sábado, 21 de julho de 2018

Marxismo, uma filosofia da praxis para a revolução


 Por Jean Salem*    



Chegou-nos a dolorosa notícia do falecimento de Jean Salem. Deixa-nos assim um ser humano excepcional, um dos grandes filósofos marxistas do nosso tempo, um combativo revolucionário cuja penetrante inteligência abarcava todas as expressões do que é humano. Alguém que, reflectindo profundamente acerca da felicidade sabia que ela é, em última análise, inseparável da ideia de revolução. De alguém cuja coerência e inteligência de pensamento e intervenção tinham granjeado admiração e respeito em todo o mundo. Um grande amigo de odiario.info.

No ano em que passa o bicentenário do nascimento de Marx, fica-nos este vazio do muito que ainda tinha a dizer-nos, mas também o rico património de reflexão criadora que nos lega. De entre os vários textos seus que publicámos revisitamos este, de 2013, e recuperamos palavras que acerca dele escrevemos: “o pensamento de Jean Salem é uma notável confirmação da vitalidade e actualidade do marxismo. Não de um marxismo académico, mas do marxismo reflectido por um académico que é também um revolucionário.”
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Marx, mais actual que nunca

1. Marx não é apenas um «clássico» do pensamento filosófico. Estou convencido que Marx é hoje mais contemporâneo para nós do que era há trinta ou quarenta anos! Tomemos, por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista. Lembro-me de, quando o lia pela primeira vez, ia perguntar ao meu pai: que significa essa «concorrência» entre operários que os autores falam em várias ocasiões? A concorrência entre capitalistas, a concorrência mesmo no seio da burguesia, isso era na verdade evidente; mas a possibilidade de que existisse uma concorrência entre trabalhadores não parecia tão evidente, numa época em que os sindicatos eram fortes, em que a classe operária estava poderosamente organizada, numa época de pleno emprego (ou quase) e de políticas «keynesianas». Hoje em dia, pelo contrário, qualquer pessoa remetida para empregos cada vez mais precários e menos frequentes compreenderia isto desde a primeira leitura: efectivamente, o sistema repete-lhe constantemente «se não estás contente, e mais ainda se protestares, há mais dez que estão dispostos a ocupar o teu lugar!». Penso também naquele trecho em que Marx e Engels falam da prostituição, na altura muito alargada entre a classe operária inglesa: não era um fenómeno de massas na década de 1960. Mas, nos nossos dias, depois da grande «libertação» de 1989-1991, há mais de 4 milhões de mulheres que foram – literalmente – vendidas: e esta atmosfera de mercantilização generalizada dos objectos e dos seres humanos, a nossa, facilita-nos, mais uma vez a compreensão imediata do texto do Manifesto. Definitivamente, há muitas coisas que poderemos encontrar em Marx adaptando-as, claro está, à nossa própria época. Por isso é que continuo a acreditar que o marxismo se mantém, como filosofia, inultrapassável do nosso tempo.

Em primeiro lugar não se pode falar, a não ser por graça, de desaparecimento da classe operária, visto que a China e a Índia, que têm quase metade da população humana, se converteram nas duas principais manufactureiras do mundo que alimentam o comércio mundial. Além disso, subsistem alguns operários ainda noutros lugares, não acham? Isto, sem contar com todos esses imigrantes que trabalham na Europa ou nos Estados Unidos, amiúde clandestinamente e, mais amiúde ainda, invisíveis ou quase. Isto parece-me dificilmente contestável… Na realidade, estas considerações relativas à pretensa extinção da classe operária parecem-me euro – ou «ocidental»-centrica. Em grande parte nascem sobre o húmus da antiga exploração colonial; germinam num mundo em que a classe operária ocidental pôde e pode continuar (ainda que em menor medida) a beneficiar, embora mais exiguamente, de migalhas provenientes da pilhagem de países pobres. Noutros tempos esta realidade contribuiu para prevenir a explosão de uma verdadeira revolução na Europa, e as estruturas capitalistas puderam assim manter-se, embora muito contestadas por correntes políticas poderosamente organizadas. Desindustrializai à toa; devastai regiões inteiras fechando os locais de produção em que antes se concentravam muito visivelmente operários qualificados. Não apanheis nunca o metro antes das 7H30 da manhã; olhai fixamente para a televisão, que não vos dá quase nunca a palavra; e sobretudo, não viajeis: tereis então suficientes razões para não ver a classe operária e até mesmo para imaginar que está morta…

Para isso, e em muitas ocasiões como foi o caso de 1981, a social-democracia serviu de «salva-vidas» do sistema e de amortecedor extremamente eficaz para deitar por terra qualquer tentativa de alteração social. Mas a crise está aí. Aí mesmo. Rir-se-iam na nossa cara se na década de 1960 algum de nós tivesse o atrevimento de defender a tese da pauperização absoluta da classe operária nos países capitalistas desenvolvidos: então, nos EUA uma família operária podia, sem dificuldades de maior, ter dois carros… Daí para cá não acabámos de acordar das ilusões de um passado muito recente (o da época que o pensamento único decidiu baptizar de «Os Trinta Gloriosos Anos»). Estamos confrontados com um mundo preenchido de insuportáveis desequilíbrios, um mundo em que o poder aquisitivo dos que trabalham (e dos que estão impedidos de o fazer) se reduz à sua expressão mais simples.

