País passou da fome que quase dizimou população rural à 2ª economia do mundo. Mas há desafios para exercer hegemonia: lidar com as crescentes insatisfações populares, o envelhecimento da população e apostar em soluções sustentáveis
No dia 01 de outubro de 1949, depois de uma longa marcha e do acúmulo de uma série de vitórias parciais, o líder do Exército de Libertação Popular e do Partido Comunista Chinês (PCC), Mao Tse-tung, proclamou, em Pequim, na Praça Tiananmen, a República Popular da China. Em seguida, Chiang Kai-shek, do kuomintang (Partido Nacionalista Chinês) se refugiou em Taiwan e proclamava a República da China.
Os 70 anos da Revolução Comunista na China, grosso modo, podem ser divididos em duas partes: um fracasso nos primeiros 30 anos e um sucesso nos 40 anos seguintes. Entre 1949 e 1979 a China viveu um período de grande turbulência, com muita fome, já que o povo chinês não foi “convidado para um jantar”.
Nas três primeiras décadas o gigante asiático se isolou do mundo, regrediu em termos econômicos e viveu três momentos cruciais: o “Grande salto para a frente”, a “Revolução Cultural” e a “Camarilha dos quatro”.
O “Grande salto para a frente” foi uma política lançada por Mao Tsé-Tung entre 1958 e 1960, que visava transformar a China Comunista em uma nação desenvolvida e socialmente igualitária em “um salto” (curto tempo), acelerando a industrialização urbana. Porém, o processo de industrialização fracassou, consumiu muitos recursos da área rural e provocou uma grande fome e uma das maiores mortalidades da história. As mortes ocorridas neste período são estimadas entre 20 e 50 milhões de óbitos, um número tão grande que provocou uma redução da esperança de vida da população mundial. Segundo a Penn World Table, a renda per capita da China, em poder de paridade de compra, era de US$ 883 em 1953 e caiu para US$ 834 em 1962.
A “Revolução Cultural” ocorreu principalmente na década de 1960 (mas se prolongou até a morte de Mao) e foi uma reação aos críticos da linha adotada pelo comitê do Partido Comunista e aos críticos do “Grande salto para a frente”. Para se manter no controle do Partido e do Estado, Mao Tse-tung incentivou o culto à personalidade e a difusão do “Livro Vermelho”, com citações de Mao. Os alvos da Revolução Cultural foram os membros do partido que mostravam alguma simpatia com o Ocidente ou com a União Soviética, a burocracia estatal, os intelectuais e todo o conhecimento consolidado e as políticas públicas na área de educação, saúde, etc. O sectarismo manteve a China pobre e isolada.
Depois da morte de Mao Tsé-Tung, em 9 de setembro de 1976, a chamada “Camarilha dos Quatro”, composta por Jiang Qing (esposa de Mao Tse-tung), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan, tentaram dar continuidade à Revolução Cultural e ao isolamento do país, mas foram derrotados, abrindo espaço para a ascensão das forças reformistas. Ainda segundo a Penn World Table, a renda per capita da China ficou praticamente estagnada entre 1966 e 1976, passando de US$ 1119 para US$ 1210. Nos primeiros 30 anos da Revolução, a renda per capita chinesa era uma das mais baixas do mundo.
Entre 1976 e 1978 o poder na China mudou de mãos e de orientação. O novo líder, Deng Xiaoping (1904-1997), assumiu as rédeas do PCC e introduziu uma série de reformas, que ficaram conhecidas como a “segunda revolução”, provocando uma completa transformação do país, que abandonou o coletivismo comunista e assumiu uma feição mista, conhecida como “Socialismo de mercado” ou “Capitalismo de Estado”. A partir de 1978 a China dá realmente um grande salto para a frente e se torna a primeira economia mundial (medida em poder de paridade de compra), transformando o experimento dos últimos 40 anos em o maior e mais rápido exemplo de sucesso da história econômica mundial. Em 2016, a renda per capita chinesa ultrapassou a renda per capita brasileira.
