quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Ainda tem sentido, atualmente, defender a concepção do comunismo de Marx?



Por Leandro Konder 


A meu filho, Caíto


Sabemos todos da importância do comunismo na concepção de Marx: o processo das transformações sociais se encaminharia na direção da superação do capital, na direção de uma sociedade humana sem classes, que seria exatamente o comunismo.

Como se caracterizaria, no entanto, a sociedade comunista? Marx se limitou a algumas indicações que ele mesmo não ignorava serem bastante vagas. Quando lhe pediram que descrevesse a sociedade comunista de modo mais preciso, respondeu que não pretendia preparar receitas para os caldeirões do futuro.

Que formas de propriedade poderiam subsistir no comunismo? O comunismo suprimiria toda e qualquer forma de propriedade? Não é o que sugere o famoso Manifesto de 1848, no qual se lê: “O comunismo não retira a ninguém o poder de se apropriar da sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outros por meio dessa apropriação”.  E em outra passagem: “O que caracteriza o comunismo não é a supressão da propriedade em geral e sim a supressão da propriedade burguesa”.

N’O capital, o comunismo é caracterizado como “uma associação de homens livres, que trabalham com meios coletivos de produção e aplicam suas numerosas forças individuais de trabalho, com plena consciência do que fazem, como uma grande força de trabalho social”.

A divisão social do trabalho, que prevalece nas sociedades classistas, estilhaçou a comunidade dos homens, isolou os indivíduos, provocou um estreitamente nas habilidades de cada um deles (inclusive uma concentração exagerada do talento artístico). O comunismo – segundo a Ideologia alemã – promoveria uma superação de todos esses efeitos da divisão social do trabalho: “Numa sociedade comunista, não haverá pintores e sim homens que, entre outras coisas, também pintarão”.  De acordo com Marx, o comunismo superaria igualmente a dicotomia cidade/campo, acabando com o “idiotismo da vida rural” (na esteira da industrialização já promovida pelo capitalismo). Seriam atenuadas as diferenças nacionais, o direito tenderia a ser absorvido pela moral.

Pressupondo um elevadíssimo desenvolvimento das forças produtivas, o comunismo, com a automação, suprimiria a separação ainda existente entre o trabalho físico e o trabalho intelectual; e suprimiria também todas as diferenças sociais que ainda existem entre homens e mulheres.

Sob o comunismo, desapareceriam as necessidades religiosas que se manifestam nos sentimentos e na consciência dos homens.  Marx escreveu n’O capital: “O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as condições práticas das atividades cotidianas do homem representem normalmente relações racionais claras entre os seres humanos, bem como entre estes e a natureza”.

Por fim, na caracterização do comunismo por Marx, não podemos deixar de falar na extinção do Estado, com o desaparecimento de todas as instituições de tipo estatal, como o exército permanente, a polícia etc. Marx era hostil ao Estado como tal, desde a juventude. Na Crítica do direito público de Hegel, de 1843, Marx escreveu que, no melhor dos casos, o Estado seria a “democracia da não liberdade”. E acrescentou: “O homem é o verdadeiro princípio do Estado; porém o homem não livre”. No comunismo, para que a dimensão política da existência dos indivíduos não se aliene deles, é preciso que o Estado deixe de existir.

Um exame honesto e sereno de todos esses aspectos aqui sumariamente mencionados da caracterização do comunismo por Marx é um exame que nos leva certamente à constatação de que a imagem da sociedade comunista, nos escritos de seu maior idealizador moderno, permanece muito fragmentária, lacunosa, cheia de aspectos problemáticos.

Marx nunca se dispôs a descrever quais as formas que poderia assumir a propriedade não burguesa que se seguiria à superação do capitalismo.   A estatização, do ângulo do pensador comunista, evidentemente não poderia resolver esse problema, já que a criação de formas não burguesas da propriedade precisaria se fazer paralelamente à extinção do Estado.

Claro, após graves derrotas sofridas pelo movimento operário europeu (em 1848 e em 1871), Marx escreveu que, para consolidar o poder que viesse a conquistar, para neutralizar a reação da burguesia, a classe operária deveria estabelecer a ditadura do proletariado.  Porém, na sua concepção, essa ditadura revolucionária deveria ser de breve duração e deveria promover um rápido processo de liquidação do Estado (sua autossuperação). Nunca passou pela cabeça do autor d’O capital a ideia de uma ditadura do proletariado que se prolongasse, que se transformasse numa forma nova e duradoura de Estado, e na qual a questão do comunismo fosse relegada para um futuro remotíssimo, de tal modo que nem sequer valesse a pena discuti-la…

Hoje, provavelmente, pensar uma sociedade sem Estado é ainda mais difícil do que na época de Marx.  As condições da vida política se complicaram enormemente e nada indica que elas se simplificarão num futuro previsível.  É quase impossível acreditarmos que as relações entre as pessoas se tornarão espontaneamente harmônicas. Os observadores mais atentos e mais rigorosos da transformação das instituições e da mudança das mentalidades encaram com ceticismo o mito de uma sociedade vindoura ‘transparente’.*

O próprio Marx estava convencido de que no comunismo os indivíduos se tornariam mais livres e mais originais. “Só na sociedade comunista” – lê-se na Ideologia alemã – “é que o desenvolvimento original e livre dos indivíduos deixa de ser uma frase vazia”.  Mas esses indivíduos, ao se libertarem dos efeitos da divisão social do trabalho, não se tornarão ‘inocentes’: eles terão vivido uma longa história que lhes deixa marcas e os condena à complexidade. As relações entre eles não poderão ser ‘cristalinas’. Por serem mais livres e mais originais, as pessoas poderão dispor de maiores pontos de convergência e encontro, porém ao mesmo tempo, inevitavelmente, poderão divergir mais umas das outras; e não há nenhuma razão para supormos que as formas de tais divergências venham a prescindir de uma regulamentação precisa e de instrumentos institucionais adequados para canalizá-las em proveito da humanidade.

Outro aspecto problemático da concepção do comunismo: se não considerarmos segura a possibilidade da sociedade ‘transparente’, também não poderemos afirmar com certeza que as necessidades religiosas desaparecerão da consciência dos homens. As relações entre os seres humanos chegarão algum dia a ser tão ‘claras’ e tão ‘racionais’ a ponto de eliminarem da consciência de todos eles qualquer sentimento religioso?

Assim como atualmente existem pessoas que não sentem necessidade da religião (apesar da irracionalidade e da falta de claridade que prevalecem nas relações delas com as outras, em alguns momentos), não deveríamos admitir, mesmo sendo marxistas, que na futura sociedade comunista algumas pessoas possam sentir necessidades religiosas?

Não haveria na afirmação de Marx sobre o desaparecimento necessário da religião no comunismo um eco da crença iluminista segundo a qual as luzes da razão devem dissipar todas as trevas da ignorância? E como podemos combinar essa crença iluminista com a convicção dialética de que o real é infinitamente rico, está sempre apresentando novas faces e é irredutível ao saber? A concepção iluminista da razão não força uma simplificação da realidade que a dialética nos ensina a respeitar?

Marx aderiu ao comunismo em Paris, no final de 1843 ou no começo de 1844. No próprio momento em que se deu a sua adesão, ele já fazia questão de explicar que a sua concepção do comunismo não tinha nada a ver com o que ele chamava de ‘comunismo grosseiro’, com a idealização de uma comunidade tipo formigueiro, com qualquer programa igualitarista fundado sobre a inveja.  A sociedade comunista, a seus olhos, pressupunha o desenvolvimento de indivíduos capazes de cultivar múltiplas habilidades, interesses diversificados: indivíduos que não se deixariam reduzir jamais a uma única função (ou à passividade do carneiro no rebanho).  No entanto, Marx deixou de indicar como, na sua concepção, se conciliariam a exigência humanista do desenvolvimento multilateral dos indivíduos com as pressões da especialização, que vem sendo reconhecida como inevitável na economia dos Estados modernos.

