domingo, 28 de maio de 2017

Krupskaia, educadora e líder bolchevique


Por José Levino



Krupskaia
Não era apenas a esposa de Lênin. “Ela transmitia inabalável confiança, e a sua firmeza de espírito escondia uma rara modéstia, contaminava sempre com o seu ânimo todos aqueles que entravam em contato com a companheira do grande líder da Revolução de Outubro”, segundo testemunho de Alexandra Kollontai, outra líder bolchevique de primeira linha.

Nadezhda Konstantinovna Krupskaia nasceu em 26 de fevereiro de 1869, em São Petersburgo, capital do Império Russo e sua principal cidade industrial, filha de um oficial do Exército, Konstantin Krupski, e de uma professora, Elisabete Krupskaia. Apesar da origem nobre, a família era pobre; Konstantin não simpatizava com o regime czarista, chegando a ser processado sob acusação de boicotar ordens de superiores.

O pai comentava a exploração a que os operários eram submetidos nas fábricas. Krupskaia ficava revoltada e pensava que quando crescesse iria ajudar aqueles trabalhadores.

Tornou-se professora como a mãe. O pai faleceu quando ela ainda era muito jovem. Como a pensão era irrisória, ela e a genitora tiveram que trabalhar muito para sobreviver, mas Krupskaia arranjava tempo para dar aulas gratuitas aos filhos dos operários nos bairros populares. Nesse contato diário com os oprimidos, convenceu-se de que o tipo de ajuda que ela dava não era bastante. Era preciso mudar o sistema de exploração. Aos 21anos, conhece um círculo de estudos marxistas e se integra nele, começando aí sua militância revolucionária.

Casamento Revolucionário

Conheceu Lênin em 1893. Ele era um ano mais velho. Vinha de Kazan, onde concluíra Direito, estudara o marxismo e se integrara ao grupo revolucionário “Vontade do Povo”. Ora, se a classe operária era a única que poderia destruir o capitalismo, o lugar seria São Petersburgo, para onde se mudou. Krupskaia tornou-se sua secretária, companheira de estudos, auxiliava nas suas pesquisas e reflexões, além de estar sempre em contato direto com os operários. A ligação entre os dois foi se aprofundando e passaram a namorar; depois veio o casamento. Grande pensador e organizador que era Lênin, em pouco tempo havia em São Petersburgo 20 círculos de estudos do marxismo articulados na União de Luta pela Emancipação da Classe Operária. Era o germe do futuro Partido Bolchevique.

Lênin é preso em1895; Krupskaia, em 1896; ambos vão para o degredo na Sibéria, onde se casam. Trinta anos depois, escrevendo para um jornal, Krupskaia lembra: “Como renasce vivo diante de meus olhos aquele tempo de primitiva integridade e alegria de viver. Tudo parecia primitivo: a natureza, os cogumelos, a caça, o afetuoso círculo de amigos íntimos — faz precisamente 30 anos. Era em Minusinsk: passeios, canções, certa alegria ingênua comum. Em casa: mamãe, a economia doméstica primitiva, nossa vida, o trabalho em comum, as mesmas impressões e reações”. Mas foi um período de muito trabalho também em que colaborou com Lênin na escrita de obras como “O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia”, bem como no planejamento da organização de um partido revolucionário e de um jornal que fosse o instrumento de aglutinação dos militantes em toda a Rússia. Dessas ideias, nasceria a “Iskra” (Centelha).

Da Sibéria, seguem para o exílio na Europa, onde, além de sempre auxiliar Lênin nas pesquisas, secretaria o jornal, acompanhando a organização da rede de colaboradores, organiza o transporte de cada edição até a fronteira com a Rússia e também redige seus próprios escritos, como o folheto “A Mulher Operária”, no qual enfatiza que a mulher sofre exploração ainda maior que os homens no trabalho (salários mais baixos, desrespeito – hoje conhecido como assédio moral e sexual) e cumpre a dupla jornada, pois em casa os companheiros operários não aceitam dividir as tarefas domésticas.

