domingo, 26 de janeiro de 2020

Socialismo de mercado: o caminho chinês para o desenvolvimento



Por Alessandra Scangarelli Brites.



Ao contrário do que se pensa, capitalismo e socialismo são modelos políticos e socioeconômicos com diversas facetas que surgem e desaparecem ao longo das décadas tanto em nível internacional, como nacional, particular dos países onde foram implantados. Sendo mais clara, o capitalismo que foi incorporado pela grande maioria dos países, em uma visão marxista, tem flutuações econômicas em gerais cíclicas, próprio da dialética deste sistema, onde os elementos que geram o ápice, a prosperidade, também mais tarde levam à crise e ao declínio.

Em diferentes épocas da história humana, os ciclos deste modelo sistêmico tiveram o comércio, primeiro, e a indústria, segundo, como condutores das forças produtivas. Atualmente, as “regras do jogo” são estabelecidas pelo setor financeiro, o nível maior de acumulação do capital, em que se produz, no jargão popular, dinheiro pelo dinheiro e que se encontra em crise. Em cada uma destas fases históricas do capitalismo, o modelo foi implementado e adaptado às particularidades de cada nação. Portanto, é isso que faz possível encontrar diferenças da economia capitalista do Zimbábue com a da Inglaterra, por exemplo.

Neste ponto, especificamente, o socialismo, um modelo muito mais jovem e que teve suas primeiras experiências no século XX – enquanto o capitalismo, para alguns historiadores, iniciou no século XIII – com o advento do desenvolvimento chinês pode futuramente viver a segunda fase de seu processo histórico.


Modelo traz arcabouço capaz de promover
profundas mudanças no sistema internacional


A primeira caracterizou-se em grande parte pela construção da economia planificada, forma cuja produção é controlada pelo Estado, e o centro governamental das decisões estabelece metas e planos econômicos de como será ordenada e conduzida a economia do país. Desta maneira, as metas estabelecidas e as matérias-primas são distribuídas para as unidades de produção. E a decisão política de quanto do produto interno bruto deve ser investido e quanto dele deve ser consumido também é algo estabelecido pelo Estado. Assim, ocorreu no passado e ainda se caracteriza as economias socialistas.

Esta forma de promover a economia de cunho socialista funcionou bem em países como a Rússia, na época parte da União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS), que observaram um repentino desenvolvimento econômico e social em pouquíssimo tempo. Foi este modelo também responsável pela recuperação dos países da URSS, em todas as áreas, durante o período pós Segunda Guerra Mundial, chegando, no caso dos russos, a vencer a corrida espacial com os Estados Unidos.

Contudo, ao longo dos anos e com as novas demandas de uma sociedade que já conquistara educação, moradia, saúde, cultura, alimentação e ciência, tal modelo encontrou problemas justamente para responder a dinâmica dos novos tempos e buscar novas soluções para problemas que surgiam.

O plano norte-americano para isolar a União Soviética também funcionou, e por esta e outras razões foi colocado um fim a este sistema. Para substituí-lo, foi escolhido na Rússia um sistema capitalista de livre mercado, que apenas levou a uma crise geral profunda e quase desmantelamento do Estado russo, resultando em um declínio de 50% de sua economia.

Ao ter a chance de observar as escolhas de Moscou e o sistema conduzido por Washington, Pequim resolveu encontrar uma nova via entre as oportunidades que o socialismo pode render-lhe. Mao-Tse-Tung foi importante figura na expulsão das forças estrangeiras do território chinês, na mudança de paradigmas dentro da sociedade chinesa, que anteriormente mantinha valores bastante conservadores, e na reunificação da parte continental do país sob uma bandeira.

Sob sua liderança, a China promoveu medidas econômicas que resultaram em algumas mudanças importantes, mas tal modelo também teve grandes problemas e não foi suficiente para impulsionar as forças produtivas chinesas e corresponder às demandas econômicossociais necessárias do país e completamente diversas das russas.

Foi Deng Xiaoping, o líder que assumiu no lugar de Mao-Tse-Tung, que iniciou a construção de um caminho para uma nova alternativa de modelo econômico: o socialismo de mercado, algo que defendeu até sua morte em 1997.

