quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Estado e a violência


Por Mauro Iasi


Na abstração dos direitos somos todos somos iguais. Na particularidade viva da sociedade burguesa somos pobres, pretos, favelados, facilmente identificados para receber práticas discriminatórias em nome da ordem a ser mantida.


“Nosso objetivo final é a supressão do Estado, isto é, de toda a violência, organizada e sistemática, de toda coação sobre os homens em geral” -Lénine


A maior de todas as violências do Estado é o próprio Estado. Ele é, antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra. Nas palavras de Engels é a confissão de que a sociedade se meteu em um antagonismo inconciliável do qual não pode se livrar, daí uma força que se coloque aparentemente acima da sociedade para manter tal conflito nos limites da ordem.

A ideologia com a qual o Estado oculta seu próprio fundamento inverte este pressuposto e o apresenta como o espaço que torna possível a conciliação dos interesses que na sociedade civil burguesa são inconciliáveis. A contradição existe no corpo da sociedade dividida por interesses particulares e individuais, enquanto o Estado, ao gosto de Hegel, seria o momento ético-politico, a genericidade como síntese da multiplicidade dos interesses. A este momento político universal se contrapõe o dissenso, a rebeldia, o desvio e este deve ser contido nos limites da ordem, do que resulta que todo Estado é o exercício sistemático da violência tornada legítima.

Desde Maquiavel que a teoria política moderna sabe que a violência não pode ser o instrumento exclusivo do Estado, o uso adequado da violência (para Maquiavel aquele que atinge o objetivo de conquistar e manter o Estado) deve ser combinado com as formas de apresentá-lo como legítimo, o que nos leva à síntese entre os momentos de coerção e consenso, a famosa metáfora maquiaveliana do leão e da raposa. Poderíamos dizer que a violência só é eficaz quando envolvida por formas de legitimação da mesma forma que os instrumentos de consenso pressupõem e exigem formas organizadas de violência. O leão e a raposa são igualmente predadores, suas táticas é que diferem.

A separação entre violência e consentimento, entre coerção e consenso, serve às vestes ideológicas que procuram apresentar o Estado como uma função necessária e incontornável da sociabilidade humana. Nesta leitura ideológica, uma vez constituída a sociabilidade sobre as formas consensuais expressas no ordenamento jurídico, nas normas morais e imperativos éticos aceitos e compartilhados, a violência fica como uma espécie de reserva de segurança para conter os casos desviantes. Assim, a violência é apresentada como exceção e o consentimento como cotidianidade. O Estado é a garantia que a violência será coibida.

Nada mais enganador. A violência é resultante da contradição inconciliável que fundamenta nossa sociabilidade e portanto ela é cotidiana, onipresente e inevitável. Ainda que disfarçada de formas não explícitas como nos consensuais procedimentos legais e fundamentos jurídicos, como valores morais ou formas aceitas de ser e comportar-se. Até Durkheim sabia disso quando afirmava que as formas de ser, agir e pensar são impostas coercitivamente e se não percebemos esta coerção nas formas cristalizadas como hábitos não é porque ela não exista, mas porque já foi realizada com eficiência.

Mesmo a violência explícita é cotidiana. Ela é explícita e invisível, se mostra para ocultar-se. No preconceito que segrega, na miséria que aparta, na polícia que prende, tortura e mata, na moradia que se afasta, nas portas que se fecham, nos olhares que se desviam. Na etiqueta de preço nas coisas feitas em mercadorias que proíbem o acesso ao valor de uso, no mercado de carne humana barata na orgia de valorização do valor, sangue que faz o corpo do capital manter-se vivo.

Mas ela também é explícita e visível. No tapa da cara do trabalhador na favela dado por um homem de farda e armado. Na fila de cara para o muro sendo apalpados, nos flagrantes forjados ou não, no saco de plástico na cabeça, na porrada, no chute na cara, no choque nos testículos. Na cabeça para baixo, olhos para o chão, mãos na cabeça, coração acelerado. Na humilhação de ser jogado no camburão, na delegacia, como carga de corpos violentados nos presídios, longe de direitos e mesmo de procedimentos elementares, muito longe de recursos e embargos infringentes.

Um doente aidético, chora em sua cama na enfermaria do antigo presídio do Carandiru e atrapalha o sono do agente penitenciário. É espancado em sua cama com um cano de ferro. O cano da arma na boca da criança que dorme nos degraus da igreja na Candelária. O viciado arrastado à força para o “tratamento”. O louco impregnado de medicamentos. A família que vê o trator derrubar sua casa na remoção para viabilizar a Copa do Mundo de futebol. A mãe que reconhece o corpo de seu filho assassinado no mato e ouve do delegado para deixar quieto e não fazer ocorrência. Ela parou de falar, obedeceu.

Mas haveria uma ligação entre esta violência dispersa e multifacetada e o Estado como garantia da ordem burguesa? O Estado parece deixar-se distante disso tudo. Certo que são seus agentes que operam esta violência cotidiana, mas o Estado trata, como cabe a uma universalidade abstrata, de abstrações. Ele traça os planos, as metas, as políticas. Ele elabora o PRONASI, um programa nacional de segurança e cidadania, no qual os objetivos são moralmente aceitos, os meios os melhores e as intenções louváveis, mas os corpos começam a aparecer nas UPPs. O prefeito chora em Copacabana quando o Rio é escolhido para sediar o grande evento esportivo e o trator começa a derrubar casas. A presidente aprova a usina hidroelétrica e as árvores e índios começam a perder seus espíritos e raízes.

Há três anos, depois do primeiro turno das eleições nas quais o PT apoiou a candidatura de Sérgio Cabral ao governo do Rio de Janeiro, Lula discursando na inauguração de uma plataforma de petróleo da Petrobras em Angra disse:

“O Rio de Janeiro não aparece mais nas primeiras páginas dos jornais pela bandidagem. O governo fez da favela do Rio um lugar de paz. Antes, o povo tinha medo da polícia, que só subia para bater. Agora a polícia bate em quem tem que bate, protege o cidadão, leva cultura, educação e decência”.

Três anos depois um pedreiro sai de um boteco na Rocinha “pacificada”. É abordado pela polícia militar e levado para averiguações na sede da UPP. Sua cabeça é coberta por um saco plástico, é espancado e toma choques. Epilético, não resiste e morre. Os policiais desaparecem com o corpo. Dez policiais são indicados pelo crime, o governador Cabral e o secretário de segurança Beltrame não estão entre eles. O Estado no seu reino de metafísico está protegido pela muralha da universalidade abstrata, no cotidiano da sociedade civil burguesa onde se estraçalham as particularidades pode-se sempre acusar o erro humano, o desvio de conduta, a corrupção. O Estado então promove seu ritual de encobrimento: vai ser aberta uma sindicância e serão feitas averiguações. Evidente que os dez acusados ou suspeitos não serão sequestrados, suas cabeças enviadas em sacos plásticos e seus corpos desaparecidos.

Na abstração dos direitos somos todos somos iguais. Na particularidade viva da sociedade burguesa somos pobres, pretos, favelados, facilmente identificados para receber práticas discriminatórias em nome da ordem a ser mantida. Ordem e tranquilidade. Na ordem garantida os negócios e acordos são garantidos sem sobressaltos, a acumulação de capitais encontra os meios de se reproduzir com taxas adequadas, o Estado é saneado financeiramente destruindo as políticas públicas e garantindo a transferência do fundo público para a prioridade privatista. A ordem garante que a exploração que fundamenta nossa sociabilidade se dê com tranquilidade.

No entanto as contradições desta ordem, por vezes, explodem em rebeldia e enfrentamentos. Não apenas como nos protestos que presenciamos desde junho, mas também por pequenas explosões e caóticas resistências que vão desde o enlouquecimento e a miserabilidade que se torna incomodamente visível, até o crime.

Professores, universitários do ensino público federal ou da rede estadual e municipal de ensino, que resolvem não aceitar a imposição de um plano de carreira; jovens que se recusam a pagar o aumento das passagens, mulheres exibindo seus seios e jovens se beijando, escudos, vinagres e máscaras; são apenas a expressão mais contundente e parcial da contradição (esperamos ainda que despertem metalúrgicos, petroleiros e outros). Além destas manifestações já estavam lá no corpo doente da cidade, os bolsões de miséria, as favelas, as famílias destruídas, os jovens sem futuro acendendo seus isqueiros para iluminar um segundo de alegria.

O Estado é a trincheira de proteção estratégica da ordem da propriedade privada e da acumulação privada da riqueza socialmente produzida. No centro desta zona estratégica está a classe dominante, a grande burguesia monopolista dona de fábricas, bancos, empresas de transporte, controlando o comércio interno e externo, o agronegócio, as indústrias farmacêuticas e das empresas de saúde, etc. São cerca de 124 pessoas que controlam mais de 12% do PIB do Brasil, os 10% mais ricos que acumulam 72,4% de toda a riqueza produzida. Em seu entorno estão seus funcionários, um exército de burocratas, políticos, técnicos e serviçais de toda ordem que erguem em defesa deste círculo estratégico de uma minoria plutocrata as esferas do poder público e seus aparatos privados de hegemonia.

Na forma de um terceiro círculo de defesa, mas que se articula a este segundo, está um exército de funcionários que executam o trabalho (limpo ou sujo) de manutenção da ordem. Como extrato baixo da burocracia Estatal não compartilha dos altos salários e benesses do segundo círculo, mas isso não os faz diretamente membros da classe trabalhadora por receberem baixos salários e terem que trabalhar e viver nas condições de nossa classe. O ato de um policial militar que estapeia o rosto de um trabalhador na favela é o ato pelo qual ele abdica de sua condição de classe, se alia aos nossos algozes e se torna nosso inimigo.

Contraditoriamente, o ato pelo qual uma corporação, como os bombeiros, se levanta em greve por condições de trabalho e salários, é o ato pelo qual rompe com seus chefes e busca aliar-se a sua classe para constituí-la enquanto classe. “O bombeiro é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”, gritam os trabalhadores que lhes abrem os braços com a infinita solidariedade que constitui a liga sólida que nos faz classe.

Um taxista pega um grupo de professores e pergunta se eles estavam na manifestação contra o Prefeito Eduardo Paes e seus planos de carreira. Diante da resposta positiva o taxista diz: “então não vou cobrar esta corrida, fica como contribuição para a luta de vocês”.

O Estado precisa reprimir e criminalizar toda e qualquer dissidência pelo simples motivo de que por qualquer pequena rachadura da ordem pode brotar a imensa torrente que nos unirá contra a ordem que o Estado garante. Ainda que muitos de nós ainda não saibamos disso, o Estado e a classe que ele representa sabem.