Os marxistas atuais não podem deixar de reconhecer o caráter problemático de todos esses aspectos da concepção do comunismo que aparece nos escritos de Marx. O próprio Marx se dava conta das deficiências da sua concepção e concentrou seu esforço intelectual na crítica do presente, evitando se apoiar na imagem, necessariamente nebulosa, da sociedade futura. Na Ideologia alemã, ele escreveu: “O comunismo não é para nós um estado de coisas a ser implantado, um ideal, em função do qual a realidade deva ser organizada; chamamos de comunismo o movimento real que supera o atual estado de coisas”.  Nós, porém, que vivemos uma história que Marx não viveu – e nos defrontamos com uma situação diferente daquela que ele enfrentou – não podemos nos satisfazer plenamente com essa afirmação.

Como identificar, no presente quadro de numerosas experiências socialistas distintas e até contraditórias, qual é o movimento real que supera o atual estado de coisas e aponta, de fato, na direção do comunismo? Como prescindir de um esforço no sentido de uma caracterização mais concreta da sociedade comunista, da meta histórica, do objetivo visado, do télos que deve orientar a ação política dos revolucionários marxistas?

Ao se ocuparem da questão do comunismo, os marxistas correm naturalmente vários riscos, que não devem ser substimados. A concepção do comunismo esboçada por Marx, em virtude de seus aspectos vagos e problemáticos, pode facilmente assumir a feição de um mito, de uma utopia. Como toda utopia, esse ideal comunista pode levar os revolucionários a negligenciar a força das resistências que lhe são opostas, a minimizar os obstáculos que encontrarão no caminho, a substimar os recursos de seus adverários; pode levá-los a avaliações políticas voluntaristas, românticas e ineficientes.

Ao abandonarem a discussão sobre o comunismo, entretanto, evitando reativá-la por medo de suas possíveis consequências negativas, os marxistas correm o risco de deixar de ser marxistas, sem mesmo se darem conta da diluição de sua perspectiva.

Um dos sintomas mais graves da crise do marxismo na União Soviética está, a meu ver, na falta de uma ampla discussão sobre o comunismo. Como a URSS chegará concretamente ao comunismo? Quais seriam os elementos que, nas circunstâncias atuais, antecipam ou ao menos prenunciam a extinção do Estado? As injunções práticas, a necessidade de se defender dos Estados Unidos, a realização de tarefas urgentes que levaram ao fortalecimento do Estado, enfim, empurraram a URSS para mais perto do comunismo ou afastaram-na dele?  Caso tenha havido afastamento, suas consequências têm sido suficientemente debatidas pelos marxista soviéticos?

Não creio que exista qualquer vantagem para o enriquecimento e o aprofundamento teórico do marxismo num abandono implícito da reflexão sobre o comunismo. Se os marxistas precisam romper com a concepção do comunismo legada por Marx, será necessária uma explicitação e uma fundamentação de tal rompimento. E isso exigirá uma revisão da perspectiva de Marx em seu conjunto, porque nela o horizonte comunista – mesmo impreciso – desempenha uma função extremamente importante.

Se não é o caso de um rompimento, contudo, os marxistas precisam retomar a concepção do comunismo, tal como ela está esboçada por Marx, desenvolvê-la, conferir-lhe traços menos vagos.

O conceito de comunismo não pode se esquivar à controvérsia, não pode impedir que contra ele sejam levantadas suspeitadas de utopia. Seu dstino, porém, não está inapelavelmente decidido pelo tribunal da história e os marxistas ainda dispõem de argumentos dignos de consideração. Eles podem lembrar, por exemplo, que certas características da concepção do comunismo, na época de Marx, pareciam bem mais utópicas do que agora.  Com a automação, o desaparecimento das diferenças entre o trabalho físico e o trabalho intelectual, que poderia parecer um sonho irrealizável no século 19, pode ser cogitado hoje de maneira mais concreta. A industrialização atingiu níveis sem precedentes, a urbanização vertiginosa, a conurbação, tudo isso pode ter criado graves problemas ecológicos, mas também conferiu maior viabilidade  à superação das diferenças entre a cidade e o campo, tornando tal superação menos ‘utópica’ aos nossos olhos do que aos olhos dos contemporâneos de Marx. Também o desaparecimento de todas as diferenças sociais entre homens e mulheres deveria parecer delirante para o público dos tempos da rainha Vitória e hoje começa a ser considerado algo que pode ser alcançado e passou a ser programa de um crescente movimento feminista.

A própria atenuação das diferenças nacionais – que na prática é muito prejudicada pelas tensões internacionais – pode constituir um objetivo a ser resgatado no debate contra avaliações demasiado céticas ou pessimistas.

Além disso, o comunismo – concebido (e respeitado) como horizonte – ajuda socialistas de filiação marxista a se orientarem nas lutas políticas que precisam ser travadas em profundidade em longo prazo. Desde que funcione como referência mediatizada e não seja artificialmente trazido para batalhas que se travam no plano mais imediato, o comunismo pode contribuir para dar maior continuidade à intervenção crítica e ativa dos socialistas num processo que se dispõe a encaminhar uma democratização cada vez mais consequente da sociedade, promovendo uma ampliação cada vez maior dos espaços disponíveis para a liberdade dos homens. Talvez nunca cheguemos ao comunismo, quer dizer, a um estado de coisas que possamos considerar plenamente satisfatório: lutando por ele, entretanto, animados pela meta que ele representa, poderemos nos aproximar com maior eficácia de tal estado.

A esses argumentos, os marxistas dispostos a defender a concepção do comunismo de Marx ainda poderão acrescentar outro, à guisa de conclusão: ressalvado o imprescindível espírito realista, por que os seres humanos deveriam se conformar em lutar por objetivos menores, quando podem lutar por um objetivo maior e mais ambicioso?


* Leia-se, por exemplo, Trabalho e reflexão, de José Arthur Giannotti, Editora Brasiliense.

Leandro Konder (1936-2014) foi um filósofo marxista brasileiro

KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias, 1ª ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984, 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009, pgs. 187-194





[NOTA Mundo do Socialismo: Embora publicado em dezembro de 2014, o texto mantem sua atualidade, abrindo espaço ainda hoje para muitas reflexões]

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Estratégia e táctica do marxismo


Por Alan Woods


A doença infantil do esquerdismo no comunismo é uma das obras mais importantes do marxismo. Em muitos aspectos é a melhor obra de Lenine uma vez que representa um resumo de toda a experiência histórica do bolchevismo. Quem desejar entender a essência do método de Lenine deveria estudar detalhadamente estas páginas que, de uma maneira extraordinariamente clara e concisa, explicam a arte da táctica e a ciência da estratégia na luta de classes.

"A história em geral e a das revoluções em particular, é sempre mais rica em conteúdo, mais variada de formas e aspectos, mais viva e mais "astuta" do que imaginam os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes das classes mais avançadas." (Lenine, A doença infantil do esquerdismo no comunismo)

A doença infantil do esquerdismo no comunismo é uma das obras mais importantes do marxismo. Em muitos aspectos é a melhor obra de Lenine uma vez que representa um resumo de toda a experiência histórica do bolchevismo. Quem desejar entender a essência do método de Lenine deveria estudar detalhadamente estas páginas que, de uma maneira extraordinariamente clara e concisa, explicam a arte da táctica e a ciência da estratégia na luta de classes.

Lenine escreveu A doença infantil em Abril de 1920 e o apêndice a 12 de Maio do mesmo ano, durante o emocionante período posterior ao triunfo da revolução na Rússia. A Terceira Internacional (comunista) tinha sido fundada no ano anterior como resultado do colapso da Segunda Internacional (socialista), o que se tornou inevitável após a traição dos dirigentes reformistas dos partidos social-democratas que, violando as decisões de todos os congressos internacionais, tinham votado a favor dos créditos de guerra e apoiado a guerra imperialista de 1914 a 1918.