Este sistema é, na realidade, uma mistura de vários sistemas econômicos, em que os meios de produção básicos são de propriedade estatal e/ou cooperativa, sendo operados de forma socialmente como uma economia de mercado. Conforme o professor de Oxford Allen Buchanan, os lucros gerados por empresas estatais são alocados para a remuneração direta dos empregados, ou acumulados em uma forma de financiamento público.

Para Alberto Gabrielle (Universidade de Nápoles) e Elias Jabbour (Uerj), em artigo já publicado, e fazendo referência a Li Daokui, intelectual chinês e ex-consultor do banco mundial, “o que ocorre na China é a emergência de uma ‘nova formação econômico-social’ (FES) onde modos de produção (MP) que surgiram em diferentes épocas históricas convivem entre si em uma verdadeira ‘unidade de contrários’ sob a égide e predominância da grande propriedade estatal/socialista concentrada no núcleo da grande produção industrial (mais de uma centena de conglomerados empresariais estatais), na grande finança (bancos estatais, provinciais e municipais de desenvolvimento)”.

Contudo, é importante relembrar que já durante os anos 1920 a União Soviética, com a Nova Política Econômica, antes da total implementação de uma economia planificada, indicava algumas características do que viria depois a ser o socialismo de mercado.

No entanto, os chineses iriam reformular tal prática, em especial com o programa de Deng Xiaoping sobre as Quatro Modernizações: indústria, agricultura, ciência e tecnologia e Forças Armadas. Trata-se de um amplo projeto nacional de política educacional, industrial, agrícola, ciência e tecnologia, e defesa, cujo Estado é o “empreendedor mor, o condutor” de todo o processo e permite o crescimento de um setor privado submetido as suas decisões. Mesmo ainda em processo de formação e construção, este modelo já traz um arcabouço político e econômico capaz sim de promover profundas mudanças no sistema internacional.



Alessandra Scangarelli Brites

Jornalista, editora da Revista Intertelas e especialista em relações internacionais e audiovisual russo e asiático.



terça-feira, 21 de janeiro de 2020

A social-democracia alemã gira à esquerda





Steve Hudson – Na última eleição interna, a base do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) desafiou a cúpula partidária para eleger uma dupla de esquerda à liderança – que pode pôr fim à “grande coalizão” com a centro-direita católica e dar nova vida à política socialista do país.

É difícil superestimar a importância dos resultados deste fim de semana para a política alemã. Uma dupla de esquerda relativamente desconhecida triunfou em uma eleição interna para a liderança do Partido Social Democrata Alemão (SPD), o mais antigo partido do país.

Saskia Esken e Norbert Walter-Borjans não derrotaram qualquer um. Venceram ninguém mais, ninguém menos, que Olaf Scholz, o atual ministro federal das Finanças e vice-chanceler. Ao votar a favor de mudanças, os filiados do SPD frustraram as previsões (e as preferências mal disfarçadas) de boa parte da mídia corporativa alemã.

O apoio de Esken e Walter-Borjans veio não da cúpula partidária, mas de centenas de milhares de ativistas de base – e de milhões de fora do partido, que observavam e ansiavam por mudanças. Sejam esses milhões de grevistas do clima, de militantes de esquerda ou de trabalhadores desiludidos, trata-se de uma vitória que soa como uma nota de esperança não apenas para o SPD, mas também para a Alemanha e toda a Europa.

Pode significar o fim da humilhante “grande coalizão” [dos social-democratas com a democracia-cristã] com os conservadores, sob a qual o SPD permitiu que o arrocho mortal da austeridade sufocasse toda a Alemanha e a Europa. Também poderia significar o fim da inação na catástrofe climática e uma ruptura genuína com o princípio de ‘Alternativlosigkeit’ (“Não há alternativa”) dos anos Merkel.

Se a vitória parece como uma repetição do fenômeno corbynista [a eleição de Jeremy Corbyn para líder trabalhista no Reino Unido, e o giro do partido a esquerda], é porque as semelhanças são mesmo evidentes. A fragmentada esquerda alemã tem olhado esperançosamente para o Partido Trabalhista como um dos poucos exemplos de renovação e revitalização política em um continente onde os outros partidos da esquerda estão morrendo em pé.

