domingo, 13 de outubro de 2013

John Lennon – socialista, feminista, internacionalista


Yoko e John em passeata com o jornal trotskista Red Mole.
Na capa: "Pelo IRA contra o imperialismo inglês".

Por Edemilson Paraná

Desde muito cedo gosto dos Beatles e especialmente de John Lennon. Foi literalmente minha primeira experiência musical “libertadora”, quando, aos 12 anos de idade, de livre e espontânea vontade, sem a recomendação de ninguém (meu contexto familiar passa muito longe do Rock), uma dessa epifanias inexplicáveis me fez brotar numa loja de discos na minha pequena cidade no interior do Paraná: “quero ouvir qualquer coisa dos Beatles”. Me lembro da cara estranha da atendente que, num misto de espanto e ternura, me apontou um CD: “só temos essa coletânea aqui”. Era a Beatles 1, recém-lançada. Desde então nunca mais parei.

Pouco tempo depois, conhecendo a história de cada um dos integrantes da banda, me deparei com a música Imagine, que se tornaria um tema de vida para mim. Na mesma época começava a tocar violão. Essa combinação simples de Dó com Fá e poucas variações em Lá Menor e Sol virou uma obsessão. Tocava em casa, na escola, em apresentações, entre os amigos. Os mais próximos chegaram a enjoar. Apressado em traduzi-la, me deliciei com o exercício imaginativo de pensar um mundo sem propriedade, sem países, sem religião, sem guerras. Como seria aquela maluquice? Longe de ser um socialista, de ter alguma consciência política progressista (na verdade era até um tanto conservador), sentia que aquilo me dizia muito a respeito.

A descoberta autônoma da música (não a que te dão, mas aquela que você busca e encontra), carregada de novidades estéticas e simbólicas, teve um papel importantíssimo na minha formação, na minha sensibilidade, na forma de como viria a sentir o mundo a minha volta. E aqui vale lembrar a importância transformadora da arte, da estética, da cultura pela sensibilização e movimentação intersubjetiva por um novo senso comum.

Cresci, andei por diferentes universos musicais, me fiz universitário longe de casa, cidadão consciente do meu papel político e socialista por convicção. Toda essa mudança, essa revolução interna pela qual gradativamente passei, no entanto, fez com que eu começasse a ver os Beatles de forma ambígua: próximos emocionalmente – por conta de toda essa carga subjetiva, mas um pouco distantes racional e politicamente em relação ao modo idealizado de como aquele garoto umuaramense os via desde o fatídico encontro na loja de CDs.

Para mim, do ponto de vista político, umas das categorias fundamentais pela qual passaria a experienciar e organizar o mundo a minha volta, John e os Beatles se tornaram mais um brilhante produto da indústria cultural, que domesticou o ímpeto subversivo e marginal do Rock em seus primórdios – e a canção Revolution, que expressa em versos o que seria essa decepcionante revolução cultural, comportada e adequada ao sistema, proposta por eles era a prova cabal disso. Junto dela, as fugas espirituais, sensoriais e alucinógenas do movimento Hippie, que individualizava e marginalizava a possibilidade de qualquer transformação sistêmica; um símbolo, enfim, da destruição criadora do capitalismo cultural que transforma toda forma de contestação em adequação mercantilizada.

John Lennon, o meu preferido, seria, deles, talvez o mais progressista; um pacifista, anti-guerra, um “aliado tático”, mas, ainda assim, parte desse processo todo de derrota política da contra-cultura. Com essa conclusão em mente, sem extremismos, segui ouvindo, tocando e me divertindo com a banda e suas músicas, mas certamente desencantado. Na minha cabeça, John, os Beatles e transformação radical não eram mais uma coisa só, como o fora para aquele menino que começava a descobrir o mundo.

De certo modo, isso não mudou. Mas hoje, ao descobrir por acaso uma entrevista de John Lennon concedida a Robin Blackburn e Tariq Ali, ligados à IV Internacional, para o jornal Trotskista Red Mole, me reconcilio, de alguma forma, com aquele garoto que um dia fui. Me dou conta de algo que para alguns talvez não seja novidade: John era – ainda que de modo ambíguo – um socialista convicto, e Imagine era expressão dessa convicção, “virtualmente o Manifesto Comunista”, segundo o próprio.

