domingo, 24 de março de 2019

Bolsonarismo importa dos EUA teoria conspiratória sobre marxismo cultural





Por Maurício Meireles – Tese diz que esquerda se infiltrou nas artes, imprensa e outras instituições para destruir a civilização ocidental por dentro.

Fábricas e fazendas não estão mais com nada. O grande movimento da esquerda agora, em vez de buscar o poder pelas armas, seria a luta no campo da cultura —apropriando-se, pouco a pouco, de instituições como as escolas, universidades, editoras e a imprensa, além das artes e do entretenimento.

O objetivo, para a nova direita que chegou ao poder com a eleição de Bolsonaro, é muito claro: destruir a civilização ocidental e seus valores, algo impossível apenas com o controle dos meios de produção.

Marxismo cultural

Essa revolução discreta, segundo esse ponto de vista, vinha pisando leve e falando baixo há quase um século. Por isso ninguém percebeu.

A esse alegado veneno —de inoculação lenta, mas igualmente mortífero— a nova direita dá o nome de “marxismo cultural”, o braço do globalismo na cultura. Com a ascensão do novo presidente, essa expressão passa a se espalhar de forma mais intensa.

Não se trata de uma jabuticaba. O conceito chegou ao Brasil importado dos Estados Unidos. Aqui, foi disseminado especialmente pelo escritor Olavo de Carvalho, que, de sua casa nos EUA, alimenta intelectualmente as novas lideranças da direita no país.

Não é por acaso que, dentro do governo, os ministros da Educação e das Relações Exteriores —os dois indicados pelo escritor— falam em exorcizar o marxismo cultural em suas respectivas áreas. Nos discursos de outras lideranças conservadoras pelo mundo, em países como a Hungria, a Itália e a Polônia, a ideia também corre solta.

O conceito ganhou bastante visibilidade em 2011, quando o extremista Anders Behring Breivik matou 69 pessoas na Noruega. Na ocasião, o atirador publicou um manifesto que, entre outros pontos, acusava uma conspiração dos marxistas culturais.

Para a esquerda, tudo não passa disso, uma teoria da conspiração. As notas de rodapé do discurso bolsonarista, contudo, indicam de onde a direita tirou essa ideia. E ela é uma cópia das crenças dos conservadores americanos —esse marxismo que não diz seu nome seria criação dos intelectuais da Escola de Frankfurt, instituto de pesquisa criado na Alemanha em 1923.

O novo diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, Murilo Resende, por exemplo, tem em seu blog “A Escola de Frankfurt – Satanismo, Feiura e Revolução”, tradução de um texto famoso sobre o tema, citado por Breivik no seu manifesto. Já o procurador da República Guilherme Schelb, que foi cotado para o MEC, tem falado em palestras e entrevistas sobre Herbert Marcuse, um dos intelectuais do grupo.

“Essa turma nunca leu esses autores, pegam tudo de orelhada”, diz o cientista político Renato Lessa. “Sequer leram o [ensaísta liberal] José Guilherme Merquior, que fez um livro excelente sobre a Escola de Frankfurt. O que caracteriza essa turma é uma ignorância cultural muito grande.”

O grupo alemão se forma em um momento no qual a esquerda tentava entender por que raios os proletários do mundo não tinham imitado os soviéticos e, na Alemanha, tinham até aderido ao nazismo.

Adorno, Horkheimer, o próprio Marcuse e outros, todos judeus, fugiram para os Estados Unidos com a ascensão de Hitler. Lá, diz a direita, não só tentam destruir a sociedade que os acolheu como exportam suas ideias malévolas para o mundo todo.

O espetáculo 'A Mulher do Trem', do grupo os Fofos Encenam, teve sua sessão cancelada após ser acusada de estimular o racismo. Um evento organizado no Facebook pedia repúdio à peça, que faz uso do blackface: maquiagem de rosto preta, disseminada no século 19 para representar personagens negros. 

A performance "La Bête" foi acusada de incitação à pedofilia. Nela, o corpo nu do coreógrafo carioca Wagner
Schwartz poderia ser tocado pelo público. Na ocasião, uma criança que estava entre os espectadores interagiu
com o artista, tocando em sua perna e em sua mão

E o Brasil com isso? Basta lembrar as últimas polêmicas no campo da cultura e dos costumes —Queermuseu, Escola sem Partido, ideologia de gênero, meninas vestem rosa e meninos, azul. Em todas elas, a direita parte do princípio de que a esquerda tenta corroer a civilização judaico-cristã por dentro.

Os militantes identitários —feministas, negros e gays—, que defendem a representatividade em obras de arte, seriam agentes do marxismo cultural. Desejariam levar sua agenda adiante, questionando instituições como a família nuclear e pregando uma moral sexual degenerada.

A revisão que esses grupos tentam promover nos cânones da cultura ocidental —na literatura, por exemplo, tentando incluir negros e mulheres— é lida pela mesma chave. O politicamente correto faria parte da mesma barafunda.