A ridícula minoria de exploradores e os círculos de defesa que se formam em torno deles, está cercado por nós, a maioria. Primeiro pelos trabalhadores recrutados pelo capital para valorizar o valor, depois um enorme contingente de trabalhadores que garantem as condições indiretas de produção e reprodução da força de trabalho e logo em seguida pela massa de uma superpopulação relativa cujo papel e pressionar os salários para baixo para manter a saúde da acumulação de capitais. Por isso eles estão armados até os dentes, por isso tem tanto medo de nós.

Fica evidente o motivo pelo qual a classe dominante precisa do Estado, a grande pergunta é: para que nós precisamos do Estado?

A justificativa ideológica quer nos fazer crer que a complexidade da sociedade contemporânea exige um grau de planejamento, técnica, procedimentos sem os quais seria impossível a vida em sociedade e mergulharíamos no caos da guerra de todos contra todos. Ora, como diria Einstein: defina caos! Estamos mergulhados na guerra da burguesia monopolista e imperialista contra todos! Brecht já dizia em seus poemas sobre a dificuldade de governar: “Todos os dias os ministros dizem ao povo como é difícil governar. Sem os ministros o trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas.”

Quem somos nós e porque precisamos deles? Somos trabalhadores, sabemos plantar alimentos, construir casas, fazer roupas e meios de transporte, calçados e todos os tipos de ferramentas, ensinamos e cuidamos de nossa saúde, e como não somos de ferro fazemos músicas e poemas, trazemos a vida para telas e palcos, damos forma ao mármore e ao bronze, nos olhamos e nos apaixonamos e temos filhos tão humanos, tão humanos que carregam a vã esperança de que podemos ser melhores.

Mas isso é utópico, a natureza humana… a natureza humana! Nos gritam os ideólogos. Temos contradições, é verdade. Nós brigamos, divergimos, conhecemos a maldade e os canalhas de toda a espécie. A ordem da propriedade e da mercadoria e o poder que inevitavelmente a ela se acopla transformam nossas contradições em contradições inconciliáveis e criam formas de poder que consolidam uma ordem de exploração. Não querermos abolir as contradições queremos desvesti-las da forma histórica da propriedade e vivê-las humanamente.

Quando tivermos superado esta ordem e um trabalhador hipoteticamente encontrar em um banco de praça o Cabral e o Paes, despidos de toda a autoridade de seus cargos, nus de todo poder com o qual a ordem do capital os ungiu, vai colocar a mão no ombro deles e dizer: “vocês são uns bostas, canalhas mesmo, minha vontade é chamar aquele meu amigo black bloc e te encher de porrada… mas eles não batem em gente, só em coisas. O lanche é às 16 horas e a festa às 20 horas lá na praia, passa lá para a gente vaiar vocês… pelos maus tempos”.

É lógico que eles e seus patrões verdadeiros não vão permitir que isso aconteça, por isso temos que nos constituir como um poder tão grande e definitivo que ninguém possa questionar. Destruir o Estado da Burguesia e construir o Estado dos Trabalhadores que prepare as condições para superar as contradições que exigem um poder separado da sociedade até que consigamos eliminar as classes e constituir uma sociedade sem Estado, autogovernada.

Não precisamos deles (podemos começar fechando o Senado que não vai fazer falta). Não é possível que não possamos fazer melhor que esta porra que está aí. Vai do nosso jeito… nosso porto, por exemplo, pode não ser um “porto maravilha”, porque maravilha para eles é esta cidade horrorosa, desigual e injusta cheia de prédios enormes de cimento e vidro e vazios por dentro à noite, cemitérios com seus túmulos sem ninguém que os habite.

Nosso porto teria casas, algumas modestas com o reboco por consertar e a pintura gasta, com janelas abertas e dentro delas pessoas que as fazem humanas. De lá sairiam crianças alegres, saudáveis e alimentadas, indo para as escolas, parques e museus, e nós sairíamos para o trabalho para fazer todas as coisas que sabemos e a noite voltaríamos para nossas casas e cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e receberia de acordo com sua necessidade.

Nós chamamos isso de comunismo, porque somos comunistas. Chamem do que quiser: socialismo, sociedade libertária, anarquismo, plena democracia… não importa, não somos fetichistas das palavras. Queremos apenas, e conquistamos este direito, participar da luta por ela e em sua construção. Afinal, é isso que nós comunistas fazemos… ha mais de 160 anos.

Até quando o mundo será governado pelos tiranos?
Até quando nos oprimirão com suas mãos cobertas de sangue?
Até quando se lançarão povos contra povos numa terrível matança?
Até quando haveremos de suportá-los?

Bertolt Brecht


FONTE: ODiário.info

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Notas:
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.


A Comissão Política Nacional do PCB, reunida neste 30 de outubro, conforme decisão do Comitê Central, submete à apreciação da militância do Partido, de seus amigos e aliados, a proposta de lançamento da pré-candidatura de Mauro Iasi à Presidência da República em 2014.

domingo, 27 de outubro de 2013

Uma geração de intelectuais moldada pelo crash de 2008 resgata Marx


Para aqueles jovens demais para lembrar da Guerra Fria mas com idade para lembrar da Grande Recessão, o marxismo parece incrivelmente atual.

   

Por Michelle Goldberg


Oito anos atrás, Jay McInerney, garoto-propaganda de um tipo de literatura glossy chic dos anos 1980, ungiu Benjamin Kunkel como a voz da nova geração. Escrevendo na primeira página da New York Times Book Review, ele saudou o primeiro romance de Kunkel, Indecisão, por fazer “todo aquele negócio de crise pós-adolescência, de começo de vida, ser engraçado de novo”. Ele não estava sozinho; muitos críticos ficaram impressionados com a evocação de Kunkel da passividade e vazio existencial de um jovem privilegiado. Eles tinham menos certeza do que pensar sobre a conversão do narrador a uma política radical na América do Sul. “Imagino que as sequências sirvam para explicar o socialismo para as pessoas de vinte e poucos anos, pós-irônicas, ambivalentes, esperançosas e generosas em 2005”, escreveu Michael Agger na Slate.

No próximo mês de março, Kunkel vai lançar seu segundo livro, Utopia or Bust. Apesar de não ser continuação de Indecisão, o livro vai de fato tentar explicar, ou ao menos explorar, o que representa o socialismo hoje, por meio de uma série de ensaios de pensadores de esquerda contemporâneos, como Fredric Jameson e David Harvey. Depois do sucesso de Indecisão – que conquistou um lugar nas listas de Best-sellers, foi traduzido para diversas línguas e se tornou atraente para Hollywood – Kunkel não se aproveitou de seu estrelato da mesma forma que, digamos, Jay McInerney. Pelo contrário. Depois de cair em uma depressão profunda, ele seguiu o exemplo do seu próprio personagem, mudando-se para Buenos Aires e se submergindo profundamente em teoria anticapitalista. Em um rascunho da introdução de seu novo livro, ele escreve “Para decepção de amigos que prefeririam ler minha ficção – bem como de meu agente literário, que preferiria vender – parece que eu virei um intelectual marxista público.”

De um modo estranho, no entanto, Kunkel não fugiu inteiramente do negócio. Seu novo livro surge num momento em que há um interesse renovado em Marx entre jovens autores, ativistas e estudiosos, que têm começado a identificar o capitalismo, frente à crise financeira, como um problema, e não mais como algo inevitável.

Seria simplista demais dizer que o marxismo voltou, porque ele de fato nunca foi embora. Nos EUA depois da queda do Muro de Berlim, entretanto, estava restrita ao departamento de inglês da universidade, tornando-se objeto de crítica ácida.

Então veio o crash econômico, o Occupy Wall Street, e o desastre ainda em curso da austeridade na Europa. “Na época do Occupy, principalmente, muita gente de todo tipo de esquerda, trabalhando em publicações grandes ou literárias, meio que se encontraram, começaram a conversar, e descobriram quem estava interessado em política de classe”, diz Sarah Leonard, a editora de 25 anos da Dissent, o jornal social-democrata fundado quase 60 anos atrás por Irving Howe. “Nós essencialmente achamos um política antiga que faz sentido hoje”.

Nos EUA, é claro, o marxismo se mantém como uma corrente intelectual, muito mais do que como movimento de massas. É claro, os millenials [outra forma de se referir à chamada Geração Y] são notoriamente progressistas; uma pesquisa muito debatida de 2011 descobriu que 49% das pessoas com idade entre 18 e 29 anos têm uma visão positiva sobre o socialismo, enquanto apenas 46% têm visão positiva sobre capitalismo. É difícil dizer o que isso significa exatamente – não se pode dizer que os jovens estão fazendo com que O Capital entre rapidamente na lista dos mais vendidos ou estejam construindo células comunistas. Ainda assim, há décadas que tantos pensadores jovens se envolveram tanto em imaginar uma ordem social que não seja governada pelos imperativos do mercado.

Os motivos para isso são bastante óbvios. “Agora está tudo desmoronando”, diz Doug Henwood, Publisher da Left Business Observer e mentor de diversos novos pensadores marxistas. “Nem mesmo o mais ardoroso defensor pode dizer que as coisas estão indo bem. As premissas básicas da vida dos americanos, sobre mobilidade social e todo esse tipo de coisa, parece tudo uma grande piada de mau gosto agora”.

Enquanto isso, o fim da Guerra Fria libertou as pessoas – especialmente os que são novos demais para lembrar – para que elas pudessem revisitar as ideias marxistas sem o medo de elas justificarem a existência de regimes repressivos. A União Soviética sempre pairou sobre a vida intelectual dos EUA no século 20, especialmente aqueles setores dominados pelos formados da Universidade Judaica Municipal, como Howe e seu contraponto intelectual Irving Kristol. Havia aqueles que condenavam mas se apegavam aos ideais socialistas – posição emblematizada pela Dissent –, e havia aqueles, como Kristol, que viam tais valores como sendo intrinsecamente ligados a um regime tirânico, e se tornavam neoconservadores. Agora que o comunismo é uma força marginal no mundo, essas discussões parecem muito distantes. “Imagino que não tenhamos na nossa cabeça 1989”, diz Leonard. “Nossa crise é de uma natureza diferente. É uma crise capitalista, e temos um arsenal de ferramentas de análise muito útil”.

Para servir ao novo pensamento de esquerda, a editora radical Verso – que também vai copublicar o novo livro de Kunkel – começou recentemente a fazer uma série chamada Pocket Communism (Comunismo de Bolso), pequena, elegante, criada tendo em mente a capacidade de atenção da Geração Y. Entre os livros estão A hipótese comunista de Alain Badiou e A atualidade do comunismo, de Bruno Bosteel. Eles são vendidos fora das lojas tradicionais – em galerias de arte, por exemplo. Mesmo quando esses neocomunistas não são marxistas ortodoxos – Badiou é meio maoista – Marx ainda tem um peso muito grande em suas obras. “As pessoas não têm mais medo de voltar aos textos e usar palavras que eram tabu”, diz Sebastian Budgen, editor sênior da Verso. “Há um efeito emancipador em não mais se precisar se justificar para usar Marx.”

