Por Bruno Cava
Lênin, numa passagem muito incompreendida, afirmava que, como os operários têm chefes nas fábricas, eles também vão precisar de chefes no partido. Contudo, ao contrário da primeira impressão, o ativista bolchevique não está defendendo a subordinação do trabalhador e o vanguardismo por si mesmo. É que Lênin não acreditava numa revolução que não estivesse baseada solidamente na realidade vivida pelas pessoas de seu tempo. O ponto de partida para a organização revolucionária precisa ser o cotidiano produtivo. Não pode haver eficácia na luta, se não estiver calcada sobre relações de produção já experimentadas, sobre a organização do dia a dia. O processo de luta se desenrola, exatamente, partindo dessas relações mais cotidianas, para subvertê-las, para extrapolar as tendências internas de libertação. A política é a arte da reorganização do existente, e não algum projeto idealista a partir de cabeças iluminadas ou esclarecidas.
Embora a Rússia no começo do século 20 fosse predominantemente agrária e subdesenvolvida, Lênin via na instalação das fábricas uma tendência, uma mudança qualitativa nas formas de organização social. Na época, a fábrica era a unidade mais produtiva da sociedade moderna. Era o motor do desenvolvimento capitalista. Desprezada por anarquistas pequeno-burgueses, que só viam mecanização e despolitização no rude meio operário, Lênin via na fábrica elementos potentes de cooperação e articulação, que poderiam ser reorganizados. O lado negativo da fábrica estaria antes no controle exercido pelos patrões, no esmagamento sistemático da auto-organização operária, mas não em sua mera existência. O objetivo é aumentar a produtividade do modelo da fábrica, ao libertar o trabalho do capital. Contra quem desviava, com nojo ou elitismo, o olhar da vida nas fábricas e ao redor delas, considerando-as um inferno corruptor do homem e da natureza; Lênin insistia em apontar focos de subjetividade, arranjos produtivos inovadores no interior do meio operário.
Daí que, em franca contraposição aos populistas russos (os narodniks), Lênin preferisse centrar a teoria da organização nas fábricas, e não na propriedade comunal pré-capitalista (a obščina). Se os "puros e duros" narodniks elogiam o pobre em seu "habitat natural", quase com nostalgia, como sacralidade a defender-se; para Lênin a virtude da pobreza já está desde sempre no artifício, na capacidade de reinventar relações solidárias e criar vida em condições de privação e sofrimento, como na fábrica. A potência do pobre está na ficção, numa imaginação real e em movimento, e que transfigura o sofrimento em mais vida e luta.
Com isso, Lênin vai participar de uma organização que se molda à semelhança do modelo da fábrica, assumido pelo lado da produção de subjetividade. Um partido-fábrica, que vai propor a tomada do poder dos meios de produção, para conferir-lhes outro sentido, o comunismo, liberto das coações e violências de classe. O capitalista representado pelo estado é visto como um entrave para a expansão das forças produtivas. A extinção do estado deve ser concomitante à tomada do poder. A organização bolchevique, portanto, tenta repetir e potenciar a forma fabril como um ponto de partida, organizando os operários nos sovietes e no partido revolucionário. Eis aí o leninismo de Lênin: uma teoria da revolução imediatamente imbricada numa teoria da organização (o partido-fábrica, a partir da leitura da tendência) e numa teoria da subjetividade (relações de produção que são subvertidas, potenciadas no comunismo). Essa teoria se enredou com a prática do partido bolchevique em circunstâncias extremamente favoráveis. Como se sabe, isso deflagrou um devir revolucionário que acelerou dramaticamente a luta de classe na Rússia. Os descaminhos posteriores, seja por razões exógenas ou endógenas, ou por uma combinação de ambas, não eliminam a força comprovada do leninismo.