Em suma, apesar da destruição da escola pública, da saúde pública, de tudo aquilo que foi conquistado graças à luta, subsistem ainda, sem margem para dúvidas, possibilidades de concentrações, de alianças, não só de operários franceses e operários italianos, europeus, mas também de operários europeus e trabalhadores «extracomunitários», como acontece no vosso país. Todos têm, fundamentalmente, interesses convergentes, sejam quais forem as diferenças existentes entre os seus percursos, as suas crenças privadas, os seus ritos, os seus hábitos alimentares. Sejam quais forem os mexericos do fascismo vindouro, ou que poderá, pelo menos, voltar. Toda aquela gente é, com efeito, mercadoria humana. Uma mercadoria cada dia tratada com menos consideração.

A crise

2. Não é segredo para ninguém: o sentimento de declínio invadiu a maior parte da Europa. Nos nossos países evoca-se hoje incessantemente, com uma nostalgia não desprovida de amnésia, os «30 gloriosos» (que não eram gloriosos para toda a gente!), isto é, os 30 anos de expansão económica, de pleno emprego e de crescimento industrial que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial. Até ao fim da década de 1970, inclusive aos olhos de muitos comunistas, a ideia de que nos países da OCDE a classe operária pudesse um dia empobrecer parecia uma ilusão. O capitalismo ocidental parecia destinado a puxar indefinidamente para «cima» o conjunto das rendas.

Com a crise surgida em 1973, estas utopias começaram a perder todo o crédito. Dezenas de milhares de pessoas começaram a dormir nas ruas. O desemprego começou a respeitar a mais de 26 milhões de pessoas na Europa: na Grécia, na Irlanda ou em Portugal a história repete-se e verdadeiros fluxos migratórios começam a formar-se em direcção ao Canadá ou à Austrália. Por falta de meios, os sectores públicos deterioram-se: os transportes urbanos, mas também o sector da saúde, o da educação, etc.. Os salários são cortados, comprimidos, ao ponto de quase um francês em cada seis viver actualmente sobre a «linha de pobreza». As camadas médias estão confrontadas com dificuldades que, há 20 anos, pareciam impensáveis. Em resumo, a afirmação do jovem Engels segundo a qual a sociedade capitalista tende a dividir o mundo em milionários e pobres (…bis die Welt in Millionäre und Paupers geteilt ist) [1] não poderá surpreender ninguém.

Do ponto de vista ideológico é preciso constatar que, como noutras épocas de crise, a mobilização dos trabalhadores (ou dos não trabalhadores!) em luta pela sua sobrevivência económica e social depara com redobradas dificuldades. O fim da União Soviética e a forma como esta foi apresentada pela propaganda oficial formataram muitos dos que tinham 15 ou 20 anos em 1968 nas suas viagens e na sua adesão, mais ou menos total, ao sistema vigente. O oportunismo afluiu aos partidos comunistas oeste-europeus que pareciam considerar como dados intangíveis o estado da muito relativa «democracia» e da ainda mais relativa prosperidade que prevalecia ainda na Europa até à década de 80, mesmo quando esta prosperidade começava a marcar passo, e esta «democracia» estava prestes a ser sistematicamente destroçada (votações espezinhadas, guerra permanente contra as liberdades públicas e os direitos sindicais, crescimento exponencial das medidas de controlo social e da confusão burocrática neoliberal, etc.).

E é assim que a Europa, em meados dos anos 1980, pôde contar com 17 governos conduzidos por social-democratas, com os resultados que se conhecem: financeirização da economia em demasia, crescente descomprometimento do Estado salvo no que respeita à «vigilância nocturna» (exército, polícia) perfeita confusão entre da «direita» e «esquerda», que se revezam desde esta época na imposição aos povos de um plano de austeridade após outro (lembremos a propósito o que disse um dia Gianni Agnelli, o patrão da FIAT: «quando as coisas se complicam a tal ponto, a esquerda faz melhor o trabalho que a direita»). Tal como em França onde no espaço de trinta anos, a parte da riqueza produzida que passou da remuneração do trabalho, isto é dos salários, para a remuneração do capital, isto é, sobretudo dividendos, corresponde a 10 pontos do Produto Interno Bruto (PIB)…

O nosso seminário “Marx no século XXI” (na Sorbonne)

3. Foi neste contexto em que as actuais lutas operárias são, infelizmente e por enquanto, essencialmente defensivas, neste clima de anticomunismo generalizado com um perfume de pré-guerra, que lançámos em 2005 com alguns colegas um seminário semanal chamado «Marx no século XXI». Na Sorbonne. Para mostrar, ali, a presença do marxismo que alguns diziam estar «morto» desde há muito tempo. Por vezes este seminário junta 200 pessoas, nunca menos de 100. Vinde ver! Tomai nota deste endereço: http://chspm.univ-paris1.fr/spip.php?article271.

Aí vereis que filmámos mais de 150 comunicações feitas por quase outros tantas/os convidadas/os. Dezenas de milhares de pessoas acompanham semanalmente na internet as nossas conferências e outras jornadas de estudo.

Guardadas as distâncias (!), a ideia que presidiu ao lançamento deste seminário foi um pouco análoga à que, noutros tempos, levou Lenine a fundar o seu jornal Iskra, um jornal destinado, dizia, a reunir, a federar mil energias até então dispersas na Rússia dos czares. Para nós, tratava-se de convidar, uma após outra, todas aquelas e todos aqueles que, até aqui, trabalhavam ou julgavam trabalhar «no seu recanto», isoladamente, nas condições actuais de pesquisa em França e fora: pois em França particularmente as pesquisas marxistas foram marginalizadas desde há muito tempo, quando não foram mesmo censuradas.