Em nenhum lugar isso é mais verdade que na Jacobin, a revista socialista fundada por Bhaskar Sunkara, de 24 anos, que vai publicar Utopia or Bust com a Verso. Um empreendedor marxista, Sunkara ainda não tinha se formado quando usou o dinheiro de seu crédito estudantil para publicar o primeiro número de Jacobin, em 2011. Hoje ele tem cerca de cinco mil assinantes, um número pequeno em perspectiva, mas impressionante para um jornal de esquerda, comparável ao alcance da Dissent. Seus leitores são desproporcionalmente jovens, de acordo com Sunkara, e em geral novatos no que diz respeito a publicações de esquerda. “Acho que boa parte dos leitores não escolhe a Jacobin ao invés da Dissent ou da Monthly Review”, afirma. “Eles são mais para liberais desiludidos ou jovens que não são politizados”.

De sua parte, a Dissent, editada por Michael Kazin, foi revigorada por pessoal novo, como Leonard. Até recentemente, ela havia se tornado soturna, conhecida por seu conflito com a irresponsabilidade de outros radicais. Em 2002, por exemplo, seu antigo coeditor, Michael Walzer, criticou as respostas dos progressistas ao 11 de setembro, em um artigo intitulado “Pode haver uma esquerda decente?” Lamentando a tendência de intelectuais de esquerda de “viver nos EUA como estrangeiros internos, recusando-se a se identificar com seus cidadãos, considerando qualquer traço de patriotismo como politicamente incorreto”, ele parecia reviver uma velha briga entre a esquerda anticomunista e a contracultura na década de 1960.

(*) Artigo publicado originalmente em Tablet.


Tradução: Rodrigo Mendes

FONTE: Carta Maior

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O socialismo na América Latina

O socialismo ainda anda bem distante dos governos da América Latina, pelo menos é o que pensam alguns teóricos e pesquisadores que participaram das Jornadas Bolivarianas de 2010.

Por Elaine Tavares *

O socialismo ainda anda bem distante dos governos da América Latina, pelo menos é o que pensam alguns teóricos e pesquisadores que participaram das Jornadas Bolivarianas de 2010, cujo tema foi justamente este. Na análise de um dos criadores do termo “Socialismo do Século XXI”, esta é uma forma de governo que ainda não encontrou guarida na vida dos países que atualmente estão na ponta de lança das mudanças estruturais. Segundo Heinz Dieterich, governos como o da Venezuela, Bolívia e Equador, apesar de avançarem no processo de transformação, ainda não deram rédea a mecanismos de consolidação do que define como sendo socialismo. “É certo que a discussão sobre o socialismo do século XXI começou na Venezuela, houve um grande debate, mas não redundou em profundidade, o que significa que, lá, não há grandes avanços na consciência anticapitalista”. Heinz também deixou claro que é fato de que na Venezuela, sob o comando de Chávez, o governo avançou nos mecanismo de democracia, garantindo mais poder ao povo, como é o caso da possibilidade do referendo. “Há eleições limpas, há muita participação popular, mas, a economia segue sendo a de mercado. Não há, portanto, socialismo, a empresa privada segue sendo fundamental, os meios de comunicação são privados”. 

Heinz diz que a Venezuela segue os preceitos do chamado nacional/desenvolvimentismo, exatamente como o fizeram Getúlio Vargas, no Brasil, Domingos Perón, na Argentina, Lázaro Cárdenas, no México, Salvador Allende, no Chile e até mesmo Bolívar, logo depois da independência. “Eles seguiam o modelo da Grã Bretanha, de um capitalismo protegido pelo Estado. E para os ingleses foi bom, garantiu-lhes muito poder. Eles tinham o discurso do livre comércio, mas era para os outros, não para eles”. O teórico alemão insiste que este é o modelo também seguido pelo Brasil, Argentina, e outros chamados “progressistas”. “O Lula e os demais estão ancorados num modelo que foi extraordinário, e este era também o debate entre os independentistas. Bolívar queria o sistema inglês e os seus inimigos queriam o livre comércio, eram os neoliberais daquela época e foram os que venceram”. Segundo Heinz, os governos latino-americanos que, ao longo da história, decidiram-se por um nacionalismo/desenvolvimentista foram os que mais se aproximaram do povo, os que avançaram, e por conta disso sofreram as ditaduras.  

Hoje, pode-se vislumbrar uma nova fase de desenvolvimento na América Latina que, sem dúvida, começa com Hugo Chávez, na Venezuela e depois se estende para Bolívia e Equador. É um desenvolvimento endógeno, uma proposta de valorização das coisas nacionais, de investimentos no mercado interno, acompanhado de transformações estruturais importantes na saúde, na educação, na organização comunitária, no próprio poder. “A oligarquia não podia combater o Chávez acusando-o de desenvolvimentista, não encontraria eco, então se aproveitou do fato de o presidente começar a falar em socialismo. Acusá-lo de socialista assustaria os conservadores. Mas não há socialismo na Venezuela. O que há é um nacional desenvolvimentismo, que tem seus avanços, é certo, mas que não é socialismo”. 

E o que é, afinal, o socialismo?

A idéia de socialismo é eminentemente européia e aparece, segundo Engels, lá pelo século 15, embutida nas propostas dos revoltosos camponeses da Inglaterra e da Alemanha (como Thomas Münzer, por exemplo). A sistematização do conceito, na sua versão utópica, aparece nos séculos 16 e 17, como um sistema ideal para organizar a sociedade baseado na igualdade entre as pessoas, na distribuição das riquezas e na vida boa para todos. No século 18, teóricos como Morely e Mably pregavam um jeito espartano de viver, que garantia a liberdade e a igualdade, mas supria o gozo de viver. Mais tarde vieram os chamados “utopistas” como Saint-Simon, Fourier e Owen, que propunham a abolição das classes e a vida plena para todos. Ainda segundo Engels, o problema dos utopistas é que não propunham a mudança desde uma classe específica – como o proletariado. Eles reconheciam a sociedade burguesa, do capitalismo emergente, como uma coisa ruim, injusta, mas acreditavam que ela só não dava certo porque não havia nascido “o homem genial”, governando unicamente pela razão. Com a chegada deste homem, tudo poderia mudar, seria instaurado o Estado da Razão. Seus limites, pondera Engels, estavam determinados pela ainda incipiente produção capitalista. Acreditavam que bastava difundir a idéia de que o socialismo era a expressão da verdade, da razão e da justiça, para que ele se fizesse.

Marx vai propor mais tarde o que chamou de socialismo científico, baseado na razão sim, mas incluindo aí a historicidade, já ancorado na análise de um capitalismo real, desenvolvido, que incorporou a grande indústria e expôs as mazelas da divisão de classe. Observando as multidões exploradas e despossuídas que abundavam no século 19, as greves que assomavam entre os trabalhadores, as lutas operárias, Marx compreendeu que o socialismo não era algo nascido apenas no campo da razão, mas sim o produto necessário da luta entre as classes formadas historicamente no modo de produção capitalista. Com isso, pensou que havia que constituir um sistema para explicar essa sociedade capitalista e aí sim, desde esta materialidade, propor um novo jeito de organizar a vida. Ele discordava dos utopistas que apenas criticavam o mundo burguês, sem, contudo, explicá-lo para que, entendido, pudesse ser superado.

Assim, no desvelamento do sistema de dominação capitalista, Marx mostra que o socialismo é uma forma de vida que só pode ser proposta e construída pela classe dominada, naqueles dias, o proletariado. Assim, a sociedade socialista seria então aquela que aboliria a propriedade privada, acabaria com a exploração, reconheceria o caráter social da produção, socializaria os meios de produção, extinguiria as classes. Na prática, como esclarece Engels, seria um jeito de organizar a vida em que, através de um sistema de produção social, seria assegurado a todos os membros da sociedade, uma existência que, além de satisfazer as suas necessidades materiais, asseguraria o livre e completo desenvolvimento de suas capacidades físicas e intelectuais.  

O socialismo do século XXI

A idéia de um socialismo do século XXI começou a caminhar pela América Latina a partir da reflexão do professor da UNAM, Heinz Dieterich. Segundo ele, os novos tempos exigem reformulações no conceito. “Com Marx aparece o socialismo científico, baseado no materialismo dialético, que em última instância significa que tudo está em movimento. Materialismo significa que tu reconheces um mundo fora de ti, objetivo, independente do observador, e dialético se refere ao movimento. O único que existe no universo é a matéria, ela tem extensão física e aí nasce o espaço, tem corporalidade e está em constante movimento, o que significa mudança. Por isso é ridícula a idéia de Francis Fukuyama, porque contraria o axioma do cosmos. Conhecer esse movimento pressupõe que podemos prever os desastres econômicos, assim como prevemos os furacões. Isso é ciência”. 

O teórico alemão radicado no México recordou que Lenin tentou implementar o socialismo, experimentar na prática, mas as condições não o permitiram, surgindo então o bolchevismo, a economia planificada. Isso colapsou e hoje aí está outra concepção do socialismo, que chama do século XXI. “É uma democracia participativa, com economia planejada no valor do trabalho e não no valor de mercado. São diferenças abissais. Por exemplo, em nenhuma constituição do mundo é o povo que decide se o país vai para a guerra. A decisão está na mão de uma pequena elite. Nesta democracia burguesa o dinheiro tem uma influência tremenda. Exemplo: a taxa de milionários nos Estados Unidos é de  1% da população, mas no Congresso Nacional é de 60% a 90%, ou seja, é uma plutocracia. Mandam os ricos, que são minoria”.  Por conta disso, um sistema de voto secreto e universal por si só não significa democracia. 

Pois o socialismo do século XXI propõe outra forma de organizar a vida, democratizando não apenas a política – com outras formas de participação popular que não só a eleição ritual – mas também a economia, a cultura e o poder militar. “O orçamento deveria ser decidido pela população, outras questões da economia também. Com a televisão e a internet se poderia informar e formar os cidadãos”. 

Essa minoria que hoje manda no mundo pretende continuar apostando na economia do mercado, acreditando que o mercado tem mais eficiência para coordenar o processo, que essa é uma área complexa e não pode ficar nas mãos de um partido ou das gentes. Isso não é mais crível. “Há que clarear essa mentira. Na União Soviética o socialismo não naufragou por conta da  planificação. Toda a economia é planificada, inclusive a de mercado. Até no neolítico 10 pessoas tinham que planejar como caçar um animal. No capitalismo também há planejamento.  Mas tanto no socialismo soviético como no capitalismo era uma minoria que fazia isso. Não havia a consulta ao povo. No socialismo do século XXI tem de haver essa participação, essa planificação precisa ser democrática”.