Em 1905, voltam clandestinamente para a Rússia, tendo em vista o levante operário que eclodiu. Moravam separadamente, por razões de segurança. Ela era a secretária do Comitê Central do Partido, documentando, relatando, organizando. Escreve para o escritor revolucionário Máximo Gorki: “A organização caminha de vento em popa. Parece que só agora começa a formar-se um verdadeiro Partido operário”.

Ainda era o Partido Operário Socialdemocrata da Rússia (POSDR), mas as frações menchevique e bolchevique já se delineavam. Os bolcheviques se organizam como partido de novo tipo em 1912, ano da retomada do movimento operário russo, que fora derrotado no final de 1905, levando mais uma vez Lênin e Krupskaia para o exílio. A atividade revolucionária não para. Em 1913, colabora do exterior com a fundação de um jornal legal voltado para a mulher operária da Rússia, o “Rabótniza”.

Educando para construir o socialismo

O novo retorno só aconteceria em 1917, ano da Revolução. Eis as impressões de Krupskaia: “Quando, depois de muitos anos de desterro, voltei à Rússia, em abril de 1917, e cheguei a Petrogrado (São Petersburgo, na época), o movimento da juventude operária já tinha grande amplitude. Comecei a observá-lo atentamente, frequentando as reuniões juvenis. A onda revolucionária tinha se apoderado da juventude com uma força extraordinária; a juventude estava em ebulição, era atraída pela luta, pela nova vida”.

Nesse período, se instala no bairro operário de Viborg, onde desenvolve um trabalho de alfabetização de operários e de organização de sovietes.

Após a Revolução Bolchevique de outubro de 1917, é nomeada Comissária da Educação, desenvolvendo a adequação do ensino à nova sociedade, dentro dos seguintes princípios: “O governo operário e campesino, que resguarda o interesse das massas populares, deve eliminar o caráter de classe da escola, deve fazer a escola de todos os graus acessíveis para todos os setores da população e deve fazê-lo não em palavra, mas de fato. A instrução seguirá sendo privilégio classista da burguesia enquanto não se modifiquem os objetivos da escola. A população está interessada em que as escolas primárias, secundária e superior tenham um mesmo objetivo: educar indivíduos integralmente desenvolvidos, com instintos sociais conscientes e organizados, possuidores de uma visão de mundo refletiva e íntegra, que tenham clara compreensão de tudo o que ocorre ao seu redor na natureza e na vida social; indivíduos preparados na teoria e prática para todo o gênero de trabalho, tanto manual como intelectual, que visam a construir uma vida social razoável, abundante, formosa e alegre. Tais indivíduos fazem falta à sociedade socialista, sem eles não pode materializar-se cabalmente o socialismo”. (Contribuição ao tema da escola socialista – 1918). E não deixa de realizar sua grande paixão: criar jardins de infância, creches, escolas de crianças e pioneiros. Comenta com a mãe de um garoto: “Não sabes com que rapidez consigo ganhar a simpatia das crianças, sei brincar com elas de um modo que imediatamente começam a querer-me”.

Incansável até o último dia, esteve ao lado de Lênin até o fim, cuidando dele com zelo na doença que o abate de vez, em 1924. Discursa na homenagem fúnebre, dizendo do companheiro: “Seu coração pulsou com imenso carinho por todos os trabalhadores, por todos os oprimidos. Ele não o dizia nunca, nem eu o diria, noutro momento menos solene, e digo isto agora porque foi um sentimento que herdou do heróico movimento revolucionário russo. Ele queria que o Poder pertencesse aos trabalhadores. Compreendia que a classe operária precisava do Poder não para gozar uma boa vida à custa dos demais trabalhadores; compreendia que a missão histórica da classe operária consiste em libertar todos os oprimidos, todos os trabalhadores. Esta ideia fundamental imprimiu sua marca a toda a atividade de Vladimir Ilitch. Camaradas comunistas, levantai mais alto a bandeira que Lênin amara, a bandeira do comunismo!”.