É claro que a vinda de Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey ou de George Labica, André Tossel, Daniel Bensaïd, Michael Löwy, Slavoj Zizek, etc., constituíram grandes momentos do seminário! E é também claro que, do ponto de vista político, sentimo-nos muito próximos de pessoas como Losurdo ou Labica (este último infelizmente já desaparecido). Quanto a alguns outros dos nossas/os amigas/os e convidadas/os, pesar da estima que tenho por eles, tenho vários desacordos com eles, particularmente no que respeita à sua maneira de abordar a questão do muito necessário balanço da experiência do «socialismo real».

Dito de outra maneira, vemo-nos reduzidos neste momento a adaptar-nos ao que Immanuel Wallerstein chamou os «mil marxismos»: aí está o efeito de uma situação tão apaixonante como inquietante, de uma situação que é a nossa, e que se caracteriza, como dizem, por uma cruel falta de organização revolucionária na Europa, no momento em que o sistema vacila nas suas bases.

O trabalho humano e o sistema do dinheiro

4. Como não é possível falar de tudo, falarei agora do jovem Marx, o que não significa (acaso será útil que o precise?) que esqueça o Manifesto do Partido Comunista ou O Capital! Começarei por lembrar um belo texto de Cícero (Dos Deveres, II, IV, 14-15) que me parece, além dos séculos, susceptível de esclarecer o presente trecho: «Pensa ainda nos aquedutos, no desvio dos cursos de água, na irrigação dos campos, nos diques contra as inundações, nos portos construídos pelas nossas mãos; como seria possível isso tudo sem o trabalho dos homens? Através destes exemplos, entre muitos outros, fica claro que o benefício e a utilidade que retiramos de coisas inanimadas não poderiam ser alcançados de nenhum outro modo, a não ser pelos braços e o trabalho dos homens. Quanto aos benefícios e as vantagens que obtemos dos animais, como poderíamos obtê-los se os homens não viessem ajudar-nos? Uma vez que os primeiros que descobriram o jeito de empregar cada espécie de animais foram certamente os homens; desde essa época, não poderíamos sem o trabalho dos homens nem apascentar os animais, nem domesticá-los nem abrigá-los, nem tirar proveito útil, nem especialmente exterminar os animais daninhos, nem apropriar aqueles que podem servir para nosso uso. […] É só por isso que a civilização humana se distingue da maneira de viver dos animais».

Então, para o jovem Marx, para o Marx dos Manuscritos de 1844, a via de acesso ao estudo do trabalho é a análise dos sintomas da sua perversão. Para Marx trata-se de descrever a alienação nas suas formas ideológicas para regressar às suas formas concretas, à sua origem: àquilo que se chama o trabalho alienado.

A alienação económica é claramente designada, em 1844 como a da vida real. A miséria resulta da essência do trabalho actual. Do mesmo modo que noutro tempo se opuseram amo e escravo, mais tarde patrício e plebeu, depois soberano e vassalo, vemos hoje oporem-se o que não trabalha e o trabalhador, escrevera Gans, um professor hegeliano a cujos cursos Marx assistira em Berlim (reconhece-se aqui uma frase que se encontrará no Manifesto). Assim, o que se opõe à emancipação da humanidade é a desigualdade social que levanta os homens uns contra os outros.

A realidade é esta: se é bem verdade que o trabalho produz maravilhas para os ricos, ele é a miséria para o operário. Adam Smith, o fundador da economia política clássica, afirma que, na origem, «o produto inteiro do trabalho pertence ao operário» [1]. Mas reconhece ao mesmo tempo que é a parte mais pequena e estritamente indispensável que lhe cabe. A economia política burguesa explica assim ao mesmo tempo que tudo se compra com o trabalho, e que os proletários estão obrigados a venderem-se todos os dias. Por um mesmo movimento do pensamento proporcionaram-se os meios para não reconhecer a alienação do trabalho. A sua objectividade de fachada ratifica, consagra a alienação dos homens. Não se preocupa com a vida do homem, e é essa a sua infâmia.

Quando considera o proletário somente como um operário, quando vê no homem apenas uma máquina de consumir e produzir, um «burro de carga», quando considera a vida humana como um capital, quando abandona o homem no tempo em que o médico não trabalha, o juiz e o coveiro e o preboste de mendigos, dizem ao operário: se por acaso não tiveres trabalho, portanto nem salário – como não existes para mim como homem mas apenas como operário, podes morrer de fome e ser enterrado. A categoria de salário assume assim para o economista a de mínimo vital para o operário e a sua família, - mínimo para que a raça dos operários não desapareça. E esta é indiferença dos teóricos a respeito dos homens encontra uma simbologia perfeita no modelo da lotaria proposto por Smith: «Numa lotaria perfeitamente igual, os que tiram os bilhetes premiados devem ganhar tudo o que perdem os que tiram os bilhetes sem prémio. Numa profissão em que vinte fracassam por cada uma que tem sucesso, este último tem de ganhar tudo o que poderia ter sido ganho pelos vinte que fracassaram» (that one ought to gain all that should have been gained by the unsuccessful twenty) [2]. E o reino do dinheiro manifesta-se, evidentemente, pela proliferação anárquica das necessidades, sem qualquer relação com as exigências naturais do homem.

