domingo, 15 de dezembro de 2019

Educação e Saúde, bastiões da revolução cubana /Medicina em Cuba, uma escola para a solidariedade



Por Pedro Martínez Pírez




Cuba, o primeiro país da América Latina que erradicou o analfabetismo de seu território há 58 anos, prepara-se para iniciar um novo ano escolar, garantindo aos estudantes de todos os níveis a gratuidade da educação.

Mais de um milhão e 700 mil estudantes de educação pré-escolar, primária, secundária e pré-universitária são beneficiados por essa política tradicional da Revolução Cubana nesse próximo ano letivo, ao qual se somam mais 240 mil novos estudantes do Ensino Superior.

A notícia tem maior valor se levarmos em conta que Cuba vem sofrendo um bloqueio econômico, comercial e financeiro criminoso dos Estados Unidos por quase seis décadas, e que se intensificou durante a atual administração de Donald Trump.

Manter em Cuba, nesta difícil situação, uma cobertura universal e gratuita da educação em todos os níveis, assim como os serviços de saúde, confirma a vontade do atual governo de continuar mentendo os pilares da Revolução Cubana, reconhecidos tanto pela UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura como pela OMS, Organização Mundial de Saúde.

O recente aumento salarial de trabalhadores da Educação e da Saúde também serviu para fortalecer os dois bastiões da Revolução Cubana, que igualmente figuram como direitos constitucionais do povo na Carta Magna aprovada este ano em Cuba.

É importante lembrar que 51% do orçamento deste ano em Cuba é dedicado aos serviços de educação e saúde, o que contrasta com a situação enfrentada pelos povos de muitas nações da nossa América nessas áreas.  “As pessoas mais felizes são aquelas com as crianças mais educadas” e “o melhor remédio é aquele que é cauteloso”, disse José Martí, o mais universal dos cubanos. E são essas duas máximas preciosas que apoiam a Educação e a Medicina cubanas. 

FONTE: IELA - Instituto de Estudos Latino-Americanos

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Medicina em Cuba, uma escola para a solidariedade


Por Pedro Martínez Pírez




Nos últimos dias, jovens de várias nações de "Nuestra América" chegaram a Havana para participar de um novo curso na ELAM, a Escola Latino-Americana de Medicina, da qual cerca de quinhentos novos médicos, de 104 países, se formaram em julho passado.

A ELAM, criado pelo comandante Fidel Castro há quase duas décadas, já formou mais de 29 mil médicos de vários continentes, a maioria jovens de famílias humildes do chamado terceiro mundo e também dos Estados Unidos.

Essa já famosa e reconhecida Escola faz parte do amplo programa de saúde através do qual Cuba estende conjuntamente a colaboração médica a numerosos países, onde muitos jovens formados por professores cubanos retornam às suas comunidades para contribuir para a sustentabilidade de seus sistemas de saúde.

A mais recente formatura do ELAM contou com a participação de jovens graduados de vários países e em minha recente visita ao Equador pude entrevistar dois médicos equatorianos que estudaram em Cuba, Fernando Cruz Quishpe e Martí Quevedo Pinos. Eles participaram do ato realizado em Havana e, em seu país, administram a Associação Plurinacional de Estudantes e Graduados em Cuba, que leva o nome de ELOY ALFARO, o velho lutador equatoriano, que governou o país no final do século 19 e início do século 20.

Aos jovens equatorianos que se formaram na ELAM, agradeço-lhes por sua solidariedade às vítimas causada pelo tornado que atingiu diversos municípios de Havana em janeiro passado, e lembro que Eloy Alfaro foi o único presidente de um país da América Latina que  escreveu, em 19 de dezembro de 1895, à rainha regente da Espanha, pedindo a independência de Cuba.

"Amor com amor se paga", dizia o provérbio pronunciado pelo herói da independência cubana José Martí,  com extraordinário sucesso no Teatro Principal da Cidade do México, na noite de 19 de dezembro de 1875, exatamente vinte anos antes do gesto de Eloy Alfaro para Cuba.