E continuou seu trabalho educativo incessante sob o comando de Stálin: o trabalho escolar, os clubes e bibliotecas, os destacamentos de pioneiros, a literatura para a juventude e a infância, o estudo científico dos problemas de pedagogia, etc. Era membro do Comitê Central e deputada do Soviete Supremo.

8 de março é dia de luta

Durante o exílio, Krupskaia participou da organização da III Internacional Comunista e de várias conferências de mulheres, tendo sido, junto com Clara Zetkin (ver A Verdade, nº 134), uma das maiores incentivadoras da criação do Dia Internacional de Luta das Mulheres.

Depois da Revolução, o 8 de março passa a ser feriado na Rússia, como Dia de Luta das Mulheres, uma proposta da deputada Alexandra Kollontai, apoiada entusiasticamente por Krupskaia, que, como Comissária da Educação, incentivava a realização de atividades também nas outras datas comemorativas: Dia da Juventude, Dia da Constituição, Dia do Exército Vermelho, o 1º de Maio, o 7 de Novembro, etc.

No dia 26 de fevereiro de 1939, o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, o Conselho de Comissários do Povo, as organizações do Partido, os órgãos soviéticos e as organizações sociais celebraram o aniversário de 70 anos da grande lutadora pela causa do comunismo, dedicada e incansável companheira de vida e de luta de Lênin. Na madrugada do dia seguinte, 27 de fevereiro de 1939, falece Nadezhda Krupskaia.

Em 1977, a ONU oficializa o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher, que deixa de ser um dia de luta para ser apenas um dia de homenagens (muitas vezes falsas) e distribuição de rosas. Resgatar o 8 de março como Dia de Luta da Mulher trabalhadora é honrar a memória das grandes revolucionárias como Krupskaia e dar seguimento à verdadeira luta de libertação.


José Levino é historiador


(Figuras do Movimento Operário: Nadezhda Krupskaia, por C. Bobrovskaia, artigo traduzido e publicado pela revista Problemas, nº 27, junho de 1950.)


FONTE: A Verdade

sábado, 13 de maio de 2017

Em defesa do materialismo histórico (*)

Por Aluizio Moreira


Tornou-se bastante comum, sobretudo no meio acadêmico, decretar-se o fim ou a falência do materialismo histórico. Os argumentos são os seguintes:

- as mudanças ocorridas no chamado mundo comunista (fim da URSS, desagregação do Leste Europeu, queda do muro de Berlim), implicariam também no fim do pensamento marxista e obviamente, por consequência, do materialismo histórico como sua parte constitutiva; 

- o materialismo histórico é portador de uma visão linear da história, segundo a qual as sociedades desenvolvem-se sempre num mesmo sentido, passando por várias etapas, necessariamente sucessivas umas às outras. 

- o materialismo histórico é entendido exclusivamente como análise econômica das sociedades, a partir das categorias modos de produção, forças produtivas, relações de produção. 

Vejamos cada uma destas argumentações 

PRIMEIRO ARGUMENTO: MUDANÇAS NO MUNDO COMUNISTA = FIM DO MATERIALISMO HISTÓRICO.

É um argumento de uma pobreza indescritível. É como se comparativamente, a crise da democracia liberal a partir de 1920 que possibilitou o advento do nazi-fascismo na Europa, pusesse fim aos princípios do liberalismo.

Aos defensores dessa brilhante conclusão, falta um mínimo de compreensão da relação teoria/prática. Desconhecem por exemplo, um princípio elementar do materialismo histórico: a prática social, que como etapa final do processo do conhecimento, deverá confirmar ou não as conclusões e generalizações teóricas elaboradas pelo pensamento. 

Todo processo de conhecimento parte da contemplação/observação viva do real para o pensamento abstrato e   deste para a prática. Posto  em   execução   o   que existia  como   pensamento abstrato, o que irá confirmar ou refutar aquele pensamento é o experimento, no caso da história, não o experimento laboratorial, mas a prática social.

Constatando-se por essa prática sua não-correspondência com o pensamento abstrato, nada mais cientifico do que reformular o pensamento e consequentemente a prática ou vice-versa, sem que isso resulte no abandono das formulações teóricas essenciais.