Heinz também avança na proposição de outra medição do trabalho.  Hoje, o preço de mercado é uma expressão de poder, o aumento de salário só vem se houver sindicato forte, lutas descomunais, competições. Os empresários tem o poder, dirigem e controlam a economia. No socialismo pode-se ter outra medida de valor, a quantidade de energia, a quantidade de informação ou valor do trabalho. “No socialismo do passado a propriedade privada era considerada o grande mal, havia que acabar com ela. Os social-democratas encontraram um jeito de mantê-la. Elas seguem privadas, mas pagam impostos que serão distribuídos. Não deu certo. No socialismo do século XXI, não importa quem tem os meios se for tirada do empresário a faculdade de explorar o trabalhador.  Cada trabalhador tem direito ao valor total do seu trabalho. Se trabalha por 40 horas recebe produtos e serviços iguais aos de 40 horas. O que não há é a permissão de enriquecer”.

No socialismo do século XXI, diz Heinz, também não cabe haver partido único, porque se trata de trazer ao povo mais democracia. Hoje a conformação de classes é diferente da do tempo de Marx. “Nesta fase de transição é preciso organizar as forças em um centro comum, um centro de gravitação comum, mas não única, como a Frente Amplia, no Uruguai. Não é partido único. Não queremos monopólios nem na economia nem na política”.

A América Latina

Este espaço geográfico que hoje denominamos “Américas” foi conhecido pelos europeus nos estertores do século 15, quando por aquelas terras já começava a declinar a chamada Idade Média. As miríades de reinos que lutavam entre si iam se juntando e prenunciando o que mais tarde viriam ser as nações. Era um tempo de mudanças e as terras encontradas no caminho para as índias iriam acelerar estes câmbios, financiando, inclusive, a revolução industrial inglesa que foi o estopim da consolidação do modo capitalista de produção. Mas, o desconhecimento dos europeus nunca significou que por aqui, as gentes que habitavam o lugar, fossem povos sem história, como chegou aventar Marx. Grandes civilizações haviam florescido, muitas delas até mais avançadas na organização da vida, do que a Europa daquele então. Ainda assim, como os conquistadores não estavam dispostos a qualquer “encontro de culturas”, toda esta história das gentes originárias foi descartada como “barbárie”, “selvageria”, “ignorância”. Os que invadiram as terras de Abya Yala só queriam saquear as riquezas e nunca reconheceram os que aqui viviam como iguais. Quando o sistema colonial se instalou, trouxe para cá o modo de vida da Europa, solapando a cosmovisão autóctone, dizimando povos, submetendo os sobreviventes. 

Este domínio se perpetuou, ainda que não sem luta. Desde a invasão, vários povos se rebelaram, na resistência e na tentativa de recuperar seus territórios, sua forma de vida. Foram vencidos, mas, enquanto todos achavam que ali estava uma gente derrotada, eles constituíam, no silêncio da opressão, suas estratégias de sobre-vivência. E, quando ninguém esperava, no bojo do que a Europa e os entreguistas nacionais chamavam de “celebração dos 500 anos”, surge, das profundezas desta Abya Yala, o grito das gentes originárias.  “Nada há a celebrar a não ser a retomada de um novo ciclo. O pachakuti esperado”, diziam as gentes autóctones.

Segundo Pablo Dávalos, professor da Universidade Católica do Equador e assessor na CONAIE (Confederação Nacional dos Indígenas do Equador), os anos 90 trazem demandas dos povos originários que não são incorporadas pela esquerda, por isso há uma certa desconfiança com relação ao chamado “socialismo do século XXI”, porque ninguém viu ali contempladas essas reivindicações que extrapolam as já conhecidas lutas contra a dizimação de sua gente e da sua cultura.  “A proposta de plurinacionalidade, por exemplo, passou incólume nos programas da esquerda. E esta proposta é a que converte o índio em um sujeito político que disputa no neoliberalismo”. Os povos originários ultrapassam o tempo reivindicativo, agora eles estão propondo novas formas de organizar a vida, que oferecem a partir de sua ancestralidade. E aí há que se pontuar muito bem: não é um retorno ao passado, mas uma retomada, desde o passado, de elementos que, dialeticamente, podem ser incorporados à vida atual, tais como a solidariedade, a cooperação, a distribuição coletiva das riquezas (elementos que, na verdade, se encontram com a idéia de socialismo). “O sistema político desconhece o índio como sujeito e para a esquerda o índio se converteu em camponês. Não há uma discussão sobre o que significa o território. O povo da direita fala em modernização no campo, a esquerda em reforma agrária. Os indígenas falam em território, que é muito mais do que terra para plantar, é espaço de vivência, de representação cultural e religiosa”.

Pablo Dávalos fala de uma ontologia política do movimento indígena que atua na radicalidade, oposta ao ser moderno, que propõe a alteridade, ou seja, a capacidade de as pessoas viverem juntas, respeitando, de verdade, o outro. “Na sociedade burguesa, e mesmo na esquerda, não se concebe o índio com vida e desejos próprios. Parece que sempre há que ter uma mão, controlando. Mas a história está aí mostrando que os grandes movimentos políticos dos anos 90 e desta primeira década do terceiro milênio tem uma assinatura indígena. A esquerda não vê porque os índios não estão nos seus manuais de desenvolvimento”.

E aí entra outro nó que, nesta parte do planeta, há que se desatar. Com uma população indígena bastante expressiva, a América Latina está propondo outras formas de organização da vida que não aparecem nos textos dos grandes pensadores socialistas. Porque, afinal, raros tem levado em consideração estas propostas teóricas que nascem da vivência originária.  Mesmo nas experiências transformadoras como a da Venezuela e do Equador, pouco espaço se dá a cosmovisão dos povos autóctones. “Na nossa Constituição (do Equador) logramos muitas vitórias, como estabelecer os direitos da natureza e colocar nosso conceito político de organização  que é o de Sumak Kawsai, mas, ele, na verdade, não é compreendido de fato. Basta ver como o governo de Rafael Correa está tratando a questão da água hoje, sem respeitar a decisão dos povos originários”, diz Pablo.

É importante lembrar que entre as comunidades originárias que vicejam na região que vai desde a Venezuela até a Patagônia, seguindo a coluna vertebral latino-americana, que são os Andes, as palavras que designam a organização da vida são outras. Não se fala em socialismo ou desenvolvimento (palavras e conceitos nascidos na Europa). Fala-se em “sumak kawsai”, que na língua quíchua significa “regime de bem viver” e expressa uma proposta complexa de organização.

Pablo lembra que no sistema capitalista, e na era moderna, de concepção européia, a idéia de progresso está vinculada a noção de “ir adiante”, já que a noção de tempo se expressa de forma linear: passado (ontem), presente (hoje) e futuro (amanhã). Assim, as gentes, para serem modernas, precisam avançar para o futuro. Mas, na compreensão dos povos originários o tempo se curva. A mesma palavra que designa passado é usada para dizer futuro, a vida se expressa em ciclos. Também na cosmovisão de grande parte dos povos andinos não existe a possibilidade da acumulação, tanto que se alguém tem algum “lucro”, se sente obrigado a destruído e isso se dá a partir de uma grande festa coletiva. Tudo o que sobra precisa ser repartido comunitariamente. E, no cerne de tudo isso está a capacidade do homem de viver em harmonia com a natureza. Este é um jeito de viver que se confronta diretamente com o sistema capitalista. E é um jeito originário, consubstanciado no sumak kawsai, originário de Abya Yala . “Mas e os marxistas, as gentes da esquerda, conseguem entender isso? Concebem respeitar essa forma de ver o mundo? Conseguem incluir este modo de ser nos seus manuais?”

O pachakuti

Para os incas, quando chegaram aqui os conquistadores, foi  inaugurado um ciclo do pachakuti, que significa “o mundo pelo avesso, o mundo no caos”. Hoje, com as transformações que tomam forma na América Latina, os levantamentos dos povos originários e a percepção de que a preservação da natureza é também uma questão da sobrevivência da espécie, vive-se  o início de um novo pachacuti, “el mundo al revés”, pelo avesso de novo, mas desta vez com as gentes organizando a vida e aí, não só os indígenas, mas também os empobrecidos de todas as cores. É a idéia do tempo que se curva, um outro começo, saída do tempo de caos para o tempo da harmonia. Por conta desta crença, as comunidades revigoram as lutas na defesa da Pacha Mama que é, em última análise, a defesa da vida mesma.

No que diz respeito ao mundo não-índio, os intelectuais de esquerda teriam de enfrentar eles mesmos um “pachakuti”, um desordenamento mental, capaz de compreender esta forma de ver o mundo. Quando aqui chegaram os invasores, sedentos de ouro, até havia um motivo para desconhecer as culturas locais. Mas, hoje, e desde a esquerda, isso não pode acontecer. E, se o socialismo é o que ordena e define as reivindicações da maioria, como diz José Carlos Mariategui, está na hora de incorporar aquilo que é essencial para as gentes originária como o estabelecimento do Estado Plurinacional, estatuto jurídico que reconhece as comunidades tradicionais originárias como sujeito político real. E isso implica numa mudança radical de perspectiva, principalmente num país como o Brasil, onde as comunidades autóctones foram quase dizimadas e, as sobreviventes, até hoje vivem tuteladas pelo estado como se fossem incapazes de organizar suas vidas de forma autônoma.

Ao fim, o que ficou dos debates de quatro dias em Florianópolis foi esse desafio. A capacidade da esquerda revolucionária de Abya Yala de desvendar as forças e os sujeitos que atuam no mundo de hoje, e a necessidade de colorir o conceito de socialismo, não com as facetas alegres da pós-modernidade que usa o multicultural como aceitação acrítica do que aí está. Mas o colorido da “wiphala”, a bandeira do movimento originário, incorporando neste conceito as demandas destes povos que não querem mais ser “atores” sociais, que falam um texto escrito por outrem,  mas sim autores de sua própria história, escrevendo eles mesmos as suas falas.  Aí sim, quem sabe, este espaço geográfico possa constituir, com o aporte de todos os que aqui vivem, e que sonham e lutam por transformações, o socialismo indo-americano, como queria Mariategui, ou, enfim, o sumak kawsai (o bem viver).

 * Elaine Tavares é jornalista e editora da revista Pobres & Nojentas

FONTE: IELA (Instituto de Estudos Latino-amercanos - UFSC)

domingo, 20 de outubro de 2013

Sobre o Governo Representativo ou Parlamentarista (Trecho)


Por Piotr Kropotkin



Os defeitos das Assembléias representativas não nos causarão estranheza, se refletirmos um momento apenas sobre a maneira como elas se recrutam e como funcionam.

Será preciso que eu descreva aqui o quadro, tão pungente, tão profundamente repugnante, e que nós todos conhecemos - o quadro das eleições? Na burguesa Inglaterra e na democrática Suíça, na França como nos Estados Unidos, na Alemanha como na República Argentina, não é essa triste comédia em toda a parte, a mesma?