Assim que nos parece impossível esquecer ações como as de Eloy Alfaro e as dos jovens doutores equatorianos Fernando Cruz e Martí Quevedo, que também não esquecem a solidariedade de Cuba e o exemplo da ELAM, a escola de medicina latino-americana, centro de altos estudos onde eles e milhares de outros jovens do mundo foram formados.

FONTE: IELA - Instituto de Estudos Latino-Americanos


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Para tentar decifrar o enigma chinês


Um novo paradigma econômico, de crescimento acelerado e duradouro? A repetição monótona do capitalismo de Estado. Artigo recém-publicado revela uma realidade muito mais complexa




Por Alberto Gabriele e Elias Jabbour, no Le Monde Diplomatique 

Artigo recente publicado na agência Xinhua (1), assinado por Zheng Xin e Wang Xiuqiong chama a atenção a um tema/questão cada vez mais recorrente entre os economistas, sobretudo heterodoxos: dado o longevo, robusto e resiliente crescimento econômico por quase quatro décadas, o caso chinês já pode ser considerado como um paradigma, nomeado, conforme os autores do artigo, “Sinomics”?

O artigo, na verdade, é um tanto quanto sem profundidade, mas guarda o mérito de ao expor a visão de alguns dos mais renomados economistas chineses de lançar luz à forma como os próprios economistas chineses tem tratado o desenvolvimento recente de seu próprio país. A principal referência intelectual do artigo, o professor Li Daokui – ex consultor do Banco Mundial – faz uma observação interessante, onde coloca como “obrigação dos economistas contemporâneos chineses  sintetizar as novas teorias surgidas nas últimas décadas em linguagem compreensível ao restante do mundo (…)”.

Sobre as novas teorias surgidas, o artigo indica as influências intelectuais sobre o professor Li, dentre as principais, “o marxismo, as teorias ocidentais sobre a economia de mercado e o legado do pensamento dos clássicos chineses”. O texto ainda chama a atenção a observações de outros economistas chinesas indicando direção semelhante à do professor Li.

De nossa parte, gostaríamos de expor alguns apontamentos. É evidente que o processo de desenvolvimento econômico chinês após 1978 já guarda particularidades suficientes para alçar o referido processo ao grau de “novo paradigma”. O nome deste paradigma (Sinomics), sugerido no artigo, é interessante, mas não suficiente para encerrar a discussão. Ao contrário, trata-se de um bom ponto de partida.

A nosso ver, o que ocorre na China é a emergência de uma “nova formação econômico-social” (FES) onde modos de produção (MP) que surgiram em diferentes épocas históricas convivem entre si em uma verdadeira “unidade de contrários” sob a égide e predominância da grande propriedade estatal/socialista concentrada no núcleo da grande produção industrial (mais de uma centena de conglomerados empresariais estatais), na grande finança (bancos estatais, provinciais e municipais de desenvolvimento) (1).

O sistema político e socioeconômico chinês, observado holisticamente, é uma estrutura de tal diversidade (dado a combinação de diversas formas e sub-formas de propriedade) que não cabe sua caracterização/simplificação como “capitalista de Estado”, conforme acreditam desde muitos ortodoxos até a ampla maioria dos pesquisadores marxistas. Assim como formas binárias de percepção do fenômeno (por exemplo, a China como puramente “capitalista” ou “socialista”) – além de impor uma categoria apriorística sobre uma realidade em evolução –, pois simplesmente ignoram as imensas contradições e complexidades anexas a esta unidade de análise – daí a conceituação do fenômeno chinês como “socialismo de mercado” ser mais fiel a uma formação complexa e onde percebe-se a existência de uma clara totalidade sob forma, já exposta acima, de “unidade de contrários” .  Indo ao específico, sobre este aspecto (controle, ou não sobre a propriedade), vale lembrar que neste conjunto o Estado exerce controle tanto sobre os principais preços macroeconômicos (taxas de juros e câmbio) quanto no comércio exterior, tratado como um bem público, planificado e de Estado (2).

