Marxista inquieto, morto há 40 anos, enxergou os limites da experiência soviética, sem se render à social-democracia. Anteviu a ditadura neoliberal. Dialogou com ideias de Lênin e Foucault. Sugeriu caminhos para reinventar a emancipação
Por David Sessions, no Dissent| Tradução: Inês Castilho
Dentro e fora do Estado: a estrada democrática para o socialismo
A evolução de Poulantzas em direção a uma concepção mais dinâmica do Estado teve implicações importantes para a estratégia socialista, um dos aspectos de seu pensamento que mais atraiu atenção dos socialistas democráticos contemporâneos. Em seus primeiros trabalhos, o argumento central dessa teoria do Estado capitalista – de que ele era um dispositivo estrutural para a reprodução da dominação de classe – levou-o a afirmar uma tradicional estratégia leninista de “esmagamento do Estado”. Mas conforme Poulantzas tornou-se mais específico sobre a complexidade dos aparatos de Estado e seu status como um campo de força de luta de classes, ele chegou a uma nova conclusão: se o Estado era um conjunto de relações e não uma “coisa”, ele poderia realmente ser cercado ou atacado como uma fortaleza?
Não havia dúvidas de que, em sua forma atual, o Estado agia como organizador da dominação de classe. Mas uma dimensão crucial da teoria de Poulantzas era que, de modos não triviais, as classes dominadas eram já uma parte do Estado. No século XX, a tarefa fundamental do Estado capitalista, de “organizar” as lutas de classes, forçou-o a dar passos importantes – não menos que criar o Estado de bem-estar – para acomodar as demandas da classe trabalhadora. Embora tais conquistas tivessem estado sempre ameaçadas pelo capital, elas ainda eram conquistas que haviam se tornado uma parte verdadeira da infraestrutura estatal. Em meados dos anos 1970, conforme as ditaduras do sul da Europa faziam transição para a democracia, e conforme os partidos comunistas francês e italiano lutavam sobre como participar na política parlamentar, Poulantzas começou a pensar sobre como o equilíbrio de poder entre as classes poderia ser radicalmente mudado, de modo que as posições fracas e marginais em que as classes dominadas já tinham nas lutas pelo Estado pudessem ser transformadas em bases para ruptura e transformação.
Por razões tanto teóricas como estratégicas, Poulantzas reconsiderou a relevância da “duplicidade de poder” das estratégias leninistas destinadas a construir contra-instituições da classe trabalhadora, que num certo momento ficariam fortes o suficiente para “esmagar” o Estado capitalista. Essa estratégia teve origem de um modo deveras ad-hoc na preparação da Revolução Russa em 1917. Para Poulantzas, olhando para os sistemas políticos da Europa Ocidental no final dos anos 1970 era impossível imaginar uma posição inteiramente fora do Estado. Embora as classes dominadas pudessem e devessem construir poder institucional de base à distância do Estado, elas nunca poderiam estar verdadeiramente fora do seu campo de poder. “Hoje, o poder é menos que nunca uma torre de marfim isolada das massas populares”, escreveu ele. “O Estado não é nem uma coisa-instrumento que pode ser tomado, nem uma fortaleza que pode ser penetrada usando um cavalo de madeira, nem ainda a segurança que pode ser quebrada por um roubo: ele é o coração do exercício do poder político”.
A retórica do ”esmagamento” não falhou apenas na visão de que o Estado era mais do que uma “coisa” a destruir. Ela também implicou – como em última análise fez a Revolução de Outubro – uma supressão das instituições da democracia representativa, que poderiam ter servido como uma defesa contra um estatismo autoritário sob novo regime. Poulantzas tentou imaginar um modo como a esquerda poderia liderar simultaneamente tanto a democracia de base, distante do Estado, como uma pressão por transformação radical por dentro dele. Trabalhar por dentro do Estado teria como objetivo produzir “rachaduras” que iriam polarizar o aparato estatal altamente conflitivo em direção da classe trabalhadora, com a assistência de pressão externa de organizações de base. “Não é simplesmente uma questão de entrar nas instituições do Estado para usar suas alavancas características para um bom propósito”, escreveu Poulantzas. “Além disso, a luta deve sempre expressar-se no desenvolvimento de movimentos populares e no surgimento de centros de autogestão.”
A tentativa de Poulantzas de pensar uma estratégia interna-externa visava objetivo de caminhar pela estreita linha entre o reformismo social democrata (que praticava meramente a política parlamentar de sempre) e uma estratégia leninista revolucionária (que ele viu como potencialmente autoritária e de todo modo destinada ao isolamento perpétuo dos caminhos realmente existentes para o socialismo). A crítica “revolucionária” dos anos 1970 até o presente questionou que isso era simplesmente um reformismo disfarçado. Poulantzas concordou que o risco de cair no reformismo era real, mas sugeriu que tal risco era endêmico para todas as posições revolucionárias no final do século XX. “A História ainda não nos deu uma experiência bem sucedida da estrada democrática para o socialismo”, ele escreveu. “O que ela proporcionou – e isso não é insignificante – são alguns exemplos a ser evitados e alguns erros sobre os quais refletir. … Mas uma coisa é certa: o socialismo será democrático ou não será.”