É preciso contar como os agentes e as comissões eleitorais "forjam, arrumam", uma eleição (verdadeira gíria de larápios), espalhando para um lado e para outro, promessas políticas nos comícios; como eles penetram nas famílias, adulando a mãe, o filho, acariciando se for preciso o cão asmático ou o gato do "eleitor"? como eles se espalham pelos bares, convertem os eleitores e atraem os mais calados abrindo com eles discussões, como esses burlões que vos arrastam ao "jogo da vermelhinha"? como o candidato, depois de se ter feito desejar, aparece enfim no meio dos seus "queridos eleitores", com um sorriso benevolente, o olhar modesto, a voz melíflua - tal qual como velha megera que aluga quartos em Londres, ao procurar enredar um locatário com o seu doce sorriso e os seus olhares angélicos? É preciso enumerar os programas mentirosos - todos mentirosos - sejam eles oportunistas ou social-revolucionários, nos quais o próprio candidato, por pouco inteligente que seja e por pouco que conheça a Câmara, acredita tanto como acredita nas predicações do "Mensageiro Coxo"e que ele defende com entusiasmo, uma verbosidade, uma entonação de voz, um sentimento, dignos de um doido ou de um ator de feira? Não é debalde que a comédia popular se não limita a fazer de Bertrand e de Robert Macaire simples burlões e lhes acrescenta a essas excelentes qualidades a de "representantes do povo" à busca de votos e de lenços para roubarem.

É preciso dar aqui a nota das despesas das eleições? Mas todos os jornais nos informam suficientemente a esse respeito. Ou reproduzir a nota das despesas dum agente eleitoral, na qual figuram grandes quantidades de carneiros, fardos de flanela e até água enviado tudo pelo candidato compadecido dos "seus queridos filhos", dos seus eleitores? Será preciso reproduzir aqui as despesas com peras cozidas e ovos, "para confundir o partido contrário", que sobrecarregam os orçamentos eleitorais nos Estados Unidos, e as despesas de cartazes caluniosos e "manobras da última hora" que desempenham já um horrível papel nas eleições européias?

E quando o governo intervém, com os seus "lugares", os seus cem mil "lugares"oferecidos ao que mais der, as suas condecorações, os seus depósitos de tabaco, a sua alta proteção prometida às casas de jogo e de vício, a sua imprensa desavergonhada, os seus policiais, os seus burlões, os seus juízes e os seus agentes...

Não, seria demais! Deixemos essa lama, não a remexamos! Limitemo-nos apenas a perguntar: haverá uma única paixão humana, a mas vil, a mais abjecta de todas, que não seja aproveitada num dia de eleições? Fraude, calúnia, baixeza, hipocrisia, mentira, toda a lama que existe no fundo da besta humana - eis o belo espetáculo que nos oferece um país quando se lança no período eleitoral.

É assim e assim será sempre enquanto houver quem faça eleições para servir de escada aos outros, que se tornarão chefes e senhores dos que os elegeram. Sejam até operários todos, todos iguais, e meta-se-lhes na cabeça eleger governantes - que se dará a mesma coisa. Já não se distribuirão pernas de carneiro, mas distribuir-se-ão a adulação, a mentira - o que equivalerá ao mesmo. Como se há-de conseguir outra coisa quando se põem em leilão os direitos mais sagrados?

Que se pede, afinal, aos eleitores? Que encontrem um homem a que se possa confiar o direito de legislar sobre tudo o que eles têm de mais caro: os seus direitos, os seus filhos, o seu trabalho. E é para admirar que dois ou três mil Robert Macaire se disputem entre si os direitos reais? Procura-se um homem ao qual se possa confiar, juntamente com alguns outros, saídos da mesma loteria, o direito de perder os nossos filhos aos vinte e um anos ou aos dezenove, se assim lhe parecer acertado; de os conservar encerrados num quartel durante três anos, ou mesmo dez se se julga isso melhor, absorvendo uma atmosfera putrefata; de os fazer massacrar quando e onde quiser ao começar uma guerra que o país será forçado a fazer, uma vez a isso arrastado. Poderá fechar as Universidades ou abrí-las conforme lhe apetecer; obrigar os pais a mandar para lá os filhos ou proibir-lhes a entrada. Novo Luis XIV, poderá favorecer uma indústria ou matá-la se assim o preferir; sacrificar o Norte pelo Sul, ou o Sul pelo Norte; anexar uma província ou cedê-la. Disporá duma insignificância como três bilhões de francos por ano, que ele tirará do estômago do trabalhador. Terá ainda a prerrogativa real de nomear o poder executivo, isto é um poder que, desde que esteja de acordo com a Câmara, poderá ser despótico e tirânico de uma maneira diferente da extinta realeza. Porque, se Luis XIV não mandava senão em algumas dezenas de milhares de funcionários, ele manda em cem vezes maior número deles e se o rei podia roubar ao tesouro público alguns sacos de escudos, o ministro constitucional de hoje, num só lance de Bolsa, recebe "honestamente" milhões.

Não é para admirar ver o embate de tantas paixões, quando se procura um chefe para ser investido dum tal poder! Quando a Espanha pôs o seu trono vago em leilão, alguém se admirou de ver flibusteiros surgirem de toda a parte? Enquanto permanecer a venda dos poderes reais, nada se poderá reformar: a eleição será a feira das vaidades e das consciências.

Ainda mesmo que fosse cerceado o mais possível o poder dos deputados, ainda que o fracionassem constituindo em cada Estado pequenos Estados correspondendo à atual divisão dos distritos ou mesmo em conselhos, tudo ficaria na mesma.

Compreende-se ainda a delegação quando cem, duzentos homens que se encontram todos os dias no seu trabalho, nos seus serviços comuns, que se conhecem muito bem uns aos outros, que discutiram sob todos os aspectos uma questão qualquer e que chegaram a uma decisão, escolhem um deles e o enviam para se entender com os outros delegados do mesmo gênero sobre este assunto especial. Então a escolha faz-se com pleno conhecimento de causa, sabendo cada um o que pode confiar ao seu representante. Esse representante não fará mais do que expôr perante outros representantes as considerações que levaram os seus constituintes a tal ou tal conclusão. Não podendo impor nada, tentará a conciliação e voltará com uma simples proposta que os mandatários poderão aceitar ou recusar. Foi mesmo assim que nasceu a representação: quando as comunas enviaram os seus delegados às outras comunas não tinham outro mandato. É ainda assim que procedem os metereologistas, os estatísticos nos seus congressos internacionais, os delegados das companhias de estrada de ferro e das administrações postais de diversos países.

Mas, o que se exige aos eleitores? - A dez, vinte, cem mil, que não se conhecem absolutamente, que não se vêm nunca, que se não encontram nunca tratando duma questão comum, pede-se-lhes que se entendam sobre a escolha de um homem. E assim é esse homem enviado para expôr um assunto determinado, ou defender uma resolução relativa a uma questão especial? Não, ele deve servir para tudo, para legislar não importa quê, e a sua decisão será lei. O caráter primitivo da delegação transformou-se inteiramente e tornou-se um verdadeiro absurdo.

Esse ser onisciente que hoje se procura não existe. Mas pode encontrar-se um cidadão honesto que reuna certas condições de probidade e de bom senso com alguma instrução. É esse que será eleito? Evidentemente que não. Há apenas vinte pessoas no seu círculo eleitoral que conhecem as suas excelentes qualidades. Nunca procurou a popularidade, despreza os meios usuais de fazer barulho em volta do seu nome, não alcançará mais do que 200 votos. Não chegará mesmo a ser candidato, nomeando-se para isso um advogado ou um jornalista, bom falador ou bom escrevinhador que irá para o parlamento com os seus hábitos do tribunal ou da redação e irá reforçar a carneirada do ministério ou da oposição.

Poderá ser ainda algum comerciante, envaidecido com a honra de ser deputado, e que não trepidará perante uma despesa de 10.000 francos para conquistar a notoriedade. E nos países onde os costumes são eminentemente democráticos como nos Estados Unidos, onde as comissões se constituem com extrema facilidade e contrabalançam a influência da fortuna, nomear-se-á o pior de todos, o político de profissão, o ser abjeto que é hoje a chaga da grande república, o homem que faz da política uma indústria e que a explora segundo os processos da grande indústria - publicidade e corrupção.

Transformai o sistema eleitoral como quiserdes: substituí o escrutínio por pequenos círculos, pelo escrutínio de lista, fazei as eleições em dois graus como na Suíça (eu falo das reuniões preparatórias) modificai-o quando puderdes, aplicai o sistema nas melhores condições de igualdade - talhai e retalhai os colégios eleitorais - o vício intrínseco da instituição não terá com isso desaparecido. Aquele que souber conseguir a metade dos sufrágios ( salvo muito raras exceções, nos partidos perseguidos), será sempre nulo, sem convicções - o homem que sabe contentar toda a gente.

É por isso que - Spencer o notou já - os parlamentos são geralmente tão mal compostos. A Câmara, diz ele, na sua Introdução, é sempre inferior à média do país, não só em consciência como em inteligência. Um país inteligente figura na sua representação como se não o fosse. Se se propuzesse ser representado por idiotas não teria escolhido melhor. Quanto à probidade dos deputados, nós sabemos bem o que ela vale. Basta ler o que deles dizem os ex-ministros que o conheceram e apreciaram.

Que pena que não haja caravanas especiais, para que os eleitores pudessem ir ver a sua Câmara funcionar. Como eles ficariam enojados. Os antigos embebedavam os seus escravos para ensinarem aos filhos a aversão pela embriaguês. Parisienses, ide à Câmara ver os vossos representantes para aborrecerdes o governo representativo.

A esse montão de nulidades o povo confia todos os seus direitos, salvo o de os destituir de tempos a tempos e de nomear outros. Mas como a nova assembléia, nomeada segundo o mesmo sistema e encarregada da mesma missão, será tão má como a precedente, a grande massa acaba por se desinteressar da comédia e limita-se a algumas substituições de vez em quando, aceitando alguns candidatos novos que conseguem por qualquer motivo impor-se.

Mas se a eleição está já corroída de um vício de constituição, irreformável, que dizer da maneira como a assembléia cumpre o seu mandato? Refleti apenas um minuto e vereis bem depressa a inanidade da missão que lhe impusestes.

O vosso representante deverá emitir uma opinião, um voto, sobre toda a série variável até ao infinito, de questões que poderão surgir nessa formidável máquina - o Estado centralizado.