Por outro lado é verdade que existe um importante setor privado na economia chinesa (3), porém – dado a forte presença do setor estatal nos setores estratégicos da economia (com capacidade de gerar efeitos de encadeamento sobre toda a economia, tornando o setor privado um simples ancilar, beneficiário dos citados efeitos de encadeamento) – um olhar mais atento aos dados seria suficiente para demonstrar ser verdade a opinião de Trump e de seus assessores de que o controle exercido pelo Estado e o Partido Comunista da China (PCCh) sobre a economia chinesa é muito maior do que se imagina. Principalmente através da influência – direta e indireta – que o Estado e o PCCh exercem sobre (além dos conglomerados estatais) as empresas mistas (sobretudo nas denominadas em inglês Limited Liability Companies) (4).

Outra questão reside no surgimento, ou não, de novas teorias em meio aos desafios impostos pelas contradições surgidas em meio a este longo processo de desenvolvimento. Na mesma linha de raciocínio do texto publicado pela Xinhua, os professores Cheng Enfu e Ding Xiaoqin publicaram em 2017 na Monthly Review (5), um bom artigo onde também apontam no sentido de a China não poder ser vista – conforme o senso comum acadêmico – como um “milagre”, “modelo chinês” ou em termos de “keynesianos” ou “neoliberais”.

Ambos afirmam, contrariando todo e qualquer senso comum sobre o tema, “que as principais conquistas econômicas recentes no país, são devidas aos avanços teóricos em matéria de Economia Política originados na própria China. O artigo avança ao elencar os chamados “Oito Princípios da Economia Política Contemporânea Chinesa”, que basicamente tem como sólida base a relação virtuosa entre um Estado forte de estrutura de propriedade pública dominando o mercado (6).

A nosso ver, os avanços teóricos em matéria de Economia Política por parte dos chineses não somente ocorreram, como devem estar ocorrendo. Porém, de antemão podemos apontar que o paradigma do “socialismo de mercado”, que conjuga tanto uma nova FES como uma nova teoria do processo de desenvolvimento de uma realidade específica, demanda – por exemplo – uma visão mais ampla, larga e moderna de categorias marxistas como formação econômico-social e modo de produção e abrirmos mão de visões utopizantes assentadas, também e, por exemplo, em noções que atribuem ao socialismo a uma mera etapa de transição entre o capitalismo e o comunismo.

Um olhar com mais profundidade, e menos idealismo, sobre o socialismo faz-se necessário, inclusive pelas imensas contradições inerentes à experiência chinesa, sobretudo no que tange a desigualdade de renda territorial e social. Por um lado, políticas excessivamente liberais adotadas nas décadas de 1980 e 1990 levaram à formação de um grande fosso separando as zonas rurais das urbanas e entre ricos e pobres (7). Por outro, é visível a tendência recente de melhora na distribuição de renda (pela via da aplicação de diversas políticas públicas, incluindo a formalização de leis que regulam a relação capital x trabalho, início da construção de um poderoso Estado de Bem-Estar Social e aumentos salariais verificados nos últimos dez anos acima da produtividade do trabalho). Ao lado da retomada de programas sociais típicas à época das comunas rurais (principalmente os relacionados à área da saúde pública), imensos investimentos em infraestruturas nas zonas e províncias mais pobres do país, indicando – em perspectiva histórica e estratégica – inaugurando novas e superiores formas de divisão social do trabalho (8).

Acreditamos guardar muito sentido a opinião de Piketty que indica que uma melhora nos indicadores sociais na China demanda o rápido desenvolvimento de impostos progressivos sobre a renda e a riqueza e a institucionalização de políticas de caráter social-democrata. Porém, a bem da verdade é importante salientar que se assumimos os limites em matéria de distribuição de renda, também deve se considerar que a China é um grande, populoso, diverso e complexo país com uma zona rural nada pequena (cerca de 400 milhões de pessoas ainda estão ocupadas em formas pré-capitalistas de produção de alimentos). Logo, não é prudente comparar o índice de Gini chinês com o verificado em países como a Itália, Suécia ou a Coreia do Sul, dadas tanto as próprias diferenças na natureza do emprego e da renda existentes entre as atividades rurais e industriais, quanto as diferenças de produtividade do trabalho verificados entre as diversas províncias chinesas.