Na campanha “NoGroKo” [No Große Koalition] – a campanha ativista da esquerda do SPD contra mais uma grande coalizão com a centro-direita – estamos há muito tempo mobilizados por uma democracia mais direta e, especificamente, por uma eleição da liderança direta pela base (1 filiado, 1 voto). Sempre sentimos que essa seria a chave para rejuvenescer o partido.

E um rejuvenescimento se faz desesperadamente necessário. Após a derrota de Schröder em 2005, e todas as humilhações subsequentes desde então, a cúpula do SPD jurou “se renovar”. Prometeu essa renovação com tanta frequência que, de fato, a frase se tornou uma piada.

O humorista Jan Böhmermann até lançou seu nome no ringue para a disputa pela liderança do SPD com o slogan satírico ‘# Neustart19’ (“novo começo número 19”). Mas com a promoção na hierarquia partidária dependendo do elogio às “reformas de Schröder”, nem o pecado cardinal nem os pecadores cardeais que colocaram o SPD nessa situação desastrosa podiam ser postos em debate.

Ainda hoje, existem aqueles que continuam alegando que a guinada dos trabalhistas britânicos a esquerda é um passivo eleitoral. Embora seja um clichê comum na boca da mídia centrista da Grã-Bretanha, trata-se de uma afirmação que soa ridícula quando vinda de auto-proclamados eurófilos, que parecem surpreendentemente ignorantes a respeito do destino dos partidos irmãos da social-democracia européia.

Em 1998, os social-democratas alemães entraram no governo, sob liderança de Schröder, com 40% dos votos. Hoje, as pesquisas os colocam com algo entre 13 e 15%. Em outros países, claro, a situação é ainda pior – veja o Partido Socialista na França, que não conseguiu escapar de ser esmagado nas últimas eleições presidenciais, e agora está caindo aos pedaços completamente.

A morte da centro-esquerda não deve encher ninguém de alegria: em vez de impulsionar novos partidos ou coalizões de esquerda, o que acabou acontecendo foi o encolhimento das maiorias progressistas, com um número cada vez maior de eleitores desertando para a direita autoritária em ascensão – xenófoba e inescrupulosamente mentirosa – que está agora no poder na Grã-Bretanha e em grande parte do continente europeu.

Mas agora, na última chamada, as bases do SPD parecem ter salvado seu partido – e, por extensão, a Alemanha e possivelmente até a Europa – elegendo uma dupla de esquerda para a liderança. A votação coloca o SPD em um novo rumo que, pela primeira vez, rompe com o desastroso legado do último governo majoritário do partido, com Gerhard Schröder.

Abraçando a lógica da globalização da corrida ao fundo do poço, Schröder cortou avidamente benefícios sociais, proteções trabalhistas e impostos sobre os mais ricos – jogando milhões de alemães na pobreza e na insegurança, aumentando os lucros do capital e alienando fundamentalmente o partido de suas próprias origens e de sua base de eleitores na classe trabalhadora.

Scholz, o derrotado na disputa, concorreu pela liderança como defensor dessas “reformas” de Schröder e das várias “grandes coalizões” do SPD com a CDU [Partido da Democracia Cristã] desde então. Quando jovem, ele pertencia à corrente chamada Stamokap [“Staatsmonopolistischer Kapitalismus”, Capitalismo Monopolista de Estado], que teorizou os monopólios privados sustentados pelo poder do Estado como o último estágio do capitalismo financeirizado.

No poder, porém, Scholz ficou mais conhecido como agente desses monopólios do que como um crítico, trazendo um banqueiro do Goldman Sachs como consultor para o ministério das finanças e informando seus colegas da União Europeia que pretendia seguir a linha de austeridade ordoliberal mórbida de seu antecessor no ministério das Finanças, o agressivamente conservador Wolfgang Schäuble.

Em um momento de taxas de juros negativas e uma enorme deficiência de longo prazo nos gastos alemães em infraestrutura, Scholz se apegou absurdamente à política de equilíbrio orçamentário ‘schwarze null’ [pela qual o governo alemão se compromete a manter um orçamento não-deficitário sem definição], que proíbe qualquer nova dívida pública. Um político já pouco carismático nos seus melhores dias, as mal-sucedidas tentativas de Scholz, no último minuto, de adotar posições mais a esquerda para a eleição da liderança careciam de qualquer credibilidade.

