sexta-feira, 4 de setembro de 2015

75 anos depois, Trotsky vive no Brasil


A história agigantou a estatura e celebramos a sua memória com respeito e admiração. Sua vida e obra são uma inspiração insubstituível.


Por Léa Maria Aarão Reis


“Não só Trotsky, mas também o trotskismo,  no Brasil, tem uma tradição e um legado na esquerda que remete ao final dos anos vinte. Foram cinco gerações. A primeira, de Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Fúlvio Abramo. A segunda, a do jornalista Hermínio Sachetta, que ajudou na formação do jovem Florestan Fernandes. A terceira  resistiu nos anos cinquenta, nos anos da guerra fria, com os irmãos Fausto, Boris e Ruy, e Leôncio Martins Rodrigues; Michael Löwy foi para o exílio na França. A quarta, no final dos anos sessenta,  é a minha geração e gerou as maiores organizações - foram importantes na fundação da CUT e do PT, a Convergência Socialista, O Trabalho e a Democracia Socialista, e tiveram um papel na organização das lutas dos trabalhadores e da juventude. E a quinta, a que chegou à vida adulta nos anos oitenta e início dos anos noventa, compareceu na formação do PSTU, em 1994, e do PSOL em 2004.”

Quem fala a Carta Maior é o historiador marxista Valério Arcary(*),  escritor e professor do CEFET/SP – Centro Federal de Educação Tecnológica - e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Conversamos com Arcary, hoje filiado ao PSTU, relembrando a data de 21 de agosto de 1940 quando Lev Davidovitch Bronstein morreu, num hospital, aos 60 anos, depois de sobreviver, durante um dia, aos golpes de picareta do agente de Stalin, o basco Ramón Mercader, desfechados na sua nuca, no escritório da casa em Coyoacán, no México - hoje um museu e em cujo jardim se encontra o seu modesto túmulo. Para o prof. Arcary, o idealizador e comandante do Exercito Vermelho, agora, com sua memória celebrada, representa um fio de continuidade com a tradição marxista.  “A primeira  geração de brasileiros trotskistas fez a melhor análise marxista sobre a revolução de 30,” ele lembra, “e esteve à frente da organização da Batalha da Praça da Sé, conhecida, também, como a Revoada dos Galinhas Verdes, um combate antifascista.”

Nesta entrevista para Carta Maior, 75 anos depois do fatídico 21 de agosto, ele fala sobre a herança que permanece entre nós do pensamento de Trotsky: “A história agigantou a estatura e celebramos a sua memória com respeito e admiração. Sua vida e obra são uma inspiração insubstituível. Mas não alimentamos cultos. As experiências bárbaras de culto à personalidade que se disseminaram a partir do processo pioneiro na ex-URSS, onde Stalin, ainda vivo, se fez glorificar por uma indústria de propaganda tão poderosa quanto a força do aparelho policial – militar, que instituiu o terror como política de Estado, alimentam grande prudência, senão pudor, em relação ao tema do lugar do indivíduo na história. O ainda hoje presente regime ditatorial na Coréia do Norte que, ao garantir a transição do poder de pai para filho, instituiu a primeira monarquia que se reivindica “socialista”, convida tanto ao desprezo, quanto inspira o sarcasmo.

CM- O que é a teoria da revolução permanente de Trotsky?

Trotsky elaborou a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, e desenvolveu uma teoria-programa para as revoluções contemporâneas. Esta elaboração foi chave para a vitória da primeira revolução anticapitalista da história, a revolução de outubro de 1917. Aos 26 anos, inspirado pela experiência derrotada da revolução de 1905, formulou a teoria da revolução permanente. Antecipou que, em países historicamente retardatários, como era o Império Czarista, com uma burguesia economicamente poderosa, porém, social e politicamente frágil, a revolução democrática contra o czarismo teria como sujeito social decisivo a classe trabalhadora urbana aliada à maioria camponesa. Este bloco social operário e popular não se contentaria com a conquista da república democrática e, em mobilização ininterrupta, em permanência, poderia realizar a reforma agrária, libertaria as nações oprimidas por Moscou dentro do Império, e desafiaria a propriedade privada, abrindo o caminho para a revolução europeia e a luta pelo socialismo internacional.

CM- Em qual livro Trotsky trata dos desvios da época stalinista?

