Por Aluizio Moreira
O socialismo pode ser considerado de duas maneiras bastante definidas, se bem que complementares, mas que têm consequências fundamentais: trata-se do “socialismo teórico” e do “socialismo prático”.
No primeiro caso, o termo é tratado como desenvolvimento do pensamento, das idéias de pensadores isolados, defensores da conquista da felicidade entre os homens indistintamente, críticos da desigualdade entre as pessoas, da pobreza das grandes massas. Admitiam que essas conquistas seriam frutos da moralidade, da educação, da universalização de uma suposta consciência moral, do aprimoramento politico que regulassem a vida em sociedade sem conflito, entre uma minoria proprietária que se apropriavam de todos os bens e riquezas, e uma maioria despossuída desses “direitos”.
No outro caso, se entende o socialismo como movimento prático de “assalto ao poder”, que criasse as condições objetivas de instauração de uma sociedade verdadeiramente igualitária, sem ricos e pobre, sem proprietários e não-proprietários.
Historicamente a linha divisória entre as duas vertentes do socialismo, encontra-se na Revolução Francesa de 1789. Explica-se.
1789 trouxe muitas esperanças para a população francesa. A esquerda radical (jacobinos) e a moderada, acenaram com bandeiras que prometiam verdadeiras mudanças para os homens do campo e da cidade. Logo após a tomada da Bastilha, a proclamada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como primeira preocupação dos revolucionários, surgia a “questão social” não mais como uma questão moral, produto da cabeça de um grupo de intelectuais reformadores, mas como uma prática que viabilizaria o equacionamento dos conflitos entre proprietários e não proprietários, entre os pobres e os ricos.
A hegemonia politica da alta burguesia no poder direcionou a Revolução contra a nobreza feudal, limitando o poder do clero e da nobreza, estabelecendo o controle da Igreja pelo Estado, e confiscando os bens pertencentes a classe dominante do Antigo Regime, mas desconhecendo as reivindicações das grandes massas. Esse período de dominação da alta burguesia cobriu o período de 1789 a 1792, no qual se proclamou a República burguesa.
Em 1793 a fração da esquerda jacobina assume progressivamente o controle da Convenção, estabelecendo o período do Terror que durou de 1793 a 1794. Em 1795 a burguesia retoma o poder dos jacobinos, instituindo a fase do Diretório, que se prolongaria até o ano de 1799, que culmina com a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder.
É exatamente em 1796, um ano após a volta do domínio da burguesia com a instituição do Diretório, que um grupo de seguidores (entre eles Buonarroti, Germain, Darthé) congregados na Societé des Égaux. Juntamente com remanescentes jacobinos, o movimento liderado por Graccus Babeuf, inicia um trabalho de mobilização popular, com o objetivo de tomar o poder, através do qual pretendia abolir o direito de propriedade, criando uma sociedade igualitária integrada por camponeses e artesãos, resgatando a constituição de 1793.
Denunciado à policia Babeuf passa a viver na clandestinidade. Preso naquele em maio daquele mesmo ano com vários com vários companheiros, é condenado à morte, sendo guilhotinado em 27 de maio de 1797, juntamente com 30 integrantes do grupo.
A seguir apresentamos na íntegra o Manifesto dos Iguais redigido por Grachus Babeuf, que orientaria a Conspiração dos Iguais, considerado o primeiro movimento comunista na História. Vale a pena lê-lo.
MANIFESTO DOS IGUAIS
Povo da França!
Durante perto de vinte séculos viveste na escravidão e foste por isso demasiado infeliz. Mas desde há seis anos que respiras afanosamente na esperança da independência, da felicidade e da igualdade.