A instituição do socialismo na ex-URSS, e demais países do socialismo real, seguiu esse processo: tratou-se de aplicar a uma realidade, o que existia ao nível do pensamento abstrato, construído paulatinamente a partir das primeiras críticas socialistas (e não socialistas, diga-se de passagem) à sociedade capitalista dos meados do século XIX, incluindo aqui os chamados precursores do marxismo, historicamente considerados socialistas utópicos. 

Evidentemente, até a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia em outubro de 1917, nenhuma experiência de uma sociedade socialista fora possível, a não ser a Comuna da Paris de 1871 que acenou para a possibilidade dos trabalhadores assumirem o poder, abolindo os privilégios da classe dominante na época. Por outro lado, tampouco encontrava-se à disposição dos revolucionários russos, qualquer receituário elaborado pelo pensamento socialista de como seria organizada tal sociedade, a não ser princípios gerais como: a) implantação  de novos tipos de relações de produção extinguindo a propriedade privada dos meios de produção; b) estabelecimento de um novo tipo de Estado que  representasse o controle hegemônico do poder político e do poder econômico pelos trabalhadores; c) possibilidade do livre acesso das pessoas aos conhecimentos e à cultura.

Esses preceitos a serem materializados, não foram criados de forma aleatória, mas tiveram por base a crítica de uma realidade econômico-social específica: a sociedade capitalista. A apreensão dessa realidade possibilitou ao nível do pensamento abstrato, formulações de uma práxis dentro do que permitia o pensamento socialista de então (início do século XX).

Mudanças foram empreendidas, mas a prática social, em muitos casos, revelou algumas inconsistências, ou seja, a prática social não correspondeu ao pensamento abstrato. Nessa situação, o que fazer? Reorientar a prática a partir das reformulações do pensamento abstrato. Não foi o que aconteceu na Rússia após a Revolução de Outubro de 1917, apesar das políticas de nacionalização e da extinção da propriedade privada dos meios de produção, impostas pelo Estado, vistas como fundamentais e urgentes para a implantação do socialismo. Os resultados apresentados mostraram-se bastante problemáticos para aquela nova sociedade. Os dirigentes soviéticos tiveram que recuar, permitindo a entrada do capital estrangeiro, a descentralização da economia e incentivo à participação do capital privado nacional de alguns setores das produção industrial. A adoção da Nova Economia Politica (NEP), dos planos quinquenais, se resolveram alguns daqueles problemas agravados pela 1ª Guerra Mundial, como o soerguimento da economia   como um todo, deixaram outros sem serem resolvidos e até mesmo novos problemas surgiram: a burocratização, a resistência ao estabelecimento do controle operário pelos Sovietes, a centralização do poder, o gigantismo do Estado, o persistente dilema produção de bens de consumo x produção de bens de produção, o déficit habitacional. . . tudo isso contribuiu para o pioramento da situação econômico-social e política na ex-URSS, culminando com as mudanças propostas pelo Governo Gorbatchev, no sentido de reorientar os rumos daquela sociedade em direção ao socialismo.

É verdade que essas crises não se limitaram à ex-URSS, Os demais países socialistas parece que de repente “descobriram” suas próprias crises, se bem de magnitudes diferentes.  

As crises são produtos de uma realidade sob determinadas circunstancias, não são criações das ideias. Como não são as ideias que criam as realidades. Assim não é pela decretação do fim das primeiras que  os problemas das segundas serão resolvidos. Afinal não foi o marxismo enquanto sistema de ideias que produziu  a sociedade socialista do passado, mas homens reais, viventes, com todas suas potencialidades e limitações, atuando num mundo real. Não tem sentido portanto, abominar a concepção materialista das história, porque determinada realidade foi vitimada por crises ou deixaram de existir. 

SEGUNDO ARGUMENTO: MATERIALISMO HISTÓRIO = VISÃO LINEAR DA HISTÓRIA

Não é de hoje que o materialismo histórico é acusado de transmitir uma visão linear da história. 