A vitória da Revolução de Outubro na Rússia deu um poderoso impulso, num primeiro momento, à formação de tendências comunistas de massas dentro dos velhos partidos socialistas e social-democratas e, mais tarde, à formação de partidos comunistas num país após outro. Mas os dirigentes dos novos partidos eram, na sua maioria jovens, sem a maturidade política necessária e, ainda que se inspirassem na Revolução de Outubro, não tinham a mesma experiência que os bolcheviques e apenas conheciam superficialmente a história, a teoria e a prática do bolchevismo. Como consequência, cometeram muitos erros, geralmente de raiz ultra-esquerdista. Para ajuda-los a superar essas deficiências e a familiarizarem-se com a autêntica natureza do bolchevismo, Lenine escreveu essa obra. Ainda que fosse publicada pela primeira vez há quase 80 anos, continua tão válida e relevante como no dia em que saiu do prelo.

Lenine deu muita importância a este livro e, prestando uma atenção pessoal aos prazos de correcção e de edição, certificou-se de que o livro era editado antes da abertura do 2º Congresso da Internacional Comunista, cujos delegados receberam uma cópia cada um. Entre Julho e Novembro de 1920 o livro foi publicado em Leipzig, Paris e em Londres.

Qual é o conteúdo do livro?

O conteúdo do livro fica claramente expresso no subtítulo do manuscrito original, Ensaio de discussão popular sobre a estratégia e a táctica dos marxistas, que desapareceu de todas as edições publicadas em vida de Lenine. Nas suas páginas aborda-se a tarefa de construção do partido revolucionário, questão mais complicada do que parece à primeira vista. Implica a relação entre o marxismo e o movimento vivo do proletariado e das suas organizações que têm evoluído ao longo da história.

A luta de classes, e o seu reflexo na consciência das massas, não se desenvolve em linha recta , mas passa por toda uma série de etapas, com mudanças constantes, fluxos e refluxos. Só em duas ocasiões nos últimos 150 anos, a classe trabalhadora criou organizações de massas para expressar a sua vontade de transformar a sociedade: a Segunda e Terceira Internacionais. Deste simples facto poderemos deduzir o pouco comum que é a criação de organizações operárias de massas.

A classe operária não chega automaticamente a conclusões revolucionárias. Se assim fosse, a tarefa de construir o partido seria supérflua. Se o movimento da classe trabalhadora se produzisse em linha recta, a tarefa seria simples, mas na realidade assim não ocorre. Depois de um longo período histórico, a classe operária chega a compreender a necessidade da construção do partido. Sem organização, a classe operária não é mais do que matéria-prima para exploração. Mediante a criação de organizações, tanto de carácter sindical como, a um nível superior, político a classe operária começa a expressar-se como classe, como uma entidade independente. Em palavras de Marx, passa de ser uma em classe "em si" para uma classe "para si". Esse desenvolvimento produz-se durante um longo período histórico através de todo o tipo de lutas, nas quais participa a minoria de activistas mais ou menos conscientes, mas também as "massas sem preparação política", que, em geral, despertam para a participação activa na vida sindical (e mesmo política) sobre a influência de grandes acontecimentos.

A classe operária começa a criar organizações de massas para defender os seus interesses. Estas organizações históricas são os sindicatos, as cooperativas e os partidos operários que representam o germe da nova sociedade dentro da velha. Servem para mobilizar, organizar, formar e educar a classe.

De uma maneira diferente da pequena-burguesia que sempre se caracteriza pela sua extrema volatilidade política, a classe operária muda as suas fidelidades políticas e sindicais muito lentamente. Um operário não se irá desfazer de uma ferramenta velha inclusive quando esta tenha deixado de ter uma utilidade prática; tratará de repara-la até que finalmente demonstre ser completamente inútil. Da mesma maneira, o proletariado no seu conjunto não abandona facilmente as suas organizações tradicionais uma vez que estas tenham sido criadas mas, pelo contrário, uma vez após outra tentará transformá-las em autênticos órgãos de luta. Quem não entenda este facto será incapaz de construir uma ponte até às massas. Lenine conhecia profundamente a forma de pensar e de agir da classe operária. A doença infantil é uma expressão brilhante disso.

Pressões do capitalismo

As organizações criadas historicamente pelo proletariado formaram-se no seio da sociedade capitalista e estão submetidas às pressões do capitalismo, o que inevitavelmente produz deformações burocráticas. As organizações nascidas na luta tendem a degenerar quando a pressão das massas desaparece. Estas pressões intensificam-se em períodos de auge económico ou inclusive durante ciclos de expansão temporárias. Os trabalhadores não se põem a lutar porque sim. Em condições em que a burguesia pode fazer concessões e reformas temporárias, os trabalhadores tendem a procurar uma solução individual, "a trabalhar duro", fazendo horas extraordinárias, etc.. As pressões do capitalismo têm os seus efeitos mais perniciosos nas cúpulas do movimento operário, e a tendência da burocracia das organizações operárias a separar-se da base e cair sob influência de ideias burguesas e pequeno-burguesas sempre se multiplica por mil quando diminui a pressão da classe operária. E esta é uma lei que se pode demonstrar historicamente.

Quando os capitalistas podem fazer concessões e reformas, a maioria dos trabalhadores não vê a necessidade de participar activamente no movimento. Isso leva a uma maior degenerescência na direcção que cada vez mais se divorcia das massas e das bases do partido (ou sindicato). Gradualmente, quase de maneira imperceptível, perdem de vista os objectivos revolucionários. Os dirigentes ficam absorvidos na rotina diária da actividade sindical ou parlamentar. Chega um momento em que se encontram teorias para justificar esse abandono de princípios.

Isto foi o que aconteceu no período de auge prolongado antes de 1914 e que terminou na matança da I Guerra Mundial. Lenine explicou que o ultra-esquerdismo é o preço a pagar pelo movimento operário pelo oportunismo dos seus dirigentes. O êxito do anarquismo entre certos sectores de operários e jovens antes da Iª Guerra foi precisamente uma reacção à degenerescência burocrática e reformista dos dirigentes da social-democracia. De maneira similar, no período posterior à IIª Guerra mundial, a expansão de ideias ultra-esquerdistas entre os estudantes (terrorismo, anarquismo, guerrilheirismo, nacionalismo radical) não se pode explicar exclusivamente pela mentalidade pequeno-burguesa dessa camada (esse é um elemento constante), mas foi consequência da enorme falta de autoridade do marxismo como resultado da degenerescência burocrática e reformista das organizações operárias e do estalinismo na URSS. Lenine explicou como na Rússia a influência do anarquismo foi mínima devido à luta consequentemente revolucionária dos bolcheviques. Mas as políticas reformistas que adoptaram os dirigentes do movimento operário em todos os países depois da IIª Guerra Mundial apenas serviram para repelir parte dos jovens e empurrá-los para o beco sem saída do anarquismo, do sectarismo e do ultra-esquerdismo.

Marx e Engels

Para um marxista, um partido revolucionário é, em primeiro lugar, programa, métodos, ideias e tradições e, só depois, uma organização e um aparelho (que sem dúvida têm importância) para levar estas ideias a amplas camadas de trabalhadores. O partido marxista, desde o seu início, deve basear-se na teoria e no programa, que é o resumo da experiência histórica geral do proletariado.

Esta é a primeira parte do problema. Mas só a primeira parte. A segunda é mais complicada: Como chegar às massas de trabalhadores com o nosso programa e as nossas ideias? Não é uma questão simples. Para os sectários, isso não é nenhum problema. Basta citar Lenine sobre a necessidade de "um partido revolucionário independente". Simplesmente nos proclamamos como tal e chamamos os trabalhadores a unirem-se a nós! A necessidade de construir um partido revolucionário independente é o ABC para os marxistas. Mas para além do ABC existem outras letras do abecedário e um miúdo que só repetisse as primeiras letras depois de alguns anos de escola não seria considerado muito espevitado.

No seu artigo Sectarismo, Centrismo e a Quarta Internacional (1935), Trotsky caracteriza os sectários da seguinte maneira:

"O sectário vê a vida da sociedade como uma grande escola na qual ele é o professor. Na sua opinião, a classe trabalhadora deveria deixar de parte outras coisas menos importantes e sentar-se ordenadamente em redor da sua tarimba. Então a tarefa estaria resolvida.

