quarta-feira, 29 de maio de 2019

O que os brasileiros desconhecem sobre Cuba



Por  José Rodrigues Máo Júnior (*)


Cuba sem Bloqueio: a Revolução Cubana e Seu Futuro, sem as Manipulações da Mídia Dominante
Autor: Hideyo Saito e Antonio Gabriel Haddad
Ano: 2012
Editora: Radical Livros
Páginas: 448


As agressões por parte dos Estados Unidos contra Cuba constitui uma das páginas mais vergonhosas da história. Desde o triunfo da revolução, em janeiro de 1959, o povo cubano soube cerrar as fileiras em torno da liderança revolucionária e resistir com denodo às terríveis ameaças, como a de invasão em 1961 (o episódio da Baía dos Porcos) e a de extermínio nuclear em 1962 (Crise dos Mísseis). Além disso, o povo cubano é vítima de constantes atentados terroristas planejados e executados a partir do território estadunidense. Até 2001 a CIA admite ter levado a cabo 637 atentados ou planos de assassinato contra o dirigente máximo da revolução, Fidel Castro.

Mas, ainda que se pese a gravidade de todas essas agressões, a pior é o bloqueio econômico imposto pelos EUA a Cuba. Quando este começou a ser implementado (em 1960), o então secretário adjunto de Estado dos EUA, Lester Dewitt Mallory, foi bem enfático quanto a seus objetivos: “Negar dinheiro e abastecimento a Cuba (...) a fim de provocar fome, desespero e a queda do governo”.

Do ponto de vista econômico, Cuba dependia totalmente das relações comerciais com os EUA. A produção açucareira era a “espinha dorsal” de sua economia e o mercado estadunidense seu principal comprador. Além disso, a ilha dependia fortemente de importações provenientes daquele país, incluindo combustíveis e alimentos. Com o embargo, a economia cubana só não mergulhou no mais completo caos graças ao crescente apoio soviético, principalmente a partir do final de 1960.

O bloqueio econômico sempre foi a peça-chave da estratégia de agressão estadunidense contra o povo cubano. Mas esse “bloqueio” também se estende a outras esferas da existência. Há mais de cinquenta anos os EUA se esforçam em isolar diplomaticamente Cuba. Há décadas o Departamento de Estado move uma campanha de desinformação e propaganda contra Cuba, que atinge os principais meios de comunicação do mundo. Mediante suborno, ameaças e, principalmente, cooptação ideológica, peças de propaganda disfarçadas de jornalismo são alardeadas com uma capilaridade impressionante. Mentiras e silogismos ganham espaços na mídia com uma consistência tão impressionante que envergonharia o próprio Goebbels.

Diante de tamanho bloqueio à verdade exercido pelos grandes meios de (des)informação, devemos saudar efusivamente o surgimento de obras como Cuba sem Bloqueio, de Hideyo Saito e Antonio Gabriel Haddad. Trata-se de um trabalho singular, no qual os autores traçam, em seus doze capítulos, uma cuidadosa e atualizada radiografia da realidade cubana. São abordados os principais temas que cercam a história recente dessa ilha caribenha: as transformações econômicas do chamado Período Especial e o recrudescimento do bloqueio econômico contra Cuba após a crise e dissolução do bloco socialista no início da década de 1990. As estruturas políticas e de participação popular também são analisadas, bem como os avanços nas áreas educacionais e de saúde. De uma maneira concisa, as principais conquistas da sociedade cubana, bem como suas contradições, dilemas e incertezas, são objeto de exame.

Creio que um dos pontos altos da obra consista na descrição das instituições democráticas da República de Cuba. Digo isso porque grande parte dos brasileiros, vítimas de décadas de campanhas de desinformação e intoxicação ideológica, não tem conhecimento que se realizam eleições para as 169 Assembleias Municipais (a cada dois anos e meio), para as quinze Assembleias Provinciais e a Assembleia Nacional (a cada cinco anos). A maioria dos brasileiros desconhece também que os Poderes Executivos (municipais, provinciais e nacional) são eleitos por essas Assembleias e que não é necessário ser membro do Partido Comunista de Cuba para participar de eleição (grande parte dos deputados da Assembleia Nacional não é filiada ao PC).