Inicialmente é necessário que entenda-se que o marxismo não deve ser visto como um sistema de ideias unívocas ou coletâneas de princípios invariáveis. Isso significa que não podemos considera-lo como um conjunto de ideias imutáveis nem como um repositório de ideias homótonas. Seria preciso que o marxismo não fosse dialético, nem refletisse um pensamento criador. A diversidade e a mutabilidade  das ideias dentro do marxismo são tão evidentes que basta ter um contato mais estreito com as produções de Kautski, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Bordiga, Gramsci, Miliband, Likacs, Goldman. . .

Não negamos que alguns marxistas deixem transparecer e até mesmo admitam uma visão linear da história, mas isso não nos autoriza considerar que o materialismo histórico, necessariamente indica essa concepção.

Muitos dos que atribuem esse viés de linearidade ao próprio Marx, referem-se quase sempre a essa passagem do Prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”: “Em caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade”

Ora, admitir que são ´”épocas progressivas”, não significa dizer que um modo de produção tenha sido sucedido e venha a suceder outros predeterminadamente, naquela ordem, ou que não tenha coexistido, mas é reconhecer que as forças produtivas em cada um desses modos se apresentam em níveis distintos de adiantamento umas em relações às outras, ou seja, a máquina a vapor só poderia ter surgido  com base no conhecimento cientifico e tecnológico atingido pela sociedade moderna capitalista e não no modo feudal de produção. Assim como o moinho equipado com eixo dentado é próprio da sociedade feudal e jamais teria existido sob o modo antigo ou comunal primitivo. 

No Prefácio à edição russa do “Manifesto do Partido Comunista” em 1882, Marx, após considerar como “iminente e inevitável”  o desaparecimento “da moderna propriedade burguesa”, referindo-se à Europa, se detém no caso da Rússia czarista admitindo o florescimento do capitalismo e da “propriedade territorial burguesa.”, observando que mais da metade das terras era possuída em comum pelos camponeses, e sem querer prognosticar as transformações futuras pelas quais passaria aquele pais, refere-se à possibilidade da Comuna Rural passar diretamente “a uma das mais alta forma comunista da  propriedade fundiária”, ou seguir “o mesmo processo de dissolução que encontra sua expressão” na história do Ocidente. Ou seja, enquanto no Ocidente europeu da destruição da propriedade comunal da terra na fase de transição foi uma das pré-condições para o estabelecimento do capitalismo, na Rússia, Marx não descartava a possibilidade da passagem da sociedade ainda feudal para a comunista, ou  seguir o modelo europeu.

Bastante significativa é a abordagem feita no volume 2, Tomo I, Capitulo XXV d”O Capital” no qual o filosofo alemão trata da “Teoria Moderna da Colonização”. Após reconhecer a situação colonial dos Estados Unidos na época em que o capitalismo tinha se estabelecido na Europa Ocidental, comenta a forma escravista moderna da produção econômica naquele país americano, e aponta os obstáculos para o avanço do capitalismo naquela formação social. Não há qualquer referencia a uma possível fase comunal primitiva antecedendo o escravismo da época colonial, nem tampouco faz intermediar um período feudal necessário entre aquele escravismo  a produção capitalista que se descortinava. Mostra inclusive como o processo de acumulação originária do capital nos Estados Unidos dar-se-ia de forma diferente da que se processou na Europa, sobretudo na chamada “mãe pátria”.

TERCEIRO ARGUMENTO: MATERIALISMO HISTÓRICO = ANÁLISE ECONOMICA

Tão ferrenha quanto a crítica ao materialismo histórico como visão linear da história, é a que o concebe como análise exclusivamente econômica da sociedade.

André Piettre comete o absurdo de definir o materialismo histórico como sendo “ao mesmo tempo uma visão econômica da história e uma visão histórica da economia”. Mas ao lado dos que explicitamente assim o conceituam, há os que mesmo sem considera-lo como tal, ao discorrerem sobre o materialismo histórico, implicitamente deixam transparecer essa visão, pois reduzem suas análises exatamente aos elementos econômicos sem nenhuma referência aos elementos extra-econômicos, como se esses últimos não fizessem parte da concepção materialista da história. 

