quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Lênin para o século 21


Por Bruno Cava


Lênin, numa passagem muito incompreendida, afirmava que, como os operários têm chefes nas fábricas, eles também vão precisar de chefes no partido. Contudo, ao contrário da primeira impressão, o ativista bolchevique não está defendendo a subordinação do trabalhador e o vanguardismo por si mesmo. É que Lênin não acreditava numa revolução que não estivesse baseada solidamente na realidade vivida pelas pessoas de seu tempo. O ponto de partida para a organização revolucionária precisa ser o cotidiano produtivo. Não pode haver eficácia na luta, se não estiver calcada sobre relações de produção já experimentadas, sobre a organização do dia a dia. O processo de luta se desenrola, exatamente, partindo dessas relações mais cotidianas, para subvertê-las, para extrapolar as tendências internas de libertação. A política é a arte da reorganização do existente, e não algum projeto idealista a partir de cabeças iluminadas ou esclarecidas.

Embora a Rússia no começo do século 20 fosse predominantemente agrária e subdesenvolvida, Lênin via na instalação das fábricas uma tendência, uma mudança qualitativa nas formas de organização social. Na época, a fábrica era a unidade mais produtiva da sociedade moderna. Era o motor do desenvolvimento capitalista. Desprezada por anarquistas pequeno-burgueses, que só viam mecanização e despolitização no rude meio operário, Lênin via na fábrica elementos potentes de cooperação e articulação, que poderiam ser reorganizados. O lado negativo da fábrica estaria antes no controle exercido pelos patrões, no esmagamento sistemático da auto-organização operária, mas não em sua mera existência. O objetivo é aumentar a produtividade do modelo da fábrica, ao libertar o trabalho do capital. Contra quem desviava, com nojo ou elitismo, o olhar da vida nas fábricas e ao redor delas, considerando-as um inferno corruptor do homem e da natureza; Lênin insistia em apontar focos de subjetividade, arranjos produtivos inovadores no interior do meio operário.

Daí que, em franca contraposição aos populistas russos (os narodniks), Lênin preferisse centrar a teoria da organização nas fábricas, e não na propriedade comunal pré-capitalista (a obščina). Se os "puros e duros" narodniks elogiam o pobre em seu "habitat natural", quase com nostalgia, como sacralidade a defender-se; para Lênin a virtude da pobreza já está desde sempre no artifício, na capacidade de reinventar relações solidárias e criar vida em condições de privação e sofrimento, como na fábrica. A potência do pobre está na ficção, numa imaginação real e em movimento, e que transfigura o sofrimento em mais vida e luta.

Com isso, Lênin vai participar de uma organização que se molda à semelhança do modelo da fábrica, assumido pelo lado da produção de subjetividade. Um partido-fábrica, que vai propor a tomada do poder dos meios de produção, para conferir-lhes outro sentido, o comunismo, liberto das coações e violências de classe. O capitalista representado pelo estado é visto como um entrave para a expansão das forças produtivas. A extinção do estado deve ser concomitante à tomada do poder. A organização bolchevique, portanto, tenta repetir e potenciar a forma fabril como um ponto de partida, organizando os operários nos sovietes e no partido revolucionário. Eis aí o leninismo de Lênin: uma teoria da revolução imediatamente imbricada numa teoria da organização (o partido-fábrica, a partir da leitura da tendência) e numa teoria da subjetividade (relações de produção que são subvertidas, potenciadas no comunismo). Essa teoria se enredou com a prática do partido bolchevique em circunstâncias extremamente favoráveis. Como se sabe, isso deflagrou um devir revolucionário que acelerou dramaticamente a luta de classe na Rússia. Os descaminhos posteriores, seja por razões exógenas ou endógenas, ou por uma combinação de ambas, não eliminam a força comprovada do leninismo.

Obviamente, a teoria de Lênin elaborada no começo do século 20 não vale mais em tempos de capitalismo tardio, globalizado e integrado. A revolução russa determinou as formas de luta em seu desdobramento histórico por todo o século passado, porém, suas premissas devem ser repensadas radicalmente. O próprio leninismo, atualmente, chega a ser uma palavra maldita, um xibolete associado a grupúsculos obscuros e vanguardas impotentes, completamente descoladas da vida do trabalhador. Diferentemente daquele tempo, a classe trabalhadora hoje compreende não apenas o operariado de fábrica, como também a inteira rede social de produção de serviços, relações, imagens, afetos, bens materiais e imateriais. Se sucede uma tendência, hoje, não está mais na formação das fábricas, segundo o modo de organização do começo do século 20. Está, isso sim, no investimento progressivo de toda a metrópole dentro dos circuitos de produção e circulação, na inclusão de todos no mercado de trabalho e consumo — uma socialização geral e irreversível.

Por mais que a agricultura e a indústria convencional continuem existindo, o fato é que um processo de pós-industrialização atinge a sociedade dissolvendo formas antigas, inclusive reconfigurando as relações de produção dos ditos setores "primário" e "secundário" da economia. Da mesma forma que a agricultura fora industrializada, a indústria é pós-industrializada. O capitalismo não se contenta mais com a extração de mais-valor da produção fabril. O capital explora também e sobretudo as redes deslocalizadas de serviços, trocas simbólicas e compartilhamento, o inteiro tecido biopolítico em que estão todos, formalmente reconhecidos como trabalhadores ou não, implicados em sua vida cotidiana. Por isso, sem se respaldar na própria vida social e suas formas de produção atuais, qualquer apelo de luta anticapitalista/antiestatal corre o risco de rapidamente degenerar para banalidades antiautoritárias, sem premência ou dinâmica expansiva.

Neste contexto, seria possível resgatar o triângulo de Lênin: subjetividade – organização – revolução? Talvez sim.

Se a tendência hoje é da formação de um proletariado cognitivo (a dita "proletarização pós-fordista"), então é aí que devem ser pesquisadas as relações de produção — relações que são, imediatamente, um novo e geral cotidiano produtivo. A classe trabalhadora virou suco e isso em certo sentido foi bom, porque significou a derrubada dos muros da fábrica. O operariado se liquefez ele próprio, vazando das estruturas fabris para derramar-se sobre a metrópole biopolítica. Portanto, sem desprezar, de modo elitista, o imbricamento das pessoas com suas ferramentas, modos de cooperação e formas de trabalho; é preciso identificar os tempos e espaços da cooperação social, e onde estão os pontos de atrito, em que se é canalizado e explorado pelos patrões. Certamente, no começo do século 21, muitas vezes os patrões estão mais deslocalizados e abstratos do que antes, na figura das finanças, de comandos difusos e cada vez mais invisíveis de um funcionamento econômico, alçado à condição transcendental.

O método de Lênin consiste em estar "dentro e contra"; dentro das relações de produção, subvertendo-as, e contra os patrões (condensados ou difusos), tomando-lhes o poder. Nada de imaginar reservas sacrossantas que estariam a salvo do capitalismo. A libertação não está em construir sociedades alternativas, mas em ativar uma alternativa de sociedade (o comunismo), na imanência do cotidiano social mais imediato e disseminado. Por isso que, se o telefone celular ou a rede social da internet estão tendencialmente indissociáveis da organização das relações (de trabalho, afetivas, de diversão, de comunicação), então é possível subverter as relações de produção aí implicadas, para que o telefone celular e a rede social sejam usadas politicamente, potenciando a subjetividade. O mesmo vale para o consumo: embora o programa do capital seja assujeitar o consumidor dentro de padrões dóceis e multiculturais, neutros em relação à política, essa relação de produção pode ser reorganizada, a fim de gerar efeitos de subjetividade. A mobilidade urbana, se é condição para a superexploração dos fluxos e a ordenação da cidade, também pode se converter em mobilização. E assim por diante, o ponto está em que somente pesquisando como as pessoas se organizam produtivamente, — matriz sobre o que o vampirismo capitalista funciona —, seja possível mapear as resistências e criatividades, que podem ser integradas coletivamente numa estratégia.

Isto significa que é preciso, também, contestar os novos narodniks que defendem alguma pureza em grupos supostamente intocados, que estariam mais em contato com a "natureza" ou depurados da contaminação das tecnologias, das redes, da integração global. É preciso, ainda, contestar os utopistas, — usualmente elitizados e muitas vezes munidos apenas de retórica, — para quem a salvação consista em separar-se da mediocridade do mundo, em comunidades Osho, retiros ecológicos new age, casas Fora do Eixo ou seitas de baixa dieta proteica à moda Jim Jones. Para que uma revolução possa acontecer, é imprescindível que suceda efeito de escala, dentro e contra o modo capitalista dominante, numa alternativa de vida. Que, nesse processo, as formas concretas da transição (para o comunismo) já existentes sejam libertadas de dentro dos modos existentes de cooperação, autoprodução de sujeitos e libertação, e assim reorganizadas e requalificadas. E que os pontos de atrito sejam tensionados segundo a própria conformação das relações de produção do capitalismo atual, o que evidentemente passa pelo racismo, o patriarcado, a heteronormatividade e tantas outras opressões majoritárias.