Deverá votar o imposto sobre os cães e a reforma do ensino universitário, sem nunca ter posto os pés na Universidade e sabido o que é um cão de guarda. Deverá pronunciar-se sobre as vantagens da espingarda Grass e sobre o local a escolher para as cudelarias do Estado. Votará sobre a filoxera, o guano, o tabaco, o ensino primário e o saneamento das cidades; sobre a Conchinchina e a Guiana, sobre as chaminés e o observatório de Paris. Ele que não viu os soldados senão na parada, dividirá os corpos do exército, e sem nunca ter visto um árabe, vai fazer e desfazer o código mussulmano da Argélia. Votará a barretina ou quepi, segundo as predileções da esposa. Protegerá o açúcar e sacrificará o pão. Matará a vinha julgando protegê-la; votará a arborização contra a pastagem e protegerá a pastagem contra a floresta. Tratará a peito a questão dos bancos. Inutilizará um canal por causa de uma estrada de ferro, sem saber muito bem em que parte da França se encontra um e outro. Acrescentará novos artigos ao Código Penal, sem o ter nunca folheado. Proteu onisciente e onipotente, hoje militar, amanhã tratador de porcos, e sucessivamente banqueiro, acadêmico, limpador de canos, médico, astrônomo, fabricante de drogas, curtidor de peles ou negociante, segundo a ordem do dia da Câmara, não hesitará nunca. Habituado na função de advogado, de jornalista, ou de orador de reuniões públicas, a falar do que não conhece, votará sobre todas as questões, com a única diferença de que no seu jornal divertia o porteiro, no tribunal despertava os juizes e os jurados sonolentos e na Câmara a sua opinião será lei para trinta, quarenta milhões de habitantes.

E como lhe é materialmente impossível ter uma opinião sobre os mil assuntos em que o seu voto fará lei, passará o tempo a conversar com o vizinho do lado, ou a escrever cartas para aquecer o entusiasmo dos seus "queridos eleitores", enquanto o ministro estiver lendo um relatório cheio de algarismos dispostos para o caso pelo seu chefe de gabinete; e no momento do voto se pronunciará pró ou contra o relatório segundo o sinal do chefe do partido.

Assim uma questão de gorduras para porcos ou de equipamentos para o soldado não será nos dois partidos de oposição senão uma questão de escaramuça parlamentar. Não quererão saber se os porcos terão necessidades das gorduras e se os soldados não estarão já sobrecaregados como camelos do deserto - a única questão que os interessa será saber se um voto afirmativo beneficia ao seu partido. A batalha parlamentar faz-se sobre as costas do soldado, do agricultor, do trabalhador industrial, no interesse do ministro ou da oposição.

Pobre Proudhon, eu calculo os seus dissabores quando teve a ingenuidade infantil, de entrar na Assembléia, de estudar a fundo cada uma das questões como ordem do dia. Levava à tribuna algarismos, idéias - nem sequer o escutavam. As questões resolveram-se todas antes da sessão, por esta simples consideração: é útil, é prejudicial ao nosso partido? A contagem de votos está feita: os submissos são registrados, contados cuidadosamente. Os discursos não se pronunciam senão para efeito teatral; não se escutam senão quando têm valor artístico ou se prestam ao escândalo. Os ingênuos imaginam que Roumenstan arrebatou a Câmara com a sua eloqüência, e Roumenstan no fim da sessão, estuda com os seus amigos a maneira como poderá realizar as promessas feitas para caçar os votos. A sua eloqüência não era mais do que uma cantata de ocasião, composta e pronunciada para divertir a galeria, para manter a sua popularidade com algumas frases empoladas.

"Caçar votos!"- Mas quem são esses que caçam votos, esses votos que fazem inclinar para um e para outro lado a balança parlamentar? Quem são esses que derrubam e erguem ministérios e que dotam o país com uma política de reação ou de aventuras exteriores? Quem decide entre o ministério e a oposição? - São os chamados "camaleões da política". Os que não têm opinião, os que se sentam sempre entre duas cadeiras, que vogam entre os dois partidos principais da Câmara.

É precisamente esse grupo - uns cinquenta indiferentes, de gente sem convicção nenhuma, que se fazem de cataventos entre os liberais e os conservadores, que se deixam influenciar pelas promessas, os lugares, a lisonja ou o pânico - esse pequeno grupo de nulidades, que dando ou recusando os seus votos, decide todas as questões do país. São eles que fazem as leis ou que as revogam. São eles que apoiam ou derrubam os ministérios e que mudam a direção da política. Uns cinquenta indiferentes ditando a lei ao país - eis a que se reduz o sistema parlamentar.(...)


Escrito no jornal anarquista "Le Révolté", em 1899 [?]

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

As Cidades Rebeldes de David Harvey

Um grande teórico das metrópoles contemporâneas contesta hipóteses conformistas e vê nestes centros, colonizados pelo capital, laboratórios de outra sociedade


Entrevista a John Brissenden e Ed Lewis, do New Left Project  

Tradução: Daniela Frabasile e Laís Bellini


Acaba de sair (por enquanto, em inglês), um livro indispensável para quem quer debater crise do capitalismo, degradação social e ambiental das cidades e busca de alternativas. Numa obra curta (206 páginas), intitulada “Cidades Rebeldes”, o geógrafo, urbanista e antropólogo David Harvey sustenta pelo menos três ideias polêmicas e indispensáveis, num tempo de crise financeira, ataque aos direitos sociais, risco de desastre ambiental e… rebeliões contra o sistema. Elas estão expostas em detalhes em entrevista que Harvey concedeu a John Brissenden e Ed Lewis, do excelente site britânico New Left Project.

A primeira provocação do geógrafo – que é também um dos grandes estudiosos contemporâneos de “O Capital”, de Karl Marx (veja a área especialmente dedicada ao tema, em seu site) – diz respeito ao papel das grandes metrópoles. Harvey discorda de dois tipos de pessimismo. Estes grandes centros para onde fluem as multidões de todo o mundo no século 21, diz ele, são bem mais que templos da desigualdade, da vida automatizada e cinzenta, da devastação da natureza.

É a elas que afluem – e lá que se articulam — as multidões às quais o capital já não oferece alternativas. Esta gente estabelece novas formas de sociabilidade, identidade e valores. É nas metrópoles que aparecem a coesão reivindicante das periferias; novos movimentos como Occupy; as fábricas recuperadas por trabalhadores em países como a Argentina; as famílias que fogem ao padrão nuclear-heterossexual-monogâmico. Nestas cidades, portanto, concentram-se tanto as energias do capital quanto as melhores possibilidades de superá-lo. Elas não são túmulos, mas arenas. Aí se dá o choque principal entre dois projetos para a humanidade.

A segunda hipótese de Harvey diz respeito à própria (re)construção de um projeto pós-capitalista. O autor de Cidades Rebeldes está empenhado em identificar e compreender formas de organização social distintas das previstas por um marxismo mais tradicional. Ele reconhece: ao menos no Ocidente, enxergar na a classe operária fabril o grande sujeito da transformação social equivale quase a um delírio. É preciso buscar sentidos rebeldes nas lutas por direitos sociais empreendidas por um leque muito mais amplo de grupos e movimentos. Não cabe nostalgia em relação às batalhas dos séculos passados: é hora de tecer redes entres os que buscam de muitas maneiras, nas cidades, construir formas de vida além dos limites do capital.

Mas esta abertura ao novo não significa, diz Harvey (e aqui está sua terceira provocação fundamental), aderir a modismos. O autor saúda o surgimento de uma cultura da horizontalidade e da desierarquização, nas lutas sociais. Mas sugere: para enfrentar um sistema altamente articulado, será preciso construir, também, visões de mundo e projetos de transformação que não podem ser formulados no chão de uma assembleia local de indignados. Harvey teme que o horizontalismo – grosso modo, a noção de que tudo deve vir das bases e ser debatido em assembleias – acabe se transformando num fetiche. Seria, ele adverte, refazer pelo avesso a obsessão dos antigos Partidos Comunistas pela autoridade e centralização. A entrevista completa vem a seguir (A.M.).


"Rebel Cities: from the right to the
city to urban revolution", Verso,
Londres, 206 páginas, U$ 13,95

John: Você diria que há um argumento central em “As Cidades Rebeldes: Do direito à cidade à Revolução Urbana”, ou o livro reúne diversos temas?

David Harvey: Um pouco dos dois. Se há um argumento central, ele está nos capítulos 2 (“As raízes urbanas das crises capitalistas”) e 5 (“Reivindicando a cidade para a luta anticapitalista”). O capítulo 2 é essencialmente sobre as relações entre capital e urbanização; o 5, sobre a oposição entre o capital e a urbanização. O conflito de classes está basicamente nos capítulos 2 e 5.

John: Você fala sobre as rendas do monopólio e as contradições intrínsecas a esse processo. Poderia explicar essas contradições e o significado delas para sua análise?

David Harvey: Argumenta-se que capitalismo tem a ver com competição, algo muito repetido e valorizado. Mas basta falar com um capitalista para descobrir que ele prefere o monopólio, se houver essa possibilidade. O que existe na verdade, por parte do capital, é uma incessante tentativa de evitar situações competitivas por meio de algum truque monopolista.

Por exemplo, o fato de dar nome e marcas produtos é uma tentativa de colocar neles um selo do monopólio, É por isso temos o swoosh do Nike [a seta estilizada que caracteriza a marca], ou ícones parecidos, que tornam certos produtos diferentes de qualquer outra coisa. Esta tendência ao monopólio é permanente. Ao escrever A Arte da Renda, eu quis chamar atenção sobre como os capitalistas gostam de chamar algo de original, autêntico, único. Eles adoram o “marketing da arte”. Há, portanto, um fluxo enorme de capital em direção a qualquer coisa que se possa facilmente monopolizar.

John: Mas uma vez que esse processo começa…

David Harvey: Bem, num certo aquilo que não era uma mercadoria de marca transforma-se em algo menos exclusivo, uma commodity. Esta tensão sempre existe. Veja, por exemplo, a modernização dos portos urbanos. O primeiro processo foi muito bom, todos diziam “que interessante”. Agora, quando você a muitas cidades do mundo e lhe perguntam: “viu o porto?”, você responde: “Vi um, vi todos”. E Barcelona não parece mais tão única quanto antes, porque seu porto [modernizado] se parece com qualquer outro. Rotterdam, Cardiff e, claro, Londres, têm um. Não é mais uma coisa única, se tornou apenas um tipo de taxa urbana comum.

John: Você argumenta um espaço se abre, nessa tensão…

David Harvey: Sim, acho, por exemplo, que a qualidade de vida em uma cidade frequentemente é algo definido por seus habitantes, sua forma de vida, seu modo de ser. Para que isso se torne único, o capital depende da inventividade de uma população para fazer algo, para fazer algo diferente. O capital tende a ser homogenizante. As pessoas frequentemente fazem o diferencial, produzem atrações únicas, existe um tipo de relação aí. Isso significa que os movimentos populares podem ter espaço para florescer, para tentar definir alguma coisa que é radicalmente diferente.

John: Você pode apontar exemplos de onde isso está acontecendo?

David Harvey: Sim. Em Hamburgo, existe uma área, o bairro St. Pauli, que era cheio de squats [ocupações de prédios abandonados, em geral feitas por jovens e imigrantes]. Eles criaram um ambiente único, muito diverso. Múltiplas etnias, classes, uma vida urbana muito intensa. O setor imobiliário, muito presente em Hamburgo, havia transformado a cidade em algo muito homogêneo. De repente, perceberam que existe esse bairro incrível, e agora estão tentando apropriar-se dele, comprando casas e alugando-as por um preço diferenciado, porque “não é interessante viver nesse bairro vibrante?”. Esse tipo de coisa você vê nas cidades a toda hora: as pessoas criam um bairro único, ele se torna burguês e entediante.