Os órgãos de (des)informação no Brasil escondem o fato de que em Cuba os mandatos não pertencem aos delegados e deputados, mas sim ao povo cubano, e por esse motivo têm de prestar contas periodicamente aos eleitores de suas circunscrições eleitorais, e estas podem revogar mandatos a qualquer momento. Tampouco a mídia brasileira informa que o voto em Cuba, apesar de não ser obrigatório, tem uma participação média de 97,1% dos eleitores nos pleitos municipais e 96,4% nos provinciais e nacional.

Além disso, todas as decisões importantes são amplamente discutidas pela população cubana. A título de exemplo, para aprovar as polêmicas medidas que marcaram as transformações econômicas do Período Especial, foram realizadas discussões em mais de 80 mil locais de trabalho, envolvendo cerca de 3 milhões de pessoas (numa população de cerca de 11 milhões de habitantes). Somente depois as medidas foram enviadas para aprovação na Assembleia Nacional.

Diante de tantas virtudes, não devemos nos surpreender por que a reacionária classe dominante brasileira insiste em fustigar caluniosamente Cuba como uma “ditadura”. Curiosamente, é o caráter avançado de sua democracia que os assusta, com seus altos índices de participação popular em todos os níveis. Paradoxalmente, ainda segundo eles, seria justamente esse radical caráter popular da democracia cubana o que possibilitou a país sobreviver à pior crise de sua história.


(*) José Rodrigues Máo Júnior é professor doutor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo


domingo, 19 de maio de 2019

O assombroso enigma da economia chinesa


Diante da crise, e ao contrário do Ocidente, país faz imensos investimentos em infra-estrutura e no consumo interno. Consolidará capitalismo de Estado? Talvez – mas de nada serve examinar sua experiência com as lentes do preconceito





Por Zhang Jun | Tradução: Felipe Calabrez


Para o Ocidente, o ano de 2008 marcou o início de um difícil período de crise, recessão e recuperação desigual. Para a China, 2008 também foi um importante ponto de inflexão, mas seguido por uma década de progresso rápido que poucos poderiam ter previsto.

É claro: quando o banco de investimento norte-americano Lehman Brothers entrou em colapso, desencadeando uma crise financeira global, os líderes chineses ficaram profundamente preocupados. Suas preocupações foram agravadas por desastres naturais — incluindo fortes nevascas e tempestades de neve no sul, em janeiro de 2008, e o devastador terremoto de Sichuan, cinco meses depois, que matou 70 mil chineses – assim como revoltas no Tibet.

No começo, os temores da China pareciam estar se tornando realidade. Apesar de sediar uma impressionante Olimpíada em Pequim, em agosto daquele ano, seu mercado de ações despencou de um recorde de 6.124 pontos para 1.664, em outubro de 2008, em uma queda assombrosa.

Mas as autoridades chinesas continuaram dedicadas a seu plano de longo prazo de rever o modelo de crescimento do país, afastando-se de uma ênfase nas  exportações e adotando um projeto pautado pelo consumo interno. Na verdade a crise econômica global serviu para fortalecer esse compromisso, ao ressaltar os riscos da dependência chinesa da demanda externa.

Esse compromisso valeu a pena. Na última década, muitos milhões de chineses somaram-se à classe média, que agora reúne de 200 a 300 milhões de pessoas. Com um patrimônio líquido médio de 139 mil dólares per capita, o poder de compra total desse grupo pode chegar a 28 trilhões de dólares, comparado a 16,8 trilhões nos Estados Unidos e 9,7 trilhões no Japão. A classe média da China já exerce esse poder. A China respondeu por 70% das compras globais de luxo anualmente na última década. Embora a propriedade de carros per capita seja cerca de metade da média global, desde 2008, os chineses têm sido seguidamente os principais compradores de automóveis do mundo, superando os norte-americanos. Em 2018, mais de 150 milhões de chineses viajaram ao exterior.

