Por Terry Eagleton
Karl Marx |
Se Marx é de fato algum tipo de filósofo, ele se distingue da maioria de tais pensadores por considerar suas reflexões, por mais abstrusas que sejam, em última análise, práticas, estando inteiramente a serviço de forças políticas reais, e na verdade um tipo de força política em si mesma. Esta é a celebrada tese marxista da unidade entre teoria e prática – embora seja possível acrescentar que um objetivo da teoria de Marx é chegar a uma situação social em que o pensamento não precisaria ser simplesmente instrumental, articulado com algum fim particular, podendo em vez disso ser usufruído como um prazer em si mesmo.
A doutrina política de Marx é revolucionária – “revolução” sendo para ele definida menos pela velocidade, pelo caráter repentino ou pela violência do processo (embora ele pareça pensar que a construção do socialismo envolve uma força insurreicional), que pelo fato de que ela passa pela expulsão de uma classe possuidora e sua substituição por outra. E este é um processo que pode claramente requerer um grande espaço de tempo para ser levado a efeito. Podemos observar aqui a característica peculiar do socialismo: o fato de que ele envolve a chegada ao poder pela classe trabalhadora, que ao fazer isto cria as condições para a abolição de todas as classes. Uma vez sendo os meios de produção coletivamente possuídos e controlados, as próprias classes finalmente desaparecerão.
“Todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram consolidar o status adquitido sujeitando toda a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem se apoderar das forças produtivas sociais a não ser abolindo o modo de apropriação a elas correspondentes e, com isso, também todos os modos anteriores de apropriação. Eles nada têm de seu para salvaguardar e consolidar; sua missão é destruir todas as seguranças e garantias da propriedade privada até agora existentes.” [Manifesto Comunista]
Ou como Marx se expressa na linguagem de seus escritos de juventude:
“Deve ser formada uma classe com cadeias radicais, uma classe na sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil, uma classe que é a dissolução de todas as classes, uma esfera da sociedade que possui um caráter universal porque seus sofrimentos são universais, e que não reivindica uma compensação particular, porque a injustiça que lhe foi feita não é uma injustiça particular, mas a injustiça em geral. Deve ser formada uma esfera da sociedade que não reinvidica um status tradicional mas apenas um status humano […] Esta dissolução da sociedade, como uma classe particular, é o proletariado.” [Contribuição à Critica da Filosofia do Direito de Hegel]
Se o proletariado é a última classe histórica, é porque sua chegada ao poder no que Marx chama de “ditadura do proletariado” é o prelúdio da construção de uma sociedade na qual todos estarão na mesma relação com os meios de produção, como seus donos coletivos, “trabalhador” não mais significa ser membro de uma classe particular, mas simplesmente todos os homens e mulheres que contribuem para produzir e manter a vida social. A primeira fase da revolução anticapitalista é conhecida por Marx como o socialismo, e não é uma fase que envolva completa igualdade. Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais”, herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais. Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um. Ele atua assim, entre outras coisas, como uma forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal. No fim, ao próprio Marx interessa mais a diferença que a igualdade. No socialismo, continua sendo um fato que
“um homem é superior a outros física e mentalmente, e assim fornece mais trabalho no mesmo tempo, ou pode trabalhar por mais tempo; e, para servir como medida, o trabalho deve ser definido por sua duração ou intensidade, caso contrário deixa de constituir um padrão de medida. Tal direito igual é um direito desigual para o trabalho desigual. Não reconhece diferenças de classe, uma vez que cada homem é um trabalhador tanto quanto qualquer outro, mas reconhece tacitamente privilégios desiguais. É, por conseguinte, um direito de desigualdade em seu conteúdo, como todo direito. Por sua própria natureza, o direito só pode consistir na aplicação de um padrão igual; porém indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos se não fossem desiguais) são mensuráveis apenas por um padrão igual na medida em que são considerados de um ponto de vista igual, apreendidos por um só aspecto determinado, por exemplo, no caso presente, enquanto forem considerados apenas como trabalhadores e nada mais, sendo tudo o mais ignorado. Além disso, um trabalhador é casado, outro é solteiro; um tem mais filhos que outro, e assim por diante. Desta maneira, com um empenho igual no trabalho e, portanto, com uma participação igual no fundo social de consumo, uns receberão efetivamente mais que outros, uns serão mais ricos que outros etc. Para evitar todos estes defeitos, o direito, em vez de igual, teria de ser desigual.” [Crítica do Programa de Gotha]
O socialismo, portanto, não propõe nenhum nivelamento absoluto dos indivíduos, mas envolve um respeito por suas diferenças específicas e permite, pela primeira vez, que tais diferenças se realizem. É desta maneira que Marx resolve o paradoxo do individual e do universal: para ele, o último termo significa não algum estado do ser supra-individual, mas simplesmente o imperativo de que cada um deva estar incluído no processo de desenvolver livremente suas identidades pessoais. Porém, enquanto homens e mulheres ainda precisarem ser recompensados de acordo com seu trabalho, as desigualdades inevitavelmente persistirão.