John: Sabemos que, no interior do capitalismo urbanista, há forças de compensação muito poderosas. Como podemos reverter sua lógica?

David Harvey: Um exemplo: o movimento Occupy desencadeou, em Nova York, uma resposta policial muito feroz e realmente exagerada. Basta você tentar participar de uma marcha, ou manifestação semelhante, para que haja 5 mil policiais em seu redor – e são bem agressivos.

Tentei entender por que. Quando os Giants venceram o Superbowl [campeonato nacional de futebol americano], as pessoas tomaram as ruas, interromperam a atividade normal de maneira ainda mais clara e a polícia não fez nada. “Ah, eles estão apenas comemorando”. Mas o Occupy cria, por seu significado político, uma resposta violenta. E se você pergunta por quê, sinto que Wall Street enerva-se muito com a possibilidade de esse movimento virar moda. Se isso ocorrer, haverá uma clara demanda para responsabilizar pessoas por muito do que aconteceu à economia. E o pessoal de Wall Street sabe o que fez, sabe que tem responsabilidade e que pode acabar preso. Penso que dizem ao prefeito e a todas as demais autoridades: “acabe com esse movimento antes que vá longe demais”. Isole-o, faça com que pareça muito violento. Então você acaba com esse tipo de resposta política.

John: Que outras qualidades do movimento Occupy lhe parecem particularmente significativas?

David Harvey: Eu estive fora ano passado inteiro, realmente não acompanhei o Occupy em seu período mais ativo nos Estados Unidos. Mas algo que fizeram foi chamar muita atenção para a questão da desigualdade social, para os bônus enormes pagos aos altos executivos. Estes conceitos estão se espalhando. Antes do Occupy,nada disso era discutido. Agora o Partido Democrata nos Estados Unidos, e até Obama, estão dispostos a tratar a desigualdade social como um problema. Os acionistas das grandes empresas estão começando a votar contra os grandes pacotes de bônus. Acho que tudo isso foi consequência da agenda criada pelo movimento. Mas, como sempre acontece, os poderes políticos cooptam parte do discurso contra o sistema e tentam diluí-lo. Vivemos agora uma fase de certa cooptação, em que os acionistas estão assumindo parte da retórica e Obama, outra parte

Ed: Sobre isso, estamos interessados em suas discussões sobre estratégia. Como ponto de partida, é claro que a concepção tradicional que a esquerda tinha, da classe operária industrial como sujeito revolucionário e agente de mudança, não se encaixa mais no Ocidente. Você pode contar como reconcebeu o sujeito revolucionário, quem pode constituí-lo hoje e como está relacionado às cidades e à identidade urbana?

David Harvey: Para tratar deste tema, faço uma pergunta: quem está produzindo e reproduzindo a vida urbana? Se você olhar para o tipo de produção que prevalece hoje, definirá o proletariado de maneira totalmente distinta da que se contentava em associá-lo ao trabalhador fabril.

Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar, precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas, Como organizá-los?

Há algumas experiências interessantes a respeito, em Nova York e Los Angeles. Politicamente, não é possível falar num sindicato nos termos tradicionais, é preciso criar organizações diferentes.

Ou tomemos o caso dos empregados domésticos. É extremamente difícil organizá-los, particularmente quando são, como em muitos países do Norte, ilegais. Porém, são uma força de trabalho bastante significativa, em muitas cidades. Parte do que estou dizendo é que todas estas formas de trabalho desenvolvem-se nas cidades e são vitais para a reprodução da vida urbana. Por isso, deveríamos nos preocupar em organizar politicamente estes trabalhadores, para influir na qualidade e natureza da vida nas cidades. Em alguns casos, a organização é muito difícil; em outros, pode ser muito vigorosa, mas assume frequentemente formas muito distintas das tradicionais.

Ed: Você acha que a esquerda está mergulhada neste tema, em compreender os desafios e oportunidades com que nos deparamos?

David Harvey: Penso que, historicamente, a esquerda sempre estabeleceu algum tipo de separação entre o que você poderia chamar de organizações de trabalhadores, ou baseadas em classes, e movimentos sociais. Uma de minhas batalhas nos últimos 30 ou 40 anos tem sido dizer que é preciso enxergar estes movimentos como movimentos de classe. Penso que houve uma relutância a aceitar isso, em muitos setores da esquerda.

Veja que esta relutância diminuiu, inclusive em razão da rapidez com que o trabalho fabril desapareceu. Quando cheguei em Baltimore, em 1969, havia algo como 35 mil operários na fábrica de aço. Quinze anos depois, eram 10 mil e na virada do século, apenas 2 mil. Se você quisesse organizar algo politicamente em 1970, você abria um diálogo com o sindicato dos metalúrgicos, porque eles tinham musculatura. Hoje, são irrelevantes. Mas se o sindicato já não conta, como organizar os trabalhadores? Diante desta questão, penso que a esquerda passou a compreender e valorizar melhor os movimentos sociais.

Ed: Em relação às dificuldades na organização dos grupos de que estamos falando, você investigou uma grande variedade de movimentos, em momentos diferentes. Existem lições particulares que devam ser generalizadas?

David Harvey: A maioria dos grupos desse tipo aparece como de organizações por direitos sociais. Sob esse guarda-chuva, eles podem criar formas organizativas menos restritas que as dos sindicatos convencionais. Agora, uma das coisas que vi em Baltimore foi que um movimento de sindicatos convencionais pode ser hostil a essas novas organizações. O movimento sindical convencional dividia-se: algumas vezes eles apoiavam; mas era mais comum considerarem essas formas de organização como uma ameaça a si próprios.

Penso que hoje, o movimento sindical convencional está preparado para enxergar essas organizações como cruciais para apoiar suas lutas. Começa a surgir um tipo de coalizão. Na marcha do Primeiro de Maio realizada em Nova York, há pouco, pessoas tradicionalmente ligadas ao movimento sindical juntaram-se aos movimentos sociais.

Sou muito a favor de uma forma diferente de organização sindical, de preferência local, e não por setor. Acredito que os sindicatos convencionais devem prestar mais atenção aos conselhos de comércio locais e aos conselhos municipais. Os sindicatos tendem se preocupar apenas com o bem estar de seus membros, e uma organização geográfica precisa pensar no proletariado em geral, na cidade. Desse ponto de vista, uma forma de organização diferente pode abranger uma cidade inteira, e unir pessoas  envolvidas em sindicatos diferentes, com todas as suas diferenças, em um tipo de sindicato da cidade, ou uma organização política da cidade.

Ed: No capítulo 5 do novo livro, você relaciona algumas de suas hipóteses sobre organização urbana às dificuldades enfrentadas pelas formas tradicionais de organização da esquerda. Não apenas no que diz respeito a diferente composição do proletariado, mas também nas relações com organizações autônomas, como cooperativas; ou na dificuldade para atuar na esfera estatal. Você parece sugerir que as cidades são locais de organização especialmente poderosos, e se fosse possível organizar uma cidade inteira, então possivelmente estaríamos muito empoderados. Por que você acha que as cidades são tão importantes? As cidades radicalmente isoladas não sofreriam da mesma vulnerabilidade das cooperativas?

David Harvey: Gosto de pensar nas cidades porque são uma escala maior que uma simples fábrica. Se você observar as fábricas recuperadas na Argentina, tomadas pelos trabalhadores em 2001-2002, verá que uma das dificuldades que surgiriam desse movimento e das associações de trabalhadores envolvidas é que, em certo ponto, como estão imersas num sistema capitalista, vêem-se envolvidas na competição e, em consequência, em práticas de auto-exploração.

Marx tem uma série de passagens interessantes, onde diz que o primeiro passo em direção a uma transformação revolucionária é a tomada dos meios de produção pelos trabalhadores; mas se ficarmos apenas nesse nível, não será suficiente. Se você começar a pensar em organizar uma cidade inteira (e isso está começando a acontecer um pouco na Argentina), as fábricas precisarão de matérias primas — se você está produzindo camisas, precisa de tecido. Mas de onde vem o pano? Bem, você começa a criar uma rede; monta uma rede de cooperativas produzindo coisas diferentes, interligadas.

Você pode imaginar que podem surgir, em uma área metropolitana, economias interligadas dessa forma, o que nos levaria além das possibilidades de tomar apenas uma fábrica específica. Outro fato interessante sobre as fábricas na Argentina é que quando foram tomadas, não permaneceram simplesmente como fábricas. Tornaram-se centros comunitários, integraram realmente os bairros próximos, tinham programas educacionais e culturais. Quando os donos voltaram, uns cinco anos depois, e disseram “queremos nossa fábrica de volta ou levaremos as máquinas”, a população saiu de suas casas para impedi-los. Assim, é muito mais fácil de defender as fábricas tomadas.

Claro que se você tentar criar uma cidade totalmente comunista no meio do capitalismo, provavelmente irá sofrer uma repressão real e violenta. Estará numa situação como a da Síria, em uma cidade como Homs onde há um movimento de oposição muito forte. De certa forma, é uma cidade rebelde, cercada pelo exército e esmagada, com pessoas mortas e outras submetidas.

Penso que há perigo real em ir muito longe e muito rápido. Quão longe uma cidade pode ir, em relação a sua organização? Há exemplos disso: Porto Alegre construiu sua forma orçamento participativo, e agora há orçamento participativo em muitas cidades do mundo. Não é uma medida revolucionária, apenas uma medida transformadora que aprofunda a democracia urbana.

Esse movimento tornou-se significativo. Algumas inovações ocorrem no campo ambiental. Outra cidade brasileira muito interessante é Curitiba, que trabalhou questões ambientais e tornou-se conhecida por organizar seu sistema de transporte coletivo de uma forma ecológica e  sofisticada. As inovações que vieram de lá também estão sendo implantadas em outras cidades. Você pode imaginar uma situação como essa nos termos do que chamo de “teoria dos cupins”[Harvey refere-se aos casos em que é possível corroer por dentro uma estrutura capitalista, sem alarde, até que ela entre em colapso], para transformação social. Esta cidade agora tem uma estrutura institucional diferente, e você começa a ver tais mudanças como algo que se espalha pela rede urbana.

Ed: No entanto, você também é crítico da teoria dos cupins…

David Harvey: É preciso sempre ter cuidado. Quando sou crítico, não estou desprezando. Sustento que algumas estratégias são boas, que as pessoas poderiam adotá-las, mas por outro lado temos que considerar as limitações da realidade. Em que momento você passa de uma “estratégia dos cupins”para outra? Uma das coisas em que realmente me empenhei, no capítulo 5, foi tentar mostrar que há uma variedade de estratégias, para uma variedade de situações e propósitos. Não devemos, portanto, nos restringir dizendo: “esta é a única estratégia que vai funcionar”. Podemos adotar diversas, todas as que forem possíveis. Em alguns casos, não há outra opção além de se envolver em estratégia de cupins; e é possível, ainda assim, fazer um bom trabalho.

