Com a ascensão do discurso que atenta para o perigo de uma “ditadura vermelha” no Brasil, termos como “bolivarianismo” e “comunismo” tornaram-se senso comum, mas não são bem compreendidos por que os usa
Por Marcelo Hailer
A eleição de 2014 apresenta diversos aspectos que deverão se tornar objeto de estudo de pesquisadores e intelectuais. Um deles, pouco citado, é a questão linguística que este pleito deixa como herança – boa parte dela plantada há vários anos por veículos da imprensa tradicional. O hábito que tem a direita de empregar conceitos para atacar setores da esquerda, muitas vezes, entretanto, sem entender do que se trata, ganhou força no final de 2013 quando o governo federal publicou o decreto que instituía a Política Nacional de Participação Social (PNPS). Jornais tradicionais taxaram: “decreto bolivariano”. A tática deu certo e a moda pegou.
Se para a imprensa conservadora o governo federal, comandado pelo Partido dos Trabalhadores há doze anos, flerta com o bolivarianismo, no âmbito das redes sociais e em certas manifestações, ouve-se que o governo petista quer mesmo é instituir uma “ditadura comunista”. Tais coletivos da direita brasileira se apropriam do termo “comunismo” relacionando-o com regimes que não foram comunistas em sua essência. Pode-se até dizer que, em dado momento, flertaram com os ideais libertários dos revolucionários, mas depois se tornaram burocráticos e muito pouco democráticos.
Em entrevista à Fórum, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) ironizou o fato da oposição utilizar do termo “bolivariano” para criticar medidas de cunho popular. “Os setores conservadores, os partidos mais à direita, e não só eles, partidos da própria base do governo, fizeram dessa questão [PNPS], antes da eleição e agora, uma queda de braço sobre uma visão de política de participação social no Brasil. E inclusive barbaridades foram faladas em plenário: que era uma visão bolivariana… Deus nos ouça se fosse! (risos). E, mais ainda, de que eram sovietes que estavam sendo implantados via Secretaria Geral da Presidência”, comenta.
Bolivariano!
O termo “bolivariano” ficou famoso na figura do ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez (1954-2013), pois, ao buscar definir as mudanças estruturais realizadas em seu país e as alianças com Estados da América Latina (Equador, Bolívia, Brasil etc), cunhou o termo “socialismo do século XXI”. Este seria um “socialismo bolivariano”, diretamente inspirado na história de Símon Bolívar, líder da luta pela independência da Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela, que sonhava com uma América Latina unida. Mas, se há alguma convergência da imagem de Bolívar com o cenário político atual, é apenas um: a união do bloco latino-americano. De resto, não há nada que aproxime a ideologia contemporânea dos ideais de Bolívar.
Simon Bolívar, líder da independência de cinco países da América Latina. (Foto: WikiCommons) |
“Bolívar foi o artificie da independência de pelo menos cinco países da América do Sul. Não era um proletário, era um homem da classe dominante, da elite criolla”, explica Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). “Bolívar era um sujeito com uma personalidade muito complexa. Viaja para a França na primeira década do século XIX, assiste à coroação do Napoleão e é muito influenciado pelas correntes iluministas da Revolução Francesa. Na Europa, era um homem anti-absolutista, e, quando vem para cá, o anti-absolutismo se transforma em anti-colonialismo. E as guerras coloniais são guerras de construção de repúblicas.”
Maringoni também explica que o conceito de bolivarianismo é se um “lastro flexível que foi apropriado tanto pela esquerda quanto pela direita. “Na Venezuela, houve governos da direita que se valiam da imagem de Bolívar para criar um nacionalismo conservador. Em várias cidades da Venezuela, e em outros países também, sua imagem é daquele ser inatingível que tem de ser reverenciado”, argumenta.