O gráfico abaixo, com dados do FMI, mostra como a China saiu de uma situação de irrelevância econômica, cresceu e deslocou os EUA da posição de maior economia do mundo. Em 1980, o PIB dos EUA representava 21,6% do PIB mundial, enquanto o PIB da China representava apenas 2,3% (os EUA tinham uma economia quase 10 vezes maior). O PIB do Brasil representava 4,4% da economia global (o PIB do Brasil era quase 2 vezes maior do que o da China). Mas o quadro mudou totalmente nos últimos 40 anos. Em 2014, a economia chinesa superou a economia americana e em 2020, o FMI estima que o PIB da China representará 19,7% do PIB mundial e o PIB dos EUA apenas 14,8%. Nunca na história um país galgou crescimento tão rápido e expressivo.
A renda per capita da China (em poder de paridade de compra, a preços constantes), em 1980, segundo dados do FMI, era de US$ 722 contra US$ 790,00 do Burundi, US$ 11,4 mil do Brasil e US$ 29,1 mil dos EUA. A renda per capita da população brasileira era 16 vezes maior do que a da população Chinesa e a americana era 40 vezes maior. Mas em 2020, a renda per capita chinesa (com US$ 18 mil) atinge um nível maior do que a renda per capita brasileira (US$ 14,8 mil), sendo que a dos EUA está em US$ 57,2 mil. Portanto, o chinês médio já ganha mais do que o brasileiro, embora tenha, atualmente, uma renda 3 vezes menor do que a do americano médio.
Em termos demográficos, a população da China era de pouco mais de meio bilhão de pessoas em 1950 e deve atingir o pico de 1,44 bilhão de habitantes em 2029. A partir de 2030 haverá decrescimento populacional e a China deve chegar em 2100 com uma população de pouco mais de 1 bilhão de pessoas. A população em idade ativa que estava em 1 bilhão de potenciais trabalhadores em 2015 já está em declínio e deve se reduzir para a metade até o final do século.
Quem dita o ritmo de crescimento e de redução populacional é a taxa total de fecundidade (TFT). O gráfico abaixo mostra que a TFT estava em 6 filhos por mulher na época da Revolução Comunista e caiu na década de 1950. Porém, com a alta mortalidade ocorrida na época do “Grande salto para a frente” e com o caos econômico, social e político ocorrido durante a “Revolução Cultural” a TFT voltou a subir e ficou em 6,5 filhos por mulher no quinquênio 1965-70.
Todavia, o alto crescimento demográfico dificultava a luta para a redução da pobreza e, no início dos anos de 1970, ainda na época de Mao Tse-tung, foi lançada a política “Mais Tarde, Mais Tempo e em Menor Número” (em chinês: “Wan, Xi, Shao” e em inglês: “later, longer, fewer”) que incentivava as mulheres a terem o primeiro filho em idades mais avançadas, que mantivessem um espaçamento maior entre os filhos e que limitasse o tamanho da prole, adotando um tamanho pequeno de família.
A política “Wan, Xi, Shao” foi um sucesso e a taxa de fecundidade caiu de mais de 6 filhos para menos de 3 filhos em 1980. Tudo indicava que a fecundidade continuaria caindo. Porém, um governo autoritário não costuma respeitar as livres escolhas e os direitos sexuais e reprodutivos. No bojo das reformas implementadas por Deng Xiaoping em dezembro de 1978, foi instituída a “Política de filho único”, a iniciativa controlista mais draconiana da história da humanidade.
Em consequência, mesmo com a maior parte da população vivendo no meio rural, a fecundidade continuou caindo e a TFT ficou abaixo do nível de reposição no quinquênio 1990-95 (com 1,9 filho por mulher) e se manteve ao redor de 1,6 filho por mulher entre 2000 e 2015. Ou seja, depois de cerca de 35 anos de “Política de filho único” a TFT chinesa permanece baixa e o número de nascimentos anuais caiu de pouco mais de 30 milhões no quinquênio 1965-70 para cerca de 17 milhões de bebês na atual década (2011-20).