Se Marx pensou na comuna como aposta de organização e Lênin o soviete, hoje estão em gestação os lugares de subjetivação, isto é, as formas concretas da transição. Os muitos focos de luta centelham globalmente, uma vez que a dominação capitalista é globalmente integrada. A cooperação transversal, a liderança distribuída, a horizontalidade dos processos, a arquitetura em rede, a produção biopolítica — tudo isso são parâmetros tanto do capital mais avançado, quanto da resistência e da franja de reinvenções dos novos movimentos. Daí que não adianta tentar reeditar formas falidas que nada mais tenham a ver com o cotidiano produtivo das vidas, por meio de organizações totalmente obsoletas. Tal nostalgia de outros momentos do século passado não condiz com a necessidade de calcar-se na organização produtiva realmente existente, e leva a uma espécie de autismo político. Sem requalificação, sem apoiar-se nas tendências, todo o movimento estudantil, sindical e orgânico está fadado à impotência, à incapacidade de fazer qualquer coisa de eficaz e expansivo. Enquanto isso, os teóricos e empreendedores do capital não perdem tempo defendendo a ortodoxia. Eles se adaptam o mais rapidamente à realidade produtiva, redimensionando os mecanismos de controle e inventando novos. A luta de classe é dinâmica, na medida da liquidação das formas antigas.

Ainda é possível promover um bom encontro com Lênin, na contínua atualização de suas hipóteses e dadas as condições reais das lutas e as circunstâncias com que nos defrontamos diretamente, legadas e retrabalhadas. O que fazer segue uma pergunta incontornável, em meio à desorientação de nosso tempo.


REFERÊNCIAS BÁSICAS:

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs; capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1-5. Ed. 34. [1980]
LÊNIN, Vladimir I. O que fazer? [1902]
___. Um Passo a Frente, Dois Passos Atrás [1904]
___. Imperialismo, fase superior do capitalismo [1915].
___. O Estado e a revolução. [1917]
MEZZADRA, Sandro; CHIGNOLA, Sandro. Fuori dalla pura politica. Laboratori globali della soggettività. 7/12/2012. http://www.uninomade.org/fuori-dalla-pura-politica/
NEGRI, Antonio. Trinta e três lições sobre Lênin. Edição italiana manifestolibri. [1973]
___. Da fábrica à metrópole; ensaios políticos. Edição italiana DataNews. [2006]
ROGGERO, Gigi. La misteriosa curva della retta di Lenin; per una critica dello sviluppo del capitalismo oltrei i 'beni comuni'. Ed. Usher. [2011]


Bruno Cava é escritor brasileiro. É organizador do livro Amanhã vai ser Maior.



sábado, 13 de dezembro de 2014

1902 - O primeiro Manifesto Socialista (*)


Por Luiz Paulo Pilla Vares 

O socialismo não é uma idéia estrangeira ao Brasil. Ele se confunde com os primeiros passos do movimento operário brasileiro. A idéia de socialismo e do partido dos trabalhadores, em nosso país, tomou corpo quase que simultaneamente com o fim da escravatura e om o inicio da República. “Dos círculos operários e centros socialistas que se criaram durante a primeira década republicana, em várias cidades do pais, principalmente na região Centro-Sul, o que mais se destacou, por sua organização e orientação, foi, sem dúvida, o Centro Socialista de Santos, fundado em 1895, por Silvério Fonte e seus companheiros do circulo de 1889” (1). 

Hoje, 90 anos após a Abolição da Escravatura, liberto de sua doença populista, o movimento operário começa a retomar sua caminhada, desta vez sobre os próprios pés. O sintoma mais evidente desse renascimento é a busca das origens, a história social do movimento dos trabalhadores brasileiros, e de seus organismos políticos (2). O outro sintoma, não menos importante, é a discussão que se faz em todos os centros sobre a necessidade de um partido politico que efetivamente represente os trabalhadores. A história escrita tem negligenciado o passado socialista, centralizando suas pesquisas basicamente em duas manifestações politicas dos trabalhadores, o comunista (que no Brasil se formou praticamente sob a influência de Stalin) (3), e a anarquista, cuja influência se fez sentir de maneira acentuada, principalmente na fase adolescente do movimento operário, cessando praticamente em meados da década de 30. Entretanto, o socialismo de inspiração marxista, mas não stalinista, está esquecido, embora a prática social tenha lhe dado outra vez uma exuberante atualidade. Se é verdadeira a frase de Hegel de que o mocho de Minerva só levanta vôo ao cair da tarde, não vai tardar muito a serem iniciadas as pesquisas sobre o socialismo democrático e suas raízes no Brasil. Nesse dia, ninguém poderá esquecer Silvério Fontes, considerado como o pioneiro do marxismo no Brasil. 

Silvério Fontes nasceu em Aracaju, no dia 1º de fevereiro de 1858, e depois de seus primeiros estudos em Sergipe, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Faculdade de Medicina. Para custear seus estudos, lecionou geometria e latim e formou-se em 1880. Com indiscutível vocação científica, o que refletia adequação ao espírito da época, escolheu como tese de doutoramento A Microbiologia, baseada em Pasteur: foi o primeiro trabalho surgido no Brasil sobre o assunto. No ano seguinte ao de sua formatura, deixou o Rio de Janeiro e seguiu para Santos, onde se destacou como cientista e lutador e teórico das causas populares.

Quando o pioneiro Silvério Fontes desembarcou em Santos, o Brasil vivia uma época de crise, em que se avolumavam os elementos materiais destinados a pôr fim às velhas estruturas daquela sociedade monárquica, cujo trono se assentava sobre relações de produção baseadas nas explorações da mão-de-obra escrava. 1881: tempo de campanha abolicionista, fundindo-se com os ideais republicanos. Tempo em que apenas as reformas liberais do sonho britânico de Joaquim Nabuco não se adequavam mais às necessidades de expansão das forças produtivas que haviam sido geradas com o crescimento urbano dos últimos tempos do Império. E Santos se constituía em um dos agitados centros de difusão das idéias abolicionistas e republicanas. Por sua formação e por sua ligação com o povo sofredor, Silvério Fontes imediatamente participou das campanhas abolicionistas e republicanas. Nessa época, o fundador do movimento socialista no Brasil ainda era adepto da filosofia positiva de Augusto Comte(4) e o jornal fundado por ele A Evolução refletia o pensamento comtista dominante entre os jovens republicanos e abolicionistas daquela época.

Silvério Fontes casou-se em Santos e logo após a proclamação da República, aos 30 anos, tinha um inegável prestígio na cidade, como cientista e pensador, além de político. Sua adesão ao socialismo veio impregnada do positivismo de Augusto Comte, mas sua formação científica e materialista possibilitou-lhe, com relativa facilidade, chegar às concepções de Marx e Engels.

Um ano após a Proclamação da República, Silvério Fontes e seus companheiros fundam o Círculo Socialista, primeira etapa do Centro Socialista de 1895, já com acentuada (e predominante) tendência marxista. O Centro Socialista, e segundo Astrogildo Pereira, seria de uma importância decisiva para a difusão das idéias socialistas no Brasil. Apesar das derrotas do Centro Socialista, que cedeu às pressões de um ambiente ainda adverso às novas ideias, Silvério Fontes e seus amigos de Santos, em contatos com outros centros socialistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, lançaram as sementes para a criação de um Partido Socialista no Brasil, ideia que germinou e teve como resultado o Manifesto de 1902, primeiro documento de um Partido Socialista Brasileiro.

Silvério Fontes viveu até 1928 (ele morreu a 27 de junho).Nunca voltou atrás em suas ideias socialistas e ainda está à espera de um estudo aprofundado  sobre sua vida de pioneiro, o que revelaria dados significativos sobre os fundamentos do socialismo no Brasil em uma época que mal acabara de sepultar o trabalho escravo.

O Manifesto de 1902 tem uma data discutível. Astrogildo Pereira supõe que seu texto original date do próprio ano da Proclamação da República (1889)  ”com uma segunda redação em 1895 e redação final em 1902”. Analisando-se hoje o seu texto, descartando-se determinadas afirmações características da época em que surgiu e das deficiências inevitáveis em um documento pioneiro, nota-se que o socialismo brasileiro surgiu refletindo, não transpondo mecanicamente um fenômeno estrangeiro mas falando uma linguagem nacional, a nossa realidade, falando de seus traumas e de suas perspectivas. O Manifesto de 1902, cuja autoria é atribuída a Silvério Fontes, não reflete também a senilidade social democrática a lá Bernstein que já andava influindo decisivamente na Europa. Este é um dado importante, na medida em que marca o nascimento do socialismo brasileiro afastado das importações mecânicas.