John: Você fala no livro sobre a cidade chinesa de Chongqing, onde Bo Xilai, líder do Partido Comunista, liderou processos muito interessantes, até ser afastado. Seria um exemplo dos riscos de ir “longe demais, rápido demais”?

David Harvey: Bem, eu não sou especialista em China, e me pergunto se ele era tão brutal e tão corrupto está sendo pintado; ou se o retratam dessa maneira porque não gostam do modelo que estava desenvolvendo. Era maoísta na retórica; estava muito preocupado com a redistribuição da riqueza. Estava muito claro que sua tentativa de se tornar poderoso no Comitê Central baseava-se no desenvolvimento deste modelo urbano particular, radicalmente distinto do que se vê em Xangai, Shenzhen e lugares assim. Nesse aspecto, eu o achava muito interessante.

Agora, tanto quanto sei, o Comitê Central tem adotado, como políticas nacionais, algumas das práticas que Bo lançou em Chongqing. Isso é típico: como sabemos, há na China uma necessidade de incentivar o mercado interno  e alguma preocupação sobre redistribuição da riqueza. Eles observaram um processo local bem-sucedido e talvez tenham decidido enfrentar estes problemas por meio de aumento salários ou construção de habitações, como Bo estava fazendo. Pode ser o modelo chinês de urbanização, que tem sido, na minha opinião, bastante desastroso — ambiental e mesmo economicamente — mude nos próximos anos, nas mesmas linhas que o dirigente afastado estabeleceu. Mas ressalto que são apenas especulações.

Ed: Quero voltar para o que você afirmou sobre abraçar uma pluralidade de estratégias, e uma diversidade de formas organizacionais. Você tem participado de um debate permanente, e às vezes ácido, opondo “horizontalistas” a “centralistas”, ou “verticalistas”. Pode falar mais sobre isso, e como se relaciona a sua análise sobre capitalismo e cidade?

David Harvey: Acho que há hoje um grande apego pela horizontalidade. Tento dizer a meus alunos que gosto de passar grande parte da minha vida no horizontal, mas também gosto de ficar de pé de vez em quando e andar por aí! Porque acho que esta oposição não é útil. Sou a favor de ser tão horizontal quanto você puder. Mas há o que chamo no livro de uma espécie de fetichismo da forma de organização — o que foi terrível nas concepções de centralismo democrático dos partidos leninistas e comunistas.

Repito: a questão é para mim, identificar que tipo de organização será capaz de enfrentar e resolver cada tipo de problema. Acho que a horizontalidade pode ajudar a resolver alguns problemas, em certas escalas, mas não funciona em outras situações. Vivemos num mundo onde há um sistemas muito estruturados, a de maneira que você também precisa de estruturas de comando e controle para lidar com eles. Por exemplo, uma estação de energia nuclear é um sistema fortemente estruturado. Quando algo dá errado, você precisa reagir imediatamente, caso contrário tudo acontece muito rápido e explode. A universidade não é um sistema fortemente hierarquizado. Se algo der errado nela; se alguém não aparecer para uma palestra, por exemplo, isso importa pouco: a instituição sobrevive perfeitamente bem. Mas em sistemas fortemente hierarquizados, você precisa tomar decisões com rapidez.

Por isso, pergunto aos horizontalistas radicais: você quer organizar o controle de tráfego aéreo por meio de princípios horizontalistsa? Quer ter assembleias o tempo todo, na torre de controle de tráfego aéreo? Será que funciona? Como você se sentiria se estivesse no meio de um voo cruzando o Atlântico, e de repente dissessem: “bem, os controladores de tráfego aéreo estão em assembleia, e eles vão nos informar amanhã o que decidiram”? Há muitas atividades que precisam, como essa, de formas bem diferentes de organização. Acho ótimos que as pessoas estejam debatendo horizontalidade, mas é ruim que digam algo como: “ou é horizontal, ou não é nada”.

Ed: Estas ideias vêm de um semi-anarquismo, de uma profunda suspeita diante de qualquer forma de autoridade. Você está dizendo,  basicamente, que ser um radical, um anti-capitalista, ainda é necessário reconhecer que às vezes a autoridade tem o seu papel?

David Harvey: Sim, claro: acho que a autoridade tem seu papel. O problema importantíssimo que se coloca é: como você controla uma autoridade? Quais são os mecanismos de revisão de mandatos e de controle? Porque uma estrutura hierárquica pode, de fato, tornar-se autoritária. Mas há uma grande diferença entre autoritarismo e autoridade. Eu acho que em certas situações, você precisa de alguém para exercer autoridade.

O exemplo ilustre de que muitas pessoas lembrariam são os zapatistas. Mas eles, militarmente, não são horizontais. Sobrevivem até hoje precisamente porque, se você tentar mexer com os militares, eles têm um comando muito bom e estruturas de controle com os quais podem resistir. Se você não tiver isso, será muito vulnerável. Uma das críticas que sempre foram feitas à Comuna de Paris é que, devido a uma espécie de anarquismo filosófico, não havia nenhuma autoridade central para defender a cidade inteira.

As pessoas defendiam seu distrito, mas não toda a cidade. Por isso as forças da reação puderam atacar: não havia nenhuma estrutura de comando e controle para resistir militarmente à invasão.

John: Você fala, no novo livro, sobre Murray Bookchin, e sua abordagem sobre uma saída para este problema de escala. 

David Harvey: Sou um geógrafo, e o pensamento anticapitalista na Geografia sempre foi predominantemente anarquista. Os anarquistas têm uma longa tradição de estar muito mais interessados em questões ambientais e urbanas que os marxistas. Eles exerceram, ao longo do tempo, muita influência sobre as práticas de planejamento. Figuras como Lewis Mumford, que vêm dessa tradição, exerceram muita influência —  inclusive sobre mim, obviamente. E Bookchin é seu herdeiro. Estou interessado em seus ensaios sobre municipalismo libertário: fala sobre formas horizontais de organização descentralizada mas, em seguida, fala também sobre a confederação das assembleias regionais. Foca sobre as necessidades das bio-religiões, em vez de se limitar a comunidades particulares.

Ou seja, ele está disposto a pensar em uma estrutura hierárquica de algum tipo, tenta falar sobre como os poderes foram atribuídos e como devem ser. Recorre a um pequeno truque teórico de Saint-Simon: diz que pode haver gerenciamento das coisas, não de pessoas. Que deve-se gerir, por exemplo, o abastecimento de água ou o saneamento uma região — mas não o que as pessoas fazem. É muito diferente da política real, mas a ideia, e o pensamento de Bookchin em geral — me parece muito interessante.

Participei, há duas semanas, de uma reunião em Nova York, com David Graeber. Murray Bookchin compareceu ao debate. Sua filha estava na platéia, e nós conversamos sobre reunir, num pequeno livro, uma seleção de escritos de Murray sobre o tema. Acho que é um momento muito bom para reintroduzir a tradição anarquista, que pode contribuir para o debate sobra algumas  questões mais amplas. Por exemplo, como você realiza tantas assembleias municipais e não coloca em questão o fato de algumas pessoas, com muitos recursos, converterem-se em ultra-ricos — enquanto muitos, sem recursos, reduzem-se a ultra-pobres?

Ed: Sua visão parece que, no fim das contas, será necessário um Estado. Parece que você acha que Bookchin talvez aceite isso, mas não pode admitir.

David Harvey: Sim. Você sabe: o que se parece com um Estado, é visto  como um Estado, e se expressa como um Estado… é um Estado! Há algo que se pode chamar de Estado capitalista, que poderíamos querer esmagar. Mas há, também, uma forma de organização diz respeito às relações entre diferentes assembleias e grupos. E no plano mundial, você também tem que pensar sobre certas questões como o aquecimento global. Precisam ser abordadas e compreendidas em plano global. Significa que certas  ideias sobre o que fazer têm de ser resultado de uma preocupação mundial.

John: Isso nos leva de volta a um ponto que abordamos antes, sobre as organizações com base geográfica. Existe uma oposição entre o urbano e o não-urbano?

David Harvey: Muitas pessoas me fazem essa pergunta. Elas dizem “a cidade não existe realmente hoje. Você está falando sobre o direito a algo que não existe na mais?” Ou: “você está falando sobre a cidade, por que não sobre o campo. Por que você não fala sobre as áreas rurais?”. Minha resposta é que, de fato, nos últimos cinquenta anos, nós nos tornamos um mundo totalmente urbano, e o que pode ter sido verdade há algum tempo — a existência de uma vida urbana e uma vida camponesa auto-sustentável, independente — desapareceu em grande parte. O que você vê é um contínuo entre o campo e a cidade. Na América Latina, por exemplo, se você está na área rural, as pessoas assistem aos mesmos canais na televisão, dirigem os mesmos carros. Isso é o que chamo de desenvolvimento geográfico desigual no interior do processo de urbanização.

E desse ponto de vista, você diz que as diferenças no interior das cidades são tão significativas quanto as diferenças entre a cidade e subúrbio, e o subúrbio e  as zonas não-urbanas. Há tantas diferenciações no interior do próprio processo de urbanização, que a diferença entre áreas ricas e favela é dramática — na realidade, mais dramática que a que existe entre o que acontece na cidade e fora dela.

Há formas de organização que refletem isso. O movimento dos trabalhadores sem-terra no Brasil tem conexões urbanas muito amplas e as leva muito em conta. Ele não se vê fora do mundo autônomo, mas como parte de um processo geral de urbanização. É como quero ver este processo. Há, em alguns lugares, tentativas de organizar uma cadeia de produção de alimentos para as cidades, que começa nos campos e passa por várias etapas. Vendendo a produção  diretamente aos supermercados, por exemplo — o que me parece uma ideia  muito interessante. Em El Alto [subúrbio popular de La Paz, Bolívia], um dos meus exemplos preferidos, a conectividade entre as pessoas que vivem na cidade e as que estão fora dela é muito, muito forte. Foi ampliada, nos últimos dez ou quinze anos, por causa do agro-negócio e a forma com que o campo tem se transformado em uma paisagem capitalista.

Ed: Então um urbanismo revolucionário uma forma universal de revolução política?

David Harvey: Eu diria que sim. A única razão pela qual me atenho à palavra “cidade” é que ela tem um significado icônico e é foco de sonhos e utopias. Ao mencioná-la, você está invocando o imaginário de uma cidade linda, uma cidade na colina, etc. Continuo com o termo “cidade”, mas entendo perfeitamente que, em um sentido estrito, diferenciado de todo o resto, ela essencialmente desapareceu.


FONTE: Outras Palavras