Obviamente, a teoria de Lênin elaborada no começo do século 20 não vale mais em tempos de capitalismo tardio, globalizado e integrado. A revolução russa determinou as formas de luta em seu desdobramento histórico por todo o século passado, porém, suas premissas devem ser repensadas radicalmente. O próprio leninismo, atualmente, chega a ser uma palavra maldita, um xibolete associado a grupúsculos obscuros e vanguardas impotentes, completamente descoladas da vida do trabalhador. Diferentemente daquele tempo, a classe trabalhadora hoje compreende não apenas o operariado de fábrica, como também a inteira rede social de produção de serviços, relações, imagens, afetos, bens materiais e imateriais. Se sucede uma tendência, hoje, não está mais na formação das fábricas, segundo o modo de organização do começo do século 20. Está, isso sim, no investimento progressivo de toda a metrópole dentro dos circuitos de produção e circulação, na inclusão de todos no mercado de trabalho e consumo — uma socialização geral e irreversível.
Por mais que a agricultura e a indústria convencional continuem existindo, o fato é que um processo de pós-industrialização atinge a sociedade dissolvendo formas antigas, inclusive reconfigurando as relações de produção dos ditos setores "primário" e "secundário" da economia. Da mesma forma que a agricultura fora industrializada, a indústria é pós-industrializada. O capitalismo não se contenta mais com a extração de mais-valor da produção fabril. O capital explora também e sobretudo as redes deslocalizadas de serviços, trocas simbólicas e compartilhamento, o inteiro tecido biopolítico em que estão todos, formalmente reconhecidos como trabalhadores ou não, implicados em sua vida cotidiana. Por isso, sem se respaldar na própria vida social e suas formas de produção atuais, qualquer apelo de luta anticapitalista/antiestatal corre o risco de rapidamente degenerar para banalidades antiautoritárias, sem premência ou dinâmica expansiva.
Neste contexto, seria possível resgatar o triângulo de Lênin: subjetividade – organização – revolução? Talvez sim.
Se a tendência hoje é da formação de um proletariado cognitivo (a dita "proletarização pós-fordista"), então é aí que devem ser pesquisadas as relações de produção — relações que são, imediatamente, um novo e geral cotidiano produtivo. A classe trabalhadora virou suco e isso em certo sentido foi bom, porque significou a derrubada dos muros da fábrica. O operariado se liquefez ele próprio, vazando das estruturas fabris para derramar-se sobre a metrópole biopolítica. Portanto, sem desprezar, de modo elitista, o imbricamento das pessoas com suas ferramentas, modos de cooperação e formas de trabalho; é preciso identificar os tempos e espaços da cooperação social, e onde estão os pontos de atrito, em que se é canalizado e explorado pelos patrões. Certamente, no começo do século 21, muitas vezes os patrões estão mais deslocalizados e abstratos do que antes, na figura das finanças, de comandos difusos e cada vez mais invisíveis de um funcionamento econômico, alçado à condição transcendental.
O método de Lênin consiste em estar "dentro e contra"; dentro das relações de produção, subvertendo-as, e contra os patrões (condensados ou difusos), tomando-lhes o poder. Nada de imaginar reservas sacrossantas que estariam a salvo do capitalismo. A libertação não está em construir sociedades alternativas, mas em ativar uma alternativa de sociedade (o comunismo), na imanência do cotidiano social mais imediato e disseminado. Por isso que, se o telefone celular ou a rede social da internet estão tendencialmente indissociáveis da organização das relações (de trabalho, afetivas, de diversão, de comunicação), então é possível subverter as relações de produção aí implicadas, para que o telefone celular e a rede social sejam usadas politicamente, potenciando a subjetividade. O mesmo vale para o consumo: embora o programa do capital seja assujeitar o consumidor dentro de padrões dóceis e multiculturais, neutros em relação à política, essa relação de produção pode ser reorganizada, a fim de gerar efeitos de subjetividade. A mobilidade urbana, se é condição para a superexploração dos fluxos e a ordenação da cidade, também pode se converter em mobilização. E assim por diante, o ponto está em que somente pesquisando como as pessoas se organizam produtivamente, — matriz sobre o que o vampirismo capitalista funciona —, seja possível mapear as resistências e criatividades, que podem ser integradas coletivamente numa estratégia.