Hoje se coloca a necessidade histórica de um PS no Brasil, partido que somente terá sentido se nele se reconhecerem as classes trabalhadoras e que faça de seu programa o programa real do povo trabalhador. Esse partido deverá ter um lugar de honra, em sua memória histórica, a Silvério Fontes. 
______    
1 – Pereira, Astrojildo. “Silvério Fontes, pioneiro do marxismo no Brasil. In: Estudos Sociais, Rio de Janeiro, vol. III/n° 12, abril de 1962. 
2 – As reedições de algumas obras como as de Everardo Dias e Hermínio Linhares, bem como o lançamento das memorias de Leôncio Basbaum e o volumoso e rico livro do brazilianist Foster Dulles, são evidências de quer há um movimento sério de pesquisa do que se poderá chamar a recuperação da memória histórica das lutas sociais no Brasil,
3 – Quando o Partido Comunista foi fundado no Brasil (1922), começaram as lutas internas do bolchevismo na Rússia e já no ano seguinte iria eclodir abertamente o conflito Trotsky-Stálin. O PC brasileiro não chegou a conhecer a democracia socialista.
4 – Outro fato Histórico que merece uma pesquisa aprofundada no Brasil é o entrelaçamento das teorias positivistas de Auguste Comte com o marxismo. Os exemplos  são muitos, mas basta citar Silvério Fontes e Leônidas de Rezende, para indicar a alta significação dessa questão teórica nos primórdios do socialismo brasileiro.  

(*) O texto acima foi publicado no Jornal VERSUS – jul.ago./ 1978.


Jornalista e escritor, Luiz Paulo Pilla Vares nasceu e desenvolveu sua atividade intelectual e politica em Porto Alegre. Bacharel em Direito, começou sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos inicios dos anos 60, tendo aderido posteriormente às posições de Trotsky e Rosa Luxembugo. Ingressou no Partido Operário Revolucionário (POR), depois na Politica Operária (Polop) e finalmente filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) tonando-se presidente municipal do partido em Porto Alegre. Foi Secretario de Cultura de Porto Alegre nas gestões dos prefeitos Olivio Dutra e Tarso Genro, e no Governo de Olivio Dutra foi Secretario de Cultura do Estado. Luiz Pilla Vares faleceu em 09 de outubro de 2008, aos 68 anos de idade. É autor entre outras, das obras “Rosa, a vermelha – vida e obra de Rosa Luxemburgo, “O anarquismo: promessas de liberdade” e “Socialismo e liberdade.” (Mundo do Socialismo)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Para além do voto




Por Manuel Alves Filho – Pesquisa contemplada com o Prêmio Capes de Tese analisa as experiências de democracia participativa no Brasil.


No Brasil, as primeiras experiências e ideias sobre a democracia participativa tiveram origem no interior das esquerdas, em meados dos anos 1970. Inicialmente, houve predominância de um posicionamento mais exigente, baseado no conceito de “participação como emancipação”. Com o decorrer do tempo, entretanto, tal sentido foi progressivamente atenuado, até alcançar uma proposta de participação de caráter mais consultivo. A conclusão é da tese de doutorado da cientista social Ana Claudia Chaves Teixeira, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O trabalho, que foi orientado pela professora Luciana Tatagiba, obteve o Prêmio Capes de Tese 2014 na área das Ciências Sociais.

De acordo com Ana Claudia, a tese procurou analisar as diferentes formas de participação da sociedade, além daquela proporcionada pelo voto. “A ideia de democracia participativa com a qual eu trabalhei é bem ampla e contempla diversos mecanismos, como plebiscito, referendo, conselhos, conferências etc. O foco da tese está nos canais institucionais de participação que foram criados ao longo de um período de 35 anos, e que, apesar de reconhecidos por lei e amplamente disseminados, ainda são poucos conhecidos pela população em geral”, explica. As três décadas e meia às quais a pesquisadora se refere estão compreendidas entre os anos de 1975 e 2010.

Na tese, a cientista social dividiu esse amplo período em três períodos menores, cada um deles marcado por uma visão predominante de participação. Um ponto importante a ser observado é que Ana Claudia propõe uma análise em torno do imaginário social construído sobre o tema, com o objetivo de entender porque determinados modelos participativos prevaleceram sobre outros. “Minha preocupação não foi apontar quais modelos deram certo e quais deram errado, mas sim entender como esse imaginário, construído no interior da esquerda, serviu para concretizar algumas experiências participativas”, esclarece.

Conforme a autora da tese, estudar o imaginário social é importante porque é possível perceber até onde vão os horizontes, ou seja, permite identificar até onde as pessoas gostariam de chegar com suas escolhas. “O imaginário, a idealização ou a utopia servem, em última análise, para mover indivíduos ou grupos”, justifica. Assim, num primeiro momento, que se estende de 1975 a 1990, o modelo participativo predominante esteve fundado na ideia da emancipação. Em outros termos, os adeptos desse pensamento acreditavam que a participação geraria a emancipação e, como consequência, permitiria a construção de uma nova sociedade.


Tal concepção, observa a autora da tese, foi fortemente inspirada no método desenvolvido pelo educador Paulo Freire, notadamente na experiência de educação de adultos. Freire defendia que todos são detentores de saberes e que a educação seria um forte instrumento de transformação. “Pequenas experiências participativas baseadas nesse modelo surgiram em diferentes pontos do país, por meio de atividades desenvolvidas pelas comunidades eclesiais de base [CEBs], núcleos de base do PT, associações de moradores, comitês de trabalhadores e outras organizações. Naquele instante, essas experiências eram bastante fragmentadas”, afirma Ana Claudia.

O grande laboratório para as ações realizadas no período, diz a pesquisadora, foi o setor da saúde, que contribuiu decisivamente para a institucionalização de várias outras políticas públicas nos períodos posteriores. Um exemplo foi o trabalho executado por um grupo de médicos sanitaristas na cidade de Montes Claros, em Minas Gerais. Os profissionais colaboraram para a criação de conselhos de saúde, instâncias por meio das quais a população podia discutir e decidir sobre a formulação de políticas públicas para o setor. “A experiência ajudou a testar o pressuposto de que não eram somente médicos e enfermeiros que entendiam de saúde. A população também detinha conhecimento nesse campo, principalmente porque conhecia melhor que ninguém as suas necessidades”, pontua a autora da tese.

Também em São Paulo, no mesmo período, ganharam corpo os conselhos populares de saúde, implantados inicialmente nos bairros localizados na Zona Leste do município. A ideia era semelhante à experimentada em Montes Claros. “Essas ações ajudaram a consolidar a proposta de criação de um sistema único de saúde com participação popular. Em 1990, foi promulgada a lei que instituiu o SUS”, observa. A primeira fase pavimentou, por assim dizer, o caminho para um segundo momento da experiência de democracia participativa, levada a cabo entre os anos de 1990 e 2002.

Esta, segundo a pesquisadora, foi marcada principalmente pela ideia de participação com deliberação. De um lado, a partir do SUS, foram criados os conselhos de saúde nos âmbitos municipal, estadual e federal. Segundo as legislações, em todas essas instâncias a participação da sociedade teria caráter deliberativo, embora isso nem sempre tenha ocorrido na prática. “Na tese, eu não entro no mérito se o sistema tem ou não funcionado, pois trabalho com a dimensão imaginária, com o mundo desejado”, reafirma Ana Claudia. Destacam-se também nesse período as experiências do Orçamento Participativo, que foi implantado em alguns municípios brasileiros e posteriormente “exportado” como exemplo de boas práticas de gestão municipal. Por meio desse mecanismo, o orçamento público era discutido e, por decisão da população, parte dele era aplicada em áreas consideradas prioritárias.

O terceiro e último período analisado pela pesquisadora vai de 2003 a 2010 e coincide com os oito anos de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Nesse período, a ênfase da participação esteve muito mais relacionada com o que classifiquei de ‘escuta’. Um aspecto importante que surgiu nessa fase foi a multiplicação de espaços. Foram criados diversos conselhos, como os do idoso, juventude, LGBT etc. Desse modo, o número de vozes foi ampliado e novas perspectivas de participação foram abertas. Além disso, também foram definidas novas conferências, que contribuíram para o reconhecimento de novos sujeitos”, pormenoriza a cientista social.

Ocorre, porém, que o caráter deliberativo desses espaços foi diminuído. A interpretação que Ana Claudia faz dessa experiência é que o PT no governo federal teve que lidar, de um lado, com os movimentos sociais. Estes, obviamente, precisavam ter suas pautas contempladas em alguma medida. Assim, foram abertos canais de diálogo e de escuta. Mas, de outro lado, para garantir a governabilidade, o governo teve que fazer alianças com distintos partidos. “Por causa das alianças para governar e da pressão dos lobbys de diferentes setores da sociedade, o governo não tinha como transformar todas as demandas dos movimentos sociais em políticas públicas. O resultado foi que alguns pleitos foram atendidos e outros, não. É nesse sentido que eu considero que a participação nesse período foi baseada na escuta, pois os espaços deixaram de ser deliberativos para assumir um caráter marcadamente consultivo”.