E credibilidade é precisamente o que os vencedores têm: ambos vêm de fora da hierarquia do partido, e ambos são capazes de se distanciar das más decisões dos anos anteriores. Uma ex-motorista de entregas, que se formou em um curso para adultos e passou a trabalhar com Tecnologia da Informação, Saskia Esken se rebelou contra a linha do partido, tanto em direitos digitais quanto em leis de imigração.

O mais escandaloso: ela fala abertamente de socialismo – uma palavra que é tabu para grande parte do mainstream alemão, que a associa com a repressão e as liberdades civis reduzidas da antiga Alemanha Oriental.

Norbert Walter-Borjans, por sua vez, traz consigo amplo conhecimento prático de governo como ex-ministro das Finanças da Renânia do Norte-Vestfália, o maior estado da Alemanha, com uma população de 18 milhões de habitantes. Incrivelmente, ele ganhou destaque nacional no cargo por comprar CDs roubados com listas de sonegadores de impostos alemães, que mantêm dinheiro ilegalmente na Suíça.

Embora se trate de prática normal para a polícia e os serviços secretos, a ideia de pagar por músicas que podem pôr em risco os ricos provocou urros de indignação dos lobistas, da mídia de direita e de boa parte do 1% alemão, para quem a evasão fiscal é um esporte de cavalheiros.

Em contraste marcado com tantos colegas do SPD no governo, e com uma compreensão detalhada e magistral dos aspectos técnicos, Walter-Borjans deu todo apoio aos seus fiscais, enfrentou orgulhosamente os ataques e trouxe de volta para a Alemanha, em receita tributária, 7 bilhões de euros em ativos escondidos ilegalmente. Sua disposição para não recuar no caso até lhe valeu um apelido particularmente britânico: Robin Hood.

Tomar dos ricos para dar aos pobres é precisamente o que as pessoas esperam que o SPD faça. Walter-Borjans passou todo o ano anterior promovendo entusiasmadamente seu livro, no qual examina criticamente o fracasso do SPD em fazer isso que se esperaria de um partido social-democrata.

Em “Impostos – o grande blefe”, ele também ataca ferozmente a influência perniciosa dos lobistas, e de suas fake news, na tomada de decisões políticas. Sua linguagem é geralmente moderada, mas as implicações de sua conclusão são radicais: sem freios, o capital é uma ameaça a qualquer tentativa de conformar um campo equilibrado para o jogo democrático.

Parafraseando Margaret Thatcher, a maior conquista do neoliberalismo foi a captura ideológica dos partidos de centro-esquerda. Mas o neoliberalismo não está funcionando. Tendo prometido prosperidade e igualdade de oportunidades para todos, provou ser um promotor de desigualdade obscena, da catástrofe climática e agora na ascensão da extrema direita.

Podemos assumir com segurança que as crianças nascidas hoje levarão uma vida pior do que a nossa. Neste momento, uma alternativa genuína ao status quo não é mais uma demanda de uma radicalismo marginal – é uma demanda majoritária, das pessoas comuns.

Mas, para que essa política encontre expressão em nossos partidos políticos, as estruturas devem ser abertas à contribuições democráticas de baixo pra cima. Qualquer instituição – partidos, indústrias nacionalizadas, sindicatos – que mantenha estruturas que permitam a grupos privilegiados controlar feudos e distribuir generosidades deve ser aberta a uma transparência radical, responsabilização e democracia direta. A alternativa é tropeçar vacilante sob o peso do passado e, eventualmente, ser sufocado por ele.

Para os militantes do SPD, este é apenas o começo. Os cruéis contra-ataques da mídia, e até da direita do partido, pegaram a muitos de surpresa. Mas é o resultado inevitável de quando um grupo organizado de operadores políticos, com íntimos contatos na mídia, vê ameaçado o controle sobre as próprias carreiras.

Animem-se, camaradas. Ainda vai ficar muito, muito pior. Mas se vocês estão incomodando o status quo, é sinal claro de que algo certo estão fazendo. E é precisamente essa oposição que os forçará a se organizarem e criarem seu próprio estrutura de poder – de baixo para cima.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Há uma nova rebelião global. Por quê?