“Nenhuma bibliografia séria trata esses autores como parte de algo chamado marxismo cultural. O Brasil está imitando uma certa direita paranoica americana”, diz Eduardo Wolf, doutor em filosofia pela USP, que lança em março um livro sobre guerras culturais e tem um capítulo sobre o assunto.

Não é mentira que exista uma tradição na esquerda que trata da crítica dos valores da sociedade capitalista —ou que defende a disputa pelas instituições culturais.

O comunista italiano Gramsci, outro a quem os conservadores atribuem culpa em uma tramoia mundial, falava em conquista da hegemonia. O próprio Marcuse, ídolo da contracultura nos anos 1960 e amado por Hélio Oiticica, defendeu o poder subversivo da libertação sexual na época.

A novidade com a direita americana dos anos 1990 é a teoria da conspiração, a ideia de um grande movimento orquestrado, que vê jornais, Hollywood e outros espaços como locais cheios de marxistas mexendo as cordas do mundo.

O conservador americano William S. Lind, em um breve documentário chamado “The History of Political Correctness” (a história do politicamente correto), de 1999, resumiu toda a tese, enquanto tentava explicar como a América tinha sido seduzida pelo politicamente correto —levado a cabo por feministas, gays e outros militantes de esquerda.

A tese se espalhou tanto que virou moda militantes mais exaltados acusarem o trilhardário George Soros como financiador do marxismo cultural —tanto que a universidade que criou na Hungria está sendo expulsa do país pelo presidente Viktor Orbán.

Wolf acredita que haja sim uma hegemonia de esquerda na intelectualidade, ou no circuito das artes e da comunicação —mas acrescenta que há outros fatores que contribuem para tal, como afinidades intelectuais ou pessoais.

“A esquerda recusa, de uma só vez, tanto as teorias conspiratórias do ‘marxismo cultural’ nas instituições quanto a [ideia de que tenha] uma hegemonia avassaladora. Isso se deu por várias razões, de modo complexo. Negar esse predomínio de esquerda só alimenta o discurso paranoico da direita conspiratória.”

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/bolsonarismo-importa-dos-eua-teoria-conspiratoria-sobre-marxismo-cultural.shtml


terça-feira, 19 de março de 2019

A luta de classes em tempos de crise estrutural



Wallerstein alerta: lutas sociais e políticas serão cada vez mais selvagens; e esquerda só vencerá se souber combinar a conquista do poder de Estado (para evitar o pior) com uma transformação cultural de enorme radicalidade





Por Immanuel Wallerstein| Imagem: François Bard, Recuo Necessário (2018)



As lutas de classes são eternas, mas a maneira de travá-las depende do estado do Sistema-Mundo em que elas se desenvolvem.

Os Sistemas-Mundo têm três temporalidades. Eles formam-se – e isso precisa ser explicado. Depois, eles transformam-se em estruturas estabilizadas e operam segundo as regras sobre as quais são formados. Numa terceira fase, as regras por meio das quais mantêm sua relativa estabilidade deixam de agir de modo efetivo – e eles entram numa crise estrutural.

Estamos vivendo no Sistema-Mundo moderno, que é capitalista. Estamos agora na terceira fase de sua existência, a da crise estrutural.

Na fase anterior, a das estruturas estabilizadas ou da normalidade, havia um grande debate no interior da esquerda, sobre como seria possível realizar o objetivo de destruir o capitalismo como sistema. Este debate se deu tanto nos movimentos criados pela classe trabalhadora ou proletariado (entre eles, os sindicatos e partidos de esquerda) e dentro dos partidos nacionalistas e movimentos de libertação nacional.

Cada lado deste grande debate acreditava que sua estratégia – e só ela – poderia ter êxito. Na verdade, embora cada lado criasse zonas nas quais parecia ser bem-sucedido, nenhum deles o fez. Os exemplos mais dramáticos de histórias de sucesso presumido que não foram capazes de evitar uma volta da normalidade foram o colapso da União Soviética e o colapso da Revolução Cultural maoísta.

O ponto de virada foi a revolução mundial de 1968, marcada por três aspectos. Foi uma revolução mundial no sentido de que eventos análogoso ocorreram em dististas partes do Sistema-Mundo. Todos eles rejeitavam tanto a estratégia orientada para a conquista do Estado quanto a gradualista e cultural. Tratava-se, diziam, não de uma questão de se/ou, mas sim de e e ambas.

Ao fim, também a revolução de 1968 fracassou. Apesar disso, ela foi capaz de levar ao fim a hegemonia do liberalismo centrista e seu poder de controlar tanto a esquerda e a direita, às quais foi permitido voltar à luta como atores independentes.

No início, a direita ressuscitada pareceu prevalecer. Ela instituiu o Consenso de Washington e lançou o slogan TINA (“não há alternativa”). Mas as desigualdades sociais e de renda tornaram-se tão extremas que a esquerda resssurgiu e restringiu a capacidade dos Estados Unidos em manter ou restaurar sua dominação.