Para o demógrafo Baochang Gu, embora tenha havido exceções, especialmente na zona rural e entre minorias étnicas, a regulamentação rigorosa do filho único foi mantida até novembro de 2013, quando se permitiu que um casal tivesse um segundo filho, no caso de algum dos cônjuges fosse filho único. Em outubro de 2015, foi permitido a todos os casais terem o segundo filho. Em 2018 foram eliminadas as restrições ao número de filhos desejados.
Contudo, a baixa taxa de fecundidade veio para ficar, pois a flexibilização não implicou em um surto de nascimentos. Em 2016, imediatamente depois que se permitiu o segundo filho, nasceram 17,9 milhões de crianças, de acordo com a Agência Nacional de Estatísticas. Apenas 1,3 milhão a mais do que em 2015 e metade do que o Governo previa. Já em 2017, o número de nascimentos foi ainda menor, 17,2 milhões de novos bebês, muito abaixo dos 20 milhões estimados pelas autoridades. Em 2018, o número de nascimentos voltou a cair.
O fato é que a China adotou o modelo de baixo crescimento demográfico e alto crescimento econômico, possibilitando o aumento da renda per capita e a retirada de cerca de 1 bilhão de pessoas da extrema pobreza. O crescimento foi tão espetacular que muita gente se refere aos últimos 40 anos como o “milagre chinês”.
Evidentemente, nem tudo são flores. O custo ambiental do sucesso chinês foi dramático. A China é o maior poluidor do Planeta e campeão absoluto da emissão de gases de efeito estufa. A Pegada Ecológica chinesa é muito mais elevada do que a Biocapacidade e o país tem um alto déficit ambiental. Problemas como o da febre suína (um vírus altamente contagioso, sem cura conhecida, e com uma taxa de sobrevivência quase nula para os porcos infectados) aconteceu na África e se espalhou na China, que é a maior produtora e consumidora de carne suína do mundo. O país é responsável por mais da metade da população global de porcos. O Departamento Nacional de Estatística do país diz que a população de porcos caiu em quase 40 milhões, para 375,3 milhões, em relação ao ano anterior, devido ao surto de febre suína. Mas a epidemia pode dizimar cerca de 200 milhões de porcos. Isso teria um impacto negativo sobre a economia chinesa, uma vez que os preços da carne suína contribuem de forma importante para seus níveis de inflação e os preços da carne suína na China poderão subir mais de 70% no segundo semestre deste ano. Isto poderá ser a centelha de muitas manifestações populares e, certamente, vai atrapalhar a festa dos 70 anos da Revolução Chinesa.
Em termos políticos a China é uma ditadura de partido único, com controle da mídia e com grande controle da Internet e das redes sociais. Em 1959, houve a intervenção no Tibete, que restringiu a autonomia local e provocou o exílio do líder espiritual Dalai Lama, há 60 anos. Em 1989, o governo de Pequim reprimiu violentamente as manifestações populares na Praça Tiananmen. Na China não há liberdade religiosa e diversas religiões sofrem com a repressão do Estado. Os povos Uigures, de Xinjian, uma minoria muçulmana que fala um idioma próximo do turco, têm denunciado que um milhão de pessoas estavam sendo tratadas como “inimigos do estado”, sendo vítimas de “aprisionamento em massa” em “centros de contra extremismo”.
Agora em 2019, o PCC ameaça reprimir as manifestações populares em Hong Kong. Quatro meses de espetaculares manifestações na ilha estão atrapalhando os preparativos para a festa dos 70 anos da Revolução. Cerca de 20% da população de Hong Kong (mais de 1,5 milhão de pessoas) foram para as ruas no dia 18 de agosto, pedindo democracia e mostrando que não será fácil esmagar as manifestações democráticas. A situação se agrava especialmente para os honcongueses que não querem ser plenamente chineses. A despeito da riqueza de Hong Kong, tudo está cada vez mais caro na cidade, a desigualdade social aumenta e os jovens sofrem com a falta de mobilidade social ascendente. Acima de tudo, a população de Hong Kong não aceita o modelo autoritário da República Popular da China.