Ana Claudia faz questão de assinalar que o fato de as formas de participação terem sofrido transformações – e em boa medida se atenuado – com o passar dos anos não significa que as reivindicações contidas nos dois primeiros modelos tenham desaparecido por completo. “Ao contrário, as ideias de emancipação e de deliberação continuam presentes até hoje, mas já não são mais predominantes”, esclarece. A cientista social não considerou em sua tese o período atual, marcado pelo governo da presidente Dilma Rousseff, nem as manifestações de junho de 2013. A pesquisadora não descarta que possamos estar experimentando um quarto modelo de participação, mas entende que este eventual novo imaginário sobre a participação somente poderá ser mais bem analisado no futuro.

Ana Claudia observa, todavia, que estão em plena discussão propostas de realização de plebiscito ou referendo para a realização da reforma política. Outro ponto importante em debate é a Política Nacional de Participação Social (PNPS), cujo decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff foi recentemente derrubado pela Câmara dos Deputados sob o argumento de que ele teria inspiração “bolivariana”, e que seria uma forma autoritária de passar por cima do Congresso. O Legislativo, conforme Ana Claudia, ignorou que esses espaços participativos já existem, e inclusive boa parte deles está regulamentada por lei.

O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), chegou a adiantar que a matéria também seria rejeitada pela Casa, pelos mesmos motivos. “O decreto não tem nada disso. O texto propõe apenas organizar os espaços, regulamentar as audiências públicas e estabelecer certos fluxos entre conselhos, conferências etc. Por causa da eleição, porém, os argumentos contrários prevaleceram, até como forma de deslegitimar a presidente. O resultado, infelizmente, foi a derrubada do decreto pela Câmara”, considera a pesquisadora.

Segundo a cientista social, se por um lado há, nos dias que correm, uma pressão por maior participação da sociedade nas decisões sobre os destinos do Brasil, e as manifestações de junho de 2013 são uma evidência disso, por outro o país conta com um Congresso Nacional bastante conservador e pouco permeável a essa contribuição popular. “Do ponto de vista do sistema político, nós vivemos uma situação ainda pior que em passado recente”, pontua a pesquisadora, que usou como fontes primárias para o seu trabalho artigos acadêmicos e textos assinados por militantes de esquerda, entre outros.

Parte da tese foi desenvolvida na Brown University, nos Estados Unidos, onde a pesquisadora cumpriu período de doutorado sanduíche. Sobre o fato de a pesquisa ter recebido o Prêmio Capes de Tese, Ana Claudia se disse inicialmente surpresa e depois feliz. “Fiquei feliz pela Unicamp, que me deu todas as condições de estudo e onde fiz toda a minha formação superior. Também fiquei muito satisfeita por ver um campo de estudos ainda em construção nas ciências sociais, e pouco compreendido pela sociedade, ter esse tipo de reconhecimento pela academia”.


Texto postado originalmente em:

http://www.unicamp.br/unicamp/ju/614/para-alem-do-voto


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Democracia Operária, de Antonio Gramsci



Publicado pela primeira vez na edição do jornal L'Ordine Nuovo de 21 de junho de 1919, este breve artigo de Gramsci debate o tema da democracia operária na transição socialista. Versão traduzida por Thiago Chagas Oliveira para o Marxists Internet Archive.

Um problema se impõe hoje, urgentemente, a cada socialista que tenha vivo o sentido da responsabilidade histórica que incumbe às classes trabalhadoras e a seu Partido, o qual representa a consciência ativa e crítica e operante desta classe.

Como dominar as imensas forças sociais que a guerra desencadeou?

Como discipliná-las e dar-lhes uma forma política que contenha em si a virtude de desenvolver-se normalmente, de integrar-se continuamente, até tornar-se a ossatura do Estado socialista na qual se encarnará a ditadura do proletariado?

Como ligar o presente ao futuro, satisfazendo as urgentes necessidades do presente e trabalhando eficazmente para criar e "antecipar" o futuro?

Este escrito pretende ser um estímulo ao pensar e ao operar; pretende ser um convite aos melhores e mais conscientes operários para que reflitam e, cada um na esfera da própria competência e da própria ação, colaborem na solução do problema, fazendo convergir para ele a atenção dos seus camaradas e de suas associações.

Somente através de um trabalho comum e sólido de esclarecimento, de persuasão e de educação recíproca nascerá a ação concreta de construção.

O Estado socialista já existe potencialmente nos institutos de vida social características das classes trabalhadoras exploradas.

Conectar entre si estes institutos, coordená-los e subordiná-los numa hierarquia de competências e de poderes, centralizá-los fortemente, porém, respeitando as necessárias autonomias e articulações, significa criar aqui e agora uma verdadeira e própria democracia operária, em contraposição eficiente e ativa ao Estado burguês, preparada desde já para substituir o Estado burguês em todas as suas funções essenciais de gestão e domínio do patrimônio nacional.

Hoje em dia, o movimento operário é dirigido pelo Partido Socialista e pela Confederação do Trabalho; mas o exercício do poder social do Partido e da Confederação se realiza, para grande massa trabalhadora, indiretamente, por força de prestígio e de entusiasmo, por pressão autoritária, por inércia.

A esfera de prestígio do Partido se amplia cotidianamente, atinge estratos populares até agora inexplorados, suscita consenso e desejo de trabalhar proficuamente pelo advento do comunismo em grupos até agora ausentes da luta política.

É necessário dar uma forma e uma disciplina permanente a estas energias desordenadas e caóticas, absorvê-las, articulá-las e potencializá-las, fazer da classe proletária e semi-proletária uma sociedade organizada que se eduque, que obtenha experiência, que adquira uma consciência responsável dos deveres que incumbem as classes que conquistam o poder.

O Partido Socialista e os sindicatos profissionais não podem absorver toda a classe trabalhadora; isto só seria possível através de um trabalho de anos e dezenas de anos.

Eles não se identificam imediatamente com o Estado proletário; nas repúblicas comunistas até agora existentes eles continuam a subsistir independentemente do Estado, como instituições de propulsão (o Partido) ou de controle e de realizações parciais (os sindicatos).

O Partido deve continuar a ser o órgão de educação comunista, o fogo da fé, o depositário da doutrina, o poder supremo que harmoniza e conduz às metas as forças organizadas e disciplinadas das classes operárias e camponesas.

Precisamente para desenvolver rigidamente este ofício, o Partido não pode escancarar as portas às invasões de novos aderentes, não habituados ao exercício da responsabilidade e da disciplina.

Mas a vida social da classe trabalhadora é rica de instituições, articula-se em múltiplas atividades.

De fato, é necessário que estes institutos e estas atividades desenvolvam-se; organizem-se de modo complexo, una-se num sistema vasto e agilmente articulado que absorva e discipline inteiramente a classe trabalhadora.

A oficina com suas comissões internas, os círculos socialistas, as comunidades camponesas são os centros de vida proletária nos quais é necessário trabalhar diretamente.

As comissões internas são órgãos de democracia operária que é necessário libertar das limitações impostas pelos empreendedores, e nos quais é necessário infundir vida nova e energia.

Hoje, as comissões internas limitam o poder do capitalista na fábrica e desenvolvem funções de arbitragem e disciplina.

Desenvolvidas e enriquecidas, deverão ser amanhã órgãos do poder proletário que substituirá o capitalista em todas suas funções úteis de direção e de administração.

Já aqui e agora os operários devem deveriam proceder à eleição de vastas assembléias de delegados, escolher entre os melhores e mais conscientes camaradas, sobre a palavra de ordem: "Todo o poder da fábrica aos comitês de fábrica", coordenada com outra: "Todo o poder do Estado aos Conselhos operários e camponeses".

Um vasto campo de propaganda concreta revolucionária se abriria para os comunistas organizados no Partido e nos círculos de bairro.

Os círculos, em conformidade com as seções urbanas, deveriam fazer um recenseamento das forças operárias da zona, bem como transformar-se na sede dos conselhos de bairro dos delegados de fábrica, o gânglio que articula e centraliza todas as energias proletárias do bairro.

Os sistemas eleitorais poderiam variar de acordo com o tamanho das oficinas; porém, dever-se-ia tentar eleger um delegado para cada quinze operários divididos por categoria (como se faz nas oficinas inglesas), chegando, por eleições graduais, a um comitê de delegados de fábrica que inclua representantes de todo o complexo do trabalho (operário, empregados, técnicos).