Para as autoridades chinesas, fomentar o surgimento de uma classe média tão formidável foi uma oportunidade estratégica crucial. Como Liu He, o principal assessor econômico do presidente chinês, Xi Jinping, escreveu em 2013, a meta da China, antes da crise, era tornar-se um centro de produção global; alcançar o objetivo atrairia capital internacional e conhecimento. Depois de 2008, os imperativos estratégicos da China mudaram para a redução do risco da dívida e o impulsionamento da demanda agregada. Ao mesmo tempo, adotaram-se estímulos econômicos maciços para estimular o consumo e o investimento doméstico, diminuindo assim a vulnerabilidade do país a choques externos.

Como parte dessa iniciativa, a China buscou realizar investimentos de larga escala em infraestrutura, como a construção de quase 30 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade. O aumento da mobilidade — somente no ano passado, a rede ferroviária transportou quase dois bilhões de passageiros — facilitou muito os laços econômicos regionais, impulsionou a urbanização e aumentou substancialmente o consumo.

Graças a esses esforços — juntamente com fusões e aquisições de empresas estrangeiras, para adquirir tecnologias-chave, e investimentos lucrativos em infra-estrutura nas economias desenvolvidas — a economia chinesa quase triplicou em tamanho entre 2008 e 2018. O PIB chegou a 13,6 trilhões de dólares. Em 2008, era 50% menor do que o do Japão; em 2016, 2,3 vezes maior.

Sim, desafios difíceis surgiram. Os valores da terra e da moradia subiram, com os preços dos imóveis urbanos subindo tão rápido que muitos temeram uma bolha. O crescimento do crédito gerou mais riscos. No geral, no entanto, as políticas expansionistas deram suporte ao rápido surgimento da China como uma potência econômica global.

Mas os líderes da China não planejaram uma característica crucial desse padrão de crescimento, e que também não foi pensada pela sua política industrial. As indústrias inovadoras focadas no consumo, que mal existiam em 2008, estão impulsionando cada vez mais a economia chinesa hoje.

A China é agora líder global em comércio eletrônico e pagamentos móveis. Em 2018, os pagamentos móveis na China totalizaram 24 trilhões de dólares — 160 vezes mais que nos EUA. Os bancos estatais e as empresas petroquímicas, que eram as principais firmas chinesas em 2008, foram superadas pelo e-commerce e pelos gigantes da internet Alibaba e Tencent. Empresas de Internet e tecnologia estão criando dezenas de milhões de empregos por ano.

Enquanto isso, o desempenho do setor manufatureiro — há muito tempo o principal motor do desenvolvimento da China e ainda o maior empregador do país — enfraqueceu, prejudicado em parte pelo rápido crescimento dos salários. O resultado foi uma mudança fundamental na composição estrutural da economia chinesa.

No entanto, em vez de examinar essa mudança — que não é captada em medidas tradicionais do PIB –, muitos economistas concentraram-se em tentar criar buracos na narrativa de crescimento da China. Um estudo recente da Brookings Institution, por exemplo, estima que a economia do país é cerca de 12% menor do que os números oficiais indicam.

Essa atitude é contraproducente. As mudanças que a economia chinesa sofreu na última década são amplas, sem precedentes e essenciais. Seria mais proveitoso para o mundo que houvesse um esforço para compreender tais mudanças, em vez da tentativa de provar que as conquistas do país são menos impressionantes do que demonstra a realidade.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

A questão do socialismo - 1





 Por Wladimir Pomar


A ofen­siva fas­cista contra o ca­ráter na­ci­onal e de­mo­crá­tico (mesmo formal) da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista bra­si­leira, pro­cu­rando re­tro­cedê-la à con­dição se­mi­co­lo­nial e di­ta­to­rial, trouxe à tona, em­bora de forma en­vi­e­sada, a questão do so­ci­a­lismo. Ele­vado à con­dição de um dos prin­ci­pais ini­migos do bol­so­na­rismo, é apre­sen­tado como algo abo­mi­nável, a ser re­pe­lido, der­ro­tado e ex­pur­gado. Tudo Isso, em­bora parte da es­querda o hou­vesse re­le­gado ao es­que­ci­mento.