Ben Ehrenreich – Do Chile e Haiti à França; do Líbano ao Sudão e Hong Kong: multidões inquietam-se. Não se movem pela disputa clássica entre esquerda e direita. Mas pronunciam, em comum, um já basta – dirigido à desigualdade e à vida-mercadoria.

Algo – alguém – continua batendo na porta. Está frio lá fora e está ficando mais frio, mas as pessoas do lado de dentro estão confortáveis no sofá com a TV ligada e um cobertor no colo. Então, vem aquela batida de novo: na porta da frente agora, depois na porta lateral e depois atrás. Talvez seja o vento. Agora batem nas janelas, no telhado e nas paredes da casa – quem sabia que eram tão finas? É difícil entender: como tantas pessoas podem bater de uma vez?

Mas eles estão, e está ficando mais alto. Na semana passada, as batidas vieram da Colômbia – em Bogotá, Cali, Cartagena, Barranquilla, Medellín, um toque de recolher declarado, o exército nas ruas – e na semana anterior no Irã, uma batida constante que rapidamente se espalhou por mais de 100 cidades . Cem manifestantes foram mortos, segundo a Anistia Internacional. O governo desligou a Internet no segundo dia dos protestos. Mas mesmo quando há uma conexão estável, é difícil reunir tudo: protestos estão acontecendo na Alemanha, Argélia, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Egito, Espanha, França, Guiné, Líbano, Haiti, Holanda, Honduras, Hong Kong, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Reino Unido, Sudão e Zimbábue – tenho certeza de que estou deixando um lugar de fora – e isso apenas desde setembro. Alguns são do tipo fugaz e rotineiro que atrapalha o tráfego por um dia. Outros parecem mais revoluções, grandes o suficiente para derrubar governos, paralisar nações inteiras.

Algo está acontecendo aqui. Mas o que? E porque agora? Nas últimas doze semanas, os protestos espalharam-se por cinco continentes – a maior parte do planeta – desde as ricas Londres e Hong Kong até as famintas Tegucigalpa e Cartum. As manifestações são tão geograficamente díspares e aparentemente heterogêneas em causa e composição que ainda não vi nenhuma tentativa séria de vê-las como um fenômeno unificado.

Em face disso, parece haver pouco que os une. No Irã, o anúncio de um aumento de 50% nos preços dos combustíveis desencadeou tudo. Na Alemanha, Holanda e França, os agricultores bloquearam estradas para protestar contra as regulamentações ambientais. A indignação que tem sacudido Hong Kong desde junho começou com uma proposta de legislação que permitiria extradições para a China continental. No Chile, a faísca foi um aumento nas passagens do transporte público; na Indonésia, uma lei de crimes opressivos; no Líbano, o anúncio de novos impostos sobre tudo, desde gasolina a chamadas pelo WhatsApp.

Alguns desses movimentos foram organizados por sindicatos ou partidos formais da oposição, mas muitos são do tipo horizontal e sem liderança. (“Seja como a água”, como dizem os manifestantes de Hong Kong, repetindo Bruce Lee.) Nenhuma ideologia revolucionária abrangente os une. Nenhum partido de vanguarda está correndo para o fronte. O eixo esquerda-direita no qual o mundo foi dividido durante a maior parte do século passado nem sempre é útil. Os direitistas e o governo dos Estados Unidos aplaudiram os manifestantes em Hong Kong, Irã e Bolívia – antes do golpe que derrubou Evo Morales – enquanto desprezavam ou ignoravam as manifestações mais ou menos em qualquer outro lugar. Os setores mais doutrinários da esquerda farejaram o intervencionismo imperialista por trás dos protestos de Hong Kong e do Irã, afirmando a legitimidade de praticamente todos os outros movimentos populares do planeta.

Se você consegue olhar de soslaio além da fumaça das barricadas, os pontos em comum começam a se destacar. No Chile, a raiva causada por um aumento de 3% nas tarifas de metrô revelou uma população não apenas irritada com “problemas de bolso” – a alta da tarifa elevou os custos de transporte para 21% da renda mensal de um trabalhador que ganha o salário mínimo – mas tão exausta pela austeridade , tão espremida pelos baixos salários, pelas longas horas e pelas dívidas, tão farta da ganância e cegueira dos poucos ricos que governam o país que estavam prontos para queimar quase tudo. Poucas horas depois de declarar estado de emergência e enviar as forças armadas para as ruas, o presidente bilionário Sebastián Piñera foi à TV para lembrar aos cidadãos que a “democracia estável” do Chile e a economia crescente o tornam um “verdadeiro oásis” em um continente caótico. “As práticas que sustentam a prosperidade não são populares”, observou The Economist secamente.