No comitê de bairro, deveria tentar-se incorporar delegados também de outras categorias de trabalhadores que habitam o bairro: garçons, motoristas, condutores de bonde, ferroviários, lixeiros, empregados domésticos, comerciários, etc.

O comitê de bairro deveria ser a emanação de toda a classe trabalhadora que habita o bairro, emanação legítima e influente, capaz de fazer respeitar uma disciplina, investida de poder, espontaneamente delegado, bem como capaz de ordenar o fechamento imediato e integral de cada trabalho em todo o bairro.

Os comitês de bairro se ampliariam em comissariados urbanos, controlados e disciplinados pelo Partido socialista e pelas federações profissionais.

Tal sistema de democracia operária (integrados com organizações equivalentes de camponeses) daria uma forma e uma disciplina permanente às massas, seria uma magnífica escola de experiência política e administrativa, enquadraria as massas até o último homem, habituando-as à tenacidade e à perseverança, habituando-as a considerar-se como um exército em campo que tem a necessidade de uma firme coesão se não quer ser destruído e escravizado.

Cada fábrica construiria um ou mais regimento deste exército, com seus cabos, com seus serviços de ligação, com sua oficialidade, com seu estado maior, constituindo poderes delegados por livres eleições, isto é, não impostos autoritariamente.

Mediante a realização de comícios, realizados no interior da fábrica, com a obra contínua de propaganda e de persuasão desenvolvida pelos elementos mais conscientes, obter-se-ia uma transformação radical da psicologia operária, far-se-ia a massa melhor preparada e capaz do exercício de poder, difundir-se-ia uma consciência dos deveres e dos direitos do companheiro e do trabalhador, que seria concreta e eficiente porque gerada espontaneamente pela experiência viva e histórica.

Já havíamos dito: estes rápidos apontamentos se propõem somente a estimular o pensamento e a ação.

Cada aspecto do problema mereceria um vasto e profundo tratamento, complementações, integrações suplementares e coordenadas.

Mas a solução concreta e integral dos problemas de vida socialista só pode ser obtida com a prática comunista: as discussões em comum, que modificam simpaticamente as consciências de modo a unificá-las e dotá-las de entusiasmo operante.

Dizer a verdade, chegar em comum a verdade, é cumprir ação comunista e revolucionária.

A fórmula "ditadura do proletariado" deve deixar de ser somente uma fórmula, uma ocasião para ostentar fraseologia revolucionária.

Quem quer os fins, deve também querer os meios.

A ditadura do proletariado é a instauração de um novo Estado, tipicamente proletário, no qual confluem as experiências institucionais da classe oprimida, no qual a vida social da classe operária e camponesa transforma-se num sistema difundido e fortemente organizado.

Este Estado não se improvisa: os comunistas bolcheviques russos trabalharam por oito meses a fim de difundir e fazer concreta a palavra de ordem: todo os poder aos sovietes; e os sovietes eram conhecidos pelos operários russos desde 1905.

Os comunistas italianos devem fazer da experiência russa um tesouro, desta forma, economizar tempo e trabalho: a obra de reconstrução exigirá para si tanto tempo e tanto trabalho que cada dia e cada ato devem para ela ser destinado.


Last Updated (Monday, 02 June 2014 21:34)


FONTE: Fundação Dinarco Reis

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Considerações sobre o Poder Popular



A seguir, apresentamos uma síntese do pensador marxista uruguaio Raúl Zibechi sobre o tema do Poder Popular. Tradução e adaptação de Ivan Barbosa Hermine, integrante do Comitê Central do PCB.



Sobre o Poder Popular, os debates, as discussões, os escritos em torno deste tema têm uma longa história, quer no movimento socialista ou nos movimentos revolucionários do mundo. Diria mesmo que antecede os escritos de Marx, porque na própria revolução francesa houve forma de organização popular. Embora eu não vá considerá-la, seria interessante que levem em consideração como antecedentes aos debates sobre como exercer o poder de uma forma que não seja uma réplica, um decalque, uma cópia, como disse Mariátegui, do poder burguês, com base no que seja o Estado.

O próprio Marx pouco considerou este tema na maior parte de seus escritos. É sabido que Marx abordou, de forma muito intensa, a análise econômica, mas não abordou o tema do Estado, do poder, com a mesma intensidade. No Manifesto Comunista, tendeu a deixar o terreno numa situação dúbia, com pouca definição. Marx falava da classe erigida em classe como tal ou classe para si, ou falava da democracia, mas nunca sobre o poder exercido pela classe trabalhadora, a classe operária.

Foi a partir da “Comuna de Paris”, do que foi a experiência da “Comuna de Paris”, a partir do momento no qual os trabalhadores se erigem no poder, na Comuna, é quando Marx começa a refletir e basicamente o texto dele que reflete sobre isto é a guerra civil na França, uma declaração da Associação Internacional dos Trabalhadores, da AIT. É a partir deste momento que ele elabora a ideia da ditadura do proletariado, basicamente o poder dos trabalhadores, que se fundamenta no que seria a destruição do Estado burguês. Marx diz neste texto: os trabalhadores não podem assumir a máquina do Estado e colocá-la em funcionamento como antes, mas sim destruir a maquinaria do Estado burguês e começar a gerir um poder que, em seu nascimento, vá em direção à extinção do Estado. Essa ideia da extinção do Estado é muito importante, muito recorrente em Marx. É aí que trabalha a ideia da ditadura do proletariado e, sobretudo, de um tipo de poder no qual os cargos eleitos, as pessoas nomeadas para exercer o poder são permanentemente removíveis, não ficam de uma maneira fixa neste lugar. 

Para Marx, a ideia de burocracia civil ou militar é uma ideia a erradicar no futuro poder dos trabalhadores e, nesse sentido, a “Comuna de Paris” lhe dá uma série de ideias e experiências muito ricas para sua reflexão. Em que sentido? No sentido de que lhe permite pensar o poder como algo não separado das pessoas, como algo controlado pelas pessoas, como algo que pode e seria bom que fosse rotativo, que não houvesse um grupo de pessoas especializadas em exercer o poder, separadas das pessoas, e além disso, que tivessem as remunerações similares às de um operário qualificado, que não tivessem um salário privilegiado. A partir daí, da ideia da ditadura do proletariado, a ideia deste tipo de poder já é desenvolvida a quase meio século depois pelos revolucionários russos, basicamente por Lênin e pelos bolcheviques. È interessante constatar como, até 1905, os bolcheviques não tinham uma proposta acabada de como seria o Poder Popular, o poder operário na revolução russa.

São as massas populares que, em 1905, criam os Soviets, voltando a criá-los depois da revolução de fevereiro. Derrubam a monarquia em 1917, instalam novamente os soviets e Lênin, dessa maneira, diz que as massas operárias, camponeses, soldados, ou seja, operários e camponeses em armas criam uma forma que são os soviets, ou seja, são parlamentos de delegados operários, camponeses e soldados. Lênin toma essa forma, essa fórmula, erigindo o mecanismo de poder. Em determinado momento, em junho e julho de 1917, diz: ”todo poder aos soviets”.

Que analogia poderíamos estabelecer entre este momento de 1917 e a “Comuna de Paris”, 40 anos antes?

Não é que os revolucionários já tinham em seus estudos, em seus escritos, uma teoria acabada de como seria o Poder Popular. Não é que os revolucionários elaboraram intelectualmente, teoricamente, uma ideia do Poder Popular. É a experiência viva dos setores populares da classe operária que leva os dirigentes revolucionários, no primeiro caso Marx na AIT, e depois Lênin e os bolcheviques, a teorizar a importância de um poder.

No primeiro caso, a ditadura do proletariado, o poder dos operários na “Comuna de Paris”, dos operários e do povo parisiense, e no segundo caso os Soviets.

Hoje, quando precisamos aprofundar as reflexões, são dois momentos muito interessantes, não para copiar, não para imitar, mas sim para se ter um impulso político e teórico na mesma direção.

A experiência das massas, a luta de classes é fundamental. É o elemento central de nossas reflexões como socialistas, como revolucionários. A experiência somente não é tudo, evidentemente, mas sim é necessária tê-la como elemento fundamental.

Numa segunda instância, Marx e Lênin tratam de sistematizar esta experiência, a era comuna e a era dos soviets. Extrair dali os elementos que consideram os mais importantes e, a partir dessa elaboração teórica, devolver aos organismos de poder o que eles consideram que são as bases sobre as quais podem melhorar uma criação, naturalmente uma criação espontânea dos setores populares que tem aspectos notáveis e problemas. A reflexão teórica seria regatar a criação e lhe devolver aqueles elementos que permitam que essa criação seja melhorada e não caia numa questão de inércia, de burocracia ou de deformações.