Apesar de jurar pelo marxismo em cada frase, o sectário é a negação directa do materialismo dialéctico, que toma a experiência como ponto de partida e sempre regressa a ela. Um sectário não entende a acção e reacção dialéctica entre um programa acabado e a luta de massas viva, quer dizer imperfeita, inacabada. O sectarismo é hostil à dialéctica (não em palavras mas sim em actos) no sentido em que volta as costas ao desenvolvimento real da classe trabalhadora". (Trotsky, Escritos, 1935-36.)

No documento fundador do movimento marxista, O Manifesto Comunista, Marx e Engels explicam que:

"Em que relação se encontram os comunistas com os proletários em geral?

Os comunistas não são um partido particular face aos outros partidos operários. Não têm interesses separados dos interesses de todo o proletariado. Não estabelecem princípios segundo os quais pretendam moldar o movimento proletário.

Os comunistas distinguem-se dos demais partidos proletários apenas porque, por um lado, nas diferentes lutas nacionais dos proletários acentuam e fazem valer os interesses comuns, independentes da nacionalidade, do proletariado na sua totalidade, e porque, por outro lado, nas várias etapas de desenvolvimento por que passa a luta entre o proletariado e a burguesia representam sempre o interesse do movimento na sua totalidade.

Os comunistas são, pois, praticamente, o sector mais decidido, sempre impulsionador, dos partidos operários de todos os países; teoricamente, têm, em avanço sobre a restante massa do proletariado, a compreensão das condições, do curso e dos resultados gerais do movimento proletário."

Os fundadores do socialismo cientifico sempre partiram do movimento tal como era, e aplicaram as tácticas mais hábeis para contactar com o autêntico movimento das massas e fertilizá-lo com o programa do marxismo revolucionário. Isto significava, inicialmente, aparecer como a extrema esquerda do movimento democrático. O trabalho de Marx em redor da Nova Gazeta Renana foi um modelo de agitação revolucionária que combinava a luta por reivindicações democráticas mais avançadas com uma defesa implacável do ponto de vista independente de classe do proletariado.

A Liga dos comunistas foi, desde o princípio, uma organização internacional. Não obstante, a formação da Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional), em 1864, constituiu um passo qualitativo em frente. A tarefa histórica da Primeira internacional foi a de estabelecer os princípios fundamentais, o programa, a estratégia e a táctica do marxismo revolucionário à escala internacional. De todas as formas, na sua concepção, a AIT não era uma Internacional Marxista, mas uma organização extremamente heterogénea, composta por sindicalistas reformistas britânicos, proudhonistas franceses, italianos seguidores de Mazzini, anarquistas e outros do estilo. Combinando a firmeza nos princípios com uma grande flexibilidade táctica, Marx e Engels, gradualmente, ganharam a maioria. Numa carta a Engels, Marx explicava que tinham de usar de extremo tacto, especialmente à hora de combater os preconceitos dos "trade-unistas" britânicos. Numa frase muito apropriada, Marx disse que sempre era "flexível na forma, mas audaz no conteúdo". Esta frase resume a atitude dos marxistas no seu trabalho nas organizações operárias reformistas.

A AIT conseguiu assentar as bases teóricas para uma genuína Internacional revolucionária. Mas nunca foi uma autêntica Internacional de massas. Foi realmente uma antecipação do futuro. A derrota da Comuna de Paris teve um efeito desorientador sobre as débeis forças da Primeira Internacional que entrou em crise, agravada pelas intrigas dos bakuninistas (anarquistas). Para evitar que a Internacional caísse em mãos dos bakuninistas, Marx e Engels primeiro trasladaram a sede para os Estados Unidos e, depois, decidiram dissolvê-la em 1872. Apesar de continuarem a defender os princípios do internacionalismo, durante um período Marx e Engels estiveram sem uma organização internacional.

Lenine e a Segunda Internacional

A Segunda Internacional (socialista), fundada em 1890, começou onde tinha acabado a AIT. Ao contrário desta, a Segunda Internacional começou por ser uma internacional de massas que uniu e organizou milhões de trabalhadores. Teve partidos e sindicatos de massas na Alemanha, França, Grã-Bretanha, Bélgica, etc., além disso, pelo menos em palavras, defendeu os princípios do marxismo revolucionário. Com isto, o futuro do socialismo parecia garantido...

Não obstante, o drama da Segunda internacional foi o de ter-se formado durante um largo período de auge capitalista. Este facto deixou a sua marca na mentalidade do sector dirigente dos partidos e sindicatos social-democratas. O período clássico da social-democracia foi o de 1871-1914. Sobre a base de um longo período de crescimento económico foi possível para o capitalismo fazer concessões à classe operária ou, mais concretamente, à sua camada superior. Os sindicatos aumentaram a sua força, de dois a três milhões na Alemanha e Grã-Bretanha, 300.000 em França, etc.

Em geral, foi um período de reformas, não de revoluções. Houve excepções, como a revolução russa de 1905, mas este não foi o carácter geral da época. Apesar de formalmente aderirem à ideia do socialismo, na prática, os dirigentes social-democratas em França, Alemanha, Grã-Bretanha e noutros países estavam a aplicar políticas reformistas. Isso foi materializado rapidamente por Bernestein na sua famosa metáfora: "O movimento é tudo. O objectivo final não é nada." Antes de 1914, Lenine, Trotsky, Liebknecht e Rosa Luxemburgo eram social-democratas. Na realidade, estavam a conduzir uma luta por uma genuína política revolucionária dentro da Segunda internacional.

Contudo, o único que realmente entendeu o papel do partido revolucionário foi Lenine. Mesmo Trotsky, apesar da sua correcta apreciação das perspectivas para a revolução russa, estava confundido sobre este aspecto até 1917. Rosa Luxemburgo era uma destacada revolucionária que tentava combater a política reformista da direcção do SPD pondo o maior ênfase no movimento espontâneo da classe e da Greve Geral. Ela entendia melhor que Lenine o papel de Kautsky e da chamada "esquerda" alemã (na realidade centristas), principalmente porque os podia ver mais de perto. Lenine, num primeiro momento, tinha ilusões em Kautsky e definia-se a si mesmo como um "kautskista ortodoxo" praticamente até à Iª Guerra Mundial.

Mas só Lenine projectou sistematicamente criar um partido marxista firme e consciente, chegando até ao extremo da cisão de 1912, dois anos antes da cisão da Internacional. Não obstante, durante um longo período de quase dez anos, os bolcheviques e os mencheviques actuaram como duas fracções de um mesmo partido: o Partido Operário Social Democrata Russo que, desde 1905, era o partido de massas do proletariado russo.

A Internacional Comunista

"A Terceira Internacional surge directamente da guerra imperialista. É certo que muito antes, muitas tendências diferentes haviam lutado dentro da Segunda Internacional, mas, inclusive as que estavam mais à esquerda, representadas por Lenine, estavam longe de pensar que a unidade revolucionária da classe operária seria criada mediante uma ruptura total com a social-democracia. A degenerescência oportunista dos partidos operários, estritamente vinculada com o período de florescimento do capitalismo na passagem do século, só se revelou completamente no momento em que a guerra apresentou cruamente a questão: Com a burguesia nacional ou contra ela? O desenvolvimento político deu um salto repentino em 1914: utilizando uma frase de Hegel, a acumulação de mudanças de quantidade de repente adquiriu um carácter de qualidade" (Trotsky, Escritos 1935-36).

Quando é que se fundou a Terceira Internacional? Esta pergunta aparentemente simples tem mais de uma resposta. Num sentido, pode-se dizer que a Internacional se fundou em 1914, quando Lenine rompeu com a velha Internacional e proclamou a necessidade de uma nova Internacional. Inclusive recusou o nome de "social-democrata", qualificando-o de "camisa suja" que deveria ser mudada por uma nova. E, não obstante, Lenine, nesse momento, estava completamente isolado. Trotsky calculava que deveria estar em contacto com, quem sabe, duas dúzias de correligionários no exílio. Na Conferência dos socialistas que se opunham à guerra em Zimmerwald em 1915, Lenine brincou com o facto de que todos os internacionalistas do mundo cabiam em duas carroças. Não obstante, a nova internacional já existia, com um programa e uma ideia, em 1914.

