração capitalista, permitindo a sua mobilização e organização social contra os opressores, numa perspectiva de construção de uma sociedade socialista, sem classes e desigualdades sociais, coerente com o propósito cristão de que “todos tenham vida e a tenham em abundância”.