No livro A Revolução Traída, de 1936, ele analisa o processo de burocratização da URSS e do Partido Bolchevique, e prevê que, ou o proletariado faria uma revolução política democrática ou o capitalismo seria restaurado na Rússia. Infelizmente, foi o que acabou acontecendo.

CM- Cinco gerações depois, como os jovens, na universidade, veem o papel e as teorias de Trotsky? É uma figura datada ou se trata de um clássico?

Trotsky tem uma presença na universidade tanto na dimensão política quanto intelectual. Não se pode, contudo, perder o sentido das proporções. A maioria dos estudantes universitários brasileiros contemporâneos não lê, infelizmente, nem Marx. Lênin, então, nem pensar. São aproximadamente seis milhões, e somente um milhão em universidades públicas. A maioria dos estudantes só se integra no movimento estudantil, onde as ideias de esquerda são mais influentes, em algumas circunstâncias excepcionais.

CM- Qual é a militância dentro da universidade?

Em alguns cursos a presença marxista é, em diferentes proporções, mais expressiva: Serviço Social, Educação, História, Geografia, Ciências Sociais, Filosofia, Letras, Direito, Economia. O trotskismo teve uma intensa presença militante nas universidades  brasileiras nos últimos quarenta anos, tanto entre estudantes quanto entre professores e técnico-administrativos. Muitos milhares de jovens de diferentes gerações uniram-se ao trotskismo, em suas diferentes organizações, e contribuíram, ao longo de décadas, para que fosse possível a existência de um movimento estudantil no Brasil com inclinação por alianças sociais com os trabalhadores, o que não acontece em outros países. Centenas de trotskistas ajudaram, nos últimos trinta anos, a construir o ANDES, o SINASEFE e a FASUBRA como sindicatos dos mais combativos e representativos do movimento sindical.  O auge da influência marxista na academia se deu nos anos oitenta em função do deslocamento da relação social de forças para a esquerda na luta final contra a ditadura. O lugar de Trotsky ao lado das três correntes intelectuais marxistas mais influentes, inspiradas em Gramsci, Lukács, Althusser, permanece, também, significativo, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Existem muitas dezenas de trabalhos acadêmicos sobre Trotsky e sobre os trotskistas brasileiros. Trotsky é percebido, portanto, entre aqueles que se interessam pelos temas da transformação social como um clássico.

CM- A revolução permanente e sua teoria devem ser evocadas pelas esquerdas do Brasil?

Sim. A obra de Léon Trotsky é um referencial para elaborar um programa para a revolução brasileira. Tem sido assim. O trotskismo contribuiu para uma compreensão marxista original e instigante da originalidade da formação social brasileira. Sem esta compreensão é impossível um programa. Não é possível lutar, seriamente, pela mudança da sociedade em que vivemos, sem compreender como ela é. Em perspectiva marxista esta análise deve identificar quais são os sujeitos sociais interessados na transformação. O Brasil permanece muito diferente dos seus vizinhos sul-americanos de colonização espanhola, por muitas determinações. Todavia, a escravidão é a principal. Houve escravidão em muitas outras colônias das Américas. No entanto, nenhuma nação contemporânea conheceu em sua história escravidão negra em tão larga proporção, e por tanto tempo como o Brasil. A colonização do Brasil foi motivada por interesses capitalistas. Muito antes da independência, já existia uma classe dominante luso-brasileira com características burguesas embora as relações sociais fossem pré-capitalistas. A acumulação capitalista precedeu, portanto, a abolição da escravidão. Existiam assalariados desde os tempos da América portuguesa, mas esta relação de trabalho era marginal. Por aqui a burguesia começou a se formar no século XVI. Mas o proletariado surge como classe, ainda assim muito embrionariamente, somente no final do século XIX, alguns séculos mais tarde - como alertou,  pioneiramente, nos anos quarenta, Caio Prado Júnior. Se avaliarmos a escala nacional, só podemos considerar uma presença da classe operária em alguns poucos centros urbanos depois dos anos trinta do século XX e, de forma mais expressiva, somente depois dos anos cinquenta, quando ainda quase metade da população vivia no mundo rural. Esta assimetria do processo histórico-social de formação das duas classes mais importantes da atual sociedade brasileira potencializou no marxismo duas posições opostas, que podemos classificar, simplificando, como os produtivistas e os circulacionistas. A primeira e mais influente foi a daqueles que não admitiam a possibilidade da existência de uma colonização capitalista desde a invasão portuguesa. Insistiram durante décadas na defesa esdrúxula de que teria existido feudalismo no Brasil. Defenderam que uma sociedade deve ser caracterizada, historicamente, pelas relações de produção dominantes. Afirmaram que o que caracteriza o capitalismo é o trabalho assalariado. Se o trabalho assalariado não é dominante, a sociedade não é capitalista. A outra posição era igualmente unilateral. Os circulacionistas afirmavam que a colonização tinha sido sumariamente, capitalista, desprezando o fato monumental de que o escravismo criou raízes profundas em quase quatro séculos de existência.