Acrescido das contradições expostas da experiência socialista chinesa em curso, apontamos que a resistência demonstrada pelo capitalismo, que resiste e se desenvolve mesmo em meio a violentas crises, e os novos desenvolvimentos do socialismo na China e no Vietnã nos coloca o desafio de observar o socialismo apropriado para a presente época histórica como uma combinação complexa de modos de produção, constituído no moderno socialismo de mercado (9), a ser melhor observado, estudado e compreendido. O desafio da construção de uma “Economia Política do Socialismo de Mercado” talvez seja o maior desafio teórico imposto aos marxistas na contemporaneidade. Eis o paradigma a ser desvendado.

Por fim, sendo o socialismo de mercado o verdadeiro nome do paradigma econômico de nossa época tendo como núcleo a atual experiência chinesa, o desafio teórico desloca-se ao modus operandi desta nova FES. Ao menos dois pontos de análise são pertinentes e guarda relevância à explicação do processo em curso na China: 1) O desenvolvimento/crescimento do macro-setor não produtivo da economia (infraestruturas sociais, por exemplo) em detrimento relativo do macro-setor produtivo e 2) a ocorrência e a regularidade de ciclos decenais de inovações institucionais que tem permitido um fenômeno de alta relevância à explicação do crescimento econômico chinês: de um lado o crescimento qualitativo do papel do Estado (tornando-se, nas palavras de Henderson, o “empreendedor-em-chefe”; o agente direto da coordenação/socialização do investimento), de outro o crescimento quantitativo do setor privado, ancilar à grande propriedade socialista.

Eis alguns pontos essenciais que acreditamos guardar grande sentido não somente para explicar o desenvolvimento chinês. Mas, principalmente ao apontamento do socialismo do século XXI como uma alternativa plausível, concreta e longe de utopismos de qualquer natureza.


(1) China Focus: Reform, opening-up to inspire world with “Sinomics”, 19/12/2018.  Disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/2018-12/19/c_137684768.htm

(2) Sobre essa afirmação (“socialismo de mercado” como uma NFES), ler: GABRIELE, A.; SCHETTINO, F. (2012). Socialist market economy as a distinct SEF internal to the modern MP. New Proposals: Journal of Marxism and Interdisciplinary Inquiry, v. 5, n. 2, p. 20-50; GABRIELE, A. (2014): The Role of the State in China’s Industrial Development: A Reassessment. Comparative Economic Studies, v. 52, n. 3, p. 325-350; GABRIELE, A. (2016): Lessons from Enterprise Reforms in China and Vietnam. Journal of Economic and Social Thought, v. 3, n. 4, p. 915-936; JABBOUR E.; DANTAS, A. (2017): The political economy of reforms and the present Chinese Transition. Brazilian Journal of Political Economy, v. 37, n. 4, p. 789-807; JABBOUR E.; DANTAS, A. (2018): Na China emerge uma Nova Formação Econômico-Social. Princípios, nº 154, p.70-86 e JABBOUR, E.; PAULA, L. F. (2018). A China e a “socialização do investimento”: uma abordagem Keynes-Gerschenkron-Rangel-Hirschman. Revista de Economia Contemporânea, n. 22 (1), p. 1-23.

(3) Estudos empreendidos por nós, a serem publicados em breve, tem apontado o exemplo da Huawei como algo muito interessante e particular, um verdadeiro case. Esta empresa encontra-se na vanguarda do desenvolvimento da tecnologia 5g. É enquadrada, juridicamente, como uma empresa privada, porém – no concreto –, trata-se de uma singular forma mista de propriedade cooperativa onde seus trabalhadores possuem (mesmo que desiguais) cotas de participação. Seu fundador é um ex-membro do Exército Popular de Libertação. Suas relações com o Estado são semelhantes com as mantidas entre a Motorola, Boeing ou a General Motors com o estado norteamericano, com a diferença, podendo parecer paradoxal, que na China a palavra de maior peso nas decisões de investimento estratégico da empresa é dada pelo Estado.

