Uma nova biografia (agora em quadrinhos) destaca a revolucionária que defendeu a liberdade com paixão, criticou a esquerda endurecida, viu potência no feminismo e nos índios e entregou-se ao amor, ao sexo e à arte.
Por Isabel Loureiro * | Tradução: Mauro Lopes
Por que em um momento de derrota da esquerda na América Latina e em todo o mundo ainda falamos de Rosa Luxemburgo? O que fez essa revolucionária judia-polaca-alemã para que, cem anos depois de seu assassinato, em janeiro de 1919, suas ideias ainda nos interpelem?
Ainda que brevemente é preciso dizer que Rosa militou durante 20 anos na social-democracia da Polônia (SDKPiL) e na social-democracia da Alemanha; polemizou toda a vida com Lênin; participou ativamente da revolução russa de 1905; foi a única mulher a ser professora de Economia Política na Escola do SPD (Partido Social-Democrata Alemão); junto com seus pares da ala esquerda do SPD, fundou a Liga Spartakus –nome em homenagem ao gladiador de origem trácia que liderou uma revolta de massas na Roma antiga; passou toda a guerra na prisão, onde escreveu cartas de tom lírico a seus amigos e amores; saiu da prisão em novembro de 1918 e se converteu em líder da revolução alemã; em fins de dezembro de 1918 tornou-se uma das cofundadoras do KPD (Partido Comunista da Alemanha); foi assassinada em 15 de janeiro de 1919 por tropas paramilitares, os Freikorps, precursores dos nazistas. Seus assassinos tiveram penas leves e viveram tranquilamente na Alemanha nazista.
A recepção a suas ideias no século XX foi muito controvertida. Em vida, Rosa sofreu seguidos ataques machistas de seus companheiros de partido, que tinham medo de sua língua mordaz e de sua liberdade de espírito. Referiam-se a ela como “materialista histérica” ou “cadela venenosa, porém brilhante” (Víctor Adler); quando foi nomeada redatora chefe de um importante jornal social-democrata, enfrentou uma quase rebelião dos colegas jornalistas que duvidavam de sua competência, pelo fato de ser mulher; os conservadores alemães chamavam-na de “porca judia”; na Polônia, sua terra natal, é odiada até hoje; em 2001, quando a prefeitura de esquerda de Berlim propôs a construção de um monumento em sua homenagem, houve uma verdadeira chuva de críticas na imprensa e ataques de cunho machista, embora de maneira mais sutil: ela nunca recebeu uma proposta de casamento de seus amantes e nunca teve filhos, que era um desejo explícito. Quem questionaria um homem dessa maneira, revolvendo sua vida privada?
Além das críticas machistas, existiam aquelas de caráter político, que começaram com Lênin, continuaram no âmbito do KPD – Partido Comunista da Alemanha – e chegaram ao paroxismo com o stalinismo, que procurou extirpar sua memória do campo da esquerda. Um dirigente do KPD, disse em 1932, abertamente: “Em todas as questões nas quais RL tinha uma concepção diferente da de Lênin, ela estava errada.” Porém, a tentativa de matar sua memória foi em vão.
Rosa sobreviveu subterraneamente, até ser redescoberta nos anos 1970 quando suas obras completas começaram a ser publicadas na República Democrática Alemã: escritos políticos, teóricos e cartas.
É um fato: Rosa sempre reaparece em momentos de crise da esquerda. Isso aconteceu no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial; na Europa, durante a rebelião de 1968; no movimento Occupy; no Brasil novamente no ano passado, durante o movimento de ocupações das escolas, quando voltamos a viver um “momento Rosa Luxemburgo”. Por que isso acontece?
Vejamos rapidamente algumas de suas ideias políticas para entender: a defesa intransigente das liberdades democráticas em todas as sociedades e em todos os tempos; a crítica incisiva à concepção de um partido de vanguarda formado por um núcleo duro de revolucionários profissionais separados das bases, cuja função seria liderar as massas populares que, por sua vez, limitar-se-iam a obedecer ao comando superior; a defesa incondicional da formação política e intelectual das classes subalternas, que ela via como pré-requisito para sua autonomia política; e, finalmente, uma ideia que está na ordem do dia, a da espontaneidade das massas populares. Ou seja, a ideia de que as camadas subalternas da sociedade entram em movimento independentemente das palavras de ordem dadas por líderes partidários ou sindicais e que a organização se estrutura a partir da própria luta, cotidiana e/ou revolucionária. Mas Rosa também sabia que a espontaneidade sozinha não resolve tudo, que o trabalho organizativo é fundamental para estruturar as explosões de energia que brilham esporadicamente no céu cinzento da vida cotidiana.
