domingo, 24 de novembro de 2019

A mensagem que Rosa Luxemburgo deixa para as mulheres do século XXI


A Rosa Luxemburgo de carne e osso não era uma 'santa comunista', mas uma mulher divertida, ousada, à frente de seu tempo, que rechaçava o espartilho, controlava seu corpo para não ficar grávida e conquistou sua liberdade com muita luta e sacrifício. Ela sabia que liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade

                                     


Por Isabel Loureiro | Tradução: Mauro Lopes, Outras Palavras

Por que em um momento de derrota da esquerda na América Latina e em todo o mundo ainda falamos de Rosa Luxemburgo? O que fez essa revolucionária judia-polaca-alemã para que, cem anos depois de seu assassinato, em janeiro de 1919, suas ideias ainda nos interpelem?

Ainda que brevemente é preciso dizer que Rosa militou durante 20 anos na social-democracia da Polônia (SDKPiL) e na social-democracia da Alemanha; polemizou toda a vida com Lênin; participou ativamente da revolução russa de 1905; foi a única mulher a ser professora de Economia Política na Escola do SPD (Partido Social-Democrata Alemão); junto com seus pares da ala esquerda do SPD, fundou a Liga Spartakus –nome em homenagem ao gladiador de origem trácia que liderou uma revolta de massas na Roma antiga; passou toda a guerra na prisão, onde escreveu cartas de tom lírico a seus amigos e amores; saiu da prisão em novembro de 1918 e se converteu em líder da revolução alemã; em fins de dezembro de 1918 tornou-se uma das cofundadoras do KPD (Partido Comunista da Alemanha); foi assassinada em 15 de janeiro de 1919 por tropas paramilitares, os Freikorps, precursores dos nazistas. Seus assassinos tiveram penas leves e viveram tranquilamente na Alemanha nazista.

A recepção a suas ideias no século XX foi muito controvertida. Em vida, Rosa sofreu seguidos ataques machistas de seus companheiros de partido, que tinham medo de sua língua mordaz e de sua liberdade de espírito. Referiam-se a ela como “materialista histérica” ou “cadela venenosa, porém brilhante” (Víctor Adler); quando foi nomeada redatora chefe de um importante jornal social-democrata, enfrentou uma quase rebelião dos colegas jornalistas que duvidavam de sua competência, pelo fato de ser mulher; os conservadores alemães chamavam-na de “porca judia”; na Polônia, sua terra natal, é odiada até hoje; em 2001, quando a prefeitura de esquerda de Berlim propôs a construção de um monumento em sua homenagem, houve uma verdadeira chuva de críticas na imprensa e ataques de cunho machista, embora de maneira mais sutil: ela nunca recebeu uma proposta de casamento de seus amantes e nunca teve filhos, que era um desejo explícito. Quem questionaria um homem dessa maneira, revolvendo sua vida privada?

Além das críticas machistas, existiam aquelas de caráter político, que começaram com Lênin, continuaram no âmbito do KPD – Partido Comunista da Alemanha – e chegaram ao paroxismo com o stalinismo, que procurou extirpar sua memória do campo da esquerda. Um dirigente do KPD, disse em 1932, abertamente: “Em todas as questões nas quais RL tinha uma concepção diferente da de Lênin, ela estava errada.” Porém, a tentativa de matar sua memória foi em vão.

Rosa sobreviveu subterraneamente, até ser redescoberta nos anos 1970 quando suas obras completas começaram a ser publicadas na República Democrática Alemã: escritos políticos, teóricos e cartas.

É um fato: Rosa sempre reaparece em momentos de crise da esquerda. Isso aconteceu no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial; na Europa, durante a rebelião de 1968; no movimento Occupy; no Brasil novamente no ano passado, durante o movimento de ocupações das escolas, quando voltamos a viver um “momento Rosa Luxemburgo”. Por que isso acontece?

Vejamos rapidamente algumas de suas ideias políticas para entender: a defesa intransigente das liberdades democráticas em todas as sociedades e em todos os tempos; a crítica incisiva à concepção de um partido de vanguarda formado por um núcleo duro de revolucionários profissionais separados das bases, cuja função seria liderar as massas populares que, por sua vez, limitar-se-iam a obedecer ao comando superior; a defesa incondicional da formação política e intelectual das classes subalternas, que ela via como pré-requisito para sua autonomia política; e, finalmente, uma ideia que está na ordem do dia, a da espontaneidade das massas populares. Ou seja, a ideia de que as camadas subalternas da sociedade entram em movimento independentemente das palavras de ordem dadas por líderes partidários ou sindicais e que a organização se estrutura a partir da própria luta, cotidiana e/ou revolucionária. Mas Rosa também sabia que a espontaneidade sozinha não resolve tudo, que o trabalho organizativo é fundamental para estruturar as explosões de energia que brilham esporadicamente no céu cinzento da vida cotidiana.

Para dizer em poucas palavras, penso que o mais atraente para um leitor contemporâneo no pensamento de Rosa Luxemburgo é sua defesa apaixonada da liberdade, tanto pública como individual. Para Rosa, não existe sociedade livre sem indivíduos livres, conscientes, não manipulados, seja por líderes políticos, pelas mídias, pela propaganda, ou, no plano individual, por suas paixões e fantasmas.

Rosa é filha da Aufklärung (iluminismo), como todo o marxismo. Esse era seu mundo e seu limite. Porém, em que pese o fato de hoje sabermos que não bastam declarações racionalizadas, creio que ela tinha razão em acreditar que não existe a possibilidade de virar a página sem a iniciativa e a participação consciente dos debaixo, dos que mais sofrem com a desigualdade econômica, social e política engendrada pelo capitalismo.

Há igualmente outra ideia de Rosa que nos atrai até hoje e que aparece no ensaio A crise da social-democracia (1916). Neste amargo balanço do processo de decomposição da social-democracia alemã – que culminou com a aprovação dos créditos de guerra pela bancada do SPD em 4 de agosto de 1914 –, Rosa colocou em questão pela primeira vez o ingênuo conceito de progresso, típico da II Internacional. Para os socialistas hegemônicos da época, essa ideia traduzia-se na crença de que o socialismo resultaria, cedo ou tarde, das contradições imanentes ao modo de produção capitalista. No ensaio, um de seus melhores, Rosa pôs na ordem do dia a famosa consigna socialismo ou barbárie, dando a entender que o socialismo não era mais uma garantia mas uma aposta. E essa aposta só pode ser vencida si houver o compromisso ativo das classes subalternas, aqui e agora, contra a barbárie. Esta é a interpretação Michael Löwy, com que estou totalmente de acordo.