(4) Um artigo interessante atestando com afirmações e dados esse real controle do Estado e do Partido Comunista sobre a economia chinesa pode ser encontrado em: FAN, J; MORCK, B; YEUNG, B. (2011). Capitalizing China. NBER Working Paper, n.17687, December. Disponível em: https://www.nber.org/papers/w17687

(5) ENFU, C; XIAOQIN, D. (2017).  A Theory of China’s ‘Miracle’. Monthly Review, v. 68, n 8, p. 12-23, January. Disponível em: https://monthlyreview.org/2017/01/01/a-theory-of-chinas-miracle/

(6) Os “Oito Princípios” seriam: 1) Crescimento sustentado pelo avanço da Ciência e Tecnologia; 2) Produção orientada ao bem-estar da população; 3) Dominância da propriedade pública; 4) A primazia do trabalho na distribuição da riqueza; 5) O princípio do mercado orientado pelo Estado; 6) Conjugação de rápido crescimento com alta performance; 7) Desenvolvimento equilibrado sob coordenação estrutural e 8) Soberania econômica e abertura.

(7) Provavelmente, e também, a piora em certos indicadores sociais entre as décadas de 1980 e 1990 deve-se, principalmente, ao fim de programas sociais que atuavam no âmbito das comunas (por exemplo, a ação dos “médicos descalços”). Ou seja, o desmantelamento das comunas foi fator de forte impacto social negativo

(8) Desde, na primavera de 1999, com o lançamento do “Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste”, o país tem lançado mão de ousadas políticas de desenvolvimento territorial com vistas à completa unificação de seu território econômico.

(9) O que existe hoje na China (o “moderno socialismo de mercado”), sob nosso ponto de vista, é uma forma de organização e intervenção do Estado na economia gerindo (e gerando) uma nova formação economico-social (FES) de caráter complexa. Não se trata de um modelo a ser seguido necessariamente por outros países, nem tampouco uma expressão dos modelos teóricos de socialismo de mercado surgidos desde a década de 1930 e presente nas obras de economistas poloneses como Oskar Lange, Wlodzimierz Brus, Kazimieri Laski e mais recentemente em trabalhos de Alec Nove.

*Alberto Gabriele é pesquisador independente e colaborador da Universidade de Nápoles e Elias Jabbour é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCE-FCE-UERJ)


domingo, 1 de dezembro de 2019

Trinta anos depois: a queda do Muro de Berlim em perspectiva histórica


 Queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989



Por Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles O Martelo da História.

Que a socialização dos meios de produção (…) representa um tremendo benefício econômico se pode demonstrar hoje em dia não só teoricamente, mas também com a experiência da União Soviética, apesar das limitações desse experimento.  É verdade que os reacionários capitalistas, não sem artifício, utilizam o regime de Stálin como espantalho contra as ideias socialistas. Na realidade, Marx nunca disse que o socialismo poderia ser alcançado em um só país e, ademais, em um país atrasado. As contínuas privações das massas na União soviética, a onipotência da casta privilegiada que se levantou sobre a nação (…) não são consequências do método econômico socialista, mas do isolamento e atraso da Rússia, cercada pelos países capitalistas. O admirável é que nessas circunstâncias, excepcionalmente desfavoráveis, a economia planificada (…) tenha demonstrado seus benefícios insuperáveis. [1]

Se não é possível negar, antecipadamente, a possibilidade, em casos estritamente determinados, de uma frente única com a parte termidoriana da burocracia contra a ofensiva aberta da contrarrevolução capitalista, a principal tarefa política na URSS continua sendo, apesar de tudo, a derrubada da própria burocracia termidoriana. O prolongamento de seu domínio abala, cada dia mais, os elementos socialistas da economia e aumenta as chances de restauração capitalista.[2]

Leon Trotsky


A queda do Muro de Berlim divide, até hoje, apaixonadamente, a maioria do ativismo de esquerda. É compreensível que seja assim, porque se o desmoronamento das ditaduras burocrático-estalinistas despertou simpatia, a restauração capitalista foi um dos processos contrarrevolucionários mais importantes do final do século XX.