Em outro canto da mesma câmara de eco, pouco depois de a polícia egípcia prender milhares que ousaram se manifestar em setembro, o ministro das Finanças do país lamentou que os “frutos da reforma econômica [do Egito] não fossem capturados pelas pessoas comuns”. Medidas impostas pelo Fundo Monetário Internacional na verdade fizeram com que a inflação subisse 60% em três anos, jogando milhões na pobreza. Isso é o que um analista do Morgan Stanley chamou recentemente de “melhor história de reforma no Oriente Médio”.

A desconexão entre a percepção da elite e a experiência de multidão é tão difundida quanto fundamental: todos os países que vêm enfrentando revoltas populares – e grande parte do resto do planeta – são governados há décadas por um único modelo econômico, no qual o “crescimento” comemorado por poucos significa miséria para muitos e o capital flui para contas norte-americanas e europeias com a mesma certeza com a qual o esgoto flui ladeira abaixo. O Chile foi um notório laboratório inicial: os esquadrões de assassinato de Pinochet trabalharam em conjunto com economistas formados em Chicago para criar um “milagre econômico” que apenas os afortunados, inescrupulosos e cegos puderam apreciar. Se as mobilizações populares na Bolívia não conseguirem reverter o golpe de 10 de novembro, elas podem esperar futuro semelhante.

A palavra neoliberalismo é usada banalmente hoje, mas refere-se de fato a um método globalmente aplicável para preservar o desequilíbrio esmagador de poder. Ele funciona microcosmicamente nas cidades. Pense em sistemas de transporte público decadentes, com um orçamento que cai sem parar e tarifas segregadoras, enquanto bilionários vão de helicóptero de teto em teto. Mas também age macrocosmicamente em escala planetária: as elites nacionais conspiram com corporações multinacionais e instituições financeiras para manter a mão-de-obra barata e a riqueza e os recursos direcionados aos canais de sempre.

Durante a maior parte do início dos anos 2000, o abundante capital chinês e os altos preços de commodities como petróleo, gás, minerais e produtos agrícolas fizeram com que alguns países pobres tivessem opções. Por um tempo, eles puderam evitar as armadilhas draconianas de “reforma” associadas aos empréstimos do FMI: a receita usual de “austeridade”, incluindo cortes no setor público, privatização de recursos estatais e destruição de proteções trabalhistas em nome de “liberalização”. Na América Latina, os governos de esquerda ganharam terreno e a pobreza e a desigualdade despencaram. Mas o boom das commodities acabou, a economia chinesa cresce mais lentamente e, depois de anos daquilo que deve ter sido uma dolorosa constrição, o FMI voltou com as mesmas velhas e desacreditadas soluções.

As elites locais ficaram felizes em jogar junto, atacando suas próprias populações para manter o dinheiro fluindo. Em março, o presidente equatoriano Lenín Moreno assinou um acordo com o FMI para um empréstimo de 4,2 bilhões de dólares e, em outubro, conforme acordado, cortou os salários do setor público e os subsídios aos combustíveis, fazendo com que o preço do diesel dobrasse – e levando milhares de equatorianos, principalmente indígenas, às ruas. (Moreno logo fugiu da capital e concordou em abandonar o pacote de austeridade). No Líbano, o primeiro-ministro Saad al-Hariri anunciou uma série de novos impostos ao consumidor – combustível, tabaco e telefonemas feitos por meio de serviços de mensagens na Internet – como parte de um pacote de redução de déficit exigido por credores estrangeiros para garantir um empréstimo de 11 bilhões de dólares. Após 12 dias de protestos, nos quais participou cerca de um quarto da população do Líbano, Hariri renunciou. As manifestações não cessaram.

O mesmo modelo aplica-se mesmo em países onde o FMI e o Banco Mundial estão proibidos de fazer negócios: o Irã, vítima por quatro décadas de sanções americanas, adotou há anos a série usual de medidas de “austeridade”. Se fracassaram amplamente em fornecer a panacéia econômica que prometeram, elas seguramente amorteceram a elite, transferindo o sofrimento para as classes consideradas dispensáveis. Até que isso não foi mais possível.