Também é digna de nota sua obra de economia política na qual apresenta elementos de uma visão terceiromundista que é muito frutífera para a América Latina. Segundo Rosa, a acumulação do capital, para além da apropriação da mais valia, só foi e é possível com o intercâmbio entre economias capitalistas e não capitalistas. Tal intercâmbio continua até hoje e é uma descrição válida do processo de desenvolvimento histórico do capitalismo como processo global e, consequentemente, uma boa descrição da destruição violenta das culturas e dos espaços não capitalistas. Tal processo violento de acumulação primitiva permanente (acumulação por expropriação, para Harvey), além dos métodos tradicionais de expropiação territorial, consiste também na conversão de antigos direitos em mercadorias.

Rosa enfatizou a violência com que as culturas primitivas foram e são aniquiladas pelo colonizador e substituídas pela economia de mercado. Isso não significou nem significa progresso em relação ao período anterior, mas tão somente a ruína econômica e cultural dos povos originários. Diferentemente de uma concepção iluminista do progresso, segundo a qual a violência capitalista é vista como um mal “necessário” no caminho até o socialismo, Rosa acreditava que os povos originários poderiam (e podem) ensinar aos “civilizados” formas mais igualitárias de sociabilidade, não predadoras, determinadas pelos interesses da coletividade.

Rosa Luxemburgo, que era polonesa – ou seja, periférica na Europa dos princípio do século XX – teve insights (que não desenvolveu) que apontavam para uma concepção de história distinta do marxismo ortodoxo de seu tempo, caracterizada por una fé ingênua no desenvolvimento das forças produtivas. As populações tradicionais da América Latina, em busca de um modelo de desenvolvimento crítico ao modelo de civilização oriundo da Revolução Industrial, fundado na dicotomia entre pobres e ricos e na destruição da naturaleza, podem ter em Rosa Luxemburgo uma fonte de inspiração.

Por fim, Rosa é uma referência para as feministas; basta pensar no funcionamento interno das organizações políticas e dos movimentos, onde imperam a hierarquia, o centralismo, a rigidez, a burocracia, tudo o que Rosa questionava. Além de construir-se como mulher independente, que atuou no espaço público, ela também questionou a sujeição das mulheres ao isolamento da vida privada, à submissão aos homens, ou seja, questionou o patriarcado, que é inseparável do capitalismo.

A Editora Martins Fontes acaba de publicar a tradução do original inglês de uma biografia-historieta de Rosa Luxemburgo –Red Rosa/Rosa Vermelha–, que enfatiza a Rosa feminista. De autoria de Kate Evans, esta biografia apresenta-nos uma mulher que, além da dedicação apaixonada à militância e à revolução, entregou-se de corpo e alma aos prazeres da vida, ao amor, ao sexo, à natureza, à pintura, à música, à literatura. A autora apresenta-nos também uma professora talentosa, que sabia explicar didaticamente aos estudantes (adultos que frequentavam a Escola do Partido) os conteúdos mais complexos da economia política. Tudo coroado por uma escrita plena de vivacidade, de ironia, palavras espirituosas, um texto pleno de lirismo, como demonstram as cartas da prisão.

Há algo maravilhoso nessa biografia escrita por una mulher jovem e não especializada na obra de Rosa Luxemburgo: revela a proximidade entre essa revolucionária que viveu na virada do século XIX para o XX é nós, no século XXI; uma proximidade que deriva em parte de sua intensa relação com a vida, com todo o vivente. Esse é um traço muito forte de sua personalidade, que a levou a opor-se a tudo o que é rígido, inflexível, mecânico; em uma palavra, burocrático. Quando, por exemplo, criticou Lênin, Rosa disse que sua concepção de partido e de revolução era mecânica. Rosa apreciava a metáfora da vida em contraposição às de fundo mecânico.

Escreveu Rosa: “Só a vida sem obstáculos, efervescente, leva a milhares de novas formas e improvisações, traz à luz a força criadora, corrige os caminhos equivocados. A vida pública em países com liberdade limitada está sempre tão golpeada pela pobreza, é tão miserável, tão rígida, tão estéril, precisamente porque, ao excluir-se a democracia, fecham-se as fontes vivas de toda riqueza e progresso espirituais.” (A revolução russa).

Rosa criticava os bolcheviques porque, ao fechar a Assembleia Constituinte, não permitiram que as camadas populares fizessem suas próprias experiências da vida democrática no âmbito da revolução; é como se Rosa tivesse dito que os companheiros de Lênin intervinham desde fora do processo democrático porque já sabiam o que seria melhor para o povo, porque já tinham uma ideia do que o povo devia fazer. Assim foram (são) substituídas as massas populares que ainda não estariam (estão) prontas para o socialismo. Para Rosa, o socialismo só pode ser obra das próprias massas, não de lideranças intelectuais que pretensamente sabem o que é melhor para o povo. Para isso é necessário tempo de amadurecimento. “Tempo não é dinheiro, tempo é o tecido da vida”, disse o grande crítico literário Antonio Cândido, que também era socialista. A democracia, e ainda mais o socialismo democrático, são uma invenção permanente que necessita de vida pública livre, absolutamente necessária para a formação política dos de baixo.

A crença nas virtudes curativas da vida aparece muitas vezes em sua correspondência da prisão como, por exemplo, nesta carta a sua amiga Sonia Liebknecht (dezembro de 1917), onde explicava por que não desesperava depois de viver tanto tempo encarcerada: “Creio que o segredo não é outro que a própria vida (…) Sob os passos lentos e pesados do carcereiro canta uma bela, uma pequena canção da vida: basta apenas saber ouvir.”

