Por Manuel Alves Filho – Pesquisa contemplada com o Prêmio Capes de Tese analisa as experiências de democracia participativa no Brasil.
No Brasil, as primeiras experiências e ideias sobre a democracia participativa tiveram origem no interior das esquerdas, em meados dos anos 1970. Inicialmente, houve predominância de um posicionamento mais exigente, baseado no conceito de “participação como emancipação”. Com o decorrer do tempo, entretanto, tal sentido foi progressivamente atenuado, até alcançar uma proposta de participação de caráter mais consultivo. A conclusão é da tese de doutorado da cientista social Ana Claudia Chaves Teixeira, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O trabalho, que foi orientado pela professora Luciana Tatagiba, obteve o Prêmio Capes de Tese 2014 na área das Ciências Sociais.
De acordo com Ana Claudia, a tese procurou analisar as diferentes formas de participação da sociedade, além daquela proporcionada pelo voto. “A ideia de democracia participativa com a qual eu trabalhei é bem ampla e contempla diversos mecanismos, como plebiscito, referendo, conselhos, conferências etc. O foco da tese está nos canais institucionais de participação que foram criados ao longo de um período de 35 anos, e que, apesar de reconhecidos por lei e amplamente disseminados, ainda são poucos conhecidos pela população em geral”, explica. As três décadas e meia às quais a pesquisadora se refere estão compreendidas entre os anos de 1975 e 2010.
Na tese, a cientista social dividiu esse amplo período em três períodos menores, cada um deles marcado por uma visão predominante de participação. Um ponto importante a ser observado é que Ana Claudia propõe uma análise em torno do imaginário social construído sobre o tema, com o objetivo de entender porque determinados modelos participativos prevaleceram sobre outros. “Minha preocupação não foi apontar quais modelos deram certo e quais deram errado, mas sim entender como esse imaginário, construído no interior da esquerda, serviu para concretizar algumas experiências participativas”, esclarece.
Conforme a autora da tese, estudar o imaginário social é importante porque é possível perceber até onde vão os horizontes, ou seja, permite identificar até onde as pessoas gostariam de chegar com suas escolhas. “O imaginário, a idealização ou a utopia servem, em última análise, para mover indivíduos ou grupos”, justifica. Assim, num primeiro momento, que se estende de 1975 a 1990, o modelo participativo predominante esteve fundado na ideia da emancipação. Em outros termos, os adeptos desse pensamento acreditavam que a participação geraria a emancipação e, como consequência, permitiria a construção de uma nova sociedade.
Tal concepção, observa a autora da tese, foi fortemente inspirada no método desenvolvido pelo educador Paulo Freire, notadamente na experiência de educação de adultos. Freire defendia que todos são detentores de saberes e que a educação seria um forte instrumento de transformação. “Pequenas experiências participativas baseadas nesse modelo surgiram em diferentes pontos do país, por meio de atividades desenvolvidas pelas comunidades eclesiais de base [CEBs], núcleos de base do PT, associações de moradores, comitês de trabalhadores e outras organizações. Naquele instante, essas experiências eram bastante fragmentadas”, afirma Ana Claudia.
O grande laboratório para as ações realizadas no período, diz a pesquisadora, foi o setor da saúde, que contribuiu decisivamente para a institucionalização de várias outras políticas públicas nos períodos posteriores. Um exemplo foi o trabalho executado por um grupo de médicos sanitaristas na cidade de Montes Claros, em Minas Gerais. Os profissionais colaboraram para a criação de conselhos de saúde, instâncias por meio das quais a população podia discutir e decidir sobre a formulação de políticas públicas para o setor. “A experiência ajudou a testar o pressuposto de que não eram somente médicos e enfermeiros que entendiam de saúde. A população também detinha conhecimento nesse campo, principalmente porque conhecia melhor que ninguém as suas necessidades”, pontua a autora da tese.
Também em São Paulo, no mesmo período, ganharam corpo os conselhos populares de saúde, implantados inicialmente nos bairros localizados na Zona Leste do município. A ideia era semelhante à experimentada em Montes Claros. “Essas ações ajudaram a consolidar a proposta de criação de um sistema único de saúde com participação popular. Em 1990, foi promulgada a lei que instituiu o SUS”, observa. A primeira fase pavimentou, por assim dizer, o caminho para um segundo momento da experiência de democracia participativa, levada a cabo entre os anos de 1990 e 2002.
Esta, segundo a pesquisadora, foi marcada principalmente pela ideia de participação com deliberação. De um lado, a partir do SUS, foram criados os conselhos de saúde nos âmbitos municipal, estadual e federal. Segundo as legislações, em todas essas instâncias a participação da sociedade teria caráter deliberativo, embora isso nem sempre tenha ocorrido na prática. “Na tese, eu não entro no mérito se o sistema tem ou não funcionado, pois trabalho com a dimensão imaginária, com o mundo desejado”, reafirma Ana Claudia. Destacam-se também nesse período as experiências do Orçamento Participativo, que foi implantado em alguns municípios brasileiros e posteriormente “exportado” como exemplo de boas práticas de gestão municipal. Por meio desse mecanismo, o orçamento público era discutido e, por decisão da população, parte dele era aplicada em áreas consideradas prioritárias.