Foram os trabalhadores e a juventude quem saiu às ruas contra o regime. Mas não é verdade que as amplas massas queriam capitalismo. A percepção de que foram as mobilizações populares o principal fator que abriu o caminho para a restauração do capitalismo não é consistente com a pesquisa histórica, mas ainda prevalece, tão grande foi a campanha ideológica imperialista.

Neste terreno, auxiliada, valiosamente,  pelo estalinismo remanescente na Europa e América Latina, que não hesitou em responsabilizar as massas por aquilo que estava sendo feito pelo chefes dos Partidos Comunista da ex-URSS, Gorbatchev e Ieltsin. As consequências político-ideológicas da queda do Muro de Berlim, e do que aconteceu em seguida com a dissolução da URSS, foram devastadoras para a luta mundial pelo socialismo.

Tanto o imperialismo quanto os partidos de esquerda com maior autoridade coincidiram, por razões diferentes, em afirmar que aquilo que foi derrubado era o socialismo. A maioria da nova geração que chegou à vida adulta após estes acontecimentos deixou, portanto, de ter no socialismo uma referência.

A história foi sempre um campo de batalha das idéias. A distinção entre o que foi progressivo, historicamente, e o que foi regressivo é o cerne da investigação do passado. Compreender na seqüência aparentemente caótica dos acontecimentos, quais são aquelas mudanças que abriram caminho para um mundo menos desigual, e aquelas que preservaram injustiças, deveria ser a primeira obrigação de qualquer investigação. A honestidade intelectual mais elementar é posta à prova na hora de separar o que foi revolucionário do que foi reacionário. Mas é muito menos simples do que pode parecer.

A historiografia e a esquerda de educação marxista foram incapazes de analisar o que estava acontecendo na China, no Leste europeu e na URSS durante os anos oitenta. Nem sequer aqueles que eram mais críticos aos rumos destes Estados, como os que se educaram na tradição trotskista, estiveram à altura do desafio histórico. A explicação é simples, embora o problema seja complexo: tudo o que acontece pela primeira vez na história é mais difícil de compreender. Compreender e valorizar o que significavam as estratégias de Deng Xiao Ping e Gorbatchev no calor dos acontecimentos demonstrou-se muito difícil.

As massas de trabalhadores e jovens em luta que se lançaram sobre o Muro de Berlim moviam-se reativamente às sequelas das medidas dos governos que estavam destruindo suas já precárias condições de existência anteriores. Não fizeram nada muito diferente do que os seus irmão de classe em todas as revoluções da história contemporânea. Revoluções políticas iniciaram-se sempre como processos destrutivos.

Quando milhões de pessoas se levantam, revolucionariamente, para derrubar regimes odiados não saem às ruas com um plano pré-estabelecido de como gostariam de reorganizar a vida social. Esses projetos político-sociais mais complexos, ou seja, estes programas, estão nas mãos de grupos, movimentos, partidos ou lideranças que aspiram, lutando impiedosamente uns contra os outros, à representação da vontade popular e á luta pelo poder.

A oposição anti-burocrática no Leste europeu e na ex-URSS teve referência no marxismo somente até 1968. Depois da invasão da Tchecoslováquia, o marxismo passou a ser, infelizmente, uma corrente literária corajosa, porém, marginal. Que o estalinismo tenha usurpado para a defesa das ditaduras a autoridade do marxismo durante décadas ajuda a compreender esta catástrofe.

