quinta-feira, 4 de junho de 2015

Reencontrar nas ruas o caminho da unidade



“Nas escolas, nas ruas, campos, construções” vamos encontrar ambiente e espaço político para a repactuação das relações entre movimentos sociais, partidos e governo, as quais preservem valores imprescindíveis de nossa história comum, o respeito democrático às diferenças e divergências e a unidade de ação nos consensos


por Renato Simões



O desafio de construir uma frente de esquerda que reúna movimentos sociais e partidos políticos em torno da luta por reformas estruturais, de caráter democrático e popular, é com certeza uma imposição da conjuntura de radicalização da luta política no Brasil pós-eleições de 2014.

Não que seja fácil de ser enfrentado, mas é urgente e necessário para aprofundar as transformações sociais, econômicas e políticas alcançadas pelas classes trabalhadoras e populares do Brasil nestes doze anos de Lula e Dilma e sintonizar o Brasil na luta por alternativas antineoliberais e anti-imperialistas em curso nas experiências de governo de esquerda e centro-esquerda que mancham de vermelho – com certeza, em várias tonalidades – o mapa político de nosso continente latino-americano.

Em certo sentido, esse desafio foi enfrentado e vencido na agenda das lutas sociais da segunda metade dos anos 1990, quando o Fórum Nacional de Lutas articulou movimentos sociais e partidos políticos de esquerda e de oposição numa plataforma antineoliberal de resistência às privatizações, à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e ao desmonte das políticas de Estado iniciadas no período Collor/Itamar e amplificadas nos dois governos tucanos.

O Fórum Nacional de Lutas comandou batalhas políticas, sindicais, estudantis e populares que foram emblemáticas de uma postura generalizada nas esquerdas latino-americanas, em oposição à conciliação da social-democracia e outros setores da esquerda europeia com os governos neoliberais desde a virada dos anos 1980. Se lá prosperou a ideia de busca de uma terceira via, de uma mitigação do neoliberalismo por meio da preservação de espaços de bem-estar social e democráticos dentro da avalanche neoliberal, cá se enfrentou o neoliberalismo com alternativas políticas e movimentos de massa. O resultado é que, se as esquerdas europeias se enfraqueceram, se fragilizaram e se fragmentaram nesse processo, permitindo a consolidação de governos de direita e centro-direita neste início de novo milênio, as esquerdas latino-americanas se cacifaram para dirigir processos sociais e eleitorais vitoriosos que se articularam entre si para consolidar consensos e integrações regionais altamente significativas para um mundo multipolar em perspectiva.

Essa aliança entre movimentos sociais e partidos de esquerda na resistência aos governos neoliberais dos anos 1990 produziu experiências heterogêneas de governo, com diferentes alianças de classe e correlações de força próprias do processo histórico e opções políticas em cada país, mas com certeza está na origem de um fenômeno que – ainda em curso – vem experimentando conquistas sociais para os setores sociais que sustentaram a resistência e as vitórias eleitorais dessas coalizões. Como era de esperar, produziram uma reação organizada das elites desalojadas dos governos nacionais que se acostumaram a dirigir e sintonizadas com o ideário neoliberal ainda hegemônico no grande capital transnacional – mesmo agora quando, desde 2008, vive-se uma profunda e prolongada crise econômica, social e ambiental das mais agudas da história do capitalismo.

Em todos os países que, como o Brasil, passam por esse processo, os desafios são imensos de conciliar os avanços sociais e econômicos dos de baixo com a manutenção de privilégios, renda, riqueza e poder dos de cima – visto que, à honrosa exceção de Cuba, não realizamos revoluções socialistas em nenhum outro país da América Latina e do Caribe. A reação internacional contra os governos democráticos e populares de esquerda, centro-esquerda ou progressistas da América Latina, como queiramos categorizar, vem crescendo em intensidade e estridência política, promovendo desde golpes como os do Paraguai e Honduras até a polarização social e eleitoral que marcou vitórias apertadas das esquerdas nos pleitos mais recentes, a exemplo da Venezuela (com Hugo Chávez e Nicolás Maduro), de El Salvador (com Salvador Sánchez Cerén) e do Brasil (com Dilma).

Em comum, o protagonismo midiático dos novos partidos políticos de oposição, os meios de comunicação de massa privados, o terrorismo econômico que se aproveita da crise internacional para organizar agentes internos de desestabilização das economias nacionais e o denuncismo da corrupção atribuída genética e exclusivamente às esquerdas no governo. A reação para pôr fim a essas experiências de governo de parte dos de baixo para devolvê-los integralmente aos de cima articula as vias democráticas com as nítidas tendências golpistas identificadas nos processos políticos da Venezuela, do Brasil e da Argentina, entre outros.

A ausência de um espaço plural e representativo da independência de classe dos movimentos sociais e partidos de esquerda neste período de doze anos de governo no Brasil, em que pesem experiências importantes como a da Coordenação de Movimentos Sociais e outras iniciativas de articulação de lutas sociais e políticas do campo democrático e popular, é um elemento central de três processos que se aprofundaram e precisam ser revertidos.

Em primeiro lugar, a despolitização e desideologização de movimentos sociais e partidos que passaram a viver à sombra dos governos e de sua capacidade de inclusão social e disputa política na sociedade.

Em segundo lugar, a perda de capacidade de disputa política com a direita tradicional, que, pela primeira vez desde os preparativos do golpe militar de 1964, disputa conosco as ruas do país para defender suas posições, confrontar o governo e os movimentos sociais tradicionais.

E, em terceiro lugar, a incapacidade de propor pautas políticas que superem as políticas públicas geradas pelo governo federal, alterem a correlação de forças e avancem para reformas estruturais, como a agrária, a urbana, a política, a tributária e a da mídia.

A conclamação de atos contra a direita golpista e por reformas estruturais logo após a eleição vencida por Dilma, feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), suscitou um debate altamente relevante sobre o preenchimento dessa lacuna à esquerda na sociedade brasileira. Já em meio às manifestações de junho de 2013, diante do caráter progressista das reivindicações e ao mesmo tempo das agressões promovidas por grupos direitistas contra militantes de movimentos sociais e partidos de esquerda, produziu-se um campo de debate e articulação com as características hoje esboçadas no debate sobre a frente por reformas estruturais. Participaram movimentos sociais, centrais sindicais e partidos de esquerda, sendo estes de oposição ou de situação em relação ao governo Dilma, para enfrentar os desafios do momento.

Ainda não há, evidentemente, acordos definitivos sobre plataforma e método de construção de uma frente que mantenha a independência de classe dos movimentos, sua autonomia em relação aos governos e sua unidade de ação a cada conjuntura. Mas há um esboço de entendimento que, se prosperar, pode efetivar um novo sujeito político relevante para o avanço das conquistas do povo brasileiro e enfrentar o conservadorismo político e ideológico da direita, cada vez mais assanhada na defesa de seus privilégios e preconceitos.

“Nas escolas, nas ruas, campos, construções” vamos encontrar ambiente e espaço político para a repactuação das relações entre movimentos sociais, partidos e governo, as quais preservem valores imprescindíveis de nossa história comum, o respeito democrático às diferenças e divergências e a unidade de ação nos consensos produzidos na luta social.

Renato Simões


*Renato Simões é filósofo, militante dos movimentos de direitos humanos e do PT



Ilustração: Mídia Ninja


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