O terceiro e último período analisado pela pesquisadora vai de 2003 a 2010 e coincide com os oito anos de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Nesse período, a ênfase da participação esteve muito mais relacionada com o que classifiquei de ‘escuta’. Um aspecto importante que surgiu nessa fase foi a multiplicação de espaços. Foram criados diversos conselhos, como os do idoso, juventude, LGBT etc. Desse modo, o número de vozes foi ampliado e novas perspectivas de participação foram abertas. Além disso, também foram definidas novas conferências, que contribuíram para o reconhecimento de novos sujeitos”, pormenoriza a cientista social.
Ocorre, porém, que o caráter deliberativo desses espaços foi diminuído. A interpretação que Ana Claudia faz dessa experiência é que o PT no governo federal teve que lidar, de um lado, com os movimentos sociais. Estes, obviamente, precisavam ter suas pautas contempladas em alguma medida. Assim, foram abertos canais de diálogo e de escuta. Mas, de outro lado, para garantir a governabilidade, o governo teve que fazer alianças com distintos partidos. “Por causa das alianças para governar e da pressão dos lobbys de diferentes setores da sociedade, o governo não tinha como transformar todas as demandas dos movimentos sociais em políticas públicas. O resultado foi que alguns pleitos foram atendidos e outros, não. É nesse sentido que eu considero que a participação nesse período foi baseada na escuta, pois os espaços deixaram de ser deliberativos para assumir um caráter marcadamente consultivo”.
Ana Claudia faz questão de assinalar que o fato de as formas de participação terem sofrido transformações – e em boa medida se atenuado – com o passar dos anos não significa que as reivindicações contidas nos dois primeiros modelos tenham desaparecido por completo. “Ao contrário, as ideias de emancipação e de deliberação continuam presentes até hoje, mas já não são mais predominantes”, esclarece. A cientista social não considerou em sua tese o período atual, marcado pelo governo da presidente Dilma Rousseff, nem as manifestações de junho de 2013. A pesquisadora não descarta que possamos estar experimentando um quarto modelo de participação, mas entende que este eventual novo imaginário sobre a participação somente poderá ser mais bem analisado no futuro.
Ana Claudia observa, todavia, que estão em plena discussão propostas de realização de plebiscito ou referendo para a realização da reforma política. Outro ponto importante em debate é a Política Nacional de Participação Social (PNPS), cujo decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff foi recentemente derrubado pela Câmara dos Deputados sob o argumento de que ele teria inspiração “bolivariana”, e que seria uma forma autoritária de passar por cima do Congresso. O Legislativo, conforme Ana Claudia, ignorou que esses espaços participativos já existem, e inclusive boa parte deles está regulamentada por lei.
O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), chegou a adiantar que a matéria também seria rejeitada pela Casa, pelos mesmos motivos. “O decreto não tem nada disso. O texto propõe apenas organizar os espaços, regulamentar as audiências públicas e estabelecer certos fluxos entre conselhos, conferências etc. Por causa da eleição, porém, os argumentos contrários prevaleceram, até como forma de deslegitimar a presidente. O resultado, infelizmente, foi a derrubada do decreto pela Câmara”, considera a pesquisadora.
Segundo a cientista social, se por um lado há, nos dias que correm, uma pressão por maior participação da sociedade nas decisões sobre os destinos do Brasil, e as manifestações de junho de 2013 são uma evidência disso, por outro o país conta com um Congresso Nacional bastante conservador e pouco permeável a essa contribuição popular. “Do ponto de vista do sistema político, nós vivemos uma situação ainda pior que em passado recente”, pontua a pesquisadora, que usou como fontes primárias para o seu trabalho artigos acadêmicos e textos assinados por militantes de esquerda, entre outros.
Parte da tese foi desenvolvida na Brown University, nos Estados Unidos, onde a pesquisadora cumpriu período de doutorado sanduíche. Sobre o fato de a pesquisa ter recebido o Prêmio Capes de Tese, Ana Claudia se disse inicialmente surpresa e depois feliz. “Fiquei feliz pela Unicamp, que me deu todas as condições de estudo e onde fiz toda a minha formação superior. Também fiquei muito satisfeita por ver um campo de estudos ainda em construção nas ciências sociais, e pouco compreendido pela sociedade, ter esse tipo de reconhecimento pela academia”.
Texto postado originalmente em:
http://www.unicamp.br/unicamp/ju/614/para-alem-do-voto
FONTE: Controvérsia
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