Em suma, a biografia de Rosa Luxemburgo escrita por Kate Evans não é como outras anteriores, a de mártir assexuada e cheia de pudor, que sacrificou a vida no altar da Revolução – como se fora uma santa comunista – , mas uma mulher de carne e osso, divertida, ousada, à frente de seu tempo, que rechaçava o espartilho, controlava seu corpo para não ficar grávida — em uma palavra, uma mulher que conquistou sua liberdade com muita luta e sacrifício. Ela sabia que liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade. Essa é a mensagem que Rosa deixa para as mulheres do século XXI que ainda lutam por sua emancipação.

domingo, 17 de novembro de 2019

Humanizar o Capitalismo ou mudar o sistema?



Por Aluizio Moreira


Alguns partidos que se autodenominam revolucionários ou assim se consideram, estabelecem como objetivo constante de seu programa, a melhoria do sistema ou o aprimoramento da democracia capitalista numa sociedade de classe. 

É compreensível que partidos de esquerda, incluindo partidos comunistas, pretendam lutar pela diminuição das injustiças sociais, contra a descriminação, contra as desigualdades criadas pelo próprio sistema capitalista. No entanto, levantar essas bandeiras como se fossem os limites possíveis de uma ação política em benefício da sociedade, descaracterizaria qualquer programa de partido que defenda uma transformação real do sistema. Ou caberia indiscutivelmente este tipo de ação política, figurar como programa de um partido liberal em busca da implantação de um Estado de bem-estar social ou welfare state, que procuraria assegurar aos cidadãos melhoria das condições materiais de vida, igualdade de oportunidades e maior amplitude das liberdades democráticas

Não podemos perder de vista, que o capitalismo só existirá enquanto sistema, fundamentalmente na medida em que mantiver a existência da mais-valia, do caráter universal da propriedade privada, a divisão da sociedade em classes sociais, a exploração da maioria da população trabalhadora, principio multiplicador do capital, que se concentra nas mãos de uma elite, que detém o controle dos poderes econômicos, políticos e ideológicos. 

Na verdade, os partidos de esquerda, que atuam nos estreitos limites de uma democracia burguesa, se limitam à chamada “humanização” do capital, quando o fundamental não é [...] “melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova” (Marx e Engels. Mensagem ao CC da Liga dos Comunistas – 1850).

É evidente que “estabelecer uma nova” sociedade não é tarefa de um partido, nem de um grupo. Também não tem sentido aguardar que a sociedade existente “evolua” para um fim já esperado, como etapa de um futuro que inevitavelmente acontecerá. 

Para os homens da Idade Média Ocidental, não estava escrito que irreversivelmente a sociedade feudal iria avançar para a construção de uma sociedade sem senhores nem servos, que afinal a burguesia se constituiria numa classe dominante, nem que o trabalho assalariado viria a predominar sob novas relações econômico-sociais. 

Assim, a implantação do sistema capitalista, estaria condicionada a uma pré-existência feudal, como etapa obrigatória? As sociedades primitivas teriam como futuro irremomível se transformar em um sistema escravista? Nos séculos XV/XVI, quem imaginaria que no período da expansão comercial europeia, viesse surgir o chamado escravismo colonial, diferente de tudo que até então existira com base no trabalho escravo? 

As mesmas dúvidas poderão ser levantadas em relação ao socialismo como uma sociedade nova. Na medida em que o sistema capitalista não mais tenha condições objetivas de se reproduzir, o socialismo, de uma ou outra forma, se instalará como uma nova etapa de desenvolvimento da sociedade humana? Na verdade uma futura sociedade socialista não é uma fatalidade histórica. É uma possibilidade dentro de um universo de perspectivas para além do capitalismo, na medida em que o conhecimento dos mecanismos sócio-econômicos e políticos que dispomos hoje, permita ao homem não mais assumir uma atitude meramente contemplativa acerca da natureza e da sociedade, mas interferir, a partir da apropriação do real, no sentido de conquistar o poder político estabelecendo a hegemonia popular, nas mais diversas instâncias da sociedade.

“Humanizar” o capitalismo, além de ser uma tarefa que se contrapõe radicalmente às leis que regem o próprio sistema, não poria fim à hegemonia da burguesia enquanto dona do poder. Consequentemente, as classes exploradas, não podem, em qualquer hipótese, minimizar a importância do poder, se têm por objetivo, estabelecer novo tipo de relações de produção.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Desafios para a revolução chinesa, 70 anos depois


País passou da fome que quase dizimou população rural à 2ª economia do mundo. Mas há desafios para exercer hegemonia: lidar com as crescentes insatisfações populares, o envelhecimento da população e apostar em soluções sustentáveis





Por José Eustáquio Diniz Alves, no EcoDebate


No dia 01 de outubro de 1949, depois de uma longa marcha e do acúmulo de uma série de vitórias parciais, o líder do Exército de Libertação Popular e do Partido Comunista Chinês (PCC), Mao Tse-tung, proclamou, em Pequim, na Praça Tiananmen, a República Popular da China. Em seguida, Chiang Kai-shek, do kuomintang (Partido Nacionalista Chinês) se refugiou em Taiwan e proclamava a República da China.

Os 70 anos da Revolução Comunista na China, grosso modo, podem ser divididos em duas partes: um fracasso nos primeiros 30 anos e um sucesso nos 40 anos seguintes. Entre 1949 e 1979 a China viveu um período de grande turbulência, com muita fome, já que o povo chinês não foi “convidado para um jantar”.

Nas três primeiras décadas o gigante asiático se isolou do mundo, regrediu em termos econômicos e viveu três momentos cruciais: o “Grande salto para a frente”, a “Revolução Cultural” e a “Camarilha dos quatro”.

O “Grande salto para a frente” foi uma política lançada por Mao Tsé-Tung entre 1958 e 1960, que visava transformar a China Comunista em uma nação desenvolvida e socialmente igualitária em “um salto” (curto tempo), acelerando a industrialização urbana. Porém, o processo de industrialização fracassou, consumiu muitos recursos da área rural e provocou uma grande fome e uma das maiores mortalidades da história. As mortes ocorridas neste período são estimadas entre 20 e 50 milhões de óbitos, um número tão grande que provocou uma redução da esperança de vida da população mundial. Segundo a Penn World Table, a renda per capita da China, em poder de paridade de compra, era de US$ 883 em 1953 e caiu para US$ 834 em 1962.