Apesar de tudo, as forças de massas da Internacional Comunista só se formaram com base nos grandes acontecimentos de 1917-1923. Na maioria dos casos, os partidos de massas da nova internacional criaram-se a partir de cisões dos velhos partidos da Segunda Internacional. As seitas adoram citar os escritos de Lenine do período de 1914-1917, quando ele insistia repetidamente na necessidade de uma ruptura radical com a social-democracia, esse "cadáver putrefacto" como lhe chamou Rosa Luxemburgo.

"Mas Lenine tinha em mente uma ruptura com os reformistas como consequência inevitável da luta contra eles e não como um acto de salvação, independentemente do tempo e do lugar. Requeria uma cissão com os social-patriotas não para salvar a sua alma mas para arrancar as massas do social-patriotismo" (Trotsky, Escritos 1935-36).

Depois da Revolução de Outubro, surgiram tendências comunistas em todos os velhos partidos social-democratas. Em França, os comunistas ganharam a maioria do Partido Socialista no Congresso de Tours (1920). A ala direita cindiu-se com 30.000 membros e o Partido Comunista formou-se com cerca de 130.000. Não obstante, os velhos dirigentes reformistas mantiveram uma base de apoio entre os sectores mais atrasados e inertes da classe. Os social-democratas alemães cindiram-se em 1917, quando a ala centrista dirigida por Kautsky fundou o Partido Social Democrata Independente. Este partido centrista de massas, por sua vez, cindiu-se em Outubro de 1920 aquando do Congresso de Halle. A maioira uniu-se com os espartaquistas para formar o Partido Comunista Alemão, um partido de massas com 21 jornais diários. Acontecimentos similares ocorreram na Checoslováquia, Itália, Bulgária, Noruega e noutros países.

"Comunismo de esquerda"

A Terceira Internacional (Comunista) ergueu-se a um nível qualitativo superior a cada uma das suas antecessoras. Como a AIT, no pico do seu desenvolvimento, defendia um claro programa socialista, revolucionário e internacionalista. Tal como na Segunda Internacional, tinha uma base de massas de milhões de pessoas. Uma vez mais, parecia que o destino da revolução mundial estava em boas mãos. Infelizmente, como dissémos, a maioria das direcções dos novos partidos comunistas eram jovens e inexperientes. Faltava-lhes a base teórica e a experiência dos dirigentes do partido russo. Cometiam-se erros, no primeiro período, especialmente de carácter esquerdista.

No IIº Congresso da Comitern, Lenine e Trotsky lançaram a luta contra a "doença infantil" do comunismo. O Manifesto do IIº Congresso escrito por trotsky, declara:

"A Internacional Comunista é o partido mundial da rebelião proletária e da ditadura do proletariado. Não possui nem objectivos separados nem distintos dos próprios da classe operária. As pretensões das seitas minúsculas, cada uma das quais a querer salvar a classe operária à sua maneira, são hostis ao espírito da Internacional Comunista. Não possui nenhum tipo de panaceias nem fórmulas mágicas, mas baseia-se na experiência internacional, presente e passada, da classe operária; depura essa experiência de todos os equívocos e desvios, generaliza as conquistas alcançadas e reconhece somente como fórmulas revolucionárias as fórmulas de acção de massas" (Trotsky, Os cinco primeiros anos da Internacional Comunista)

O mesmo documento acrescenta:

"Levando a cabo uma luta sem quartel contra o reformismo nos sindicatos e contra o cretinismo parlamentar e o carreirismo, a Internacional Comunista condena ao mesmo tempo todos os apelos sectários para deixar as filas das organizações sindicais que agrupam milhões, ou virar as costas ao trabalho nas instituições parlamentares e municipais. Os comunistas não se separam das massas que estão a ser enganadas e traídas pelos reformistas e os patriotas, mas comprometem-se a um combate irreconciliável dentro das organizações de massas e instituições estabelecidas pela sociedade burguesa, para poder derrubá-la o mais depressa possível" (ibid).

O ultra-esquerdismo, reflexo da impaciência e da inexperiência, tinha-se estendido a sectores de dirigentes comunistas na Grã-Bretanha, Alemanha, Holanda e Itália. As declarações mais comuns eram a recusa ao trabalho eleitoral parlamentar, ao trabalho em sindicatos reformistas e uma atitude sectária face aos partidos reformistas de massas. Lenine e Trotsky combateram essas ideias advogando pela táctica da Frente Única para estender uma ponte até às massas de operários social-democratas. No caso da Grã-Bretanha, foram inclusive, mais longe, propondo que o PC britânico se deveria afiliar no Partido Trabalhista.

O livro de Lenine A doença infantil do 'esquerdismo' no comunismo foi escrito para responder aos argumentos dos "esquerdistas", que reaparecem a cada passo nos documentos das seitas. Lenine explicou que era um crime separar os operários avançados das massas e que esse tipo de tácticas, longe de debilitar a burocracia sindical, na realidade servia para fortalecê-la:

"Recusar o trabalho nos sindicatos reaccionários significa deixar a massa dos trabalhadores insuficientemente desenvolvidos ou atrasados sob a influencia dos dirigentes reaccionários, os agentes da burguesia, a aristocracia operária, ou 'trabalhadores que se aburguesaram completamente'.

Se queres ajudar as 'massas' e ganhar a simpatia e o apoio das 'massas', não deves temer as dificuldades ou provocações, insultos e perseguições por parte dos 'dirigentes' (que por serem oportunistas e social-chauvinistas estão, em muitos casos, directa ou indirectamente vinculados à burguesia e à policia), mas deves, em qualquer caso, trabalhar em qualquer sitio onde estejam as massas. Tens de ser capaz de qualquer sacrifício, de superar os maiores obstáculos, para poder fazer propaganda e agitação sistematicamente, perseverantemente e persistentemente nessas instituições, sociedades e associações, inclusive as mais reaccionárias - onde estiverem as massas proletárias ou semi-proletárias" (Lenine, A doença infantil do 'esquerdismo' no comunismo).

Lenine explicou como os bolcheviques tinham feito trabalho ilegal inclusive nos sindicatos "Zubatov", criados pela polícia czarista para afastar os operários das ideias revolucionárias.

O IIº Congresso do Comitern debateu a questão do Partido Trabalhista e decidiu aconselhar ao Parido Comunista Britânico que pedisse afiliação. Isto foi aceite com reticências pela direcção britânica, que formulou a sua aplicação em termos tão sectários que convidava, de caras, uma resposta negativa. Pouco a pouco foi-se corrigindo esse ultra-esquerdismo, o que permitiu ao jovem Partido Comunista construir uma base significativa dentro do Partido Trabalhista. Lenine aconselhou ao pequeno PC britânico que se orientasse para os sindicatos e para o Partido Trabalhista. Nas eleições, aconselhou ao Partido que só apresentasse candidatos em algumas circunscrições seguras, onde não existia o perigo de dividir o voto da esquerda e que assim pudessem ganhar os tories ou os liberais, concedendo um apoio crítico ao candidato trabalhista nos demais círculos eleitorais:

"Apresentaríamos os nossos candidatos nalguns poucos círculos absolutamente seguros, quer dizer, nos distritos onde o nosso candidato não desse nenhum lugar aos liberais a expensas dos trabalhistas. Tomaríamos parte na campanha, distribuindo panfletos de agitação comunista, e em todas as circunscrições onde não apresentássemos candidatos, apelaríamos ao eleitorado para votar pelo candidato trabalhista contra os candidatos burgueses" (Ibid.)