Então, se o trabalho só aparece no discurso dos economistas sob a forma da actividade que proporciona um ganho, isso quer dizer que o operário no «estádio da economia» (é assim que Marx chama então ao capitalismo), já não pode ter mais actividade do que para adquirir os meios de subsistir. Por isso, o objecto do trabalho é indiferente para o operário, pois este vê-se espoliado por outro homem, pelo capitalismo que o domina como deus domina o seu servidor, no preciso momento em que os milagres dos deuses se tornam supérfluos devido ao trabalho humano. O que conta para o trabalhador é quase exclusivamente a remuneração em dinheiro que o capitalista aceitará dar-lhe depois da operação de produção.

E a alienação do objecto do trabalho (o facto de ter que o ceder a um outro) mais não é do que o resumo da alienação, do desapossamento na actividade de trabalho própria. O operário, ao depender cada vez mais de um trabalho penoso unilateral, mecânico, somente trabalha para manter a sua vida, debilita-se com esse trabalho, que perdeu para ele a aparência de manifestação de si-próprio. Todo o seu penoso trabalho é exterior, estranho ao operário, já que não realiza a sua essência, mas pelo contrário encontra nele a sua negação. Definitivamente, o trabalho deveria ser gozo da vida, prazer e o operário não se sente bem com ele próprio mais do que fora do trabalho.

A necessidade social e a necessidade humana não têm mais nada de comum, o individuo é, em terceiro lugar, totalmente separado do que Marx, depois de Feuerbach, chama a vida genérica, o género (die Gattung). Algo assim como a «essência» do homem. Marx abandonará mais tarde esta categoria, no fim de contas muito abstracta. Mas o essencial do que afirma ainda é actual: o trabalho lucrativo aliena, destrói a natureza do homem, isto é, o seu ser-sociável. O trabalho, a vida foram conduzidos a um mero meio de sobrevivência. A «essência» do homem tornou-se assim o meio da sua existência.

A indústria constitui o «livro aberto» das forças humanas essenciais. Quase não encontramos hoje objectos puramente naturais: a actividade humana é «a base de todo o mundo sensível tal e como existe nos nossos dias [3]. E no entanto, como se tornou alheio ao produto do seu trabalho, para a actividade vital e para o ser genérico, o homem tornou-se estranho para o outro homem. O outro é um poder hostil ou, no máximo, um objecto que se pode utilizar para satisfazer interesses egoístas. O capitalismo leva assim até o fim o que Marx chamará mais tarde no Capital a reificação das relações sociais, isto é, a dominação da matéria inerte sobre os homens. Leva ao paroxismo o que Georgy Lukács chamará ainda mais claramente, em História e consciência de classe (1923) a «dominação da economia sobre a sociedade».

Por isso, depois de indicar desde 1843, as insuficiências do que se chamava o «partido político histórico», Marx nesses manuscritos redigidos em 1844, parece abraçar a ideia de que «não é a crítica, mas o proletariado a força motriz da revolução». Esta ideia, o Manifesto, tal como toda a actividade prática, dar-lhe-ão vida, fá-la-ão passar aos factos.

Lenine, depois de Marx

5. Como sabeis, Marx declara na 11ª das suas Teses sobre Feuerbach que até àquele momento os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo, mas que a partir desse momento trata-se de o transformar. Na sua própria biografia, podemos ver que colaborou na Gazeta Renana, proibida em 1843. Viu-se então obrigado a exilar-se em Paris. Em 1845 foi expulso de França a petição de Humboldt, o embaixador da Prússia, e vai então para Bruxelas. A seguir, depois do sismo das revoluções de 1848, a reacção triunfa em toda a Europa. De Junho a Agosto de 1849, Marx tem de se refugiar de novo em Paris (de onde é de novo expulso), e depois em Londres, onde ficará quase todo o tempo. Conheceu grandes dificuldades materiais, uma miséria extrema, a ponto de a sua mulher e ele perderem quatro dos seus sete filhos. Definitivamente, Marx teve a vida de um militante revolucionário, de um homem comprometido, assediado, e não a de um filósofo de gabinete. Foi também em Londres que em 28 de Setembro de 1864 participou na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores; e é em nome do Conselho Geral desta 1ª Internacional que redigirá, em 1871, três «discursos» em que exalta a obra dos communards parisienses e analisa as causas da sua derrota. («sabes, escreve em Junho ao seu amigo Kugelmann, que durante o tempo todo da última revolução parisiense fui denunciado como o grande chefe da Internacional pelos papéis de Versalhes e pela repercussão entre os jornalistas daqui. […] E agora, além disso, o Discurso […] Provoca um ruído infernal e tenho a honra neste momento, de ser o homem mais caluniado e mais ameaçado de Londres»).

As seis teses que resumem o essencial daquilo que Lenine disse mais tarde a respeito da ideia de revolução, e também da acção própria que Lenine conduziu na Rússia no início do século passado, parecem assim, muito logicamente, prolongar a postura e a inspiração fundamental de Marx. Para acabar permitam-me referir uma vez mais estas seis teses:

As seis teses que para mim resumem o essencial daquilo que Lenine disse, mais tarde, a respeito da ideia de revolução, e também da própria acção que Lenine leva avante na Rússia no início do século passado, parecem assim prolongar muito logicamente a postura e a inspiração fundamental de Marx. Para acabar, permiti-me referir, mais uma vez, estas seis teses:

1) A revolução é uma guerra. Lenine compara a política com a arte militar e sublinha a necessidade da existência de partidos revolucionários organizados disciplinados, pois um partido não é um clube de reflexão (dirigentes do Partido Socialista: obrigado pelo espectáculo!).