A “Revolução Cultural” ocorreu principalmente na década de 1960 (mas se prolongou até a morte de Mao) e foi uma reação aos críticos da linha adotada pelo comitê do Partido Comunista e aos críticos do “Grande salto para a frente”. Para se manter no controle do Partido e do Estado, Mao Tse-tung incentivou o culto à personalidade e a difusão do “Livro Vermelho”, com citações de Mao. Os alvos da Revolução Cultural foram os membros do partido que mostravam alguma simpatia com o Ocidente ou com a União Soviética, a burocracia estatal, os intelectuais e todo o conhecimento consolidado e as políticas públicas na área de educação, saúde, etc. O sectarismo manteve a China pobre e isolada.

Depois da morte de Mao Tsé-Tung, em 9 de setembro de 1976, a chamada “Camarilha dos Quatro”, composta por Jiang Qing (esposa de Mao Tse-tung), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan, tentaram dar continuidade à Revolução Cultural e ao isolamento do país, mas foram derrotados, abrindo espaço para a ascensão das forças reformistas. Ainda segundo a Penn World Table, a renda per capita da China ficou praticamente estagnada entre 1966 e 1976, passando de US$ 1119 para US$ 1210. Nos primeiros 30 anos da Revolução, a renda per capita chinesa era uma das mais baixas do mundo.

Entre 1976 e 1978 o poder na China mudou de mãos e de orientação. O novo líder, Deng Xiaoping (1904-1997), assumiu as rédeas do PCC e introduziu uma série de reformas, que ficaram conhecidas como a “segunda revolução”, provocando uma completa transformação do país, que abandonou o coletivismo comunista e assumiu uma feição mista, conhecida como “Socialismo de mercado” ou “Capitalismo de Estado”. A partir de 1978 a China dá realmente um grande salto para a frente e se torna a primeira economia mundial (medida em poder de paridade de compra), transformando o experimento dos últimos 40 anos em o maior e mais rápido exemplo de sucesso da história econômica mundial. Em 2016, a renda per capita chinesa ultrapassou a renda per capita brasileira.

O gráfico abaixo, com dados do FMI, mostra como a China saiu de uma situação de irrelevância econômica, cresceu e deslocou os EUA da posição de maior economia do mundo. Em 1980, o PIB dos EUA representava 21,6% do PIB mundial, enquanto o PIB da China representava apenas 2,3% (os EUA tinham uma economia quase 10 vezes maior). O PIB do Brasil representava 4,4% da economia global (o PIB do Brasil era quase 2 vezes maior do que o da China). Mas o quadro mudou totalmente nos últimos 40 anos. Em 2014, a economia chinesa superou a economia americana e em 2020, o FMI estima que o PIB da China representará 19,7% do PIB mundial e o PIB dos EUA apenas 14,8%. Nunca na história um país galgou crescimento tão rápido e expressivo.



A renda per capita da China (em poder de paridade de compra, a preços constantes), em 1980, segundo dados do FMI, era de US$ 722 contra US$ 790,00 do Burundi, US$ 11,4 mil do Brasil e US$ 29,1 mil dos EUA. A renda per capita da população brasileira era 16 vezes maior do que a da população Chinesa e a americana era 40 vezes maior. Mas em 2020, a renda per capita chinesa (com US$ 18 mil) atinge um nível maior do que a renda per capita brasileira (US$ 14,8 mil), sendo que a dos EUA está em US$ 57,2 mil. Portanto, o chinês médio já ganha mais do que o brasileiro, embora tenha, atualmente, uma renda 3 vezes menor do que a do americano médio.

Em termos demográficos, a população da China era de pouco mais de meio bilhão de pessoas em 1950 e deve atingir o pico de 1,44 bilhão de habitantes em 2029. A partir de 2030 haverá decrescimento populacional e a China deve chegar em 2100 com uma população de pouco mais de 1 bilhão de pessoas. A população em idade ativa que estava em 1 bilhão de potenciais trabalhadores em 2015 já está em declínio e deve se reduzir para a metade até o final do século.


Quem dita o ritmo de crescimento e de redução populacional é a taxa total de fecundidade (TFT). O gráfico abaixo mostra que a TFT estava em 6 filhos por mulher na época da Revolução Comunista e caiu na década de 1950. Porém, com a alta mortalidade ocorrida na época do “Grande salto para a frente” e com o caos econômico, social e político ocorrido durante a “Revolução Cultural” a TFT voltou a subir e ficou em 6,5 filhos por mulher no quinquênio 1965-70.

Todavia, o alto crescimento demográfico dificultava a luta para a redução da pobreza e, no início dos anos de 1970, ainda na época de Mao Tse-tung, foi lançada a política “Mais Tarde, Mais Tempo e em Menor Número” (em chinês: “Wan, Xi, Shao” e em inglês: “later, longer, fewer”) que incentivava as mulheres a terem o primeiro filho em idades mais avançadas, que mantivessem um espaçamento maior entre os filhos e que limitasse o tamanho da prole, adotando um tamanho pequeno de família.

A política “Wan, Xi, Shao” foi um sucesso e a taxa de fecundidade caiu de mais de 6 filhos para menos de 3 filhos em 1980. Tudo indicava que a fecundidade continuaria caindo. Porém, um governo autoritário não costuma respeitar as livres escolhas e os direitos sexuais e reprodutivos. No bojo das reformas implementadas por Deng Xiaoping em dezembro de 1978, foi instituída a “Política de filho único”, a iniciativa controlista mais draconiana da história da humanidade.

Em consequência, mesmo com a maior parte da população vivendo no meio rural, a fecundidade continuou caindo e a TFT ficou abaixo do nível de reposição no quinquênio 1990-95 (com 1,9 filho por mulher) e se manteve ao redor de 1,6 filho por mulher entre 2000 e 2015. Ou seja, depois de cerca de 35 anos de “Política de filho único” a TFT chinesa permanece baixa e o número de nascimentos anuais caiu de pouco mais de 30 milhões no quinquênio 1965-70 para cerca de 17 milhões de bebês na atual década (2011-20).



Para o demógrafo Baochang Gu, embora tenha havido exceções, especialmente na zona rural e entre minorias étnicas, a regulamentação rigorosa do filho único foi mantida até novembro de 2013, quando se permitiu que um casal tivesse um segundo filho, no caso de algum dos cônjuges fosse filho único. Em outubro de 2015, foi permitido a todos os casais terem o segundo filho. Em 2018 foram eliminadas as restrições ao número de filhos desejados.