Na escala da história, a restauração capitalista no Leste Europeu e na ex-URSS foi a maior derrota histórica da luta pelo socialismo. Essa é a gravidade incontornável. Trinta anos depois, o intervalo de uma geração, qualquer debate sério e honesto tem que partir desta constatação. Não triunfou nenhuma revolução social desde 1989. Somente revoluções políticas, aquelas em que se derrubam governos e regimes odiados, venceram.

A restauração capitalista definiu a abertura de uma nova etapa histórico-política que começou, na década dos anos 1990, com uma situação reacionária. Favoreceu uma contra-ofensiva capitalista muito poderosa que se manifestou em dinâmicas de recolonização na periferia dos países dependentes, e a destruição maior ou menor dos direitos sociais nos países centrais.

As mobilizações anti-burocráticas de milhões de trabalhadores e jovens partiram de graus de inexperiência política tão grandes que, mesmo um quarto de século depois, a capacidade de organização independente é muito pequena. Se há uma região do mundo em que o marxismo é pouco influente neste século XXI é na Rússia e no Leste Europeu. Infelizmente, o mesmo quadro desolador persiste na China, ainda que, como sugerem as greves dos últimos anos, com maior capacidade de recuperação do proletariado.

Mas tudo isso não permite concluir que a queda do muro de Berlim em 1989 foi uma tragédia histórica.[3] Por que igualar, ou até responsabilizar a queda do Muro de Berlim com a restauração é abusivo. Foi o acontecimento gatilho da última das ondas revolucionárias internacionais do século XX. E a mais incompreendida de toda a história. No calor dos acontecimentos, a sua grandeza escapou à compreensão da maioria da esquerda, e dos estudiosos brasileiros que foram educados em décadas de influência das teorias campistas que subverteram a interpretação marxista.

O campismo foi, na segunda metade do século XX, ao lado do gradualismo democrático-reformista, a mais influente teoria na esquerda mundial. Os campistas apoiavam seus argumentos com uma demonstração simples de sua estratégia. O mundo estava dividido em dois campos, o capitalista e o socialista. Seria uma questão de tempo para que a superioridade do socialismo fosse arrasadora. Revoluções sociais tinham sido enterradas pela história, porque o arsenal nuclear do imperialismo ameaçava a própria existência da civilização. Logo, toda a tática consistia em ganhar tempo para que a transição ao socialismo por via pacífica, respeitando as formas democráticas das Repúblicas burguesas, fosse conquistada. A coexistência pacífica favorecia, presumia-se, a passagem ao socialismo. A luta de classes deveria estar subordinada aos interesses diplomáticos da URSS nas relações com os EUA: a situação mundial se resumia a uma luta entre Estados.

Influenciou gerações, afirmando que o mundo estava dividido em dois campos: o capitalista e o socialista, irreconciliáveis, sendo este último, presumidamente, a retaguarda estratégica das lutas de classes contra o imperialismo, apesar das oscilações da coexistência pacífica. Algumas poucas vozes marxistas alertaram para as perigosas consequências dos critérios campistas.[4]

A decadência indisfarçável dos regimes ditatoriais depois da revolução operária polonesa de 1980/81 liderada pelo Solidariedade a partir da greves de Gdansk já não permitia os entusiasmos dos anos cinqüenta, mas a influência tardia do estalinismo levou muitos dirigentes da esquerda – tanto no PCB e PCdB, quanto até no PT – a um olhar de suspeita sobre as mobilizações de massas na Alemanha, a greve geral na Tchecolosváquia e a insurreição na Romênia. Não obstante, as revoluções anti-burocráticas foram das mais massivas, justas, corajosas, portanto, legítimas da história, sejam quais forem os critérios de comparação com outras revoluções democráticas.

Já a decisão da maioria do Comitê Central do Partido Comunista da China de apoiar o plano das Quatro Modernizações defendido por Deng Xao Ping em 1978, e o XXVII Congreso do Partido Comunista da União Soviética em fevereiro de 1986, quando Gorbatchev conquistou o apoio para a perestroika estão entre os segundos e, ao contrário do que pensou na ocasião a maioria da intelectualidade de esquerda, não foram decisões que abriam o caminho para uma renovação do socialismo, mas para a restauração do capitalismo. Aqueles que reduzem explicações históricas de processos complexos ao balanço dos seus resultados, acabam atribuindo o que foi obra da contra-revolução à revolução.