A igualdade! - primeira promessa da natureza, primeira necessidade do homem e elemento essencial de toda a legítima associação! Povo da França, tu não ficaste mais favorecido do que as outras nações que vegetam sobre esta mísera terra! Sempre e em qualquer lado, a pobre espécie humana, vítima de antropófagos mais ou menos astutos, foi joguete de todas as ambições, pasto de todas as tiranias. Sempre e em qualquer lado se adulou os homens com belas palavras, mas nunca e em lugar nenhum obtiveram eles aquilo que, através das palavras, lhes prometeram. Desde tempos imemoriais se vem repetindo hipocritamente: os homens são iguais. Mas desde há longo tempo que a desigualdade mais vil e mais monstruosa pesa insolentemente sobre o gênero humano.
Desde a própria existência da sociedade civil, o atributo mais belo do homem vem sendo reconhecido sem oposição, mas nem uma só vez pôde ver-se convertido em realidade: a igualdade nunca foi mais do que uma bela e estéril ficção da lei. E hoje, quando essa igualdade é exigida numa voz mais forte do que nunca, a resposta é esta: "Calai-vos, miseráveis! A igualdade não é realmente mais do que uma quimera; contentai-vos com a igualdade relativa: todos sois iguais em face da lei. Que quereis mais, miseráveis?" Que mais queremos? Legisladores, governantes, proprietários ricos; é agora a vossa vez de nos escutardes.
Todos somos iguais, não é verdade? Este é um princípio incontestável, porque ninguém poderá dizer seriamente, a não ser que esteja atacado de loucura, que é noite quando se vê que ainda é dia. Pois bem, o que pretendemos é viver e morrer iguais já que como iguais nascemos: queremos a igualdade efetiva ou a morte.
Não importa qual o preço, mas havemos de conquistar essa igualdade real. Ai daqueles que se interponham entre ela e nós! Ai de quem se oponha a um juramento formulado desta forma!
A Revolução Francesa não é mais do que a vanguarda de outra revolução maior e mais solene: a última revolução.
O povo passou por cima dos corpos do rei e dos poderosos coligados contra ele; e assim acontecerá com os novos tiranos, com os novos tartufos políticos sentados no lugar dos velhos.
De que mais precisamos além da igualdade de direitos?
Temos apenas necessidade dessa igualdade, da qual resulta a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: queremos vê-la entre nós, sob o teto das nossas casas. Estamos dispostos a tudo, a fazer tábua-rasa de tudo o mais, apenas para conservar a igualdade. Pereçam, se for necessário, todas as artes, desde que se mantenha de pé a igualdade real!
Legisladores e governantes, com tão pouco engenho como boa fé, proprietários ricos e sem coração, em vão tentais neutralizar a nossa sagrada missão dizendo: "Eles não fazem mais do que reproduzir aquela lei agrária exigida já por diversas vezes no passado".
Caluniadores, calai-vos pela vossa parte e, em silêncio de confissão, escutai as nossas pretensões, ditadas pela natureza e baseadas na justiça.
A lei agrária, ou a divisão da terra, foi aspiração momentânea de alguns soldados sem princípios, de algumas populações incitadas pelo seu instinto mais do que pela razão. Nós temos algo de mais sublime e de mais eqüitativo: o bem comum, ou a comunidade de bens! Nós reclamamos, nós queremos desfrutar coletivamente dos frutos da terra: esses frutos pertencem a todos.
Declaramos que, posteriormente, não poderemos permitir que a imensa maioria dos homens trabalhe e esteja ao serviço e ao mando de uma pequena minoria.
Há muito tempo já que menos de um milhão de indivíduos tem vindo a dispor de quanto pertence a mais de vinte milhões de semelhantes seus, de homens que são em tudo iguais a eles.
Devemos pôr termo a este grande escândalo, que os nossos netos não quererão acreditar possa ter existido! Devemos fazer desaparecer, finalmente, essas odiosas distinções de classes entre ricos e pobres, entre grandes e pequenos, entre senhores e servos, entre governantes e governados.
Que entre os homens não exista mais nenhuma diferença do que aquela que lhes é dada pela idade e pelo sexo. E, porque todos temos as mesmas necessidades e as mesmas faculdades, que exista, portanto, uma única educação para todos e um idêntico regime de alimentação. Toda a gente se sente satisfeita por dispor do sol e do mesmo ar que respira. Porque não há de acontecer o mesmo com a quantidade e a qualidade dos alimentos?