Engels em carta a Bloch, escrita em setembro de 1890, assim expõe o materialismo histórico:

A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes, e seus resultados, as constituições que uma vez vencida uma batalha a classe triunfante redige etc., as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro  dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se  num sistema de dogmas – também exercem  sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante. 

Para Engels, se não houvesse essa inter-relação entre os níveis econômicos, políticos, jurídicos, filosóficos, mas apenas os fatores econômicos, analisar a história “seria mais fácil que resolver uma simples equação de primeiro grau”. 

Giorgui Plekhanov, egresso do movimento narodnik (movimento camponês na Rússia), um dos introdutores do marxismo na Rússia nos finais do século XIX, também rebateu as críticas feitas ao materialismo histórico por sua suposta predominância dos fatores econômicos. Menciona na sua obra “Concepção Materialista da História”, como elementos dessa concepção, além da economia, o direito, o regime estatal, a arte, a ciência, a psicologia social, a literatura, os ritos simbólicos. . . isso escrito em 1895. 

De onde os falsificadores do materialismo histórico tiraram essa ideia de reduzir a sociedade humana ao econômico? Pelo menos na literatura marxista em princípio isso não está presente. Sobretudo entre os clássicos.
 
OBRAS CONSULTADAS

BERBECHKINA, A. et al. Que é o Materialismo Histórico? Trad. I. Chalaguina, Moscou: Progresso, 1987.
BUKHARIN, Nikolai. Tratado de Materialismo Histórico. Trad. Edgard Carone. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, s/d
HARNECKER, Marta. Conceitos fundamentais do Materialismo Histórico. São Paulo: Global, 1981.
MARX, Karl. Contribuição da Economia Política. Trad. Maria Helena B. Alves. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
_________. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d. 3 vols.
MARX, Karl; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, Petrópolis: Vozes, 1988.
PIETTRRE, Andre. Marxismo.. Trad. Paulo Mendes Campos, Waltensir Dutra e Maria da Glória Ribeiro da Silva, Rio de Janeiro: Zahar, 19969.
PLEKHANOV, G. A concepção Materialistas da História. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.







(*) Este artigo foi publicado originalmente sob o título "Materialismo histórico: visão econômica da História ou visão Histórica da Economia?", Campina Grande-PB, REVISTA ARIÚS,  1995, v. 6, p.5-12

terça-feira, 9 de maio de 2017

Revolução Russa: assim tudo começou




Manifestação de mulheres grevistas, em 8 de Março de 1917. Movimento foi
 um dos estopins da revolução de fevereiro,  que em outubro 
iria se tornar anti-capitalista

Reconstituição histórica: como foram as semanas frenéticas que levaram, há cem anos, ao colapso do poder burguês na Rússia e ao primeiro governo anticapitalista da História