Dois processos de natureza diversa e de signos históricos opostos, estão associados, portanto, a 1989: a restauração capitalista foi um processo contrarrevolucionário essencialmente nacional, conduzido de cima para baixo pelos Estados e pelas burocracias dos PC’s de cada país em ritmos diferentes; e a queda do muro de Berlim foi a expressão mais espetacular de uma onda de revolução democrática internacional, uma rebelião de baixo para cima de amplíssimo apoio popular, que iniciou na Praça Tian An Men em Pequim e foi derrotada no 4 de junho de 1989 com uma carnificina, mas obteve no 9 de novembro na Alemanha a primeira de uma série de vitórias que derrubaram, na seqüência, os regimes ditatoriais na Polônia, na Hungria e, antes do fim de dezembro, na Romênia.

A restauração capitalista foi uma transformação econômico-social que estava colocando abaixo a propriedade estatal, o monopólio do comércio exterior e o planejamento estatal e reintroduzindo a propriedade privada, a relação direta das empresas com o mercado mundial e a regulação mercantil.

A revolução política-democrática de 1989 foi uma vaga de lutas populares que uniu na rua a maioria da classe trabalhadora e da juventude em marchas, ocupações e greves que derrubaram os regimes monolíticos de partido único estalinistas que estavam conduzindo a restauração capitalista, e que agonizavam em função das seqüelas econômico-sociais que estavam provocando.

Embora a última crise econômica mundial em 2007/08 tenha demonstrado que os limites históricos do capitalismo são cada vez mais estreitos, do ponto de vista subjetivo estamos em condições tão adversas que são até piores que aquelas que viveram os internacionalistas da II Internacional, em minoria, antes da vitória da revolução de Outubro em 1917. Por uma razão central: a maioria da classe trabalhadora, mesmo nos países em que a industrialização já permitiu a configuração de uma classe operária importante, não abraça mais a esperança do socialismo.

Mas a luta de classes abrirá o caminho. Excessos de pessimismo histórico, mesmo se compreensíveis, não são racionalização realista. As próximas crises do capitalismo colocarão em movimento, inevitavelmente, os batalhões mais concentrados dos que vivem do trabalho.

O proletariado do século XXI é mais poderoso que o do século passado: é mais instruído, está mais concentrado, e tem melhores condições político-sociais de arrastar atrás de si a maioria oprimida. Será nos calores destes embates que virão que se acelerará a reorganização da esquerda marxista.


NOTAS

[1] TROTSKY, Leon. El pensamiento vivo de Marx. Buenos Aires, Losada, 1984, p.43.
[2] TROTSKY, Leon. Programa de transição: a agonia mortal do capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional. São Paulo: Proposta, 1981.
[3] SADER, Emir, A Esquerda depois do Muro, in
[4] A tradição associada à elaboração de Leon Trotsky se destacou na reivindicação da centralidade do internacionalismo socialista: o antagonismo entre capital e trabalho permanecia a contradição ordenadora para um projeto socialista. Os internacionalistas reconheciam a existência de inúmeras outras contradições. Admitiram que seria justo se posicionar em defesa dos Estados pós-capitalistas contra os capitalistas, em defesa das nações oprimidas contra as opressoras, em defesa de regimes democráticos quando ameaçados pelo perigo de quarteladas ditatoriais, etc. Mas sustentaram que os antagonismos de classe continuavam sendo a contradição fundamental do capitalismo. Um projeto anticapitalista dependeria, estrategicamente, da reconstrução de um movimento operário internacional. Uma análise lúcida das distintas interpretações campistas – pró Moscou, ou pró Pequim – foi feita por Perry Anderson no seu clássico Considerações sobre o marxismo ocidental. Lisboa, Afrontamento, 1976.