2) Para Lenine, tal como para Marx uma revolução política é também, e sobretudo, social, isto é uma mudança na situação das classes em que a sociedade se divide. Isto significa que é sempre conveniente perguntar qual a natureza real do Estado, da «República». Assim, a crise do Outono de 2008 mostrou, com evidência, como nas metrópoles do capitalismo o Estado e o dinheiro público podem estar ao serviço dos interesses dos bancos e de um punhado de privilegiados. Dito de outro modo, o Estado não está, em absoluto, acima das classes.

3) Uma revolução faz-se de uma série de batalhas, e cabe ao partido de vanguarda, em cada etapa da luta, escolher a palavra de ordem adaptada à situação e às possibilidades. Sem isso, o movimento esgota-se e desanimam os que esperaram em vão que se lhes indicasse a natureza precisa dos objectivos a atingir e o sentido geral da marcha…

4) Os grandes problemas da vida dos povos sempre se resolveram pela força, também sublinha Lenine. «Força» não significa, longe disso, violência aberta ou repressão sangrenta contra os outros! Quando milhões de pessoas decidem convergir num lugar, por exemplo na Praça Tarr no centro do Cairo, e fazem saber que nada os fará recuar frente a um poder detestado, estamos já, e em pleno, no registo da força. Segundo Lenine, trata-se de atacar as ilusões de um certo cretinismo parlamentar ou eleitoral que conduz, por exemplo, á situação em que estamos agora: uma «esquerda» concentrada quase exclusivamente nos prazos de que uma imensa massa de cidadãos não espera, e com razão…, quase nada.

5) Os revolucionários não devem desprezar a luta pelas reformas. Lenine estava consciente de que em determinados momentos uma dada reforma pode representar uma concessão temporária, ou mesmo um rebuçado, concedido pela classe dominante para melhor adormecer os que resistem. No entanto, considera que uma reforma constitui uma base nova para a luta revolucionária.

6) Depois do início do século XX, a política começa onde estão os milhões ou mesmo dezenas de milhões de homens. Ao formular esta sexta tese Lenine pressente que os lares da revolução tendiam a deslocar-se cada vez mais para os países dominados, coloniais ou semicoloniais. De facto, desde revolução chinesa de 1949 até ao período das independências, na década de 60 do século passado, a História confirmou plenamente este clarividente prognóstico.

Definitivamente, há que ler Lenine, depois do dilúvio e do fim do «socialismo real». Lê-lo e relê-lo. Há que ler Marx. Ou relê-lo. Há que estudar os seus escritos sempre tão actuais. Para preparar o futuro.


Notas:

[1] SMITH (A.), Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations [1776], I, VIII ; trad. G. Garnier [revue par A. Blanqui], Paris, GF Flammarion, 1991, t. I, p. 135.
[2] Ibid., I, X, 1ª secção : “Des inégalités qui procédent de la nature même des emplois” ; ob. cit., t. I, p. 180.
[3] Marx e Engels escreveram isto em 1845 na Ideologia alemã.

Compostela, Galiza, 20 de Abril de 2013

Este texto é a Comunicação de Jean Salem nas XVII Jornadas Independentistas Galegas organizadas por Primeira Linha

* Jean Salem, amigo e colaborador de odiario.info, é Professor de Filosofia na Sorbonne, França.

Tradução de José Paulo Gascão, a partir da versão em galego, distribuída nas Jornadas Independentistas Galegas.



FONTE: ODiario.info

sábado, 14 de julho de 2018

161 anos do nascimento de Clara Zetkin


Por Ana Botner


A obra de uma mulher comunista à serviço de sua classe


No dia 5 de julho completam-se 161 anos do nascimento de uma das grandes figuras do proletariado, Clara Zetkin, registrada Clara Eissner. Nascida na Alemanha no ano de 1857, foi uma marxista convicta, tendo dedicado toda sua vida à causa do comunismo e à luta feminina revolucionária. Seus discursos profundos e atos heroicos induziram em milhares de homens e mulheres a vontade de lutar.


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Vladimir Lenin,  Clara Zetkin e Nadezhda Krupskaya. Ilustração de Boris Lebedev, 1969
                                      

Clara teve seu primeiro contato com a causa revolucionária quando ingressou na universidade para se tornar professora. Lá conheceu diversos membros do movimento operário da Alemanha e vários comunistas russos exilados.

Depois de pouco tempo, já estava engajada na luta revolucionária e com 24 anos, em 1881, uniu-se ao Partido Socialista dos Trabalhadores, que mais tarde seria renomeado para Partido Socialdemocrata Alemão.

Clara trabalhou na clandestinidade, devido a lei antissocialista outorgada pelo chanceler da Alemanha, Otto von Bismarck, que proibia qualquer tipo de imprensa e organização de cunho revolucionário. A perseguição do Estado alemão forçou  Clara e seu companheiro, Ossip Zetkin, a deixarem o país e se refugiarem em Paris. Clara regressaria à Alemanha apenas dez anos depois.

Já de volta a seu país de origem, em 1915, Zetkin organizou a Conferência Internacional de Mulheres Socialistas contra a guerra e em luta contra o revisionismo de Kautsky na Segunda Internacional, que resultou em várias prisões. Um ano depois, se separa do partido revisionista de Bernstein.

Em 1o de janeiro de 1919 é fundado o Partido Comunista da Alemanha. Clara e outras companheiras e companheiros de luta, como Rosa Luxemburgo, unem-se ao Partido. Entre 5 e 12 de janeiro ocorreu uma série de greves e lutas armadas em Berlim, conhecidas como Levantamento Espartaquista, esmagado pelas forças do governo com a cooperação dos revisionistas do Partido Socialdemocrata Alemão.