Por Eduardo Mancuso

Em fevereiro de 1917 na Rússia, em plena guerra mundial, o regime czarista da secular dinastia Romanov é derrubado por um amplo levante de massas. Alguns meses mais tarde, em outubro (as revoluções russas de março e novembro ocorreram, pelo calendário adotado pelo antigo regime, duas semanas antes, e assim ficaram conhecidas), apoiado na mobilização popular e nos sovietes (conselhos) de operários, soldados e camponeses que tomam todo o país, os bolcheviques liderados por Lenin e Trotsky conquistam o poder. Pela primeira vez na história, desde a radicalmente democrática Comuna de Paris ser afogada em sangue pela reação burguesa, uma revolução vitoriosa dava início à construção de uma sociedade socialista. A barbárie imperialista da Primeira Guerra Mundial havia aberto uma nova época, a era da atualidade da revolução. Começava um novo capítulo da modernidade. O século XX iniciava.
A revolução de fevereiro
A miséria gerada pela guerra e pelo inverno de 1916-1917 faz a insurreição contra o regime do czar Nicolau II explodir em fevereiro. A marcha do Dia Internacional das Mulheres deflagra a greve das trabalhadoras na indústria textil, que se estende rapidamente ao conjunto do proletariado de Petrogrado (hoje São Petesburgo), capital da monarquia imperial russa. Em poucos dias, a greve de massas transforma-se em insurreição, com os gritos de “Pão”, “Paz” e “Abaixo o Czar”, e a passagem da guarnição militar para o lado dos revolucionários. Os trabalhadores redescobrem a auto-organização e o duplo poder: resgatam a experiência da revolução de 1905, com a formação de “sovietes” (conselhos) nas fábricas e nos bairros, e a organização de uma milícia operária (a “guarda vermelha”). Na frente de batalha, os soldados elegem seus comitês e questionam os oficiais de um exército que começa a se decompor, enquanto o campesinato inicia uma verdadeira revolução agrária no campo. O aparato do Estado e a base social do regime entram em colapso.
A dualidade de poder
Entre fevereiro e outubro de 1917 a Rússia vive uma explosão social e um processo de radicalização democrática impensável sob uma autocracia, algo inédito em termos mundiais: uma situação de dualidade de poder entre “os de baixo” e “os de cima”. De um lado, estava o chamado governo provisório, que sucede o regime do czar deposto. Constituído por liberais e reformistas moderados, ele mantém a aliança com as potências imperialistas e prossegue com o esforço de guerra. De outro, estavam as massas populares das cidades e do campo, com a sua vanguarda de representantes eleitos nos conselhos, exasperadas com a situação paradoxal de terem derrubado o regime em nome de “paz, pão e terra”, e nada disso se materializar na vida real. A resposta a esse paradoxo estava na hegemonia política no interior dos sovietes. Eram os setores social-democratas moderados (mencheviques) e os socialistas-revolucionários (populistas) que tinham maioria. A ala revolucionária, composta pelos bolcheviques e os socialistas-revolucionários de esquerda, era minoritária entre os representantes eleitos nos sovietes.
A partir de maio, com a evolução da crise, o agravamento da fome e as derrotas militares, os partidos reformistas, majoritários nos sovietes, integram-se ao governo provisório. Passam então, de apoiadores críticos a colaboradores diretos da ordem, e tentam frear a radicalização do movimento revolucionário, acumulando desgate e perda de credibilidade com a base social. Os bolcheviques crescem em influência defendendo a jornada de 8 horas e o controle operário nas fábricas. No início de junho, realiza-se o Primeiro Congresso de Deputados Operários e Soldados, com mais de 1000 delegados eleitos por 20 milhões de pessoas. O Congresso dos Sovietes reúne uma ampla maioria de representantes moderados do partido populista, dos mencheviques e de socialistas independentes. Os bolcheviques têm apenas 10% dos delegados. Logo após, o Soviete se reagrupa com o Congresso Pan-Russo dos Camponeses, onde os populistas possuem uma esmagadora maioria. Nesse contexto de crise e de crescimento do descontentamento popular, o governo provisório desmoraliza-se rapidamente, e avança a consigna política defendida pelos bolcheviques: “Todo o poder aos sovietes”.
Revolução e contra-revolução