Contudo, a baixa taxa de fecundidade veio para ficar, pois a flexibilização não implicou em um surto de nascimentos. Em 2016, imediatamente depois que se permitiu o segundo filho, nasceram 17,9 milhões de crianças, de acordo com a Agência Nacional de Estatísticas. Apenas 1,3 milhão a mais do que em 2015 e metade do que o Governo previa. Já em 2017, o número de nascimentos foi ainda menor, 17,2 milhões de novos bebês, muito abaixo dos 20 milhões estimados pelas autoridades. Em 2018, o número de nascimentos voltou a cair.

O fato é que a China adotou o modelo de baixo crescimento demográfico e alto crescimento econômico, possibilitando o aumento da renda per capita e a retirada de cerca de 1 bilhão de pessoas da extrema pobreza. O crescimento foi tão espetacular que muita gente se refere aos últimos 40 anos como o “milagre chinês”.

Evidentemente, nem tudo são flores. O custo ambiental do sucesso chinês foi dramático. A China é o maior poluidor do Planeta e campeão absoluto da emissão de gases de efeito estufa. A Pegada Ecológica chinesa é muito mais elevada do que a Biocapacidade e o país tem um alto déficit ambiental. Problemas como o da febre suína (um vírus altamente contagioso, sem cura conhecida, e com uma taxa de sobrevivência quase nula para os porcos infectados) aconteceu na África e se espalhou na China, que é a maior produtora e consumidora de carne suína do mundo. O país é responsável por mais da metade da população global de porcos. O Departamento Nacional de Estatística do país diz que a população de porcos caiu em quase 40 milhões, para 375,3 milhões, em relação ao ano anterior, devido ao surto de febre suína. Mas a epidemia pode dizimar cerca de 200 milhões de porcos. Isso teria um impacto negativo sobre a economia chinesa, uma vez que os preços da carne suína contribuem de forma importante para seus níveis de inflação e os preços da carne suína na China poderão subir mais de 70% no segundo semestre deste ano. Isto poderá ser a centelha de muitas manifestações populares e, certamente, vai atrapalhar a festa dos 70 anos da Revolução Chinesa.

Em termos políticos a China é uma ditadura de partido único, com controle da mídia e com grande controle da Internet e das redes sociais. Em 1959, houve a intervenção no Tibete, que restringiu a autonomia local e provocou o exílio do líder espiritual Dalai Lama, há 60 anos. Em 1989, o governo de Pequim reprimiu violentamente as manifestações populares na Praça Tiananmen. Na China não há liberdade religiosa e diversas religiões sofrem com a repressão do Estado. Os povos Uigures, de Xinjian, uma minoria muçulmana que fala um idioma próximo do turco, têm denunciado que um milhão de pessoas estavam sendo tratadas como “inimigos do estado”, sendo vítimas de “aprisionamento em massa” em “centros de contra extremismo”.

Agora em 2019, o PCC ameaça reprimir as manifestações populares em Hong Kong. Quatro meses de espetaculares manifestações na ilha estão atrapalhando os preparativos para a festa dos 70 anos da Revolução. Cerca de 20% da população de Hong Kong (mais de 1,5 milhão de pessoas) foram para as ruas no dia 18 de agosto, pedindo democracia e mostrando que não será fácil esmagar as manifestações democráticas. A situação se agrava especialmente para os honcongueses que não querem ser plenamente chineses. A despeito da riqueza de Hong Kong, tudo está cada vez mais caro na cidade, a desigualdade social aumenta e os jovens sofrem com a falta de mobilidade social ascendente. Acima de tudo, a população de Hong Kong não aceita o modelo autoritário da República Popular da China.

A linha dura de Xi Jinping em relação a Hong Kong acende o alerta para o caso de Taiwan e reduz ainda mais a chance de uma unificação pacífica das duas Chinas. A China continental parece abandonar seus esforços para conquistar corações e mentes em Taiwan e incrementou constantemente suas capacidades militares, gerando medo que possam ser usadas. Isto provocaria uma guerra com os EUA, jogando as duas potências na Armadilha de Tucídides.

Cabe ressaltar, que apesar de todo o progresso econômico – embora com restrição da liberdade individual e ameaça de um conflito internacional – a China ainda é um país de renda média e pode apresentar dificuldade para dar o salto para um país de renda alta. O envelhecimento populacional e o fim do bônus demográfico vão dificultar a continuidade do crescimento econômico nas próximas décadas, enquanto cresce no mundo as resistências contra as políticas mercantilistas do país. O cenário é de dificuldades internas e externas.


Contudo, o governo de Xi Jinping deseja comemorar os 100 anos do PCC em 2021 e tem um plano para fazer da China o país mais avançado do mundo até 2049, quando do aniversário de 100 anos da Revolução Comunista (ver figura abaixo). O plano tem parte de uma realidade que o país já é a fábrica do mundo e a campeã da produção de bens manufaturados. Com a política “Made in China 2025” o país pretende alcançar a produção de bens mais sofisticados e de maior valor agregado, se igualando na liderança da ciência e da tecnologia. Até 2035, a China pretende se destacar entre as grandes economias mundiais. Em 2049, o “Império do Meio” pretende liderar o mundo no conjunto das manufaturas e no que há de mais avançado na ciência e tecnologia.

Todavia, o caminho para a hegemonia global não será fácil, pois haverá pressões externas e internas. A guerra comercial e cambial entre os EUA e a China é só uma parte do problema que ocorre com a ascensão da China no cenário do poder mundial. Internamente, existem muitas manifestações contra o autoritarismo e o centralismo do PCC. O desacoplamento da “Chimerica” vai trazer dificuldades. O desequilíbrio na razão de sexo deixou milhões de homens sem parceiras na idade de casar e o envelhecimento populacional será muito rápido e intenso, aumentando a razão de dependência demográfica.

Enfim, os 70 anos da Revolução Chinesa foram marcados por muito sofrimento (de 1949 a 1978) e por muito progresso (entre 1978 a 2019). A China tem mostrado vontade e capacidade para deixar para trás a miséria e o subdesenvolvimento. O país tem demonstrado determinação para realizar grandes obras, como a do novo Aeroporto Internacional de Pequim-Daxing – conhecido como estrela-do-mar, inaugurado uma semana antes da data de aniversário dos 70 anos da Revolução de 1949. Mas o caminho para se tornar uma potência internacional, com alto padrão de vida para a população e com respeito ao meio ambiente não será tranquilo e sem obstáculos.