Clara Zetkin foi membro do Comitê Central do Partido Comunista até 1929, bem como participou do Comitê Executivo da Internacional Comunista de 1921 até 1933, ano em que faleceu, na União Soviética, exilada pela ascensão do nazismo.

CLARA ZETKIN E A QUESTÃO FEMININA

Clara Zetkin, convencida da importância das mulheres no movimento revolucionário, contribuiu de maneira grandiosa para o avanço do debate e compreensão sobre a questão feminina dentro dele, escrevendo e expondo ideias verdadeiramente revolucionárias para a época e que até hoje servem como norte para a maior compreensão sobre o tema da emancipação da mulher.

Ela foi uma fervorosa inimiga do feminismo burguês. Afirmava de maneira convicta que a batalha da mulher proletária não poderia ser a mesma que a das mulheres burguesas, que semeiam a luta contra os homens da mesma classe.

Em discurso feito ao congresso do Partido da Socialdemocracia da Alemanha, em 16 de outubro de 1896, faz brilhante análise materialista sobre o problema das mulheres e expõe a clara diferença dos questionamentos femininos no seio de cada uma das classes que são frutos do modo capitalista de produção: a burguesia, a pequena burguesia (intelectualidade) e o proletariado.

Fundamenta suas ideias afirmando que somente o modo de produção capitalista foi capaz de pôr em evidência o problema das mulheres, posto que com a revolução industrial a produção doméstica foi lentamente entrando em decadência e milhões de mulheres se viram obrigadas a encontrar seu sustento e seu sentido de vida fora do lar, ou seja, na sociedade como um todo. A partir desse momento a consciência da mulher para a sua situação sofreu um salto qualitativo.

Como uma consequência do novo modo de produção e do novo sistema social, surgiram as questões modernas sobre o problema feminino, que assumem diferentes formas de acordo com as necessidades de cada classe.

No âmbito econômico, para as mulheres da grande burguesia – caracteriza Clara – o centro de sua luta está na conquista de igualdade na posse de propriedades; para as mulheres da pequena burguesia e da intelectualidade, visto que sucumbem suas pequenas produções, esse centro se baseia em oportunidades igualitárias de treinamento profissional e no mercado de trabalho, temendo cair no setor mais fundo do proletariado. Em ambos os casos, as formas de liberdade que almejam, visto sua concepção de mundo, dão-se em batalhas travadas contra os homens de sua classe. Além do mais, expõe, “a sociedade burguesa não é fundamentalmente contra o movimento feminino burguês, o que pode ser provado pelo fato de que em vários Estados foram iniciadas reformas das leis, em âmbito público e privado”.

No caso do proletariado feminino, no entanto, é diferente. Foi a necessidade do capitalismo por exploração de mão de obra barata e excedente que obrigou a mulher proletária a participar do processo produtivo. Elas se empregaram para ajudar seus maridos e filhos, e conquistaram assim sua relativa independência financeira muito antes das mulheres burguesas. Entretanto, nas palavras de Clara Zetkin, “se durante a Era da Família o homem tinha direito de domar sua mulher com chicote (pense na lei eleitoral da Bavária!), agora o capitalismo está domando-a ainda mais”.

Mesmo com a conquista de sua relativa independência, as migalhas do capitalismo – com que o proletariado feminino sobrevive – não permitem que essas mulheres desenvolvam sua individualidade em nenhuma esfera: seja pessoal, familiar ou profissional.

Em sua luta por emancipação, a principal contradição para a mulher proletária não está em seu companheiro de classe, mas sim na sociedade capitalista. Seus esforços devem ser direcionados para o fervor da luta de classes, para a tomada do poder político pelo proletariado como um todo, lutando lado a lado de seus companheiros contra toda exploração e opressão que os assola.

Já em seu texto denominado Lenin e o movimento feminino, Clara e Lenin discutem sobre a principalidade, no movimento feminino, dos problemas políticos do proletariado e da necessidade de forjar as mulheres na luta revolucionária.

Rechaçando as posições do feminismo burguês que colocam como o centro das atividades as questões sobre a moral e a sexualidade femininas, Lenin e Clara criticam a predileção por esse tipo de assunto nas reuniões dirigidas pelo Partido Comunista da Alemanha com as operárias.

Embora as questões sexuais, no regime da propriedade privada, causem grande sofrimento às mulheres e precisam ser mencionadas, devem sempre ser vistas como “parte da grande questão social” – nas palavras de Lenin. Isto é, subordinada à luta de classes.

“Ouvi dizer que, em vossas reuniões noturnas dedicadas à leitura e aos debates com as operárias, ocupai-vos sobretudo com as questões do sexo e do casamento. Esse assunto estaria no centro de vossas preocupações, de vossa instrução política e de vossa ação educativa! Não acreditei no que ouvi. Neste momento, todos os pensamentos das operárias, das mulheres trabalhadoras devem estar voltados para a revolução proletária. Ela é que criará inclusive base para as novas condições de casamento e novas relações entre os sexos. Como pôde ficar calada?” – posiciona-se Lenin, cobrando de Clara que criticasse as camaradas. Clara explicou-lhe que criticou-as, mas que necessitou ter tato para não tornar-se mal vista, a que Lenin retrucou: “Eu sei. Também me acusam de filisteísmo. Mas isso não me perturba. Os pássaros que mal saíram do ovo das concepções burguesas creem-se sempre terrivelmente inteligentes.”.