A respeito da maneira pejorativa com que se utiliza o termo no Brasil, o professor a atribui à releitura que Hugo Chávez fez do aspecto progressista do libertador. “Chávez, duzentos anos depois, pega o caráter anti-colonialista do Bolívar e faz uma leitura anti-imperialista. O nome da Venezuela virou República Bolivariana da Venezuela. Você pode falar o que quiser do Chávez, mas usar o bolivarianismo como algo negativo da maneira como fizeram Gilmar Mendes [ministro do Supremo Tribunal Federal] e Eduardo Cunha [deputado federal, PMDB-RJ] é uma falsidade e impostura histórica que não para em pé. Quer se criar um tipo de adjetivação como ocorreu com o comunismo, o ‘terrorista’, isso faz parte da política rasteira”, critica.
Maringoni também afirma que falta ao grupos brasileiros que se colocam como anti-bolivarianos explicar o que propõe, afinal, o anti-bolivarianismo. “O que eles não respondem é: o que é o anti-bolivariano? Na Venezuela, o anti-bolivariano são os setores da oposição que há doze anos deram um golpe de Estado e a primeira coisa que fizeram foi tirar o nome ‘república bolivariana’, tirar todos os símbolos ligados a Bolívar. Em três dias eles fizeram isso. O anti-bolivariano é algo extremamente negativo na Venezuela, algo que tem a ver com ditadura e golpe de Estado”, analisa.
Brasil, um país comunista
Com o início do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff , o discurso da “ascensão comunista no Brasil” começou a ganhar mais força e seguidores. Sua biografia ajudou a alimentar tal sandice, isto porque, em sua juventude, a presidenta participou da luta armada contra a ditadura no Brasil. Soma-se a isso a parceria, firmada pelas administrações petistas, com os governos da Venezuela, Bolívia e Equador, logo, um roteiro pronto para todo tipo de discurso que busque caracterizar o Brasil como um país rumo ao comunismo.
Alexandra Kollontai e os jovens cuidados pelo Estado soviético. (Foto: WikiCommons) |
Com Marx e Engels se estabeleceram os principais critérios ideológicos daquilo que resultaria na tentativa de construir um novo sujeito possuidor de uma nova moral e, claro, de uma ordem social e política não mais restrita a um espaço geográfico em si, mas que valesse para todo o globo – a revolução comunista deveria ser internacional, apátrida e continuada. Sem esta trinca objetiva, ela não daria certo, segundo os seus idealizadores. Tinha de ser internacionalista, pois o capitalismo o era, e a sua divisão internacional do trabalho impunha condições precárias a trabalhadores de todo o mundo. “Trabalhadores, uni-vos” não era apenas um conceito bonito expressado por Marx, mas condição única para levar a transformação social a cabo.
Os princípios dos revolucionários comunistas
Um ano após a chegada dos bolcheviques ao poder na Rússia, em outubro de 1918, uma das primeiras medidas tomadas pelo Comitê Executivo Central do Soviete foi alterar o código da Família e da Tutela, que estabelecia “relações sociais baseadas na igualdade das mulheres e no definhamento da família”. De acordo com Alexander Goikbarg, autor do novo Código da Família, o objetivo era fazer com que “a cada dia vivido sob a nova lei, esta se tornaria obsoleta”. Ou seja, os revolucionários da primeira fase tinham por meta libertar as relações sociais das amarras do Estado, visto que o objetivo final era colocar fim ao Estado enquanto agente controlador.
Alexandra Kollontai, a principal representação feminina da revolução vermelha e única mulher a assumir cargo no Comitê Central, escreveu e elaborou planos para por fim ao trabalho doméstico junto a Lênin. Ambos acreditavam que “a emancipação da mulher” só se daria com o fim deste. Kollontai era ainda mais radical e chegou a propor a remuneração do trabalho do lar realizado pelas mulheres, pois muitas delas acumulavam, ainda, as tarefas de operárias, tendo, na prática, uma dupla jornada. Ainda dentro desta proposta, a líder bolchevique defendia o fim da cozinha e a criação de refeitórios públicos. A questão materna também entrava em jogo. Kollontai e o seu grupo revolucionário foram responsáveis por criar o que hoje se chama de creche, que durante o início da revolução era conhecida como Criação Socializada dos Jovens.