A linha dura de Xi Jinping em relação a Hong Kong acende o alerta para o caso de Taiwan e reduz ainda mais a chance de uma unificação pacífica das duas Chinas. A China continental parece abandonar seus esforços para conquistar corações e mentes em Taiwan e incrementou constantemente suas capacidades militares, gerando medo que possam ser usadas. Isto provocaria uma guerra com os EUA, jogando as duas potências na Armadilha de Tucídides.
Cabe ressaltar, que apesar de todo o progresso econômico – embora com restrição da liberdade individual e ameaça de um conflito internacional – a China ainda é um país de renda média e pode apresentar dificuldade para dar o salto para um país de renda alta. O envelhecimento populacional e o fim do bônus demográfico vão dificultar a continuidade do crescimento econômico nas próximas décadas, enquanto cresce no mundo as resistências contra as políticas mercantilistas do país. O cenário é de dificuldades internas e externas.
Contudo, o governo de Xi Jinping deseja comemorar os 100 anos do PCC em 2021 e tem um plano para fazer da China o país mais avançado do mundo até 2049, quando do aniversário de 100 anos da Revolução Comunista (ver figura abaixo). O plano tem parte de uma realidade que o país já é a fábrica do mundo e a campeã da produção de bens manufaturados. Com a política “Made in China 2025” o país pretende alcançar a produção de bens mais sofisticados e de maior valor agregado, se igualando na liderança da ciência e da tecnologia. Até 2035, a China pretende se destacar entre as grandes economias mundiais. Em 2049, o “Império do Meio” pretende liderar o mundo no conjunto das manufaturas e no que há de mais avançado na ciência e tecnologia.
Todavia, o caminho para a hegemonia global não será fácil, pois haverá pressões externas e internas. A guerra comercial e cambial entre os EUA e a China é só uma parte do problema que ocorre com a ascensão da China no cenário do poder mundial. Internamente, existem muitas manifestações contra o autoritarismo e o centralismo do PCC. O desacoplamento da “Chimerica” vai trazer dificuldades. O desequilíbrio na razão de sexo deixou milhões de homens sem parceiras na idade de casar e o envelhecimento populacional será muito rápido e intenso, aumentando a razão de dependência demográfica.
Enfim, os 70 anos da Revolução Chinesa foram marcados por muito sofrimento (de 1949 a 1978) e por muito progresso (entre 1978 a 2019). A China tem mostrado vontade e capacidade para deixar para trás a miséria e o subdesenvolvimento. O país tem demonstrado determinação para realizar grandes obras, como a do novo Aeroporto Internacional de Pequim-Daxing – conhecido como estrela-do-mar, inaugurado uma semana antes da data de aniversário dos 70 anos da Revolução de 1949. Mas o caminho para se tornar uma potência internacional, com alto padrão de vida para a população e com respeito ao meio ambiente não será tranquilo e sem obstáculos.
A China adota o modelo conhecido como “Consenso de Beijing” que se opõe ao modelo liberal conhecido como “Consenso de Washington”. Até recentemente os cientistas políticos consideravam que um país só atinge alto nível de desenvolvimento socioeconômico se adotar os princípios do regime democrático. Porém, a China está prestes a se tornar um país desenvolvido e com liderança tecnológica, mesmo sendo um regime autoritário e com alto grau de controle da mídia e das redes sociais.
O Império Soviético também comemorou 70 anos. Mas caiu logo em seguida. Contudo, o “Império do Meio” Vermelho pensa no longo prazo e já vislumbra um horizonte de sucesso em 2049, nos 100 anos da Revolução Comunista Chinesa. Resta saber se conseguirão chegar aos píncaros sem grandes atritos com a comunidade internacional, sem grandes revoltas no território nacional e sem a destruição da base ecológica, que é a condição necessária para o florescimento de qualquer civilização.
Referências:
ALVES, JED. A ascensão da China, a disputa pela Eurásia e a Armadilha de Tucídides. Entrevista especial com José Eustáquio Diniz Alves, IHU, Patrícia Fachin, 21 Junho 2018
ALVES, JED. China, nova potência mundial Contradições e lógicas que vêm transformando o país. Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), China, nova potência mundial: Contradições e lógicas que vêm transformando o país. São Leopoldo, Nº 528, Ano XVIII, 17/9/2018 pp 51-58