A China adota o modelo conhecido como “Consenso de Beijing” que se opõe ao modelo liberal conhecido como “Consenso de Washington”. Até recentemente os cientistas políticos consideravam que um país só atinge alto nível de desenvolvimento socioeconômico se adotar os princípios do regime democrático. Porém, a China está prestes a se tornar um país desenvolvido e com liderança tecnológica, mesmo sendo um regime autoritário e com alto grau de controle da mídia e das redes sociais.

O Império Soviético também comemorou 70 anos. Mas caiu logo em seguida. Contudo, o “Império do Meio” Vermelho pensa no longo prazo e já vislumbra um horizonte de sucesso em 2049, nos 100 anos da Revolução Comunista Chinesa. Resta saber se conseguirão chegar aos píncaros sem grandes atritos com a comunidade internacional, sem grandes revoltas no território nacional e sem a destruição da base ecológica, que é a condição necessária para o florescimento de qualquer civilização.

Referências:

ALVES, JED. A ascensão da China, a disputa pela Eurásia e a Armadilha de Tucídides. Entrevista especial com José Eustáquio Diniz Alves, IHU, Patrícia Fachin, 21 Junho 2018


ALVES, JED. China, nova potência mundial Contradições e lógicas que vêm transformando o país. Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), China, nova potência mundial: Contradições e lógicas que vêm transformando o país. São Leopoldo, Nº 528, Ano XVIII, 17/9/2018 pp 51-58




domingo, 3 de novembro de 2019

Partido Comunista da Turquia (TKP): "Seguimos o caminho de Lenin"





Discurso de Kemal Okuyan, Secretário Geral do Comitê Central do Partido Comunista da Turquia (TKP), no ato inaugural do 21º Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários, em 18 de outubro de 2019, em Izmir, Turquia.

Representantes comunistas dos partidos irmãos, camaradas, lhes dou as boas vindas.

Planejamos recebê-los no próximo ano, por ocasião do centenário do Partido Comunista da Turquia (TKP). No entanto, por razões que todos sabem, assumimos a responsabilidade de organizar nosso 21° Encontro, em co-responsabilidade com o Partido Comunista da Grécia. De qualquer forma, encontrar-nos com vocês e recebê-los em Izmir é uma grande honra para nós. Acreditamos que esta reunião servirá à nossa luta comum.

Outro ponto que tenho que levantar no início está relacionado à grande reunião que tínhamos planejado para a noite de sábado. Devido à operação militar lançada pela Turquia contra a Síria, tivemos que cancelar uma atividade política e cultural que reuniria mais de 5.000 participantes, para a qual também convidaríamos a todos. As declarações de nosso partido relacionadas a esses últimos eventos foram enviadas a vocês. Além disso, preparamos uma sessão de informações sobre o assunto para compartilhar nossas avaliações e análises detalhadas. Todos estão convidados para esta reunião.

Ao iniciar meu discurso, gostaria de agradecer a todos os camaradas do Partido Comunista da Grécia (KKE) que contribuíram para a preparação deste encontro, a todos, desde o Secretário Geral Dimitris Kutsumbas até os jovens militantes do KKE que vieram prestar o apoio técnico e, claro, meus camaradas do TKP. Obrigado, acredito que transformaremos esta região em um paraíso onde as pessoas possam viver em amizade e em uma ordem social igualitária.

Caros camaradas,

O 21º Encontro de Partidos Comunistas e Operários é convocado no centenário da fundação da Internacional Comunista, uma organização cuja importância histórica para o movimento comunista é incontestável.

A Internacional Comunista foi fundada em uma época em que os bolcheviques pensavam que o processo iniciado com a Revolução de Outubro de 1917 continuaria em outros países e que a classe trabalhadora chegaria ao poder em pelo menos parte da Europa. Nesse sentido, a Internacional Comunista não era uma organização de solidariedade ou recomendações. A Internacional Comunista foi fundada para estabelecer a vontade comum, um centro revolucionário que o proletariado precisava para dar o golpe mortal ao capitalismo. Nesse sentido, não há erro em chamar a Terceira Internacional de Partido Mundial.

Camaradas, o poder que a Internacional Comunista alcançou em pouco tempo pode nos confundir. No entanto, embora tenhamos começado em março de 1919, não esqueçamos que a Internacional Comunista foi fundada com recursos extremamente escassos, que as delegações que vieram de diferentes países ao Congresso fundador não tinham muito poder de representação e que a maioria dos partidos membros não tinham muito peso em seus próprios países. Se deixarmos de lado os bolcheviques, que tomaram o poder na Rússia apenas um ano e meio antes, a Internacional Comunista foi fundada por partidos ou grupos com pouca efetividade.

No entanto, agiram com grande afirmação, entusiasmo, determinação e otimismo. A profunda crise em que o capitalismo estava caindo e a mobilização de milhões de proletários diante dessa crise foram suficientes para os comunistas. Eles se concentraram em sua missão e responsabilidade histórica em oposição às suas fraquezas e estavam convencidos de que a burguesia poderia ser derrotada e será derrotada. Dessa maneira, os Partidos Comunistas que foram fundados com a ajuda dos bolcheviques não apenas se tornaram uma força importante em pouco tempo e lutaram para levar a classe trabalhadora ao poder, em certos casos, mas também tiveram sucesso, mesmo que fosse por pouco tempo. Hoje, ninguém deve acusar as tentativas revolucionárias da Hungria, Eslováquia, Alemanha e outros países de aventureiras. Aqueles que lutaram pelo poder revolucionário permaneceram fiéis à filosofia fundadora da Internacional Comunista e falharam por várias razões.

Caros camaradas,

Há uma razão para eu falar sobre tudo isso. É de vital importância determinar o equilíbrio de forças entre as classes e se afastar de uma linha política administrativa. As revoluções não acontecem apenas por causa das decisões que tomamos. Nossa tarefa não é fazer a revolução, mas liderá-la, porque uma revolução não é algo que se possa inventar. No entanto, também é verdade que existe uma relação dialética entre as crises do capitalismo e o aumento de oportunidades revolucionárias e até o surgimento da revolução. Nesse sentido, é muito enganador avaliar estaticamente o equilíbrio de poderes, especialmente em tempos de crise.

