Manifestação de mulheres grevistas, em 8 de Março de 1917. Movimento foi
um dos estopins da revolução de fevereiro, que em outubro
iria se tornar anti-capitalista
um dos estopins da revolução de fevereiro, que em outubro
iria se tornar anti-capitalista
Reconstituição
histórica: como foram as semanas frenéticas que levaram, há cem anos, ao
colapso do poder burguês na Rússia e ao primeiro governo anticapitalista da
História
Por Eduardo
Mancuso
Em fevereiro de
1917 na Rússia, em plena guerra mundial, o regime czarista da secular dinastia
Romanov é derrubado por um amplo levante de massas. Alguns meses mais tarde, em
outubro (as revoluções russas de março e novembro ocorreram, pelo calendário
adotado pelo antigo regime, duas semanas antes, e assim ficaram conhecidas),
apoiado na mobilização popular e nos sovietes (conselhos) de operários,
soldados e camponeses que tomam todo o país, os bolcheviques liderados por
Lenin e Trotsky conquistam o poder. Pela primeira vez na história, desde a
radicalmente democrática Comuna de Paris ser afogada em sangue pela reação
burguesa, uma revolução vitoriosa dava início à construção de uma sociedade
socialista. A barbárie imperialista da Primeira Guerra Mundial havia aberto uma
nova época, a era da atualidade da revolução. Começava um novo capítulo da
modernidade. O século XX iniciava.
A revolução de
fevereiro
A miséria gerada
pela guerra e pelo inverno de 1916-1917 faz a insurreição contra o regime do
czar Nicolau II explodir em fevereiro. A marcha do Dia Internacional das
Mulheres deflagra a greve das trabalhadoras na indústria textil, que se estende
rapidamente ao conjunto do proletariado de Petrogrado (hoje São Petesburgo),
capital da monarquia imperial russa. Em poucos dias, a greve de massas
transforma-se em insurreição, com os gritos de “Pão”, “Paz” e “Abaixo o Czar”,
e a passagem da guarnição militar para o lado dos revolucionários. Os
trabalhadores redescobrem a auto-organização e o duplo poder: resgatam a
experiência da revolução de 1905, com a formação de “sovietes” (conselhos) nas
fábricas e nos bairros, e a organização de uma milícia operária (a “guarda
vermelha”). Na frente de batalha, os soldados elegem seus comitês e questionam
os oficiais de um exército que começa a se decompor, enquanto o campesinato
inicia uma verdadeira revolução agrária no campo. O aparato do Estado e a base
social do regime entram em colapso.
A dualidade de
poder
Entre fevereiro e
outubro de 1917 a Rússia vive uma explosão social e um processo de
radicalização democrática impensável sob uma autocracia, algo inédito em termos
mundiais: uma situação de dualidade de poder entre “os de baixo” e “os de
cima”. De um lado, estava o chamado governo provisório, que sucede o regime do
czar deposto. Constituído por liberais e reformistas moderados, ele mantém a
aliança com as potências imperialistas e prossegue com o esforço de guerra. De
outro, estavam as massas populares das cidades e do campo, com a sua vanguarda
de representantes eleitos nos conselhos, exasperadas com a situação paradoxal
de terem derrubado o regime em nome de “paz, pão e terra”, e nada disso se
materializar na vida real. A resposta a esse paradoxo estava na hegemonia
política no interior dos sovietes. Eram os setores social-democratas moderados
(mencheviques) e os socialistas-revolucionários (populistas) que tinham maioria.
A ala revolucionária, composta pelos bolcheviques e os
socialistas-revolucionários de esquerda, era minoritária entre os
representantes eleitos nos sovietes.
A partir de maio,
com a evolução da crise, o agravamento da fome e as derrotas militares, os partidos
reformistas, majoritários nos sovietes, integram-se ao governo provisório.
Passam então, de apoiadores críticos a colaboradores diretos da ordem, e tentam
frear a radicalização do movimento revolucionário, acumulando desgate e perda
de credibilidade com a base social. Os bolcheviques crescem em influência
defendendo a jornada de 8 horas e o controle operário nas fábricas. No início
de junho, realiza-se o Primeiro Congresso de Deputados Operários e Soldados,
com mais de 1000 delegados eleitos por 20 milhões de pessoas. O Congresso dos
Sovietes reúne uma ampla maioria de representantes moderados do partido
populista, dos mencheviques e de socialistas independentes. Os bolcheviques têm
apenas 10% dos delegados. Logo após, o Soviete se reagrupa com o Congresso
Pan-Russo dos Camponeses, onde os populistas possuem uma esmagadora maioria.
Nesse contexto de crise e de crescimento do descontentamento popular, o governo
provisório desmoraliza-se rapidamente, e avança a consigna política defendida
pelos bolcheviques: “Todo o poder aos sovietes”.
Revolução e
contra-revolução
A nova relação de
forças leva ao choque entre revolução e contra-revolução nas “jornadas de
julho”. Kerensky, um trabalhista moderado, assume a direção do governo
provisório como primeiro-ministro, restaura a pena de morte, dissolve os
regimentos insurretos e designa o general Kornilov comandante do Estado-Maior.
