Socialista, católico, nacionalista:
textos de James Connolly chegam ao Brasil pela primeira vez
Retrato de Mike O'Dea |
Em 24 de abril de 1916, durante a Semana Santa, centenas de irlandeses se levantaram em armas, ocuparam pontos-chaves da cidade de Dublin e proclamaram a independência da Irlanda frente ao domínio britânico. A "Revolta de Páscoa" ou "Levante de Páscoa", como o episódio ficou conhecido, acabou derrotada seis dias depois. Mais de 60 rebeldes foram mortos em combate, e 16 foram executados.
Dentre eles estava James Connolly, um dos líderes do Comitê Militar que, severamente ferido pelos combates, ficou impossibilitado de ficar de pé frente ao pelotão de fuzilamento e foi levado para a morte em uma maca e supliciado amarrado a uma cadeira.
"Apesar James Connolly ser um dos mais importantes líderes socialistas do século 20 - quando seu filho visitou Lênin na Rússia, com quem seu pai trocou inúmeras cartas, em 1922, alguns jornais soviéticos o descreviam como o 'Lênin irlandês' - ele é um ilustre desconhecido no Brasil. Suas obras nunca foram publicadas em português, e mesmo na internet é raro encontrar seus artigos traduzidos. É por isso que o publicamos", diz Pedro Marin, editor da Baioneta, que acaba de lançar uma coletânea de artigos do líder irlandês, Socialismo e Religião.
"Um dos aspectos interessantes da obra é que ela é bastante anterior à Conferência de Medellín e à explosão da Teologia da Libertação na América Latina. Como na Irlanda a religião se desenvolveu como um vetor social e político na separação das identidades dos colonizados irlandeses e dos ocupantes britânicos, um debate político forte sempre foi feito ao redor dela", completa.
O livro reúne sete textos de Connolly - dentre eles "Trabalho, Nacionalidade e Religião", publicado como livro em 1910, e "As Crianças, o Sindicato dos Trabalhadores e Transportes Irlandeses e o Arcebispo", escrito durante o Locaute de Dublin, em 1913 - em que o fundador do Partido Socialista Republicano Irlandês e do Exército Cidadão Irlandês, ele mesmo um católico, debate a relação entre religião, socialismo e a formação política da Irlanda.
Por vezes, os embates públicos são feitos até com clérigos: "Essa atividade política no passado, como a oposição clerical ao socialismo no presente, era e é uma tentativa de servir a Deus e a Mammon - uma tentativa de combinar os serviços d’Ele que em Sua humildade montou um jumento, com o serviço daqueles que montaram cavalos com ferraduras para passar por cima dos corações e almas e esperanças da humanidade sofredora", responde Connolly ao padre Robert Kane em um dos artigos.
O livro foi lançado durante o V Salão do Livro Político, em São Paulo, e já está à venda no site da editora.
Confira o prólogo, assinado por Pedro Marin:
James Connolly nasceu em 5 junho de 1868. Sua vida deu lição de sua grandeza: começou a trabalhar aos onze anos, se alistou no Exército Britânico aos quatorze, falsificando seus documentos, e pelos seus vinte se tornou socialista. Em maio de 1896, fundou o Partido Socialista Republicano Irlandês (IRSP). Participou ativamente do “Locaute de Dublin”, em 1913, que durou seis meses e envolveu 20 mil trabalhadores, e neste mesmo ano, em resposta ao locaute, fundou o Exército Cidadão Irlandês (ICA), um grupo armado e bem treinado com o fim de defender os trabalhadores da brutalidade da Policia Metropolitana de Dublin.
Em 24 de abril de 1916, Connolly comandou a Brigada de Dublin durante a Revolta de Páscoa, que tomou a Irlanda por seis dias de combate por sua independência, no mais importante movimento irlandês desde a rebelião de 1798. Foi em função dessa Revolta que, amarrado a uma cadeira, James Connolly foi fuzilado em 12 de maio de 1916, aos 47 anos de idade, sem poder ver triunfar a primeira revolução socialista da historia, que explodiria na Rússia no ano seguinte.
Apesar de uma vida tão devota à causa da independência de seu país, e a despeito de ter sido um dos mais importantes lideres socialistas do seculo 20, James Connolly é um desconhecido no Brasil. Seus escritos nunca foram publicados, e mesmo na internet traduções são escassas. Isso é o que nos inspira a publicá-lo.
Mas o que motiva o tema dessa primeira coletanea de James Connolly, sobre socialismo e religião, é um fato trivial: além de todas as condições expostas acima, Connolly era também religioso. Mais especificamente, católico. Durante os ritos antes de sua morte, realizados pelo frade capuchinho Aloysius Travers, Connolly declarou, frente a um pedido de que rezasse pelos seus capatazes: “eu rezarei em nome de todo homem que faça suas obrigações de acordo com suas luzes”.
Assim, a fim de impedir ações injustas, realizadas por falta de clareza, pretendemos com esse livro, antes de tudo, jogar novas luzes sobre o socialismo para aqueles que têm fé. Muitas das acusações presentes hoje no mundo religioso contra a doutrina socialista remontam, de fato, ao século passado. E Connolly as respondeu, uma por uma, como socialista - mas também como catolico. Sua escrita aguçada, sua preocupação com seu povo e nação, seu conhecimento historico e teológico, e, acima de tudo, seu senso de honra - demonstrado na frase proferida antes de seu vil fuzilamento - sem dúvidas será um grande alumiar para os corações e mentes que creem, independente do credo.
Em segundo lugar, o publicamos para dar prova, agora aos socialistas, de que a fé de um homem não necessariamente implica em um distanciamento com os flagelos terrenos, e por muitas vezes é na verdade a “raiz moral” para a ação contra eles. Assim, não deve nunca ser desprezada, como Connolly demonstra.
Os escritos aqui coletados estão apresentados por ordem histórica, do mais antigo ao mais novo. Damos especial atenção a “Trabalho, Nacionalidade e Religião”, livro que Connolly publicou em 1910, respondendo ao padre Kane. Ali está a prova maior de seus conhecimentos teológicos e históricos, e de sua capacidade argumentativa.
Também destacamos “Socialismo e Religião: O desconhecido e o incognoscivel”, que inspira o titulo desta coletanea, e que, escrito em 1899, aclara questões vigentes ainda hoje quando tratamos dos temas. Por fim, ressaltamos a importância de “As Crianças, o Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Irlandeses e o Arcebispo”, escrito no decorrer do Locaute de 1913, e onde fica claro o senso de honra e a disposição revolucionaria do autor, que declara: “Sua Graça, nós estamos determinados para lutar até contra a morte - a morte da qual alguns de nós já sofremos, a morte para a qual o seu humilde servo olhou na face sem pestanejar. Seria preferivel entregar novamente os trabalhadores de Dublin ao inferno da escravidão da qual eles estão emergindo. Sua graça, nós vamos lutar!”
FONTE: Correio da Cidadania