A questão do parlamento

Como já dissemos, os inexperientes dirigentes dos partidos comunistas nos primeiros anos da Internacional comunista, não tiveram tempo de absorver e dirigir as lições da história do bolchevismo e da Revolução Russa. Tinham lido O Estado e a Revolução e os escritos de Lenine do primeiro período da I Guerra Mundial, e eram capazes de repetir mecanicamente os slogans acerca da guerra civil, sobre a necessidade da esmagar o Estado burguês, sobre a critica do reformismo e do parlamentarismo, sobre como não era permissível unirem-se com a social-democracia, etc. Mas não tinham entendido uma só palavra do que tinham lido. Não entendiam o método de Lenine. Durante todo o período que vai desde 1917 até à sua morte, Lenine lutou por "endireitá-los", chegando inclusive a declarar que se eles eram a "esquerda", ele era a "direita".

Os comunistas de "esquerda" consideravam que Lenine e Trotsky tinham sucumbido ao oportunismo. Na prática sustinham que os métodos e tácticas que defendiam eram "um desvio muito sério do ponto de vista de Lenine e Trotsky", o que "significará que a Internacional nunca será capaz de cumprir a sua missão histórica". A expressão mais clara disso foi a "teoria da ofensiva" defendida pelos dirigentes do PC alemão.

Isto conduziu à derrota dos operários alemães em março de 1921, quando o PC tentou tomar o poder antes de conseguir ganhar a maioria. Este aventureirismo nada tem em comum com as ideias e métodos de Lenine. A questão do poder só se coloca quando o partido revolucionário tenha ganho a maioria decisiva, não só da classe operária, mas também da pequena burguesia. Para poder fazer isto, é essencial dominar todas as formas de trabalho, incluindo a actividade parlamentar.

Lenine já havia explicado a atitude do marxismo sobre o Estado, em resposta tanto aos reformistas como aos anarquistas. A postura básica de Lenine sobre a revolução socialista está exposta em O Estado e a revolução, onde lemos o seguinte:

"A ideia de Marx é que a classe operária tem de romper, destruir a 'maquinaria estatal' e não limitar-se somente a tomar controle dela."

Marx explicou que a classe operária não se pode basear simplesmente no poder estatal existente, mas que tem de derrubá-lo e destruí-lo. Isto é o "abc" para um marxista. Mas depois do "abc", existem outras letras num alfabeto. No Estado e a Revolução, Lenine fustigou os reformistas que apresentavam a revolução socialista como um processo lento, gradual e pacífico. Mas, o mesmo Lenine, foi capaz de assegurar, em 1920, que na Grã-Bretanha, devido ao enorme poder do proletariado e das suas organizações, seria totalmente possível levar a cabo a transformação socialista pacificamente, inclusive através do Parlamento, sob condição de que os sindicatos e o Partido Trabalhista estivessem dirigidos por marxistas. A postura de Lenine sobre a revolução era concreta e dialéctica e não formalista e abstracta.

Em A doença infantil, Lenine faz referência ao erro que os bolcheviques cometeram depois da derrota da revolução de 1905, quando levaram a cabo um boicote às eleições parlamentares. Depois do fracasso da insurreição de Dezembro de 1905, o regime czarista tentou liquidar a revolução mediante a combinação de repressões e concessões. Ao longo do ano de 1906, estabeleceu-se um parlamento ("Duma") carente de poderes e com um sistema eleitoral restrito. O carácter reaccionário da Duma era evidente não só para os bolcheviques, mas, também, para a maioria dos activistas socialistas e operários avançados. Até os mencheviques, num primeiro momento, se inclinaram para o boicote. Mas o ambiente que se respirava nos sectores mais avançados não reflectia, de todo, a psicologia das massas. Para esta últimas, a verdadeira natureza da Duma não era clara. As ilusões constitucionais eram particularmente fortes entre os camponeses que acreditavam poder conseguir a terra que aspiravam mediante reformas levadas a cabo no parlamento. O triunfo da contra-revolução e o declínio do movimento operário significavam que, para as massas pequeno-burguesas no campo e na cidade, e inclusive para sectores da classe trabalhadora, a Duma era a única esperança de haver alguma melhoria. O facto de que semelhantes esperanças carecessem de qualquer base era irrelevante.

Os bolcheviques, num primeiro momento, não compreenderam o alcance da derrota e cometeram o erro de boicotar as eleições da primeira Duma. É um facto constatável que o ambiente que se respira entre as camadas mais activas e combativas da classe operária podem não estar em consonância com o resto da classe. A vanguarda pode ir demasiado à frente da classe. Semelhante erro é tão grave na luta de classes como o seu equivalente na táctica militar. Na guerra, se a vanguarda avança demasiado depressa, perdendo contacto com a retaguarda do exército, fica seriamente exposta ao risco de ser massacrada. Esta afirmação é igualmente aplicável a situações em que os operários mais combativos, sob a influência da impaciência, perdem de vista a autêntica situação da maioria dos trabalhadores, ou confundem o seu próprio nível de compreensão com o das massas.

Nos debates com a ala ultra-esquerdista da Internacional Comunista, Lenine tentou educá-la com base na experiência histórica do Partido Bolchevique. "Só a história do bolchevismo em todo o período da sua existência pode explicar de um modo satisfatório porque é que o bolchevismo pôde forjar e manter, nas condições mais difíceis, a disciplina férrea necessária para vitória do proletariado". (Lenine, A doença infantil do 'esquerdismo' no comunismo).

Partindo do facto de que os partidos comunistas não eram, todavia, a maioria decisiva da classe, Lenine defendeu a consigna da Frente Única, do trabalho paciente nas organizações de massas e da participação nos parlamentos burgueses, como meio para ganhar as massas. Esta era a condição prévia para a revolução socialista. Mas os esquerdistas não estavam satisfeitos. Eles recusaram, sobranceiramente, o conselho de Lenine de "orientar-se para as massas", considerando que a única política possível para um partido revolucionário era a "ofensiva revolucionária". Lenine e Trotsky combateram essa "teoria" que conduziu à derrota sangrenta de março de 1921 na Alemanha. Este foi um exemplo extremo de uma tendência ultra-esquerdista que estava muito espalhada naquela época e que tem ressurgido muitas vezes na história do movimento. Sempre foi combatida por Lenine e Trotsky e, antes deles, por Marx e Engels. Apesar de toda a sua aparência "revolucionária", esse tipo de postura não tem nada em comum com os autênticos métodos do do bolchevismo do qual é uma mera caricatura abstracta.

Lenine explicou que para ganhar as massas não é suficiente aprender como atacar, mas também como retirar ordenadamente, virar, desviar-se, evitar a batalha em condições desfavoráveis e por aí fora. Toda a história do bolchevismo está cheia de exemplos desse tipo de tácticas flexíveis reflectidas nos escritos de Lenine e resumidas em A doença infantil.

Como regra geral, a única circunstância em que é permissível boicotar o parlamento e as eleições parlamentárias é quando o movimento revolucionário está em condições de substituir o sistema parlamentar com algo melhor. Não há dúvida que o sistema original de governo soviético mediante os concelhos operários (sovietes) introduzido pelos operários russos depois da Revolução de Outubro era muito mais democrático que o parlamento mais democrático da história. Mas se não te encontras nessa situação, se estás em minoria, então para os marxistas é obrigatório participar no parlamento e lutar para ganhar a maioria. Àqueles que nos acusam de sermos "anti-democráticos" respondemo-lhes: " Pelo contrário. Nós lutamos por direitos democráticos. É a burguesia que quer restringir a democracia e aboli-la no momento em que pareça que a classe operária ameaça a sua ditadura. Pela nossa parte, participaremos nas eleições e no parlamento e trataremos de ganhar a maioria por meios pacíficos. Mas também somos realistas e temos aprendido convosco, os banqueiros e monopolistas, sabemos que não hesitareis em fazer de tudo ao vosso alcance para defender os vossos privilégio ".