O estágio mais desenvolvido da sociedade, contudo, chamado por Marx de comunismo, desenvolverá as forças produtivas até um ponto de abundância tal que nem a igualdade nem a desigualdade estarão em questão. Em lugar disto, homens e mulheres simplesmente retirarão do fundo comum de recursos o que quer que satisfaça suas necessidades:
“Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, e com ela também a antítese entre o trabalho mental e o físico; quando o trabalho houver se tornado não um meio de vida, mas a necessidade fundamental da vida; quando as forças produtivas tiverem crescido com o desenvolvimento geral do indivíduo; quando todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente – só então o horizonte estreito do direito burguês será completamente ultrapassado, podendo a sociedade inscrever em suas bandeiras: ‘De cada um de acordo com suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades!‘.” [Crítica do Programa de Gotha]
Na sociedade comunista, estaríamos livres da importunidade de classe social e, em vez disso, disporíamos de lazer e energia para cultivar nossas personalidades de qualquer maneira que pudéssemos escolher, desde que respeitado o preceito de que a todos os outros seria permitido fazer o mesmo. O que distingue este objetivo político mais nitidamente do liberalismo é o fato de que, uma vez que para Marx uma expressão de nosso ser individual é também uma realização de nosso ser genérico, este processo de explorar e desenvolver a vida indidual seria levado a cabo reciprocamente, por meio de laços mútuos, em vez de em isolamento esplêndido. O outro é visto por Marx como o meio para minha própria realização, em lugar de, como no melhor dos casos, um mero co-empresário no projeto, ou no pior como um obstáculo ativo para minha realização. A sociedade comunista também direcionaria as forças produtivas legadas a ela pelo capitalismo para a meta de abolir tanto quanto possível todo trabalho degradante, libertando desta forma homens e mulheres da tirania da labuta e permitindo a eles engajarem-se no controle democrático da vida social como “indivíduos unidos” agora responsáveis por seus próprios destinos. No comunismo, homens e emulheres podem recuperar seus poderes alienados e reconhecer o mundo que criam como seu, depurado de sua imobilidade espúria.
Mas a revolução socialista requer um agente, e este Marx descobre no proletariado. Por que o proletariado? Não porque seja espiritualmente superior às outras classes, e não necessariamente porque seja o mais oprimido dos grupos sociais. Se fosse assim, os vagabundos, excluídos e indigentes – o que Marx um tanto devastadoramente chamava de “lumpen-proletariat” – seriam melhores. Pode-se alegar que é o próprio capitalismo, não o socialismo, que “seleciona” a classe operária como o agente da mudança revolucionária. É a classe que mais pode se beneficiar da abolição do capitalismo, e que é suficientemente habilidosa, organizada e bem situada para desempenhar tal tarefa. Mas a tarefa da classe operária é levar a cabo uma revolução específica – a revolução contra o capitalismo; e não está assim em sentido algum necessariamente em competição com outros grupos radicais – digamos, feministas, nacionalistas ou militantes étnicos – que precisam completar suas próprias transformações particulares, idealmente em aliança com aqueles mais explorados pelo capitalismo.
Que forma tal sociedade assumiria? Seguramente não a de uma ordem social dirigida pelo Estado. O Estado político para Marx pertence à “superestrutura” reguladora da sociedade: é ele próprio um produto da luta de classes em vez de estar sublimemente além deste conflito, ou consistir em alguma resolução ideal dele. O Estado é em última análise um instrumento da classe dirigente, uma maneira de assegurar sua hegemonia sobre as outras classes; e o Estado burguês em particular cresce a partir da alienação entre o indivíduo e a vida universal:
“a partir da própria contradição entre o interesse do indivíduo e o da comunidade, este assume uma configuração autônoma enquanto Estado, separada dos interesses reais dos indivíduos e da comunidade, e ao mesmo tempo como uma vida coletiva ilusória, porém sempre tendo por base concreta os laços reais existentes em qualquer agregado familial ou tribal – tais como a consaguinidade, a língua, a divisão de trabalho em grande escala, e outros interesses – e especialmente, como veremos em detalhe mais tarde, nas classes, já determinadas pela divisão do trabalho, que se destacam em cada agrupamento humano desse tipo e das quais uma domina todas as outras. Segue-se disto que todas as lutas dentro do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc. são apenas as formas ilusórias nas quais se trava a verdadeira luta entre as diferentes classes.” [A Ideologia Alemã]
Marx nem sempre adotou um ponto de vista tão vigorosamente instrumentalista do Estado em suas análises detalhadas de conflitos de classe; mas estava convencido de que sua verdade, por assim dizer, está fora de si mesma, e além do mais o vê por si só uma forma de alienação. Cada cidadão individual alienou ao Estado parte de seus poderes individuais, que assumem então uma força determinante sobre a existência social e econômica cotidiana, que Marx chama “sociedade civil”. A genuína democracia socialista, em contraste, reuniria estas partes gerais e individuais de nós mesmos, permitindo-nos participar de processos políticos gerais como indivíduos concretamente particulares – no local de trabalho assim como na comunidade local, por exemplo, em vez de cidadãos abstratos da democracia representativa liberal. A visão final de Marx parece assim algo anarquista: a de uma comunidade cooperativa formada pelo que denomina “associações livres” de trabalhadores, que estenderiam a democracia à esfera econômica enquanto fazem dela uma realidade na esfera política. Foi a este fim – que não é, afinal de contas, demasiado sinistro ou alarmente – que ele dedicou não apenas seus escritos, mas uma boa parte de sua vida ativa.
FONTE: Fundação Lauro Campos
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