Em 1919, os Partidos Comunistas eram extremamente fracos, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Quando olhamos para o mundo hoje, reclamamos compreensivelmente da fraqueza do movimento comunista, mas em 1919, quando a Internacional Comunista foi estabelecida, também não tinha maior poder.

Então qual foi a diferença? A mobilidade e organização das massas trabalhadoras é a primeira coisa que vem à mente. Embora a classe trabalhadora estivesse sob a égide dos partidos social-democratas, estava amplamente envolvida na luta política, em alguns países os sindicatos tinham sérios potenciais.

Outro fenômeno que pode ser mencionado como diferença é a reação à destruição e pobreza gerada pela guerra imperialista e o fato de a guerra não ter posto um fim à profunda crise econômica e até ter acrescentado novas dimensões a ela.

No entanto, ninguém pode afirmar que o capital internacional atual é mais forte ou mais durável do que o de 100 anos atrás. O imperialismo está fracassando em todos os aspectos, nada mais tem a dizer à humanidade do ponto de vista econômico, ideológico e político. Em lugar nenhum.

Camaradas, não estou tentando dizer que estamos vivendo nas mesmas condições de 100 anos atrás. Isso não é certo. O que precisamos fazer é analisar as condições concretas de hoje e, com base nisso, lutar com as ferramentas e métodos adequados.

No entanto, é impossível determinar as tarefas de hoje de maneira saudável, sem apontar uma diferença muito importante entre 100 anos atrás e hoje.

Camaradas, há 100 anos, a partir da classe trabalhadora, há cem anos, para as grandes massas, centenas de milhões de pessoas, socialismo ou ordem igualitária eram uma demanda tangível e atual. A partir da segunda metade do século XIX, toda luta da classe trabalhadora estava impregnada do desejo de derrubar o capitalismo, embora primitivo. Não estou falando de estratégias e programas políticos. O desejo de mudar a ordem era uma realidade social. Esse desejo não surgiu com a Revolução de Outubro de 1917. A Revolução de Outubro trouxe um novo senso de energia e realidade a esse desejo e o estendeu a uma geografia mais ampla.

Preciso repetir que o capitalismo de hoje não é mais durável e estável do que há 100 anos atrás. Talvez centenas de milhões não estejam em luta, mas bilhões de pessoas perderam toda a esperança com a ordem social atual. Isso também tem um papel no aumento do racismo e dos movimentos populistas de direita em todo o mundo. Embora não seja a única razão pela qual milhões de pessoas perseguem pessoas que não conhecem, e pelo menos apoiam as novas formações centradas nos líderes nas eleições, está relacionado à busca de uma saída por parte do povo.

Sim, camaradas, temos que admitir que uma das diferenças mais importantes de 100 anos atrás é que a ideia de que o capitalismo pode ser destruído e que uma ordem igualitária possa ser estabelecida está fora da mente da humanidade.

Isso não pode ser explicado apenas por condições objetivas. Manter esta ideia viva e realizá-la nas mentes e corações das grandes massas populares, começando pela classe trabalhadora, é a principal tarefa dos comunistas. Esta ideia não pode ser rejeitada referindo-se ao equilíbrio de poderes. Pelo contrário, é a difusão dessa ideia que mudará o equilíbrio de forças.

Camaradas, quando olhamos para os últimos cem anos, temos que admitir que os comunistas também são culpados de que a humanidade não declarou em voz alta que uma ordem mais igualitária é possível e que o capitalismo deve ser destruído.

E agora, voltando-me para a Turquia e nossa região, quero mostrar a vocês, diante dos eventos atuais, como pode se perder e se mover sem uma bússola que aponte o caminho certo, se for esquecida a realidade do socialismo.

Nosso encontro coincidiu com a nova ofensiva militar da Turquia lançada em território sírio. Esta não é a primeira vez. A presença do exército turco no território de outros países começou com a Coréia. Era parte de uma guerra injusta para proteger os interesses do imperialismo ianque. Nos anos seguintes, soldados turcos participaram de muitas operações da organização terrorista monopolista internacional OTAN. Em Chipre, a soberania, a independência e a integridade da ilha são violadas há 45 anos. Existem inúmeras operações transfronteiriças no Iraque, bem como inúmeras bases, postos avançados e pontos de observação pertencentes ao exército turco, assim como na Síria.

Caros camaradas,

Como avaliamos esse cenário?

Uma visão é ver a Turquia como um obstáculo à democracia e à liberdade.

Pode algum comunista que lute na Turquia se opor a isso?

Não se pode opor a isso, mas para os camaradas essa expressão, essa formulação está errada. É um erro, porque o Estado do capital é inimigo da democracia e das liberdades em todo o mundo. Essa formulação significa esvaziar o conteúdo de classe dos problemas na Turquia e vinculá-lo ao povo ou ao exército, e isso nos levará a cometer erros.

Uma posição política revolucionária é impossível sem entender que existe uma forte classe capitalista que age com crescente autoconfiança e que, em geral, as políticas nacionais e internacionais da Turquia estão alinhadas com os interesses dessa classe.

Quando não se entende isso, acontece o seguinte: acaba-se ao lado dos poderosos países imperialistas ou da classe capitalista turca por liberdades e democracia na Turquia ou em uma região maior, convertendo-se em aliados. O que estou dizendo não é um exagero. Isso aconteceu na Turquia e, infelizmente, muitos revolucionários se tornaram verdadeiros colaboradores do imperialismo ao longo deste processo.

Camaradas, devo lembrar que Erdogan, a quem são atribuídos vários adjetivos, foi apoiado pelos chamados círculos democráticos e pró-liberdade desde os primeiros períodos de sua ascensão ao poder até 2010. Não apenas da União Européia (UE) e dos Estados Unidos, mas também de muitas tendências diferentes da esquerda e o movimento nacionalista curdo na Turquia forneceram esse apoio. Por outro lado, o TKP, nós que lutamos contra o governo do AKP desde o início, foi rotulado como fascista por enfrentar Erdogan.

