Garis do Rio de Janeiro, protagonistas, em 2014 e 2015, de greves que tiveram repercussão nacional |
Hipótese de Guy Standing sobre reconfiguração das classes sociais pode ser elemento importante na análise do novo conservadorismo brasileiro — e na busca da virada
Por Rafael Evangelista
A bancada sindical, que colabora decisivamente na defesa dos interesses dos trabalhadores assalariados, é muito menor na atual legislatura. São 46 deputados, número bem próximo ao de 1988, quando foram 44. Em 2002, ano da eleição de Lula, os sindicalistas foram 74. Caíram na eleição seguinte para 54, possivelmente sentindo o baque na imagem do PT após o mensalão. Em 2010 a bancada registrou seu maior número, 83 deputados.
Pode-se atribuir isso ao propalado distanciamento do PT de suas bases. Também é possível afirmar que o partido mais identificado com o sindicalismo cometeu erros estratégicos, apostando em nomes errados na hora de construir seu quociente eleitoral. Porém, é preciso registrar que o PT vem perdendo força nas cidades operárias paulistas, seu conhecido reduto eleitoral. Somente em uma delas, Hortolândia (SP), o governador Geraldo Alckmin não teve a maioria dos votos pela sua reeleição no primeiro turno.
Ao mesmo tempo, assistimos à ascensão da bancada conservadora. Nomes como Marco Feliciano, em São Paulo, e Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro, aparecem como grandes puxadores de votos – este último acompanhado por seu filho, também deputado eleito, mas por São Paulo. Essa não parece ser uma tendência restrita a nomes específicos: a pauta conservadora, contra os direitos humanos, a favor da brutalidade policial, contra os direitos sexuais foi encampada por diversos candidatos espalhados pelo país. Estes enxergam a adesão a bandeiras radicais como forma de alavancarem votos. Candidatos progressistas acabam se tornando mais tímidos, com medo de desagradar um eleitorado bastante vocal e que parece crescer.
Os fenômenos parecem ser, então, dois: o declínio de políticos mais identificados com causas trabalhistas e a ascensão de personagens conservadores que flertam com o populismo de direita. A explicação para isso é complexa, mas parte dela pode estar nas mudanças que o mundo do trabalho vive nos últimos anos, com a queda do trabalho regular, assalariado, com benefícios protegidos por lei e o crescimento do setor de serviços e, mais especificamente, do trabalho fragilizado, intermitente, incerto.
O termo precariado, corruptela de precário com proletário, tem sido utilizado para referenciar a emergência do que seria uma nova classe social, um contingente crescente de pessoas que nem gozam de renda estável (vinda do trabalho assalariado ou de renda) nem estão na vala do desemprego crônico. Talvez ele possa nos trazer algumas boas sacadas.
Guy Standing |
Há bastante controvérsia sociológica sobre uma precisa definição do grupo (ou mesmo se este constitui uma classe), mas o fenômeno se torna bastante concreto se olharmos a nossa volta e percebermos situações que vêm se tornando comuns no mercado de trabalho atual. Profissionais com formação educacional satisfatória ou muito boa, que conseguem viver e têm períodos de renda estável, porém intercalados com tempos de ganho muito baixo, em que as dívidas crescem e cada vez é mais difícil pagá-las com o dinheiro que aparece quando a maré melhora. Em geral são pessoas que executam funções abaixo de sua formação ou expectativa. Passam muito tempo “trabalhando para trabalhar”, construindo relações ou fazendo favores que podem render alguma recompensa financeira num futuro incerto.
O economista inglês Guy Standing fala de uma nova divisão de classes, tentando encaixar o fenômeno do precariado em um cenário ampliado. Sua tipificação parece por demais europeizada, mas pode ser útil para começar a precisar o que está acontecendo. No topo da pirâmide das classes estariam os grandes herdeiros, as celebridades ou os executivos das grandes empresas, capazes de reunir poupança mais do que suficiente para situações momentâneas de crise.
Bem abaixo estaria o que ele chama de salariado, os funcionários, públicos e privados, que gozam de férias, benefícios e estabilidade no emprego por lei ou porque sua demissão custaria demais aos seus patrões.
Próximo a eles estariam o que Standing chama de proficians, profissionais sem relação fixa de emprego, que trabalham por contrato, mas cuja combinação de habilidades faz com que consigam facilmente se colocar no mercado com ganhos altos ou bastante bons, o suficiente para não viverem momentos muito incertos e ainda gozando de independência.
Abaixo deles estaria o típico trabalhador industrial tradicional, com emprego fixo, relação formalizada. Um grupo que encolhe rapidamente, substituído pela mecanização ou pela inventividade das empresas na reformulação das estruturas tradicionais de trabalho.
O precariado estaria abaixo desses quatro grupos, ladeado pelos desempregados e pelos socialmente desajustados. Em relações efêmeras de emprego ou renda (bolsas, contratos curtos e sazonais de trabalho, bicos) viveria a constante expectativa de ascender a relações mais formais e com benefícios, ou mesmo conseguir se estabilizar como trabalhador independente. Mas também seria constantemente assombrado e psicologicamente torturado pela perspectiva concreta de descenso social a uma situação bastante desumana, sem direito ao mínimo para viver dignamente.
Standing trata o precariado não somente pela via da relação enfraquecida de trabalho, mas também pelo impacto psicossociológico sofrido por essa categoria. Seria um grupo sem senso de futuro, sem perspectiva de carreira e sem relação identitária positiva com a profissão e desligado da sociedade. Vivendo situações que só podem ser classificadas como de alienação, anomia, ansiedade e que levam ao ódio. Nesse sentido, o desligamento da política seria um sinal preocupante. E a classe seria particularmente vulnerável ao neofascismo.
Parece problemático transferir automaticamente essas observações a um país como o Brasil, com uma história social complicada e com um mundo do trabalho que só muito recentemente conseguiu alguns frágeis direitos. Mas é justamente esse grupo de trabalhadores industriais tradicionais que liderou as conquistas não somente entre 1970 e 1980, mas desde a fase de expansão industrial no início do século, que vem se enfraquecendo.
Esse processo parece tratar de algo ainda não consolidado. O precariado vem crescendo e diversas formas “criativas” de se explorar esse trabalho estão sendo inventadas, em particular pela indústria de tecnologia, que vem dando vazão a novas formas de conciliar a insegurança financeira e psicológica dos precários com a busca de lucro dos intermediários. É a sharing economy.
Aplicativos como o AirBnB, Uber, Favor e muitos outros são tocados no dia a dia majoritariamente por precários. Pessoas que enxergam nesses sistemas um jeito de entrar no mercado de trabalho de maneira independente e sem burocracia. É difícil argumentar que o Uber, por exemplo, não seja uma viabilização, edulcorada pela ideologia do Vale do Silício, do bom e velho táxi pirata. Boa parte dos imóveis disponíveis no AirBnB não são sofás oferecidos generosamente pelos seus donos a simpáticos viajantes. São imóveis disponíveis para temporada, agenciados por precários que intermedeiam o verdadeiro dono e o hóspede, prestando serviços como arrumar o apartamento e receber o viajante.
Que caminhos políticos tomará essa economia global cada vez mais liberalizada, intermediada por sistemas informacionais e ávida por força de trabalho criativa e barata, é ainda algo incerto. O efeito que terá em países subdesenvolvidos, cujos direitos políticos e civis já são historicamente frágeis, também é algo difícil de prever. Porém, parece ser bastante clara a necessidade de se estudar melhor a dinâmica política do precariado e agir reconstruindo laços de solidariedade e ligações culturais entre grupos explorados.
FONTE: Outras Palavras
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