A agilidade do Executivo em cumprir a agenda do capital, modificando leis para criar um estado de exceção e repressão, contrasta com a não execução das políticas públicas capazes de promover direitos e a ausência de ações/recursos para proteção de pessoas ameaçadas
por Francisco Carneiro de Filippo
No dia 6 de setembro, o militante Edson Francisco, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) no Distrito Federal, teve sua casa invadida por dois homens, que dispararam dezoito tiros. Um atingiu-o de raspão no lado esquerdo do peito. Meses antes, Edson havia sofrido um constrangimento institucional ao ser conduzido à força para depor como testemunha em outro processo. No fórum, sofreu pressões psicológicas e só foi retirado de lá (mesmo após o fim do julgamento) graças à manifestação insistente do advogado, acionado por mensagem telefônica enviada às escondidas.
Entre junho e julho, o MTST fez uma jornada de lutas e ocupações questionando o déficit de 350 mil moradias na região. Desesperado, o governo do DF tentou desqualificar e associar o movimento a práticas criminosas, e fez ações de desocupação sem mandato judicial. No entanto, no final, foi obrigado a garantir o direito de ao menos quatrocentas famílias. A tentativa de assassinato de Edson Francisco está diretamente relacionada a tudo isso.
Esse não é um caso isolado no Brasil. O que temos visto em 2011 é o avanço da criminalização dos movimentos sociais e da pobreza. Trata-se de uma face ainda obscura, mas bastante dolorida, dos rumos econômicos, políticos e sociais do país no século XXI. Cabe evidenciar outras situações já ocorridas neste ano.
Em maio, no Pará, estado que concentra o maior número de assassinatos no campo, o casal de seringueiros José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo foi assassinado em virtude da defesa da floresta e dos direitos de seus povos. Ainda no Norte, só no Amazonas existem 31 pessoas listadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) com ameaças de morte.
No Rio de Janeiro, em 12 de agosto, a juíza Patrícia Acioli, de São Gonçalo, teve o corpo alvejado por vários tiros, após ataque de policiais por ela investigados. Exatamente um mês depois, Márcia Honorato, militante da Rede contra a Violência (RJ), sofreu uma nova tentativa de assassinato, quando um Siena cinza com homens encapuzados, vistos em articulação com policiais locais, tentaram atropelá-la por mais de uma vez, na tarde e noite do dia 12 de setembro.
Em Minas Gerais, em 14 de junho, Lacerda e Eliane, também do MTST, sofreram uma tentativa de homicídio e só não perderam a filha porque a arma travou. Ao tentar fugir, Lacerda foi alvo de disparos. Durante a investigação, a polícia mineira inverteu o jogo: Lacerda, vítima de tentativa de homicídio, foi colocado como criminoso, por meio da acusação de porte de arma e desacato à autoridade. Em Goiás, padre Geraldo vive ameaçado pelas milícias que denunciou por tortura e extermínio dos jovens que assessora. Ameaças e tentativas de assassinato também ocorreram em Recife, São Paulo e várias outras cidades do país.
Hoje, a criminalização dos movimentos e da luta social envolve, em geral, dois aspectos centrais:
a) a criminalização do protesto e da vida cotidiana da periferia.
Diversos aspectos recentes fizeram que a vida na periferia fosse associada ao crime. O primeiro diz respeito ao conceito constituído no âmbito do Estado de como coibir a violência, em especial aquela fruto da desigualdade social e da pobreza, com repressão policial e isolamento geográfico. Os casos clássicos − Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio, e Força Nacional, no entorno do DF − mostram essa vinculação de território e repressão de maneira direta. A política de “segurança” substituiu a ausência da política de inclusão social e transformou a vida nas periferias no lugar comum do abuso da violência policial e da repressão ativa.
O crescimento do tráfico representa de forma concreta a morte de jovens, mas serviu também como desculpa para essa “transmutação” do conceito de combate à pobreza: de política social para repressão. Em nome do combate ao tráfico, e posteriormente da proteção das regiões ricas e de grandes eventos, permite-se a abordagem truculenta e a humilhação física e moral da população pobre.
Por fim, em áreas ora dominadas pelo tráfico, ora pela repressão, fica difícil a tomada de consciência e a organização para a conquista ou a defesa de direitos. O sentimento de impunidade, que remonta ao período da ditadura militar, diminui ainda mais as chances de organização. Quando se limitam as possibilidades de protesto, escancara-se a porta para o capital que destrói direitos (sociais, humanos e de território) por meio das políticas do fato consumado e, com o apoio oficial, impede a denúncia, por parte da população, de seus direitos desrespeitados.
b) a associação da luta organizada como uma ameaça à sociedade e ao statu quo, e não mais como um direito.
A criminalização da pobreza ganha complexidade quando analisamos sua transposição para a criminalização da luta em si. Primeiro, ao generalizar o conceito de terrorismo − principalmente a partir dos ataques de 11 de setembro − a qualquer ação organizada da periferia, os principais meios de comunicação colocam numa escala desigual o debate com a sociedade. Ao dar voz somente ao lado opressor, sejam os agentes das grandes empresas do campo e da cidade, da especulação imobiliária ou do próprio governo, esses meios deturpam por completo o que resta de democracia no país.
Envolvimento da polícia
Segundo, na maioria dos “acertos de contas” feitos com ativistas encontra-se o envolvimento da polícia, seja com presença direta de agentes no atentado ou em tentativas de coerção, seja na omissão das próprias delegacias em investigar. Assim, o medo de que a denúncia possa causar efeito contrário faz que boa parte das ameaças não seja registrada e reforça ainda mais a impunidade.
Outro item que impede a proteção e a segurança aos militantes é o acesso à justiça como um todo. A diferença de poder econômico entre os entes, a coerção e as ameaças feitas a juízes e promotores comprometidos com a justiça social implicam acessos assimétricos ao poder e, portanto, muitos casos não investigados. Ademais, constata-se o aumento de decisões judiciárias em relação a interditos proibitórios, anulação de greves ou omissão perante ações desproporcionais. Boa parte do judiciário brasileiro acaba por reforçar o processo de criminalização dos movimentos sociais.
Esse crescente processo encontra eco na ausência de políticas públicas e na dificuldade de relação dos movimentos com o governo, que vincula o diálogo à institucionalização do movimento. Por vezes, esse diálogo é condicionado à negação de direitos (como nas greves) ou após o fato consumado (derrubada de moradias e ocupações populares), fazendo que o Estado aja em nome do opressor.
A agilidade do Executivo em cumprir a agenda do capital, modificando leis para criar um estado de exceção e repressão, contrasta com a não execução das políticas públicas capazes de promover direitos e a ausência de ações/recursos para proteção de pessoas ameaçadas.
Com a união desses fatos, criam-se as condições que permitem o aumento dos atentados e assassinatos de pobres e lideranças populares, bem como o próprio sentimento de impunidade dos demais agentes, sejam gangues organizadas, setores da polícia e do governo ou, principalmente, capangas dos grandes setores empresariais, que ganham e acumulam pela retirada de direitos da população.
A não resolução desse problema afeta princípios básicos da liberdade de organização do povo brasileiro. Os fatos deste ano mostram que, na base da ameaça e da morte, constrói-se um estado de exceção e ditadura aos povos e de ampla liberdade para o capital.
Francisco Carneiro de Filippo é economista, militante do PSOL-DF e da Assembleia Popular.
Ilustração: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - (http://www.mtst.org)
FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil
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