CM – Qual a interpretação da POLOP?

A Organização Revolucionária Marxista-Política Operária, POLOP, por exemplo, assumiu esta segunda interpretação para concluir a necessidade de um programa diretamente socialista ou anticapitalista diminuindo a importância das tarefas democráticas da revolução brasileira. Jacob Gorender tentou solucionar o debate com uma elaboração inspirada, ainda que sob uma forte influência estruturalista, sugerindo que o Brasil conheceu um modo de produção próprio, o escravista colonial.

CM – E o Brasil hoje, é produto deste quadro histórico?

O Brasil é ainda um país muito atrasado do ponto de vista econômico, social, político e cultural. É dramaticamente atrasado em termos educacionais quando comparado com nações em estágio semelhante de desenvolvimento econômico. Atrasado, portanto, em toda a linha. Mas é, ao mesmo tempo, o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta, e uma das maiores economias capitalistas do mundo contemporâneo, com doze cidades com um milhão ou mais de habitantes, e 85% da população economicamente ativa em centros urbanos. Só utilizando os recursos marxistas da lei do desenvolvimento desigual e combinado é possível equacionar a principal das peculiaridades brasileiras: o capitalismo usou em escala insólita a mão de obra escrava.

CM- Qual é a força da classe trabalhadora brasileira?

Uma das peculiaridades que distingue o Brasil é que este proletariado tardio é um dos mais poderosos do mundo. A força da classe trabalhadora brasileira repousou e se explica, em grande medida, pelo seu gigantismo, pela concentração e pela sua juventude que, paradoxalmente, foi até hoje, também, a sua fraqueza. A atual classe trabalhadora brasileira se formou, majoritariamente, pelo deslocamento para as cidades, em processo muito intenso e acelerado de migrações internas, da população descendente, em sua maioria, dos afro-brasileiros cujos ancestrais foram escravos.

CM – E qual é o desafio de uma real revolução democrática?

É o desafio de ser uma revolução social anticapitalista, ou seja, a expropriação dos monopólios, porque a classe trabalhadora deverá ser o seu principal sujeito social. Mas só poderá triunfar se tomar como sua as bandeiras democráticas das tarefas inacabadas deixadas para trás pela impotência burguesa. Essa revolução democrática tem muitas e variadas tarefas. Tem tarefas civilizatórias, como a erradicação da corrupção, a demarcação das terras indígenas, o fim das desigualdades regionais. Tem tarefas de libertação nacional na luta contra a ordem imperialista. Tem tarefas agrárias contra o latifúndio. Só poderá triunfar, contudo, se for também uma revolução negra.

CM- Como ler Trotsky neste momento atual, à luz da nova onda de conservadorismo que procura varrer, mais uma vez, a ação progressista de governos da América Latina, e em momento em que o jogo geopolítico volta a apontar o continente como um espaço que, a qualquer custo, deve ser disputado pelos EUA à China?

Não vejo o mundo assim. Vejo que prevalece mais associação que conflito entre os EUA e a China no sistema mundial de Estados. A principal contradição no mundo, que está longe de ser a única, mas permanece a mais importante, e que explica a situação tanto na Grécia quanto no Brasil, é aquela entre Capital e Trabalho. O ano de 2015 tem colocado à prova o  sangue frio da esquerda marxista brasileira. Quando uma batalha está em curso não é claro quem irá vencer. Acontece que nenhum dos dois campos mais fortes em disputa é progressivo. Se Dilma permanecer, e superar a vertigem da crise com o auxílio do PMDB de Temer e os apelos da grande burguesia, os próximos três anos serão anos de longa recessão, sacrifícios e a Agenda Brasil. Se Dilma viesse a ser derrubada por um impeachment no Congresso Nacional, sob a direção Cunha e Aécio, teríamos um governo de transição liderado, provavelmente, por Michel Temer com participação do PSDB. E a Agenda Brasil. Por isso há tanto nervosismo nas fileiras da esquerda. Ficou mais difícil, muito mais difícil do que em 2014, defender qual é o mal menor. Mas, resistir às pressões dos dois campos, em simultâneo, e posicionar-se de forma independente significa, também, neste momento, ficar ainda mais em minoria do que há um ano. Não fosse isso o bastante, cercados por forças muito mais exaltadas. Compreender os limites intransponíveis do governo Dilma remete à compreensão da história do PT. Estudar a história do PT é tema imprescindível para a esquerda brasileira. Porque o perigo de repetir, uma, duas e mais vezes os mesmos erros não é pequeno. Não nos deve preocupar que haja polêmicas na interpretação. O que deve nos assombrar é que não haja uma discussão, até apaixonada, sobre as mutações do petismo em lulismo.