Lenine e os bolcheviques não eram cretinos parlamentários nem anarquistas. Entenderam que, para poder levar adiante a revolução socialista, primeiro é necessário ganhar as massas. Por esse motivo, aprenderam a utilizar todas e cada uma das possibilidades de levar a cabo trabalho revolucionário. Em geral, não tinham fetiches, nem o fetiche parlamentar dos reformistas, que pensam que tudo se pode reduzir à acção parlamentar, nem o fetiche anti-parlamentário dos anarquistas, que dizem que não se deve participar no parlamento sob nenhuma circunstância. Esta última postura teria condenado os bolcheviques a uma existência sectária. Boicotar o parlamento e as eleições quando não se está em condições de oferecer uma alternativa melhor, equivale a boicotar-se a si mesmo.

Durante muito tempo antes da Revolução de Outubro, os bolcheviques participaram inclusive nos parlamentos czaristas mais reaccionários, como meio para reunir as forças de massas que iriam levar a cabo a revolução de 1917. Sem esta utilização revolucionária do parlamento, combinando métodos de luta legais e ilegais, os bolcheviques jamais teriam conseguido converter-se na força decisiva da classe operária russa.

O "terceiro período"

A maioria dos partidos comunistas, por fim, foram ganhos para os métodos e tácticas do bolchevismo e, durante algum tempo, mediante a aplicação destes obtiveram muitos bons resultados. Por exemplo, o PC britânico conseguiu ter um eco importante no Partido Trabalhista e, inclusive, chegou a ter deputados no Parlamento britânico nos anos 20. Os partidos comunistas começaram a abrir caminho até aos operários social-democratas em toda a parte e, se se tivessem mantido na linha política de Lenine, o êxito da revolução ter-se-ia garantido. Mas a degenerescência estalinista da União Soviética fez estragos nas direcções ainda pouco maduras dos partidos comunistas no exterior. Os zig-zags ultra-esquerdistas da burocracia russa levaram à política do "terceiro período" e do "social-fascismo", com efeitos desastrosos para o Comitern.

O resultado mais catastrófico produziu-se na Alemanha, onde a gigantesca crise social e económica nos princípios dos anos trinta produziu uma polarização da sociedade para a esquerda e para a direita. Em 1932, o desemprego alcançou os cinco milhões, produzindo-se uma forte queda dos salários. Aterrorizados pela ameaça da revolução social, os capitalistas alemães começaram a financiar Hitler. Não obstante a maioria dos operários alemães continuavam fiéis às suas organizações - o Partido Social Democrata e o Partido Comunista -. Estes dois partidos tinham milhões de votos. Além dos seus sindicatos de massas, tinham milícias bem armadas que, no seu conjunto, tinham um milhão de pessoas. Não obstante, no momento da verdade, ficaram paralisados. Hitler pôde jactar-se em 1933 de ter tomado o poder sem partir um vidro".

Durante todo esse período, Trotsky exigiu insistentemente que os comunistas e social-democratas alemães formassem uma frente única contra os nazis. Seguindo a linha defendida por Stalin e pelo Comitern, os dirigentes do Partido Comunista Alemão deliberadamente dividiram o movimento operário, caracterizando os social-democratas de "social-fascistas", isto é, equiparando-os aos fascistas. As advertências de Trotsky aos membros dos partidos comunistas caíram em saco roto. A classe operária alemã estava dividida pela metade. Os dirigentes do PC alemão chegaram a lançar slogans como "golpear os pequenos Scheidemanns nas escolas", um convite aos filhos dos membros do PC a atacar os filhos dos social-democratas! Em 1931, quando os nazis organizaram um referendo para derrubar o governo social-democrata na Prússia, os comunistas juntaram-se-lhes, chamando-o de "referendo vermelho". A perniciosa política do "social-fascismo" teve como resultado o triunfo do nazismo na Alemanha e a total destruição das organizações operárias. Quer social-democratas, quer comunistas...

Estas loucuras foram aplicadas nos outros países. Na Grã-Bretanha, o PC abandonou a política de Frente Única. O seu dirigente, Harry Pollit, afirmou que pertencer ao Partido Trabalhista era "um crime equivalente a furar uma greve". Em consequência, O PC britânico perdeu quase todo o apoio que havia ganho. Em Espanha, o PCE ficou reduzido a menos de 1000 militantes em 1930.

A vitória de Hitler na Alemanha foi um ponto de inflexão qualitativo. Stalin não queria que Hitler ganhasse, como não queria a derrota da revolução chinesa de 1925-27, mas a sua política tornou inevitável a derrota em ambos os casos. Trotsky julgou que a vitória de Hitler, que ele previra com base na política do "social-fascismo", provocaria uma crise nos partidos comunistas. Mas em 1933 o processo de "estalinização" do Comitern tinha chegado a tal ponto que a vida interna estava asfixiada. Não houve nenhuma crise. Depois da maior derrota da classe operária em toda a história não se retirou nenhuma conclusão. Pelo contrário, os dirigentes estalinistas defenderam que Hitler era o prelúdio da revolução na Alemanha: "Depois de Hitler, Thaelmann" (Secretário Geral do PC alemão, assassinado mais tarde num campo de concentração). Trotsky concluiu que uma Internacional incapaz de reagir perante uma derrota desse calibre estava morta.

Posteriormente, seguindo as ordens de Stalin, a Internacional Comunista deu um giro de 180º e adoptou a política da "Frente Popular". Isto nada tinha em comum com a política leninista da Frente Única operária, mas representava um regresso às velhas políticas desacreditadas do menchevismo, baseada numa colaboração de classes com os liberais burgueses. Isto apenas levou a mais terríveis derrotas, especialmente em Espanha. Em 1943, Stalin, depois de ter cinicamente utilizado a Internacional Comunista como instrumento da política externa da burocracia russa, decidiu enterrá-la sem pompa nem glória, sem sequer convocar um Congresso. A herança política e organizacional de Lenine recebeu um duro golpe durante todo um período histórico.

A traição das ideias de Lenine por parte da burocracia estalinista na Rússia, a maior traição de toda a história do movimento operário, chegou agora à sua conclusão lógica: à destruição da URSS e ao intento da casta burocrática dirigente em ir em direcção ao capitalismo. Mas esta não será a última palavra. Na Rússia prepara-se uma enorme explosão social que, num futuro não muito distante, porá na ordem do dia um regresso às tradições de 1917. À escala mundial, a crise do capitalismo está a entrar numa etapa convulsiva. A revolução na Indonésia é só o primeiro acto de um drama que se desenrolará nos próximos meses e anos e encontrará um eco na Europa e no resto do mundo.

Crise do reformismo

Hoje em dia, quase 80 anos após a sua publicação, A doença infantil continua a ser um pilar fundamental de teoria e prática do marxismo na sua luta por ganhar as massas. A aparente vitalidade do reformismo de direita no período posterior à IIª Guerra Mundial, pelo menos nos países capitalistas avançados, foi simplesmente uma expressão do facto de que o capitalismo passou por um período prolongado de expansão, similar ao dos vinte anos que antecederam a Iª Guerra Mundial. Mas este período chegou ao fim. A crise na Ásia, a agonia prolongada do capitalismo japonês e o inevitável novo colapso que se prepara nas bolsas de valores anunciam um período novo e convulsivo à escala mundial. Nessas condições a consciência de milhões de pessoas transformar-se-á.

"De um ponto de vista histórico, o reformismo perdeu completamente a sua base social. Sem reformas não há reformismo, sem um capitalismo próspero não há reformas. A ala reformista de direita converter-se-á em anti-reformista no sentido em que ajuda a burguesia, directa ou indirectamente, a esmagar as velhas conquistas da classe operária". (Trotsky, Escritos, 1933-34.)

Sob certas condições a crise convulsiva do capitalismo, é impensável que as organizações tradicionais de massas da classe operária não se vejam afectadas. A tendência para a polarização entre as classes inevitavelmente encontrará a sua expressão numa crescente polarização à direita e à esquerda nos partidos socialistas e comunistas, dando lugar a convulsões internas, crises e cisões. Chegados a um certo ponto, este processo dará lugar a correntes reformistas de esquerda ou centristas com um carácter de massas. Para os marxistas, o termo "centrista" descreve uma tendência que está a meio caminho entre o reformismo de esquerda e o marxismo revolucionário. No período de 1917 a 1923 surgiram correntes centristas de massas na maioria dos partidos da Segunda Internacional formando as bases para a criação dos partidos de massas da Internacional Comunista.