Um marxismo para o século XXI?
Poulantzas jogou-se por uma janela em Paris em 1979. Em seus últimos anos, parecia estar lutando contra as juntas de seu pensamento – e talvez até contra a própria tradição marxista. Tentou refazer a teoria do Estado capitalista para o século XX e a estratégia socialista para uma era de política democrática. Seus colegas marxistas o acusaram de todo tipo de transgressão no livro: de “escolasticismo”, de reformismo, de abandoar o conceito de classe, de permanecer muito ligado à luta de classes e o poder determinante da economia. Ele considerou que sua própria posição foi tão longe quanto se poderia ir em direção a uma política marxista sem abandonar o compromisso fundamental com o papel determinante das relações de produção. “Se permanecemos dentro dessa moldura conceitual, penso que o mais que se pode fazer para a especificidade da política é o que eu fiz”, confessou ele ao jornal britânico Marxismo Hoje (Marxism Today) em 1979. “Eu mesmo não tenho certeza absoluta de que é certo ser marxista; nunca se tem certeza”.
As ambiguidades da fase final de Poulantzas poderiam ser representativas de todo o seu trabalho. É possível enquadrar a teoria estrutural do Estado capitalista com um sentido dinâmico da luta de classes? Pode a visão de um Estado tipo máquina, cuja infraestrutura infalivelmente cospe dominação de classe, ser reconciliada como uma que “não tem poder próprio”, que meramente reflete o equilíbrio das forças de classe na sociedade? Podemos realmente pensar sobre luta de classes sem dar atenção a sujeitos históricos, à consciência de todas as discriminações e derrotas passadas que, como Marx colocou, “pesam como tormentos no cérebro dos vivos?” Será a estratégia de combinar a luta dentro do Estado capitalista com movimentos populares fora dele um sonho irrealizável, mais que todas as estratégias revolucionárias que vieram antes?
Certamente não há dúvida de que Poulantzas respondeu todas, ou ao menos a maioria das questões que os socialistas democráticos enfrentam hoje. No mínimo o estilo de seus textos, às vezes enlouquecedoramente abstratos e encantatórios, torna seu trabalho um matagal proibitivo para a penetração de leitores de quase todos os níveis de preparação. Mas é também possível argumentar que suas próprias contradições e ambiguidades, que refletem uma era de incertezas que se parece fortemente com a nossa, são precisamente o que torna Poulantzas uma fonte de provocação, hoje. Mesmo que ele tenha falhado ao fornecer respostas aos desafios dos anos 1970, cumpriu enorme papel ao iluminá-los.
Poulantzas chama atenção, sobretudo, para o que o teórico político britânico Ed Rooksby chama de “uma das polêmicas mais antigas e mais fundamentais no pensamento socialista” — ou seja, “como, e em que medida, o poder do Estado capitalista pode ser utilizado para objetivos socialistas”. Relacionado a isso, o sentido de Poulantzas sobre as modulações do Estado capitalista através de sua sucessão de crises é um desafio bem-vindo para narrativas simplistas, inclusive da esquerda, que tingiram as compreensões da história do século XX. Ao tentar entender as fases e formas de crise de um Estado capitalista fundamentalmente contínuo, Poulantzas é um corretivo útil para a noção de um período keynesiano de meio século de forte intervenção do Estado, seguido por um período de desregulação neoliberal marcado por um Estado nacional enfraquecido e neutralizado.
Por razões estratégicas, é importante que a esquerda contemporânea não veja o neoliberalismo nem como um enfraquecimento geral do Estado nacional, nem como um declínio de sua importância estratégica. O estatismo tecnocrático é, isso sim, uma combinação de práticas estatais desenvolvidas durante o século XX, incluindo a delegação seletiva de poderes governamentais para organismos internacionais, que tem ao mesmo tempo desorganizado as classes dominadas e provocado uma resistência social que agora os torna locais de luta e controvérsia.
E então há seus escritos sobre a estrada democrática para o socialismo, esboços que, embora não apresentem respostas antecipadas, deixam uma série de lacunas sugestivas que imploram para ser preenchidos. “Há apenas um caminho certo para evitar os riscos do socialismo democrático”, concluiu Poulantzas em seu livro final, “e ele é manter-se quieto e marchar adiante sob a tutela e a vara da democracia liberal avançada”. Sabemos que esse caminho guarda seus próprios riscos assustadores.
FONTE: Outras Palavras