A nova relação de forças leva ao choque entre revolução e contra-revolução nas “jornadas de julho”. Kerensky, um trabalhista moderado, assume a direção do governo provisório como primeiro-ministro, restaura a pena de morte, dissolve os regimentos insurretos e designa o general Kornilov comandante do Estado-Maior. Apesar da repressão, os bolcheviques avançam em influência na classe operária e no exército. Em agosto, o general Kornilov deflagra uma tentativa de golpe de Estado, mas em poucos dias é derrotado, graças à resistência armada dos sovietes de Petrogrado, já sob a liderança bolchevique. Assim, no começo de setembro, o pêndulo da política oscila radicalmente. O partido bolchevique (com Lênin na clandestinidade, na Finlândia) torna-se majoritário nos sovietes de Petrogrado e Moscou. A dinâmica revolucionária impõe seu ritmo vertiginoso e a direção bolchevique enfrenta uma divisão sobre a estratégia a ser adotada: de um lado, Lênin e a maioria, partidários da preparação imediata da insurreição e da tomada do poder; de outro, Zinoviev e Kamenev, contrários à linha insurrecional. Convocado o Congresso Nacional dos Sovietes de Operários, Soldados e Camponeses de toda a Rússia, o Comitê Militar Revolucionário do Soviete de Petrogrado, comandado por Trotsky, inicia a preparação da insurreição. Quando o Congresso dos Sovietes se reúne na capital, em outubro, a revolução já é vitoriosa e o governo provisório não existe mais. A hegemonia do país e dos sovietes havia mudado radicalmente: dos 650 delegados do Congresso, o bloco reformista, antes majoritário, agora tem menos de 100 representantes, enquanto os bolcheviques somam quase 400, aos quais agregam-se os socialistas-revolucionários de esquerda. O Congresso dos Sovietes elege o primeiro governo dos trabalhadores, liderado por Lênin, que anuncia os decretos sobre a paz imediata e sobre a distribuição de terras, e declara: “Iniciamos a construção da nova ordem socialista”.
Após a incruenta e rápida tomada do poder em outubro, devido ao total colapso do governo provisório e do próprio Estado, o poder dos sovietes enfrenta um duríssimo acordo de paz com a Alemanha, sendo obrigado a ceder grande parte do território russo para evitar a ofensiva final do exército imperial germânico no início de 1918. Território recuperado alguns meses mais tarde, após a derrota alemã frente às potências ocidentais. Depois de encerrarem vitoriosamente a guerra, as potências imperialistas atacam a Rússia Soviética com tropas e fornecem apoio às forças russas da contra-revolução, os “exércitos brancos”, impondo uma guerra civil que se desenvolve entre 1918 e 1921, e que termina por destruir completamente o país, já exaurido pela guerra mundial. A guerra civil se conclui com a vitória do Exército Vermelho.
A vitória da revolução socialista na Rússia em 1917 desperta grandes expectativas entre as massas trabalhadoras da Europa, e inspira uma onda revolucionária em vários países, principalmente na Alemanha e Hungria, mas que termina sendo derrotada pelos governos imperialistas (com a colaboração decisiva dos partidos social-democratas). Na jovem União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sete anos de guerra ininterrupta provocam um desastre econômico, social e humano indescritível. Totalmente isolada internacionalmente, destruída materialmente, com suas grandes cidades despovoadas e o povo literalmente esfomeado, a Rússia e o seu Estado dos trabalhadores resistem bravamente aos ataques imperialistas e a guerra civil, mas tanto a democracia dos sovietes como a construção da nova ordem socialista estão irremediavelmente comprometidas.
O ciclo revolucionário de 1917-1923 é derrotado e seguido por um curto período de estabilização do capitalismo, após a carnificina imperialista da guerra (mais de 10 milhões de mortos). Porém, logo a crise mundial retorna com o crash da bolsa de Nova York em 1929 e o início da Grande Depressão, que vai provocar a ascensão do nazismo na Alemanha, e desemboca na maior barbárie da modernidade: a Segunda Guerra Mundial (mais de 50 milhões de mortos). Na URSS, em um contexto de reconstrução do país e de isolamento internacional, e após a morte de Lenin (janeiro de 1924), a situação política, social e econômica favorece a emergência de um regime burocrático e autoritário, frente à diminuição física da classe operária, ao esgotamento das energias sociais dos sovietes e à fusão do partido bolchevique com o aparelho de Estado, sob a direção impiedosa de Stalin. Ao final da década de 1920, Trotsky, já expulso do partido e da própria URSS, caracteriza a situação, passada uma década da vitória de Outubro, em seu livro A Revolução Desfigurada. Finalmente, após o regime stalinista consolidar-se, deflagrar a violência inaudita da coletivização forçada no campo, destruir fisicamente a direção leninista e o próprio Partido Bolchevique, através dos trágicos Processos de Moscou, em meados dos anos 1930, Trotsky declara a Revolução Traída — título de sua obra clássica. Um século depois, a degeneração burocrática da Revolução Russa não apagou a utopia emancipatória do Outubro vermelho de 1917. No centenário da Revolução de Outubro e em plena crise de civilização capitalista, a atualidade dessa utopia continua viva.