Mais tarde, quando as rivalidades e contradições dentro do sistema imperialista se aprofundaram, e quando Erdogan, enfrentando grandes problemas na política doméstica, abriu um espaço para si mesmo usando essas rivalidades e contradições e começou a ter problemas reais com os Estados Unidos, surgiram algumas críticas e acusações contra Erdogan. No entanto, para muitos esquerdistas, isso não resultou na posição correta, porque muitos olharam para os imperialistas e a burguesia turca contra Erdogan. Vergonhoso.

Não vou tomar seu tempo para proporcionar provas de tudo isso. Eu quero chegar ao outro lado da moeda.

Camaradas, mencionei que uma busca por democracia e liberdade que não tenha conteúdo de classe, que não coloque o objetivo da revolução socialista em seu centro, significará uma colaboração aberta ou secreta com a UE e a OTAN e que essa abordagem resultará em uma rendição total à classe capitalista.

E a busca pela independência? Camaradas, quando os conceitos de independência e soberania são separados de sua base de classes, tornam-se tão perigosos quanto os conceitos de liberdade e democracia. Vemos que há uma divisão em muitos países e no público progressista em geral. Por um lado, há uma tendência de cooperar com a burguesia em torno dos conceitos de “liberdade e democracia”. Por outro lado, há uma tendência a reconciliar-se com uma ou outra divisão do capital através do conceito de “independência”.

A situação na Turquia reflete exatamente essa divisão. Dizem-nos que precisamos de uma aliança das principais potências para o declínio de Erdogan; existe o imperialismo alemão nessa aliança; existem os representantes mais poderosos da burguesia turca; existe o governo dos Estados Unidos; existem social-democratas, os chamados esquerdistas, liberais, alguns islâmicos e uma fração do fascismo. Essa aliança certamente poderia conter Erdogan, mas nunca trará democracia e liberdade.

Além disso, argumenta-se que o mais importante é ganhar a capacidade de agir independentemente dos EUA, fazendo uma interpretação incompleta do imperialismo e até reduzindo o imperialismo apenas aos EUA. E dizem que todos os tipos de opressão, intimidação, reacionarismo e guerra podem ser aceitos por essa causa.

Em quase todos os países desta geografia, há pressão sobre os comunistas para aceitar um dos dois paradigmas. Ou cooperamos com os imperialistas, os capitalistas pelo bem da democracia e da liberdade, ou permanecemos calados diante de todo tipo de opressão e crueldade com outros imperialistas ou grupos capitalistas pelo bem da independência.

Podem a iberdade, independência, soberania ser inúteis para os comunistas? Nunca. No entanto, o uso aleatório desses conceitos nos causa grandes danos, como se pode ver. Existe apenas uma saída para essa situação estranha. Está em colocar a demanda por uma ordem social alternativa na agenda dos trabalhadores, compartilhando a emoção da fundação da Internacional Comunista, há 100 anos. Não é uma pena que os pobres do meu país sigam Erdogan e a ganância da burguesia para obter benefícios devido à sua raiva contra os Estados Unidos? Não é uma lástima que os trabalhadores, sejam turcos, curdos ou árabes, esperem liberdade e democracia dos imperialistas europeus ou de uma ou outra fração dos Estados Unidos?

Estes são os resultados de nossas fraquezas, as lacunas que nos restam. Não tomemos como desculpa as circunstâncias desvantajosas ou o equilíbrio de poderes. Como eu disse no começo, quando a Internacional Comunista começou há 100 anos, havia menos pessoas do que temos agora nesta sala.

Penso que, em breve e juntos, recuperaremos as reivindicações e o entusiasmo que tínhamos 100 anos atrás.

Camaradas,

O Partido Comunista da Turquia está organizando sua luta com essa perspectiva. Não é verdade que o objetivo do socialismo, defendendo a contemporaneidade e a oportunidade do socialismo, leve inevitavelmente ao isolamento. Não há regra de que uma atitude revolucionária resulte em bravatas ou sectarismo. Pelo contrário, hoje no mundo, o objetivo do comunismo requer um alto nível de criatividade e intelecto. Quando isso é combinado com coragem e determinação, a defesa da revolução socialista como um objetivo real ressoa na classe trabalhadora. O oposto não é possível neste momento de crise, quando se demonstra todos os dias que o capitalismo não tem mais nada a dar à humanidade.

O Partido Comunista da Turquia disse não a qualquer aliança com a burguesia ou seus representantes políticos. Apesar da forte pressão, o partido defendeu persistentemente a tese de que “essa ordem social deve mudar”. Dentro da classe trabalhadora, desenvolvemos nossa organização pacientemente. Conseguimos fazer o que os sindicatos não fazem em muitos casos com um modelo exclusivo chamado: “Na nuca dos patrões”. Temos demitidos de volta ao trabalho e conquistamos aumentos salariais. Ao fazê-lo, dissemos que a atenção deveria se concentrar no estabelecimento de uma ordem igualitária, não em uma ou outra solução burguesa.

Dissemos não às alianças burguesas, mas fizemos os comunistas ganharem a eleição de prefeito em uma cidade pela primeira vez na história da Turquia, fazendo uma aliança revolucionária. Nossos votos, pela primeira vez, ultrapassaram 1% em algumas seções eleitorais nas maiores cidades da Turquia.

O número de membros do partido aumentou mais de 30% em um ano. Estamos no início de nossa tarefa em um país muito grande e desafiador. Características qualitativas são mais importantes que quantidades. Fazemos todos os esforços para garantir que o Partido Comunista Turco se torne a vanguarda urbana, moderna, intelectual e revolucionária da classe trabalhadora. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas, sabendo que a vida pode nos deixar com responsabilidades históricas a qualquer momento, seguimos persistentemente o caminho da revolução, o caminho de Lenin que marcou uma era há 100 anos. O importante é o que nossos camaradas dizem, não o que os anticomunistas dizem de maneira aberta ou secreta.

O TKP cometerá erros, às vezes dará passos atrás; isto é da natureza da luta. Mas, queridos camaradas, o que o TKP não fará é trair os ideais revolucionários, a meta do comunismo, os trabalhadores e seus amigos.

Glória à luta comum dos partidos comunistas!

Viva o marxismo-leninismo!

Até à vitória, sempre!

Tradução: Partido Comunista Brasileiro PCB