Zetkin, exemplo de luta heroica e companheira de armas de Engels, Lenin e Stalin, sempre levantou a bandeira de que a emancipação da mulher só pode ser possível se esta luta for incorporada à luta revolucionária pelo comunismo.


sábado, 7 de julho de 2018

Marx e a política


Por Terry Eagleton 


Karl Marx
Se Marx é de fato algum tipo de filósofo, ele se distingue da maioria de tais pensadores por considerar suas reflexões, por mais abstrusas que sejam, em última análise, práticas, estando inteiramente a serviço de forças políticas reais, e na verdade um tipo de força política em si mesma.  Esta é a celebrada tese marxista da unidade entre teoria e prática – embora seja possível acrescentar que um objetivo da teoria  de Marx é chegar a uma situação social em que o pensamento não precisaria ser simplesmente instrumental, articulado com algum fim particular, podendo em vez disso ser usufruído como um prazer em si mesmo.

A doutrina política de Marx é revolucionária – “revolução” sendo para ele definida menos pela velocidade, pelo caráter repentino ou pela violência do processo (embora ele pareça pensar que a construção do socialismo envolve uma força insurreicional), que pelo fato de que ela passa pela expulsão de uma classe possuidora e sua substituição por outra.  E este é um processo que pode claramente requerer um grande espaço de tempo para ser levado a efeito.  Podemos observar aqui a característica peculiar do socialismo: o fato de que ele envolve a chegada ao poder pela classe trabalhadora, que ao fazer isto cria as condições para a abolição de todas as classes.  Uma vez sendo os meios de produção coletivamente possuídos e controlados, as próprias classes finalmente desaparecerão.

“Todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram consolidar o status adquitido sujeitando toda a sociedade às suas condições de apropriação.  Os proletários não podem se apoderar das forças produtivas sociais a não ser abolindo o modo de apropriação a elas correspondentes e, com isso, também todos os modos anteriores de apropriação.  Eles nada têm de seu para salvaguardar e consolidar; sua missão é destruir todas as seguranças e garantias da propriedade privada até agora existentes.” [Manifesto Comunista]

Ou como Marx se expressa na linguagem de seus escritos de juventude:

“Deve ser formada uma classe com cadeias radicais, uma classe na sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil, uma classe que é a dissolução de todas as classes, uma esfera da sociedade que possui um caráter universal porque seus sofrimentos são universais, e que não reivindica uma compensação particular, porque a injustiça que lhe foi feita não é uma injustiça particular, mas a injustiça em geral.  Deve ser formada uma esfera da sociedade que não reinvidica um status tradicional mas apenas um status humano […]  Esta dissolução da sociedade, como uma classe particular, é o proletariado.”  [Contribuição à Critica da Filosofia do Direito de Hegel]

Se o proletariado é a última classe histórica, é porque sua chegada ao poder no que Marx chama de “ditadura do proletariado” é o prelúdio da construção de uma sociedade na qual todos estarão na mesma relação com os meios de produção, como seus donos coletivos,  “trabalhador” não mais significa ser membro de uma classe particular, mas simplesmente todos os homens e mulheres que contribuem para produzir e manter a vida social.  A primeira fase da revolução anticapitalista é conhecida por Marx como o socialismo, e não é uma fase que envolva completa igualdade.  Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais”, herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais.  Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um.  Ele atua assim, entre outras coisas, como uma forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal.  No fim, ao próprio Marx interessa mais a diferença que a igualdade.  No socialismo, continua sendo um fato que

“um homem é superior a outros física e mentalmente, e assim fornece mais trabalho no mesmo tempo, ou pode trabalhar por mais tempo; e, para servir como medida, o trabalho deve ser definido por sua duração ou intensidade, caso contrário deixa de constituir um padrão de medida.  Tal direito igual é um direito desigual para o trabalho desigual.  Não reconhece diferenças de classe, uma vez que cada homem é um trabalhador tanto quanto qualquer outro, mas reconhece tacitamente privilégios desiguais. É, por conseguinte, um direito de desigualdade em seu conteúdo, como todo direito. Por sua própria natureza, o direito só pode consistir na aplicação de um padrão igual; porém indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos se não fossem desiguais) são mensuráveis apenas por um padrão igual na medida em que são considerados de um ponto de vista igual, apreendidos por um só aspecto determinado, por exemplo, no caso presente, enquanto forem considerados apenas como trabalhadores e nada mais, sendo tudo o mais ignorado.  Além disso, um trabalhador é casado, outro é solteiro; um tem mais filhos que outro, e assim por diante.  Desta maneira, com um empenho igual no trabalho e, portanto, com uma participação igual no fundo social de consumo, uns receberão efetivamente mais que outros, uns serão mais ricos que outros etc.  Para evitar todos estes defeitos, o direito, em vez de igual, teria de ser desigual.” [Crítica do Programa de Gotha]

O socialismo, portanto, não propõe nenhum nivelamento absoluto dos indivíduos, mas envolve um respeito por suas diferenças específicas e permite, pela primeira vez, que tais diferenças se realizem.  É desta maneira que Marx resolve o paradoxo do individual e do universal: para ele, o último termo significa não algum estado do ser supra-individual, mas simplesmente o imperativo de que cada um deva estar incluído no processo de desenvolver livremente suas identidades pessoais. Porém, enquanto homens e mulheres ainda precisarem ser recompensados de acordo com seu trabalho, as desigualdades inevitavelmente persistirão.