Isto significa que é preciso, também, contestar os novos narodniks que defendem alguma pureza em grupos supostamente intocados, que estariam mais em contato com a "natureza" ou depurados da contaminação das tecnologias, das redes, da integração global. É preciso, ainda, contestar os utopistas, — usualmente elitizados e muitas vezes munidos apenas de retórica, — para quem a salvação consista em separar-se da mediocridade do mundo, em comunidades Osho, retiros ecológicos new age, casas Fora do Eixo ou seitas de baixa dieta proteica à moda Jim Jones. Para que uma revolução possa acontecer, é imprescindível que suceda efeito de escala, dentro e contra o modo capitalista dominante, numa alternativa de vida. Que, nesse processo, as formas concretas da transição (para o comunismo) já existentes sejam libertadas de dentro dos modos existentes de cooperação, autoprodução de sujeitos e libertação, e assim reorganizadas e requalificadas. E que os pontos de atrito sejam tensionados segundo a própria conformação das relações de produção do capitalismo atual, o que evidentemente passa pelo racismo, o patriarcado, a heteronormatividade e tantas outras opressões majoritárias.
Se Marx pensou na comuna como aposta de organização e Lênin o soviete, hoje estão em gestação os lugares de subjetivação, isto é, as formas concretas da transição. Os muitos focos de luta centelham globalmente, uma vez que a dominação capitalista é globalmente integrada. A cooperação transversal, a liderança distribuída, a horizontalidade dos processos, a arquitetura em rede, a produção biopolítica — tudo isso são parâmetros tanto do capital mais avançado, quanto da resistência e da franja de reinvenções dos novos movimentos. Daí que não adianta tentar reeditar formas falidas que nada mais tenham a ver com o cotidiano produtivo das vidas, por meio de organizações totalmente obsoletas. Tal nostalgia de outros momentos do século passado não condiz com a necessidade de calcar-se na organização produtiva realmente existente, e leva a uma espécie de autismo político. Sem requalificação, sem apoiar-se nas tendências, todo o movimento estudantil, sindical e orgânico está fadado à impotência, à incapacidade de fazer qualquer coisa de eficaz e expansivo. Enquanto isso, os teóricos e empreendedores do capital não perdem tempo defendendo a ortodoxia. Eles se adaptam o mais rapidamente à realidade produtiva, redimensionando os mecanismos de controle e inventando novos. A luta de classe é dinâmica, na medida da liquidação das formas antigas.
Ainda é possível promover um bom encontro com Lênin, na contínua atualização de suas hipóteses e dadas as condições reais das lutas e as circunstâncias com que nos defrontamos diretamente, legadas e retrabalhadas. O que fazer segue uma pergunta incontornável, em meio à desorientação de nosso tempo.
REFERÊNCIAS BÁSICAS:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs; capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1-5. Ed. 34. [1980]
LÊNIN, Vladimir I. O que fazer? [1902]
___. Um Passo a Frente, Dois Passos Atrás [1904]
___. Imperialismo, fase superior do capitalismo [1915].
___. O Estado e a revolução. [1917]
MEZZADRA, Sandro; CHIGNOLA, Sandro. Fuori dalla pura politica. Laboratori globali della soggettività. 7/12/2012. http://www.uninomade.org/fuori-dalla-pura-politica/
NEGRI, Antonio. Trinta e três lições sobre Lênin. Edição italiana manifestolibri. [1973]
___. Da fábrica à metrópole; ensaios políticos. Edição italiana DataNews. [2006]
ROGGERO, Gigi. La misteriosa curva della retta di Lenin; per una critica dello sviluppo del capitalismo oltrei i 'beni comuni'. Ed. Usher. [2011]
Bruno Cava é escritor brasileiro. É organizador do livro Amanhã vai ser Maior.
FONTE: Diário Liberdade