CM – Quais os eventuais riscos desta discussão que se faz tão necessária?

O perigo da mimetização, ou da imitação, muito tentador para a geração mais madura de ativistas que viveram a experiência do PT nos anos oitenta, e não se deixaram abater pela desmoralização. Este impulso consiste em imaginar que com a mesma estratégia, mas com homens e mulheres diferentes, seria possível replicar os êxitos do PT, evitando os seus erros, e obter um desenlace diferente. E existe o perigo oposto que pode ser também, muito atrativo, especialmente, para a geração mais jovem, que despertou para a luta de classes depois da eleição de Lula em 2002: desprezar as lições positivas da experiência do PT, como, por exemplo, a importância de um instrumento de organização dos trabalhadores para a luta política, inclusive quando a luta política se concentra em terreno desfavorável, como nas eleições. E apostar somente no espontaneísmo, ou na militância pela defesa de reivindicações imediatas. Houve algo de admirável, mas, também, perturbador, na verdade, desde o início, na história do PT. Para remeter ao vocabulário cunhado pela literatura, tivemos o momento epopeia, o momento tragédia e até o momento comédia na trajetória em que o petismo se transformou em lulismo.

CM – Como escolher entre o continuísmo e as rupturas?

Tudo o que existe se transforma. Existem continuidades e rupturas. Nem sempre, no entanto, predomina o que era mais progressivo. Muitas vezes, prevalece o que era mais regressivo. O que provocou mudanças sociais e políticas reacionárias nos partidos da classe trabalhadora, a se considerar os incontáveis exemplos históricos, foi o impacto das lutas políticas e sociais, das vitórias e das derrotas, ou seja, da pressão das outras classes. Quando as pressões socialmente hostis, oponentes, contrárias aos interesses dos trabalhadores foram extremamente poderosas, abriram-se crises nos partidos de origem proletária. Os partidos operários são muito mais vulneráveis à pressão das classes inimigas do que os partidos que representam as classes proprietárias. Porque o proletariado é uma classe ao mesmo tempo explorada, oprimida, e dominada. É completamente inusitado quando um filho da burguesia adere à causa do socialismo. Mas está longe de ser surpreendente que líderes da classe trabalhadora passem a defender os interesses dos patrões.

CM - Analise um pouco o livro do Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros. Você crê que ele chega a distorcer a realidade dos últimos anos de Trotsky no exílio, ao preencher, com a imaginação riquíssima, alguns episódios biográficos? Ou, ao contrário, é uma obra que serve de estimulo às novas gerações para pesquisá-lo?

O livro de Padura é um romance histórico que já nasceu como um clássico. É um livro, intelectualmente, honesto e, literariamente, brilhante. Não se deve esperar, porém, que um escritor escreva história. O grande valor de Padura é o de nos apresentar um Léon Trotsky honrado, incorruptível, digno e arrebatado pela luta pelo socialismo. Ramón Mercader nos é descrito como uma personalidade maníaca que só pode ser compreendida no contexto de uma família patologicamente enlouquecida, e nas circunstâncias abomináveis do regime stalinista, e das aberrações que promoveu em escala internacional. O melancólico Ivan, finalmente, é um sobrevivente nos marcos do regime cubano burocrático decadente.


* Autor do livro As esquinas perigosas da História - Situações revolucionárias em perspectiva marxista (2004, prefácio de César Benjamin), adaptação do último capítulo de sua tese de doutorado. Autor, também, de O encontro da revolução com a História (2007) e Um reformismo quase sem reformas (2011).


FONTE: Carta Maior





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