Este jogo, que não é um jogo, é uma séria política revolucionária: estar com as massas, resgatar sua experiência ou o mais avançado de sua experiência, decantar aqueles elementos mais anticapitalistas ou mais revolucionários, devolver esses elementos de forma que possam aprofundar sua experiência. Precisamos refletir, reviver e, sobretudo, se me permitem exagerar um pouco, reproduzir, imitar.

Na América Latina, dando um salto das experiências europeias para a América latina, temos tido, desde a revolução cubana até hoje, uma enorme quantidade de experiências de luta de classes, de luta de massas, de lutas operárias, camponesas, estudantis e de novos sujeitos que emergem nas últimas décadas, indígenas, mulheres e outras experiências muito ricas. Em alguns casos, essas experiências deram lugar a criações que não foram necessariamente de Poder Popular, mas que estiveram muito próximo de criar órgãos de Poder Popular. Não vou deter muito na Revolução cubana, como todos sabem criou os CDR [Comités de Defensa de la Revolución], mas sim em outras experiências mais recentes, como a equatoriana, que no ano 2000 criaram os Parlamentos populares, provinciais. Duraram poucos meses, mas foram órgãos importantes de Poder Popular ou no caso da Bolívia, quando as revoltas, principalmente a de 2003, criaram, na zona do altiplano, os quartéis indígenas que, de alguma maneira, foram órgãos de Poder Popular.

Uma problemática que temos hoje e que nos faz falta, é aprofundar o que entendemos por Poder Popular. Vou colocar algumas questões e posteriormente as irei responder.

Um movimento social é um Poder Popular?

Minha primeira resposta é não. É um elemento fundamental de organização popular, mas não necessariamente é um órgão ou forma do Poder Popular.

As grandes mobilizações sociais, que temos tido nas últimas décadas na América Latina, são formas de poder Popular?

Eu diria que são instâncias capazes de destituir governos, de neutralizar o modelo neoliberal, mas não necessariamente criaram órgão do Poder Popular.

Na América Latina, foram criados órgãos do Poder Popular na Bolívia, durante o governo de Juán José Torres (Asamblea Popular, 1970). Anteriormente, surgiram as milícias operárias e camponesas na Revolução de 1952. Na Argentina, por algum tempo, a classe operária organizou as “Cordinadoras Fabriles” em Buenos Aires, no ano 1975. Era um poder transitório, um poder da classe operária argentina para fazer frente à burocracia sindical que reprimia os próprios trabalhadores, na gestão José López Rega, criador da “Triple A” (Alianza Anticomunista Argentina). Os sindicatos peronistas argentinos abalaram a repressão da Triple A. No Chile, tivemos a experiência dos “Cordones Industriales” em Santiago, no governo Salvador Allende.

Os Partidos de esquerda não se preocuparam com essas experiências, exceto o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) do Chile.

Como trabalhar para impulsionar a criação desses órgãos?

1 - O MST no Brasil: cada assentamento é uma forma de pequeno poder, um órgão de Poder Popular. Nesses assentamentos, funcionam poderes distintos dos estatais, com educação e pedagogia diferenciadas das estatais. Seria um dos vários mecanismos de reconstrução da sociedade brasileira, tanto no plano produtivo, organizativo e de poder, caso formassem um processo de luta de classes e de transição a uma nova sociedade. Há várias experiências deste tipo na América Latina (Bolívia, Equador, México, Venezuela).
São movimentos que conquistaram territórios ou espaços urbanos e a população organizada toma as decisões sobre o que deve ser feito.
2 - Na Venezuela, o governo apoia tais experiências, as “Comunas”, as iniciativas do movimento popular, rural ou urbano. Seria uma base possível para um poder. O governo promove a criação de comunas. Essas experiências nem sempre são iguais.
3 - No México, há duas experiências distintas de Poder Popular. A primeira foi a “Comuna de Oaxaca” em 2006. Parte da população controlou a cidade durante seis meses, utilizando mais de mil barricadas. Chegou a ter cadeia de rádio e televisão sob seu controle. Havia uma Assembleia Popular que foi o órgão de poder nesses seis meses.

Diga-se de passagem, que Poder Popular na cidade é diferente do Poder no campo. Nas áreas rurais, a presença do Estado é mais diluída. É possível tomar um território, defendê-lo e organizá-lo de maneira particular. Na cidade, está o núcleo do poder da burguesia, do Estado burguês. Há grandes dificuldades de se estabelecer formas de Poder Popular. Em Caracas, na Venezuela, há uma exceção: há várias ocupações do “Movimiento Pobladores” com cerca de trezentos edifícios tomados e geridos pelo movimento.

A outra experiência, no México, é o “zapatismo”. Trata-se de uma experiência rural de caráter indígena em regiões remotas. Os indígenas da América Latina estão organizados em comunidades, formas de poder num pequeno território. Um grupo de famílias tomam decisões políticas, econômicas, culturais e sociais. As comunidades são micropoderes.

Os zapatistas possuem três níveis de poder autônomo:
1 - Comunidades (cerca de 1.200);
2 - Municípios autônomos ou comunidades agrupadas (38 municípios);
3 - Regiões autônomas, também denominadas “Caracoles” ou “Junta Del Buen Gobierno” (5 regiões).

A forma de governo é bem parecida com a “Comuna de Paris”. As bases nomeiam representantes que podem ser destituídos a qualquer momento. São mandatários para cumprir uma tarefa concreta, devendo prestar contas à população, às bases ou comunidades. A participação nesses órgãos não é remunerada. É a comunidade que sustenta a família ou pessoa que assumiu o cargo. A participação é igualitária entre homens e mulheres. É um poder subordinado ao coletivo, revogável, sujeito a substituição. Um poder para lutar e transformar a sociedade.

A partir dessas reflexões, podemos levantar algumas questões:

1 - O Poder Popular não é o Estado. É algo distinto e em conflito com ele. É uma auto-organização de sujeitos revolucionários. É um sujeito múltiplo que se dota de formas de poder.

2 - Qual a relação do Poder Popular com o Estado?
Pode haver relações de cooperação e de conflito, de diálogo ou confronto. É difícil que só haja um tipo de relação. O conflito estaria sempre presente, pois são poderes diversos. Se o governo for direitista, sempre haverá tensões, fortes conflitos. Se o governo for de esquerda, progressista, poderia acontecer duas situações: o governo teria uma lógica em relação ao Estado e outra lógica em relação ao Poder Popular. Em que grau este governo progressista estaria apoiando o Poder Popular? Um apoio total ou parcial?
Mesmo sendo um governo progressista, o conflito sempre se manifestaria.

3 - Nos espaços dominados pelo Poder Popular, não poderá ser reproduzida a lógica da burguesia, a lógica do capitalismo. As práticas capitalistas devem ser contidas e potenciadas as práticas comunitárias, socialistas, coletivas, comunistas, enfim, práticas não capitalistas. O Poder Popular não pode ser fotocópia do Estado. Tem de ser um poder diferenciado. É uma ferramenta nas mãos da população.

4 - Sobre a crise do socialismo real, a crise da União Soviética, a crise do campo socialista, gerou uma falta de debates sobre estes temas. Até o final dos anos 80 e início dos 90, os debates sobre o Poder Popular estavam sobre a mesa. Uns optavam pelas comunidades, outros pelos soviets, com uma gama importante de propostas e debates.

5 - Hoje, o debate sobre o Poder Popular está praticamente abandonado. Tomar o poder do Estado e reproduzir o seu funcionamento não é suficiente para avançar por um caminho alternativo. Além disso, o Estado é uma maquinaria muito perversa, reproduzindo estadistas, funcionários e burocratas. É uma máquina afastada da população, por isso, é necessário retomar as discussões, intensamente, sobre o tema Poder Popular.

6 - Isto não quer dizer que, em certos momentos, não seja positivo que forças progressistas assumam o governo do Estado a fim de que a classe inimiga não o use contra as forças populares. Este é outro debate.

7 - Meu desejo é centrar sobre a importância do Poder Popular, recuperar as experiências históricas, rediscutir os soviets, rediscutir a “Comuna de Paris”, rediscutir as comunas e as experiências latino-americanas, algumas das quais anteriormente mencionadas. Abrir um espaço para discutir o Poder Popular é uma forma de aprofundar o trabalho por uma sociedade diferente da atual, pela revolução e por uma mudança de longa duração.


FONTE: Portal do PCB

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

1917: a revolução que não terminou…



No Brasil para o lançamento da edição em português de seu livro “Mulher, Estado e Revolução”, a historiadora Wendy Goldman fala sobre como muitos dos ideais dos bolcheviques permanecem atuais


Por Marcelo Hailer e Vinicius Gomes, fotos por Marcelo Hailer


Livro aborda o papel da mulher
durante 1ª fase da Revolução
Russa (Imagem: Reprodução
)
União livre, criação socializada das crianças, eliminação da monogamia compulsória, aborto livre, a não obrigação dos registros civis e, por fim, a destruição do Estado, aparelho que apenas serve para oprimir e controlar os sujeitos. Não estamos falando de grupos anarquistas ou de algum movimento de contracultura dos anos 1960, mas sim da primeira fase da Revolução Vermelha, em 1917, na Rússia, que tinha por objetivo a construção de uma nova moral e, consequentemente, um novo sujeito e uma nova sociedade a partir da revolução continuada.