A volta da esquerda a um papel de destaque também terminou. E assim começou um processo de mudanças selvagens, um elemento definidor das crises estruturais. Nelas, a esquerda precisa construir uma política de buscar, no curtíssimo prazo, o poder de Estado, para minimizar a dor dos 99% da população. Mas, ao mesmo tempo (“e”), no médio prazo, perseguir uma grande transformação cultural de todos.

Estes objetivos aparentemente contraditórios são muito desconcertantes. São, porém, o único meio de travar a luta de classes, nos anos que restam da crise estrutura. Se pudermos fazê-lo, podemos vencer. Se não, sucumbiremos.


domingo, 10 de março de 2019

A ilusão do sufrágio universal



Por Mikhail Bakunin



Os homens acreditavam que o estabelecimento do sufrágio universal garantia a liberdade dos povos. Mas infelizmente esta era uma grande ilusão e a compreensão da ilusão, em muitos lugares, levou à queda e à desmoralização do partido radical. Os radicais não queriam enganar o povo, pelo menos assim asseguram as obras liberais, mas neste caso eles próprios foram enganados. Eles estavam firmemente convencidos quando prometeram ao povo a liberdade através do sufrágio universal. Inspirados por essa convicção, eles puderam sublevar as massas e derrubar os governos aristocráticos estabelecidos. 


Hoje depois de aprender com a experiência, e com a política do poder, os radicais perderam a fé em si mesmos e em seus princípios derrotados e corruptos. Mas tudo parecia tão natural e tão simples: uma vez que os poderes legislativo e executivo emanavam diretamente de uma eleição popular, não se tornariam a pura expressão da vontade popular e não produziriam a liberdade e o bem-estar entre a população? 

Toda decepção com o sistema representativo está na ilusão de que um governo e uma legislação surgidos de uma eleição popular deve e pode representar a verdadeira vontade do povo. Instintiva e inevitavelmente, o povo espera duas coisas: a maior prosperidade possível combinada com a maior liberdade de movimento e de ação. Isto significa a melhor organização dos interesses econômicos populares, e a completa ausência de qualquer organização política ou de poder, já que toda organização política se destina à negação da liberdade. Estes são os desejos básicos do povo. Os instintos dos governantes, sejam legisladores ou executores das leis, são diametricamente opostos por estarem numa posição excepcional. 

Por mais democráticos que sejam seus sentimentos e suas intenções, atingida uma certa elevação de posto, veem a sociedade da mesma forma que um professor vê seus alunos, e entre o professor e os alunos não há igualdade. De um lado, há o sentimento de superioridade, inevitavelmente provocado pela posição de superioridade que decorre da superioridade do professor, exercite ele o poder legislativo ou executivo. Quem fala de poder político, fala de dominação. 

Quando existe dominação, uma grande parcela da sociedade é dominada e os que são dominados geralmente detestam os que dominam, enquanto estes não têm outra escolha, a não ser subjugar e oprimir aqueles que dominam. Esta é a eterna história do saber, desde que o poder surgiu no mundo. Isto é, o que também explica como e porque os democratas mais radicais, os rebeldes mais violentos se tornam os conservadores mais cautelosos assim que obtêm o poder. Tais retratações são geralmente consideradas atos de traição, mas isto é um erro. 

A causa principal é apenas a mudança de posição e, portanto, de perspectiva. Na suíça, assim como em outros lugares, a classe governante é completamente diferente e separada da massa dos governados. Aqui, apesar da constituição política ser igualitária, é a burguesia que governa, e é o povo, operários e camponeses, que obedecem suas leis. O povo não tem tempo livre ou educação necessária para se ocupar do governo. Já que a burguesia tem ambos, ela tem de ato, se não por direito, privilégio exclusivo. Portanto, na Suíça, como em outros países a igualdade política é apenas uma ficção pueril, uma mentira. Separada como está do povo, por circunstâncias sociais e econômicas, como pode a burguesia expressar, nas leis e no governo, os sentimentos, as ideias, e a vontade do povo? É possível, e a experiência diária prova isto. 

Na legislação e no governo, a burguesia é dirigida principalmente por seus próprios interesses e preconceitos, sem levar em conta os interesses do povo. É verdade que todos os nossos legisladores, assim como todos os membros dos governos cantonais são eleitos, direta ou indiretamente, pelo povo. É verdade que, em dia de eleição, mesmo a burguesia mais orgulhosa, se tiver ambição política, deve curvar-se diante de sua Majestade, a Soberania Popular. Mas, terminada a eleição, o povo volta ao trabalho, e a burguesia, a seus lucrativos negócios e às intrigas políticas. 

Não se encontram e não se reconhecem mais. Como se pode esperar que o povo, oprimido pelo trabalho e ignorante da maioria dos problemas, supervisione as ações de seus representantes? Na realidade, o controle exercido pelos eleitores aos seus representantes eleitos é pura ficção, já que no sistema representativo, o controle popular é apenas uma garantia da liberdade do povo, é evidente que tal liberdade não é mais do que ficção.