Dignidade é uma coisa curiosa: depois de recuperá-la, fica ainda mais difícil desistir. As demandas dos manifestantes expandiram-se em quase todos os lugares, muito além da indignação original que as desencadeou. Em Hong Kong, os manifestantes rapidamente determinaram que a retirada do projeto de extradição não era suficiente. Pede-se também sufrágio universal. (Metade dos assentos no Conselho Legislativo da cidade são eleitos diretamente pelos “eleitores funcionais”, como banqueiros, fabricantes e incorporadores; os custos de moradia são mais altos do que em qualquer lugar do mundo). No Chile, as demandas dos manifestantes expandiram-se da reversão de tarifas do transporte até o fim da Constituição da era Pinochet. (Parece que eles terão os dois – Piñera reverteu o aumento da tarifa e concordou com um referendo para uma nova Constituição.)

No Líbano, os manifestantes estão debatendo se seu movimento conta como uma revolução. (Não deveria surpreender que tais protestos ferozes tenham surgido em Beirute, Hong Kong e Chile, alguns dos lugares mais privatizados do planeta). No Sudão, um levante que começou quando o governo de Omar al-Bashir cortou os subsídios ao trigo e aos combustíveis – “por sugestão de parceiros financeiros internacionais”, segundo o jornal New York Times – acabou derrubando seu regime de 30 anos e ainda não cessou. Também no Haiti, os protestos começaram mais de um ano atrás, quando o presidente Jovenel Moïse elevou vertiginosamente os preços dos combustíveis para agradar o FMI. Os manifestantes logo exigiram a renúncia do Moïse, apoiado pelos EUA, e seguem com essa reivindicação

É difícil não notar que não apenas no Haiti, mas em pelo menos meia dúzia de países, do Equador ao Zimbábue, os protestos foram desencadeados por aumentos no preço da gasolina. Não é segredo que temos que começar a nos retirar imediatamente dos combustíveis fósseis, se quisermos ter alguma esperança de preservar alguma versão suportável da vida humana na Terra, mas embora quase todos esses países tenham sido afetados pela crise climática – e seus os cidadãos mais vulneráveis ​​são os que mais sofrem – esses aumentos de preços não eram para reduzir emissões. O FMI freqüentemente vincula empréstimos a cortes nos subsídios à energia, e os impostos sobre combustíveis são uma maneira fácil, embora regressiva, de custear a dívida pública. São duas táticas para tirar dos pobres e de todos aqueles que não se beneficiaram dos favores do Estado, para socorrer os que tiraram proveito.

Do outro lado do espectro global, os países ricos da Europa tiveram protestos diretamente ligados à política climática – ou porque os governos estão fazendo muito pouco, como no Reino Unido, ou porque as medidas que estão adotando distribuem desigualmente a dor, como na Holanda e a Alemanha. Lá, os agricultores reagiram às restrições às emissões de pesticidas e nitrogênio, bloqueando as rodovias com milhares de tratores. Já na França, um imposto sobre combustíveis com motivação ambiental, associado a cortes nos impostos para os ricos, produziu mais de um ano de conflitos nas ruas.

De ambos os lados, as lições aqui são muito claras. Primeiro, qualquer tentativa de enfrentar a crise climática que também não atenda às necessidades básicas da esmagadora maioria dos habitantes do planeta fracassará catastroficamente. E segundo, essas necessidades básicas incluem não apenas comida, saúde e moradia, mas também dignidade e formas de solidariedade que o sistema atual faz de tudo para destruir.

É de se admirar que tantas revoltas, simultâneas, mal mereçam uma menção nos noticiários da TV? No início deste mês, a romancista Dominique Eddé escreveu sobre os levantes populares no Líbano que é “como se centenas de milhares de pessoas solitárias tivessem descoberto ao mesmo tempo, após uma hibernação sem fim, que não estavam sozinhas”. Se examinarmos bem, a mesma coisa está acontecendo em todo o mundo. As pessoas despertam juntas. Olham em volta. E descobrem que todo mundo está, aos poucos, saindo de um longo sono.