Além da libertação das mulheres do ofício do lar, a questão da maternidade seria tratada de outra maneira: a sociedade cuidaria dos seus jovens. “(…) Teóricos soviéticos defendiam que a transição para o capitalismo havia transformado a família ao enfraquecer suas funções sociais e econômicas. Sob o socialismo, definharia, e sob o comunismo deixaria completamente de existir. Nas palavras de Kollontai: a família – privada de todas as obrigações econômicas, sem carregar a responsabilidade pela nova geração, sem mais prover às mulheres sua básica de existência – deixa de ser a família. Estreita-se e é transformada em união marital baseada em contrato mútuo”, escreveu a historiadora norte-americana Wendy Goldman no livro Mulher, Estado e Revolução (veja aqui entrevista com ela).
Manifestantes pró União Soviética (Foto: WikiCommons) |
O que resta do ideário comunista?
Foram justamente as ideias comunistas e revolucionárias de Lenin, Kollontai e Trotsky que os derrubaram. Pois, no pós-revolução, a Rússia enfrentou uma forte crise econômica, durante a qual os tratados sob uma nova ordem social e a construção de uma nova moral começaram a criar rejeição dentro do partido bolchevique e em grande parte da população que não via com bons olhos as teses de fim da família e da criação socializada dos jovens, entre outras propostas. Com a precoce morte de Lenin, o grupo de Trotsky e Kollontai se enfraqueceu e, neste período, Stalin ascendeu no partido. Os grupos revolucionários dele foram expulsos, e milhares de membros, perseguidos e mortos, entre eles Trotsky.
Alexandra Kollontai foi uma das poucas que permaneceu viva, pois, aceitou as condições impostas pelo grupo de Stalin. Para historiadores especialistas, a atitude foi uma ação de sobrevivência, e a ativista se tornou a representante internacional do partido. Com Stalin no poder, todo o ideário revolucionário foi engavetado, e as regras morais e de família se tornaram mais rígidas, algumas mais do que na fase pré-revolução. Logo, a palavra “comunista” perdia quase todo o seu sentido, pois a construção de um sujeito comum, internacional e liberto deu lugar à burocracia, centralização do poder e fortalecimento do Estado enquanto agente controlador e persecutório.
Não à toa, muitos dos líderes de partidos revolucionários não se cansam de dizer que a sociedade comunista nunca existiu, tese com a qual o professor Gilberto Maringoni não concorda por completo. “A gente teve governos comunistas. Apesar de todas as barbaridades do Stálin, era um governo em que havia propriedade social, tinha pleno emprego. Era um socialismo possível nas condições da agressão do outro lado, o lado capitalista. O problema dos regimes socialistas, principalmente na Rússia, é que eles tiveram que fazer a construção do Estado Nacional, o Estado Czarista era um Estado que não era um Estado. Primeiro, que não tinha Assembleia Nacional, não tinha nada como um Parlamento”, pondera o professor.
Maringoni lembra, ainda, a partir de um levantamento histórico, que outros Estados-nações também foram construídos à base de guerra. “Na história, não há nenhum processo de construção de Estado nacional que tenha sido feito em regime de liberdade democrática. Mesmo nos Estados Unidos, a construção do Estado teve o seu ponto de virada no governo Lincoln, com a Guerra de Secessão. A guerra civil americana é quando se unifica o Estado: o norte industrial com o sul agrário. Essa construção foi feita com uma guerra civil, que matou 900 mil pessoas”, coloca.
Todos os exemplos acima deixam claro que os termos “comunista” e “bolivariano” são utilizadas sem qualquer relação com os seus reais significados. Na verdade, como bem colocou Maringoni, estes grupos se escondem atrás de um ideário colonizador, anti-democrático e com forte viés golpista. Por detrás das adjetivações se visa, também, impedir a livre circulação das ideias.
(Crédito da foto de capa: WikiCommons)
FONTE: Revista Fórum Semanal
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