Para dizer em poucas palavras, penso que o mais atraente para um leitor contemporâneo no pensamento de Rosa Luxemburgo é sua defesa apaixonada da liberdade, tanto pública como individual. Para Rosa, não existe sociedade livre sem indivíduos livres, conscientes, não manipulados, seja por líderes políticos, pelas mídias, pela propaganda, ou, no plano individual, por suas paixões e fantasmas.
Rosa é filha da Aufklärung (iluminismo), como todo o marxismo. Esse era seu mundo e seu limite. Porém, em que pese o fato de hoje sabermos que não bastam declarações racionalizadas, creio que ela tinha razão em acreditar que não existe a possibilidade de virar a página sem a iniciativa e a participação consciente dos debaixo, dos que mais sofrem com a desigualdade econômica, social e política engendrada pelo capitalismo.
Há igualmente outra ideia de Rosa que nos atrai até hoje e que aparece no ensaio A crise da social-democracia (1916). Neste amargo balanço do processo de decomposição da social-democracia alemã – que culminou com a aprovação dos créditos de guerra pela bancada do SPD em 4 de agosto de 1914 –, Rosa colocou em questão pela primeira vez o ingênuo conceito de progresso, típico da II Internacional. Para os socialistas hegemônicos da época, essa ideia traduzia-se na crença de que o socialismo resultaria, cedo ou tarde, das contradições imanentes ao modo de produção capitalista. No ensaio, um de seus melhores, Rosa pôs na ordem do dia a famosa consigna socialismo ou barbárie, dando a entender que o socialismo não era mais uma garantia mas uma aposta. E essa aposta só pode ser vencida si houver o compromisso ativo das classes subalternas, aqui e agora, contra a barbárie. Esta é a interpretação Michael Löwy, com que estou totalmente de acordo.
Também é digna de nota sua obra de economia política na qual apresenta elementos de uma visão terceiromundista que é muito frutífera para a América Latina. Segundo Rosa, a acumulação do capital, para além da apropriação da mais valia, só foi e é possível com o intercâmbio entre economias capitalistas e não capitalistas. Tal intercâmbio continua até hoje e é uma descrição válida do processo de desenvolvimento histórico do capitalismo como processo global e, consequentemente, uma boa descrição da destruição violenta das culturas e dos espaços não capitalistas. Tal processo violento de acumulação primitiva permanente (acumulação por expropriação, para Harvey), além dos métodos tradicionais de expropiação territorial, consiste também na conversão de antigos direitos em mercadorias.
Rosa enfatizou a violência com que as culturas primitivas foram e são aniquiladas pelo colonizador e substituídas pela economia de mercado. Isso não significou nem significa progresso em relação ao período anterior, mas tão somente a ruína econômica e cultural dos povos originários. Diferentemente de uma concepção iluminista do progresso, segundo a qual a violência capitalista é vista como um mal “necessário” no caminho até o socialismo, Rosa acreditava que os povos originários poderiam (e podem) ensinar aos “civilizados” formas mais igualitárias de sociabilidade, não predadoras, determinadas pelos interesses da coletividade.
Rosa Luxemburgo, que era polonesa – ou seja, periférica na Europa dos princípio do século XX – teve insights (que não desenvolveu) que apontavam para uma concepção de história distinta do marxismo ortodoxo de seu tempo, caracterizada por una fé ingênua no desenvolvimento das forças produtivas. As populações tradicionais da América Latina, em busca de um modelo de desenvolvimento crítico ao modelo de civilização oriundo da Revolução Industrial, fundado na dicotomia entre pobres e ricos e na destruição da naturaleza, podem ter em Rosa Luxemburgo uma fonte de inspiração.
Por fim, Rosa é uma referência para as feministas; basta pensar no funcionamento interno das organizações políticas e dos movimentos, onde imperam a hierarquia, o centralismo, a rigidez, a burocracia, tudo o que Rosa questionava. Além de construir-se como mulher independente, que atuou no espaço público, ela também questionou a sujeição das mulheres ao isolamento da vida privada, à submissão aos homens, ou seja, questionou o patriarcado, que é inseparável do capitalismo.