Mas é verdade que já os inimigos da ordem de coisas mais natural que imaginar se possa protestam e clamam contra nós.
Desorganizadores e facciosos, dizem-nos eles, vós só desejais que exista anarquia e massacre.
Povo da França!
Não desejamos perder tempo a responder a esses senhores, mas a ti dizemos-te: a sagrada tarefa em que estamos empenhados não tem outro objetivo que não seja pôr termo às lutas civis e à miséria pública.
Nunca foi concebido e posto em execução um plano mais vasto do que este. De vez em quando, alguns homens de talento, homens inteligentes, falaram em voz baixa e temerosa desse plano. Mas nenhum deles, claro, teve a coragem necessária para dizer toda a verdade.
Chegou a hora das grandes decisões. O mal encontra-se no seu ponto culminante, está a cobrir toda a face da terra. O caos, sob o nome de política, há já demasiados séculos que reina sobre ela. Que tudo volte, pois, a entrar na ordem exata e que cada coisa torne a ocupar o seu posto. Ao grito de igualdade, os elementos da justiça e da felicidade estão a organizar-se. Chegou o momento de fundar a República dos Iguais, este grande refúgio aberto a todos os homens. Chegaram os dias da restituição geral. Famílias sacrificadas, vinde todas sentar-vos à mesa comum posta para todos os vossos filhos.
Povo da França!
A ti estava, pois, reservada a mais esplendorosa de todas as glórias! Sim, tu serás o primeiro que oferecerá ao Mundo este comovedor espetáculo.
Os hábitos inveterados, os antigos preconceitos, farão novamente tudo para impedir a implantação da República dos Iguais. A organização da igualdade efetiva, a única que satisfaz todas as necessidades sem provocar vítimas, sem custar sacrifícios, talvez em princípio não agrade a todos. Os egoístas, os ambiciosos, rugirão de raiva. Os que conquistaram injustamente as suas possessões dirão que está a cometer-se uma injustiça em relação a eles. Os prazeres individuais, os prazeres solitários, as comodidades pessoais, serão motivo de grande pesar para os indivíduos que sempre se caracterizaram pela sua indiferença ante os sofrimentos do próximo. Os amantes do poder absoluto, os miseráveis partidários da autoridade arbitrária, baixarão pesarosos as suas soberbas cabeças perante o nível da igualdade real. A sua visão estreita dificilmente penetrará no próximo futuro da felicidade comum. Mas que podem fazer alguns milhares de descontentes contra uma massa de homens completamente satisfeitos de terem procurado durante tanto tempo uma felicidade que sempre tiveram à mão?
Logo que se verificar esta autêntica revolução, estes últimos, estupefatos, dirão uns aos outros: "Como custava tão pouco conseguir a felicidade comum! Era necessário apenas ter o desejo de alcançá-la. E por que não fizemos isso há mais tempo?" Será preciso repetir sempre uma e outra vez? Sim, sem dúvida, basta que sobre a terra um homem seja mais rico e mais poderoso do que os seus semelhantes, do que os seus iguais, para que o equilíbrio se quebre e o crime e a desgraça invadam o Mundo.
Povo da França!
Quais os sinais que nos permitem reconhecer as qualidades de uma Constituição? Aquela que se apóia integralmente sobre a igualdade é, na realidade, a única que te convém, a única que satisfaz as tuas aspirações.
As cartas aristocráticas dos anos 1791 e 1795, em vez de romper as tuas cadeias, vieram consolidá-las. A de 1793 supôs ser um grande passo no sentido da igualdade real, mas não conseguiu todavia esse objetivo e não apontou diretamente para a igualdade comum, embora consagrasse solenemente o grande princípio dessa igualdade.
Povo da França!
Abre os olhos e o coração para a plenitude da felicidade; reconhece e proclama conosco a República dos Iguais
1796