Apesar da repressão, os bolcheviques avançam em influência na classe operária e
no exército. Em agosto, o general Kornilov deflagra uma tentativa de golpe de
Estado, mas em poucos dias é derrotado, graças à resistência armada dos
sovietes de Petrogrado, já sob a liderança bolchevique. Assim, no começo de
setembro, o pêndulo da política oscila radicalmente. O partido bolchevique (com
Lênin na clandestinidade, na Finlândia) torna-se majoritário nos sovietes de
Petrogrado e Moscou. A dinâmica revolucionária impõe seu ritmo vertiginoso e a
direção bolchevique enfrenta uma divisão sobre a estratégia a ser adotada: de
um lado, Lênin e a maioria, partidários da preparação imediata da insurreição e
da tomada do poder; de outro, Zinoviev e Kamenev, contrários à linha
insurrecional. Convocado o Congresso Nacional dos Sovietes de Operários,
Soldados e Camponeses de toda a Rússia, o Comitê Militar Revolucionário do
Soviete de Petrogrado, comandado por Trotsky, inicia a preparação da
insurreição. Quando o Congresso dos Sovietes se reúne na capital, em outubro, a
revolução já é vitoriosa e o governo provisório não existe mais. A hegemonia do
país e dos sovietes havia mudado radicalmente: dos 650 delegados do Congresso,
o bloco reformista, antes majoritário, agora tem menos de 100 representantes,
enquanto os bolcheviques somam quase 400, aos quais agregam-se os
socialistas-revolucionários de esquerda. O Congresso dos Sovietes elege o
primeiro governo dos trabalhadores, liderado por Lênin, que anuncia os decretos
sobre a paz imediata e sobre a distribuição de terras, e declara: “Iniciamos a
construção da nova ordem socialista”.
Após a incruenta e
rápida tomada do poder em outubro, devido ao total colapso do governo
provisório e do próprio Estado, o poder dos sovietes enfrenta um duríssimo
acordo de paz com a Alemanha, sendo obrigado a ceder grande parte do território
russo para evitar a ofensiva final do exército imperial germânico no início de
1918. Território recuperado alguns meses mais tarde, após a derrota alemã
frente às potências ocidentais. Depois de encerrarem vitoriosamente a guerra,
as potências imperialistas atacam a Rússia Soviética com tropas e fornecem
apoio às forças russas da contra-revolução, os “exércitos brancos”, impondo uma
guerra civil que se desenvolve entre 1918 e 1921, e que termina por destruir
completamente o país, já exaurido pela guerra mundial. A guerra civil se
conclui com a vitória do Exército Vermelho.
A vitória da
revolução socialista na Rússia em 1917 desperta grandes expectativas entre as
massas trabalhadoras da Europa, e inspira uma onda revolucionária em vários
países, principalmente na Alemanha e Hungria, mas que termina sendo derrotada
pelos governos imperialistas (com a colaboração decisiva dos partidos
social-democratas). Na jovem União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sete
anos de guerra ininterrupta provocam um desastre econômico, social e humano
indescritível. Totalmente isolada internacionalmente, destruída materialmente,
com suas grandes cidades despovoadas e o povo literalmente esfomeado, a Rússia
e o seu Estado dos trabalhadores resistem bravamente aos ataques imperialistas
e a guerra civil, mas tanto a democracia dos sovietes como a construção da nova
ordem socialista estão irremediavelmente comprometidas.
O ciclo revolucionário de 1917-1923 é
derrotado e seguido por um curto período de estabilização do capitalismo, após
a carnificina imperialista da guerra (mais de 10 milhões de mortos). Porém,
logo a crise mundial retorna com o crash da bolsa de Nova York em 1929 e o
início da Grande Depressão, que vai provocar a ascensão do nazismo na Alemanha,
e desemboca na maior barbárie da modernidade: a Segunda Guerra Mundial (mais de
50 milhões de mortos). Na URSS, em um contexto de reconstrução do país e de
isolamento internacional, e após a morte de Lenin (janeiro de 1924), a situação
política, social e econômica favorece a emergência de um regime burocrático e
autoritário, frente à diminuição física da classe operária, ao esgotamento das
energias sociais dos sovietes e à fusão do partido bolchevique com o aparelho
de Estado, sob a direção impiedosa de Stalin. Ao final da década de 1920,
Trotsky, já expulso do partido e da própria URSS, caracteriza a situação,
passada uma década da vitória de Outubro, em seu livro A Revolução
Desfigurada. Finalmente, após o regime stalinista consolidar-se, deflagrar
a violência inaudita da coletivização forçada no campo, destruir fisicamente a
direção leninista e o próprio Partido Bolchevique, através dos trágicos
Processos de Moscou, em meados dos anos 1930, Trotsky declara a Revolução
Traída — título de sua obra clássica. Um século depois, a degeneração
burocrática da Revolução Russa não apagou a utopia emancipatória do Outubro
vermelho de 1917. No centenário da Revolução de Outubro e em plena crise de
civilização capitalista, a atualidade dessa utopia continua viva.
FONTE: Outras Palavras
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