Na entrevista (aqui), que ficaria conhecida mais tarde como a “entrevista perdida”, John fala sobre sua origem de classe trabalhadora, as desilusões da fama, a necessidade de destruir o capitalismo, a emancipação das mulheres, o fim das guerras, entre outros assuntos pouco convencionais para um beatle bem comportado. Conforme conta Rômulo Mattos, em brilhante artigo no Blog Convergência (parte de uma série em duas partes aqui e aqui):

“no dia seguinte à entrevista concedida ao jornal Red Mole, um animado Lennon telefonou para Tariq Ali: “Olhe, fiquei tão entusiasmado com o que conversamos que fiz uma música para o movimento, para vocês cantarem nas passeatas”. “Power to the people” mostra uma mudança significativa em relação a “Revolution”. Nessa canção, o artista avisa aos revolucionários para não contarem com ele. Inversamente, em 1971, Lennon canta: “Diga que queremos uma revolução/ É melhor começar logo/ Se prepare/ E vá para as ruas” (“Say we want a revolution/ we better get on right away/ Well, you get on your feet/ And on the street”). A sua adesão aos movimentos revolucionários é ratificada em um verso como: “Nós temos de derrubar vocês/ Quando chegarmos à cidade” (“We got to put you down/ When we come into down”). As suas declarações no período vão no sentido de que o chamado Flower Power fracassara; por essa razão, era necessário começar novamente. Lennon dizia claramente: “Somos o começo da revolução [...] Da América ela se espalhará pelo resto do mundo. Viva a revolução” (cf. LEAF, SCHEINFELD, 2006). O arranjo da música merece um rápido comentário. No início da gravação, lançada como single, a frase “Power to the people” é cantada em coro, sendo acompanhada por um provável som de palmas, simulando um protesto de rua”.

Apesar de saber a respeito da espionagem que o FBI teria feito com o cantor na época do movimentos anti-guerra e do boicote à sua permanência nos EUA pelo governo estadunidense que se recusou a renovar seu visto, não conhecia essa face, digamos, “revolucionária” de John Lennon. Havia tomado esse vigilantismo ianque contra John como parte da velha e  injustificada paronóia de controle dos norte-americanos. Pelo visto havia outros temores em Washington. Grata surpresa. Se há um John hippie e domesticado, há também um John em chamas – socialista, feminista, internacionalista. De volta a meus 12, fico com esse, fico com o John de Imagine.

John e Yoko com a edição do jornal Red Mole com sua entrevista concedida
à Tariq Ali.

Abaixo, trechos da entrevista de John Lennon a Robin Blackburn e Tariq Ali (Red Mole).

Imagine como Manifesto

“A canção Imagine, que diz, ‘Imagine que não há mais religião, não mais países, não mais política…’ é virtualmente o Manifesto Comunista… Hoje Imagine é um grande sucesso em quase todo lugar – uma canção anti-religiosa, anti-convencional, anti-capitalista, mas porque ela é suave é aceita.”

Luta das Mulheres

“E as mulheres também são muito importantes, não podemos ter uma revolução que não envolva e emancipe as mulheres. É sutil como se fala da superioridade masculina. Levou algum tempo para que eu compreendesse que o meu machismo estava cerceando certas áreas para Yoko. Ela é uma socialista radicalmente libertária (‘red hot liberationist’) e logo me fez notar como eu estava errado, mesmo quando parecia para mim agir naturalmente. Estou sempre interessado em saber como pessoas que se dizem radicais tratam as mulheres”.

Poder para o povo

“Eles me criticaram por cantar ‘Poder para o Povo’, dizendo que nenhuma facção pode deter o poder. Bobagem. O povo não é uma facção. Povo significa todas as pessoas. Penso que cada um deveria possuir tudo de forma igualitária e que o povo deveria ser também proprietário das fábricas e ter participação na escolha de quem as dirige e o que deve ser produzido. Estudantes deveriam ter o direito de escolher seus professores.”

Revolução

“(Para destruir o capitalismo na Inglaterra), penso que o único caminho é tornar os operários conscientes da sua sofrida posição a que estão submetidos, dos sonhos que os cercam. Pensam que estão em um maravilhoso país da liberdade expressão. Compram carros e televisões e acham que não há nada mais na vida. Estão condicionados a deixarem os patrões mandarem, a verem seus filhos massacrados nas escolas. Estão sonhando o sonho de outros, não é um sonho autêntico deles. Devem compreender que os irlandeses e os negros estão sendo reprimidos e que eles serão os próximos. Tão logo eles tomem consciência de tudo isso, podemos começar a fazer algo. Os trabalhadores têm de começar a assumir. Como Marx disse: ‘Para cada um segundo sua necessidade’. Penso que isto seria muito adequado aqui”.


Sem comentários:

Enviar um comentário