A Editora Martins Fontes acaba de publicar a tradução do original inglês de una biografia-historieta de Rosa Luxemburgo –Red Rosa/Rosa Vermelha–, que enfatiza a Rosa feminista. De autoria de Kate Evans, esta biografia apresenta-nos uma mulher que, além da dedicação apaixonada à militância e à revolução, entregou-se de corpo e alma aos prazeres da vida, ao amor, ao sexo, à natureza, à pintura, à música, à literatura. A autora apresenta-nos também una professora talentosa, que sabia explicar didaticamente aos estudantes (adultos que frequentavam a Escola do Partido) os conteúdos mais complexos da economia política. Tudo coroado por uma escrita plena de vivacidade, de ironia, palavras espirituosas, um texto pleno de lirismo, como demonstram as cartas da prisão.
Há algo maravilhoso nessa biografia escrita por una mulher jovem e não especializada na obra de Rosa Luxemburgo: revela a proximidade entre essa revolucionária que viveu na virada do século XIX para o XX é nós, no século XXI; uma proximidade que deriva em parte de sua intensa relação com a vida, com todo o vivente. Esse é um traço muito forte de sua personalidade, que a levou a opor-se a tudo o que é rígido, inflexível, mecânico; em uma palavra, burocrático. Quando, por exemplo, criticou Lênin, Rosa disse que sua concepção de partido e de revolução era mecânica. Rosa apreciava a metáfora da vida em contraposição às de fundo mecânico.
Escreveu Rosa: “Só a vida sem obstáculos, efervescente, leva a milhares de novas formas e improvisações, traz à luz a força criadora, corrige os caminhos equivocados. A vida pública em países com liberdade limitada está sempre tão golpeada pela pobreza, é tão miserável, tão rígida, tão estéril, precisamente porque, ao excluir-se a democracia, fecham-se as fontes vivas de toda riqueza e progresso espirituais.” (A revolução russa).
Rosa criticava os bolcheviques porque, ao fechar a Assembleia Constituinte, não permitiram que as camadas populares fizessem suas próprias experiências da vida democrática no âmbito da revolução; é como se Rosa tivesse dito que os companheiros de Lênin intervinham desde fora do processo democrático porque já sabiam o que seria melhor para o povo, porque já tinham uma ideia do que o povo devia fazer. Assim foram (são) substituídas as massas populares que ainda não estariam (estão) prontas para o socialismo. Para Rosa, o socialismo só pode ser obra das próprias massas, não de lideranças intelectuais que pretensamente sabem o que é melhor para o povo. Para isso é necessário tempo de amadurecimento. “Tempo não é dinheiro, tempo é o tecido da vida”, disse o grande crítico literário Antonio Cândido, que também era socialista. A democracia, e ainda mais o socialismo democrático, são uma invenção permanente que necessita vida pública livre, absolutamente necessária para a formação política dos de baixo.
A crença nas virtudes curativas da vida aparece muitas vezes em sua correspondência da prisão como, por exemplo, nesta carta a sua amiga Sonia Liebknecht (dezembro de 1917), onde explicava por que não desesperava depois de viver tanto tempo encarcerada: “Creio que o segredo não é outro que a própria vida (…) Sob os passos lentos e pesados do carcereiro canta uma bela, uma pequena canção da vida: basta apenas saber ouvir.”
Em suma, a biografia de Rosa Luxemburgo escrita por Kate Evans não é como outras anteriores, a de mártir assexuada e cheia de pudor, que sacrificou a vida no altar da Revolução – como se fora uma santa comunista – , mas uma mulher de carne e osso, divertida, ousada, à frente de seu tempo, que rechaçava o espartilho, controlava seu corpo para não ficar grávida — em uma palavra, uma mulher que conquistou sua liberdade com muita luta e sacrifício. Ela sabia que liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade. Essa é a mensagem que Rosa deixa para as mulheres do século XXI que ainda lutam por sua emancipação.
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*Isabel Loureiro falou no Seminário sobre a vida, obra e pensamento de Rosa Luxemburgo que aconteceu em 2 e 3 de setembro de 2017 em Assunção (Paraguai). O texto acima é o roteiro original de sua palestra.
FONTE: Outras Palavras
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