É a primeira fase da revolução comunista (1917-1933) que se faz presente na obra recém-lançada no Brasil, fruto de uma parceria entre a Edições Iskra e a Editora Boitempo, “Mulher, Estado e Revolução”, de autoria da pesquisadora norte-americana Wendy Goldman, que durante os anos 1980 e 1990 se debruçou sobre a primeira fase da Revolução Vermelha. O livro causou furor quando publicado, em 1994, e foi premiado com o Berkshire Conference of Woman Historians.

Wendy Goldman esteve no Brasil para um ciclo de palestras que marcou o lançamento da sua pesquisa por aqui. Entre um evento e outro, conversou com a reportagem da Fórum, à qual disse estar muito contente com a publicação de seu livro e se revelou surpresa em saber que, depois de 20 anos da primeira edição, seu trabalho ainda desperta interesse nos jovens, ainda mais, nos falantes de português. A autora disse que desde o início este era o seu objetivo: incentivar os jovens e não deixar que as ideias revolucionárias caíssem  no esquecimento.

E revolução foi o que não faltou em mais de uma hora de conversa com Wendy Goldman, que tratou do período revolucionário como o grande influenciador de boa parte dos ideais dos anos 1960, principalmente no que diz respeito ao amor livre, um ideal comunista. Falou-se também da contrarrevolução de Stálin, que, ao ascender ao poder, perseguiu e executou todos os adeptos do movimento e impôs forte retrocesso aos avanços revolucionários: criminalizou o aborto, perseguiu homossexuais, recuou na ideia do núcleo familiar como base da sociedade. Em outras palavras, enterrou a revolução.

E antes que todos se despedissem, Wendy Goldman inverteu os papeis e entrevistou os repórteres: queria informações sobre as manifestações e o sistema político brasileiro. Ficou encantada ao saber que temos uma deputada federal do Partido Comunista do Brasil (Manuela D’Ávila), eleita com grande número de votos. Ainda mais admirada se mostrou em saber que a vice-prefeita da cidade de São Paulo é também uma mulher filiada ao PCdoB e, por fim, declarou: “Vocês têm um sistema político incrível, em meu país não temos nada disso”.

"Eu estava muito interessada
a respeito dos ideais da Revolução
Russa de 1917 e por que sob Stálin
aconteceu um retrocesso delas."


FórumDe onde veio o desejo de pesquisar sobre o papel da mulher durante a Revolução Russa?

Wendy Goldman - Eu estava muito interessada a respeito dos ideais da Revolução Russa de 1917 e por que sob Stálin aconteceu um retrocesso delas. Esse retrocesso, na realidade, aconteceu em diversas áreas – não apenas sobre os direitos das mulheres e as ideais a respeito da família, mas também ideias sobre o Estado, sobre a lei, sobre a cultura, sobre muitas áreas. Então essa foi a primeira razão que me levou a olhar mais a fundo sobre o assunto: eu estava interessada no grande retrocesso do stalinismo.

A segunda razão foi porque eu estava bastante interessada no feminismo, na libertação das mulheres e num conjunto de outros assuntos relacionados à emancipação feminina e, quando comecei a pesquisar sobre essas questões, percebi que muitos dos debates que os revolucionários russos tinham na década de 1920 eram bastante similares às ideias que os jovens nos Estados Unidos estavam discutindo na década de 1970. Agora aqui estamos nós, em 2014, e ainda temos interesse em todas essas questões.

FórumQuando você começou a pesquisar sobre esses assuntos?

Goldman - Eu comecei a trabalhar na minha dissertação em 1983. Isso foi há muitos anos, eu provavelmente tinha mais ou menos a idade de vocês (risos), e então fui para a União Soviética em 1984-85. Esses foram os últimos anos do socialismo, pois [Mikhail] Gorbachev chegou ao poder – em meados de 1985 –, eu estava lá nessa época e foi depois disso que o socialismo começou a se transformar de maneira muito rápida, até que começou a entrar em colapso. E isso aconteceu em um período de tempo muito rápido. Então foi interessante estar lá no último ano do socialismo soviético.

Fórum – Algumas das propostas dos bolcheviques continuam atuais depois de tanto tempo – como o aborto e o amor livre, por exemplo. Em sua opinião, por que esses assuntos continuam causando tanta controvérsia?

Goldman - Bem, eu acredito que a liberdade das mulheres é uma questão que acontece no mundo inteiro. Existem correntes que não querem que as mulheres tenham acesso à educação ou igualdade e isso existe ainda hoje, em todos os lugares. Então a ideia de libertação, igualdade e a possibilidade de as mulheres se tornarem independentes é algo muito ameaçador para muitas religiões, autoridades e configurações econômicas. Acho que essa é uma das coisas muito importantes atualmente.

Em segundo lugar, a ideia do aborto, que foi legalizado pelos soviéticos em 1920. A União Soviética se tornou o primeiro país no mundo a oferecer às mulheres o aborto legal. Essa ideia é ainda muito polêmica e ainda é muito debatida hoje, em todo o mundo. Existem muitos países – e eu acho que o Brasil é um deles – que não possuem aborto legalizado; os EUA oferecem acesso ao aborto legal desde 1972, se não me engano, mas existem muitos grupos – principalmente religiosos – que acreditam que isso é errado. Isso é ainda muito controverso, até mesmo nos EUA, onde o aborto já é legal.

Fórum – E por que você acha que isso ainda acontece?

Goldman - Eu acredito que sempre existiu uma tentativa de controlar a fertilidade das mulheres, e os homens, em certas instituições – tanto Estado, quanto em igrejas –, têm um forte interesse nesse controle, em não permitir que as mulheres tomem decisões por conta própria. Então acho que essa é uma das razões de isso continuar sendo um assunto controverso.

Fórum – A Alexandra Kollontai propôs o “amor-camarada”, o tipo de amor que vai além das fronteiras das obrigações maritais e, como você disse, décadas atrás essa ideia de amor livre foi muito forte. Acha que as ideias dela sobre amor continuam atuais?

Goldman - Talvez ainda mais atuais do que foram nos EUA durante a década de 1970, mas isso depende do país. No entanto, toda vez que temos um movimento forte de libertação, de qualquer tipo, a ideia do amor livre ressurge novamente. E essa ideia data desde a Idade Média e desde os primeiros grupos cristãos, que tinham a ideia de que  amor deveria ser algo livre – livre de restrições econômicas. Então é realmente uma ideia bem antiga que sempre volta quando acontece algum movimento para “refazer” a sociedade.

Fórum – É possível dizer que, nos dias de hoje, o mais próximo que temos das propostas revolucionárias, com a devida proporção, são as ideias do movimento queer, que propõe uma nova organização social e também um novo sujeito? 

Goldman - Sim. Eu acho que existem similaridades. Os bolcheviques não acreditavam na ideia de legalização da homossexualidade. De fato, seus pensamentos a respeito de homossexuais estavam muitos e muitos anos atrasados de onde estamos hoje. Então, os primeiros movimentos para a “libertação” gay surgiram apenas na década de 1970, acho eu. Essas ideias são muito recentes e na Rússia de hoje, assim como em muitos outros países, existe um enorme preconceito e repressão contra a homossexualidade.

Fórum – Mas no início da revolução, com Lênin, Trotsky, Kollontai, não perseguia os homossexuais, apenas com Stálin aconteceu essa reversão.

Goldman - Sabe… No mundo das artes, sempre existiram muitas pessoas que eram homossexuais e eles [os revolucionários] optaram por ignorar isso. Não houve um movimento para trazer a homossexualidade ao entendimento das pessoas. Eu acredito que esse movimento, na História humana, é relativamente recente.

Fórum – Era apenas tolerado então…

Goldman - Era tolerado, mas não era debatido. Não era discutido de uma maneira aberta e pública.

"Houve um enorme retrocesso que
começou no inicio da década de 1930.
Parte desse retrocesso foi um
resultado das condições de vida
do país."
Fórum – O que fica claro ao lermos sobre as propostas da primeira parte da revolução é que, mais do que um projeto de poder, o que se propunha era uma nova sociedade baseada em uma nova moral, em um novo sujeito. Porém, com a ascensão de Stálin, este projeto foi enterrado. Poderia falar um pouco a respeito disso?