O estágio mais desenvolvido da sociedade, contudo, chamado por Marx de comunismo, desenvolverá as forças produtivas até um ponto de abundância tal que nem a igualdade nem a desigualdade estarão em questão.  Em lugar disto, homens e mulheres simplesmente retirarão do fundo comum de recursos o que quer que satisfaça suas necessidades:

“Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, e com ela também a antítese entre o trabalho mental e o físico; quando o trabalho houver se tornado não um meio de vida, mas a necessidade fundamental da vida; quando as forças produtivas tiverem crescido com o desenvolvimento geral do indivíduo; quando todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente – só então o horizonte estreito do direito burguês será completamente ultrapassado, podendo a sociedade inscrever em suas bandeiras: ‘De cada um de acordo com suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades!‘.” [Crítica do Programa de Gotha]

Na sociedade comunista, estaríamos livres da importunidade de classe social e, em vez disso, disporíamos de lazer e energia para cultivar nossas personalidades de qualquer maneira que pudéssemos escolher, desde que respeitado o preceito de que a todos os outros seria permitido fazer o mesmo.  O que distingue este objetivo político mais nitidamente do liberalismo é o fato de que, uma vez que para Marx  uma expressão de nosso ser individual é também uma realização de nosso ser genérico, este processo de explorar e desenvolver a vida indidual seria levado a cabo reciprocamente, por meio de laços mútuos, em vez de em isolamento esplêndido.  O outro é visto por Marx como o meio para minha própria realização, em lugar de, como no melhor dos casos, um mero co-empresário no projeto, ou no pior como um obstáculo ativo para minha realização.  A sociedade comunista também direcionaria as forças produtivas legadas a ela pelo capitalismo para a meta de abolir tanto quanto possível todo trabalho degradante, libertando desta forma homens e mulheres da tirania da labuta e permitindo a eles engajarem-se no controle democrático da vida social como “indivíduos unidos” agora responsáveis por seus próprios destinos.  No comunismo, homens e emulheres podem recuperar seus poderes alienados e reconhecer o mundo que criam como seu, depurado de sua imobilidade espúria.

Mas a revolução socialista requer um agente, e este Marx descobre no proletariado.  Por que o proletariado?  Não porque seja espiritualmente superior às outras classes, e não necessariamente porque seja o mais oprimido dos grupos sociais.  Se fosse assim, os vagabundos, excluídos e indigentes – o que Marx um tanto devastadoramente chamava de “lumpen-proletariat” – seriam melhores.  Pode-se alegar que é o próprio capitalismo, não o socialismo, que “seleciona” a classe operária como o agente da mudança revolucionária.  É a classe que mais pode se beneficiar da abolição do capitalismo, e que é suficientemente habilidosa, organizada e bem situada para desempenhar tal tarefa.  Mas a tarefa da classe operária é levar a cabo uma revolução específica – a revolução contra o capitalismo; e não está assim em sentido algum necessariamente em competição com outros grupos radicais – digamos, feministas, nacionalistas ou militantes étnicos – que precisam completar suas próprias transformações particulares, idealmente em aliança com aqueles mais explorados pelo capitalismo.

Que forma tal sociedade assumiria?  Seguramente não a de uma ordem social dirigida pelo Estado.  O Estado político para Marx pertence à “superestrutura” reguladora da sociedade: é ele próprio um produto da luta de classes em vez de estar sublimemente além deste conflito, ou consistir em alguma resolução ideal dele.  O Estado é em última análise um instrumento da classe dirigente, uma maneira de assegurar sua hegemonia sobre as outras classes; e o Estado burguês em particular cresce a partir da alienação entre o indivíduo e a vida universal:

“a partir da própria contradição entre o interesse do indivíduo e o da comunidade, este assume uma configuração autônoma enquanto Estado, separada dos interesses reais dos indivíduos e da comunidade, e ao mesmo tempo como uma vida coletiva ilusória, porém sempre tendo por base concreta os laços reais existentes em qualquer agregado familial ou tribal – tais como a consaguinidade, a língua, a divisão de trabalho em grande escala, e outros interesses – e especialmente, como veremos em detalhe mais tarde, nas classes, já determinadas pela divisão do trabalho, que se destacam em cada agrupamento humano desse tipo e das quais uma domina todas as outras.  Segue-se disto que todas as lutas dentro do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc. são apenas as formas ilusórias nas quais se trava a verdadeira luta entre as diferentes classes.” [A Ideologia Alemã]

Marx nem sempre adotou um ponto de vista tão vigorosamente instrumentalista do Estado em suas análises detalhadas de conflitos de classe; mas estava convencido de que sua verdade, por assim dizer, está fora de si mesma, e além do mais o vê por si só uma forma de alienação.  Cada cidadão individual alienou ao Estado parte de seus poderes individuais, que assumem então uma força determinante sobre a existência social e econômica cotidiana, que Marx chama “sociedade civil”.  A genuína democracia socialista, em contraste, reuniria estas partes gerais e individuais de nós mesmos, permitindo-nos participar de processos políticos gerais como indivíduos concretamente particulares – no local de trabalho assim como na comunidade local, por exemplo, em vez de cidadãos abstratos da democracia representativa liberal.  A visão final de Marx parece assim algo anarquista: a de uma comunidade cooperativa formada pelo que denomina “associações livres” de trabalhadores, que estenderiam a democracia à esfera econômica enquanto fazem dela uma realidade na esfera política.  Foi a este fim – que não é, afinal de contas, demasiado sinistro ou alarmente – que ele dedicou não apenas seus escritos, mas uma boa parte de sua vida ativa.