Nesse momento, a existência de um poderoso polo de atracção que constituía a Revolução de Outubro significou que um grande número de operários avançados foram ganhos rapidamente para a bandeira do marxismo. No inicio dos anos 20, o problema de como chegar aos operários social-democratas resolveu-se com a política leninista de Frente Única. Esta táctica, que se resumia na expressão "marchar separados, mas golpear juntos", permitiu aos comunistas construir pontes até à base das organizações reformistas.

Durante um período de tempo, Portugal conseguiu uma taxa de crescimento relativamente alta. Mas este crescimento disfarça a situação real. A próxima recessão irá atingir Portugal mais duramente que ao resto da Europa, deixando cruamente a nu a debilidade do capitalismo português. Este facto será fundamental para o próximo capítulo da história do movimento. Nessas condições, o apoio às ideias do marxismo crescerá entre os trabalhadores avançados e a juventude. É necessário armar a nova geração com as ideias, métodos e tradições do marxismo, para que possamos aproveitar a situação e construir um movimento de massas capaz e decidido a levar adiante a transformação socialista da sociedade.


sábado, 3 de novembro de 2018

Para despedir-se de Domenico Losurdo




Falecido aos 77, filósofo italiano deixa legado para pensamento marxista. Aqui, as palavras finais de “O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer”, seu último livro


Por Domenico Losurdo, no Blog da Boitempo




Oriente e Ocidente: do cristianismo ao marxismo

Nascido no coração do Ocidente, com a Revolução de Outubro, o marxismo se difundiu por todo o mundo, penetrando com força em países e áreas em condições econômicas e sociais mais atrasadas e com uma cultura muito diferente. Tendo atrás de si a tradição judaico-cristã, o marxismo ocidental, como vimos, não poucas vezes evoca motivos messiânicos (a espera por um “comunismo” concebido e sentido como a resolução de todos os conflitos e contradições e, portanto, como uma espécie de fim da história). Mas o messianismo está francamente ausente numa cultura como a chinesa, em geral caracterizada, em seu desenvolvimento milenar, pela atenção reservada à realidade mundana e social.

A expansão planetária do marxismo é o início de um processo de distanciamento, que é a outra face de uma retumbante vitória. É aquilo que historicamente se verificou no caso das grandes religiões. No que se refere ao cristianismo, que não por acaso Engels insistentemente compara com o movimento socialista, a divisão entre ortodoxos, de um lado, e protestantes e católicos, de outro, corresponde, grosso modo, à divisão entre Ocidente e Oriente. A certa altura, entre o fim do século XVII e o início do século XVIII, o cristianismo parecia prestes a se expandir amplamente também no Oriente asiático: gozavam de grande prestígio e exerciam notável influência na China os missionários jesuítas, que levavam consigo conhecimentos médicos e científicos avançados e, ao mesmo tempo, se adaptavam à cultura do país que os hospedava, rendendo homenagem a Confúcio e ao culto dos antepassados.

Porém, diante da intervenção do papa em defesa da pureza originária da religião cristã-católica, o imperador chinês reagiu fechando as portas do Império do Meio aos missionários. O cristianismo era bem-vindo quando aceitava sua significação e promovia o desenvolvimento científico, social e humano do país em que era chamado a operar; era, no entanto, repelido como corpo estranho quando visto como uma religião que promovia uma salvação sobrenatural nem um pouco respeitosa com a cultura e os laços humanos e sociais vigentes no país em que se encontrava.

Algo semelhante aconteceu com o marxismo. Já com Mao, o Partido comunista chinês promoveu a “significação do marxismo” e com isso ganhou impulso para a luta de libertação do domínio colonial, para um desenvolvimento das forças produtivas capaz de possibilitar a realização da independência também no plano econômico e tecnológico, para o “rejuvenescimento” de uma nação de civilização milenar, submetida pelo colonialismo e pelo imperialismo ao “século de humilhações” iniciado com as guerras do ópio. Longe de ser negada, a perspectiva socialista e comunista é orgulhosamente proclamada pelos dirigentes da República Popular da China: tal perspectiva, porém, está despida de todo caráter messiânico; além disso, sua realização está ligada a um processo histórico muito longo, no decorrer do qual a emancipação social não pode ser separada da emancipação nacional. E, de novo, o repúdio provém do Ocidente, guardião da ortodoxia doutrinária, do marxismo ocidental.

Este, agora, fustiga o marxismo oriental, que é pintado como desprovido de credibilidade e, portanto, banal do ponto de vista de um marxismo fascinado pela beleza do futuro remoto e utópico que ele mesmo evoca, e cujo advento parece ser independente de qualquer condicionamento material (quer se trate da situação geopolítica ou do desenvolvimento das forças produtivas), por ser determinado exclusivamente ou de modo absolutamente prioritário pela vontade política revolucionária.

O desencanto, o distanciamento, a cisão de que aqui se fala não visam somente a China: seguido pelo marxismo ocidental com atenção partícipe e apaixonada enquanto opunha resistência épica a uma guerra colonial de décadas que teve como protagonistas, primeiro, a França, depois, os Estados Unidos, embora hoje quase sepultado no esquecimento, é o Vietnã que está empenhado na prosaica tarefa da edificação econômica. A própria Cuba já não suscita o entusiasmo dos anos em que lutava contra a agressão militar executada (sem sucesso) em 1961 e por longo tempo preparada por Washington. Agora que o perigo da intervenção militar passou a ser remoto, os dirigentes comunistas de Cuba almejam reforçar a independência no plano, também e sobretudo, econômico, e para alcançar esse resultado sentem-se obrigados a fazer algumas concessões ao mercado e à propriedade privada (inspirando-se de modo bastante cauteloso no modelo chinês). Pois bem, a ilha, que já não se assemelha à utopia em pleno desenvolvimento, mas se revela às voltas com as dificuldades próprias do processo de construção de uma sociedade pós-capitalista, mostra-se bem menos fascinante aos olhos dos marxistas ocidentais. Quando estava em seu estágio inicial, aquele da luta militar pela independência política, a revolução anticolonial raramente suscitou no marxismo ocidental a atenção empática e o interesse teórico que ela merecia; agora que a revolução anticolonial está em seu segundo estágio, o estágio da luta pela independência econômica e tecnológica, o marxismo ocidental reage com uma postura marcada pelo desinteresse, pelo desdém, pela hostilidade.

A cisão entre os dois marxismos se deu pela incapacidade do marxismo ocidental em reconhecer a guinada da guinada ocorrida no século XX. Enquanto se adensam as nuvens de uma nova grande tempestade bélica, tal cisão se mostra ainda mais lamentável. É hora de dar cabo dela. Naturalmente, nem por isso se dissiparão as diferenças que subsistem entre Oriente e Ocidente no que se refere à cultura, ao estágio do desenvolvimento econômico, social e político, e às tarefas a serem enfrentadas: no Oriente, a perspectiva socialista não pode abrir mão de concluir, em todos os níveis, a revolução anticolonial; no Ocidente, a perspectiva socialista passa pela luta contra um capitalismo que é sinônimo de aprofundamento da polarização social e de crescentes tentações militares.

No entanto, não vemos motivos para a transformação de tais diferenças em antagonismo. Sobretudo agora que a excomunhão do marxismo oriental pelo marxismo ocidental promoveu o fim, não do excomungado, mas do excomungador. A superação de todo comportamento doutrinário e a disponibilidade de se confrontar com o próprio tempo e de filosofar em vez de profetizar são a condição necessária para que o marxismo possa renascer e se desenvolver no Ocidente.

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Domenico Losurdo nasceu em 1941, na Itália, e foi Professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino. No Brasil lançou, pela Boitempo, A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense (2010), A luta de classes: uma história política e filosófica, Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917 (2017) e o mais recente O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer (2018).