Goldman - Houve um enorme retrocesso que começou no início da década de 1930. Parte desse retrocesso foi um resultado das condições de vida no país. A legislação era muito revolucionária, mas frequentemente essa legislação tornava as coisas mais difíceis para as mulheres, ao invés de menos difíceis. E a razão para isso é que para se ter a união livre – em que as pessoas podiam se juntar ou se separar na base do amor, respeito e no que elas sentiam uma pela outra – cada uma das partes deveria ser economicamente independente. Se uma pessoa dependesse do salário da outra, era impossível se separar. Uma das coisas que aconteceram na década de 1920 foi uma alta taxa de desemprego e a maior parte disso recaiu sobre as mulheres. Então, com o “divórcio livre”, os homens se divorciavam, “casavam” com outra pessoa, se divorciavam novamente e assim seguia. Todavia, muitas vezes esses homens tinham  filhos com diversas mulheres e elas é quem acabavam tendo de cuidar deles – além de terem geralmente de cuidar de seus pais idosos, pois a mulher era o centro da família. Então, elas não tinham maneiras de cuidar de tudo sozinhas. Elas não conseguiam um trabalho por conta do alto desemprego e frequentemente acontecia de elas recorrem à prostituição.

Isso definitivamente não era aquilo que todos queriam. Então quando Stálin e seus comissários de justiça passaram a procurar soluções para certos problemas, as próprias mulheres diziam: “vocês têm que fazer alguma coisa sobre essa situação”, e eu acredito que um dos primeiros passos a caminho da repressão foi direcionado aos homens que não pagavam pensão alimentícia. Eles colocaram o NKVD [a polícia secreta] atrás desses homens e forçavam-nos a pagarem a pensão. Essa foi uma repressão legislada. Outra foi tornar o aborto ilegal, em 1936. O Estado ficou muito preocupado com a queda na taxa de natalidade e, como eu já disse, muitas instituições têm interesse em controlar a fertilidade da mulher. Eles acreditaram que, tornando o aborto ilegal, as mulheres seriam forçadas a terem os filhos e a natalidade voltaria a subir – mas eles estavam errados. As mulheres continuaram abortando ilegalmente e isso, obviamente, é algo muito perigoso, pois elas geralmente o faziam em condições não-higiênicas e sofriam enormemente por conta disso. Então essa foi outra parte do retrocesso repressor.

Por fim, os bolcheviques acreditavam que, após a Revolução, a família iria “sumir” – algo como uma desaparição gradual. Assim como a lei iria sumir, o Estado iria sumir e, tudo isso, não imediatamente, mas com o tempo. As pessoas continuariam a se unir, talvez até por toda a vida, mas eles não precisariam se casar legalmente, então qual seria o ponto do casamento? Ele também sumiria. As pessoas iriam ficar juntas ou não. Elas poderiam por toda uma vida ficar juntas ou não, e o Estado não iria se preocupar com isso. As leis civis também sumiriam e, como a lei civil é que regulava a propriedade, não existiriam mais propriedades. As leis criminais também sumiriam, pois as pessoas não teriam necessidade de roubar, ou matar, ou fazer qualquer mal a outra pessoa.

Sob o jugo de Stálin, a ideia de que a família, o Estado e as leis iriam desaparecer foi revertida. Eles perceberam que precisavam de uma família forte, um Estado forte e uma forte repressão como maneira de resolver problemas sociais. As ideias foram revertidas para a solução através da repressão e não através de mudança social.

Alexandra Kollontai, membro da facção
bolchevique e militante ativa durante a
Revolução Russa. (Foto: Wikimedia
Commons)
Fórum – Então é possível dizer que, em certas partes, a Revolução foi uma “vítima dela própria”? Você mencionou isso agora e está também escrito em seu livro, em uma passagem bem engraçada sobre um homem que tinha que pagar três pensões alimentícias para três mulheres diferentes…

Goldman - (Risos).

Fórum – E então as autoridades perguntaram como ele sobrevivia, ao que ele respondeu que sua atual esposa recebia cinco pensões alimentícias de cinco homens diferentes…

Goldman - Sim (risos).

Fórum – Então é realmente possível dizer que a Revolução se tornou “vítima dela própria”, certo? Pois até mesmo as mulheres tiveram que olhar para o Estado e dizer: “Ei, isso aqui não está funcionando!”, e exigiram mudanças.

Goldman - Sim. Houve um elemento de apoio social para a repressão. E eu acho que isso é verdade em todos os lugares, e uma das lições que podemos aprender é que a repressão geralmente conta como o apoio das massas, e nós precisamos descobrir como criar mudança social sem que seja acompanhada de um retrocesso. Uma maneira em que a mudança realmente funcione, em vez de apenas criar outra situação pior.

Fórum – Voltando um pouco para Alexandra Kollontai, quando ela apoiou as decisões de Stálin, você acredita que isso foi causado pelo medo dela de ter o mesmo destino de seus outros camaradas – ou seja, sendo perseguida ou morta?

Goldman - Kollontai foi enviada como embaixadora da Noruega – eu acho que era Noruega – durante a era de repressão do Stálin, então ela estava fora do país. Eu acho que, se ela estivesse na União Soviética, provavelmente teria sido presa, porque seu parceiro e amante, Alexander Shliapnikov, era o líder de um grupo chamado “Oposição dos Trabalhadores”. Ele era um bolchevique, mas dentro do partido liderava essa oposição, essa facção. E Shliapnikov foi executado junto de vários e vários outros integrantes ativos da oposição. Todos eles foram presos, enviados para campos de trabalho forçado e executados, no início de 1935.

Fórum – Então você concorda que seu alinhamento a Stálin foi por medo.

Goldman - Eu acho que ela aprendeu a se tornar silenciosa e isso foi verdade para quase todos os outros.

Fórum – As mulheres ainda vivem com o fardo da jornada dupla (trabalho e casa) e desigualdade salarial. O que você pensa a respeito disso naquela época?

Goldman - Eu penso que o que resultou do experimento soviético não foi exatamente aquilo que os revolucionários queriam. Mas ainda havia partes do que eles queriam que de fato ocorreram – então existiu um misto sobre isso. O que tivemos durante a década de 1930 foi um enorme período de industrialização na União Soviética, que se tornou um país líder no mundo todo por conta de seu processo industrial. Foi um enorme sucesso essa industrialização e as mulheres entraram como força de trabalho em grande número. Mais mulheres entraram na força de trabalho industrial no início dos anos 1930 do que em qualquer outro país, em qualquer outro período da História – até mesmo mais do que durante as guerras, quando as mulheres geralmente participam do chamado “esforço de guerra”.

Então as mulheres conquistaram o acesso à independência salarial – o que era uma das condições para autonomia: o acesso ao salário. Elas também eram livres para correr atrás de educação, igualdade no trabalho, de ter uma propriedade. Em outras palavras, todos os direitos de que os homens já desfrutavam. Então essas coisas foram importantes. Quando as mulheres foram trabalhar, o governo de fato criou muitas creches para seus filhos e criou refeitórios onde as pessoas podiam comer no trabalho. Em muitos aspectos, suas visões e ideais ganharam vida. Elas eram reais e muito positivas.

Mas eles nunca conseguiram refazer por completo a relação entre homem e mulher. As mulheres passaram a exercer um novo papel, mas ainda continuavam com o velho papel, e esse é o ainda chamado “fardo duplo”.

Fórum – Você acredita que muitos dos ideais dos revolucionários – a construção de uma nova moralidade, sexualidade, maneiras de viver – ainda podem influenciar as pessoas, até mesmo nos dias de hoje?

Goldman - Eu penso que elas podem influenciar as pessoas hoje e, mais importante: os jovens estão sempre com novas ideias. Pois os jovens têm a imaginação para repensar em como as coisas são, então sim, as pessoas podem ainda ser influenciadas por aqueles ideais, ao mesmo tempo em que os jovens querem eles mesmos pensar sobre todas essas coisas.

Fórum – E falando sobre novos ideais dos jovens, supomos que tudo se resume na natureza humana. Sempre haverá pessoas tentando jogar suas ideais no mundo e tentando “remodelá-lo”; assim como sempre haverá aqueles tentando reprimi-las, mas é impossível esses ganharem, pois as pessoas estão sempre lutando por mais. Você concorda?

Goldman - Pois é, Karl Marx disse exatamente isso o que acabaram de dizer.

Fórum – Oh! Não sabíamos disso.

Goldman - Está no “Manifesto Comunista”. Exatamente o que vocês disseram – que a História de toda sociedade humana é uma história de luta, e isso é verdade. Onde quer que exista repressão, existirá resistência. Sempre. Em qualquer lugar. Então, frequentemente os conservadores vão dizer: “Oh! É da natureza humana ser egoísta, ser repressiva, querer ter muitas posses ou roubar e lucrar dos outros. Isso é a natureza humana”; mas, ao mesmo tempo, é também da natureza humana resistir a essas coisas e é da natureza humana querer construir um mundo melhor, então sim, eu concordo.