É evi­dente que o bol­so­na­rismo e de­mais cor­rentes da di­reita fazem uma fi­gu­ração to­tal­mente dis­tor­cida do so­ci­a­lismo e de suas va­ri­antes. Por outro lado, para ser sin­cero, essa também é uma ca­te­goria econô­mica, so­cial e po­lí­tica sobre a qual são co­muns ca­ri­ca­turas di­versas pro­pa­ladas por cor­rentes de es­querda, in­clu­sive so­ci­a­listas e co­mu­nistas.

Por exemplo, há quem acre­dite que o so­ci­a­lismo é capaz de ser criado por si mesmo. Bas­taria aguardar o avanço das po­lí­ticas so­ciais de me­lhoria do poder de compra e dos ní­veis de con­sumo da maior parte das classes so­ciais para que se ele con­cre­tize na so­ci­e­dade, prin­ci­pal­mente se tiver um forte ca­ráter de­mo­crá­tico. Se­tores da bur­guesia também acre­ditam nisso, o que os leva a com­bater as po­lí­ticas so­ciais e pender para o bol­so­na­rismo.

Ou­tros, co­nhe­ce­dores da exis­tência da con­tra­dição entre as re­la­ções de pro­dução as­sa­la­ri­adas e a pro­pri­e­dade pri­vada das forças pro­du­tivas, acre­ditam que tal con­tra­dição le­vará na­tu­ral­mente à con­quista do apoio da mai­oria do povo e à im­plan­tação do ca­minho so­ci­a­lista. O que pro­pi­ci­aria a cres­cente in­cor­po­ração so­cial da eco­nomia so­li­dária, seja dos se­tores ar­te­sa­nais das co­o­pe­ra­tivas de ca­ta­dores de lixo e de ou­tros tipos até as em­presas es­ta­tais. A pro­pri­e­dade pri­vada seria ex­tinta por seus pró­prios de­feitos.

Ou seja, há gente que mis­tura alhos com bu­ga­lhos, tanto para turvar a aná­lise do de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista que tem por base a con­tra­dição entre o de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas e as re­la­ções de pro­dução as­sa­la­ri­adas, quanto para gerar ilu­sões. Ou, em sen­tido con­trário, para des­qua­li­ficar as po­lí­ticas so­ciais que pos­sí­veis go­vernos po­pu­lares adotem para am­pliar o em­prego e me­lhorar o poder de con­sumo e as con­di­ções de vida dos ex­plo­rados.

Na prá­tica, a con­tra­dição entre as forças pro­du­tivas (força de tra­balho, equi­pa­mentos, má­quinas, tec­no­lo­gias, ci­ên­cias) e as re­la­ções de pro­dução (as­sa­la­ri­a­mento dos tra­ba­lha­dores) não é a única a im­pul­si­onar o de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo. Tal con­tra­dição, em geral, é in­flu­en­ciada por ou­tras con­tra­di­ções e também as in­flu­encia. Exem­plos disso são a luta entre ca­pi­ta­listas e tra­ba­lha­dores por au­mento de sa­lário e por ou­tras rei­vin­di­ca­ções cor­re­latas, a con­cor­rência entre os pró­prios ca­pi­ta­listas (que os em­purra para a ino­vação e o de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico), e as di­versas dis­putas com ou­tras classes so­ciais pre­sentes na so­ci­e­dade, agra­vando-as e sendo agra­vadas por elas.

De qual­quer modo, a con­tra­dição que opõe o de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas a essa es­trei­teza das re­la­ções entre pro­pri­e­tá­rios pri­vados e tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados é a prin­cipal. É ela que de­fine as ten­dên­cias reais do ca­pi­ta­lismo como for­mação his­tó­rica. Por­tanto, à me­dida que se de­sen­volve, o ca­pi­ta­lismo possui como po­si­tiva a ele­vação da pro­du­ti­vi­dade das forças pro­du­tivas. No en­tanto, ne­ga­ti­va­mente, a pro­pri­e­dade pri­vada que lhe per­mite apro­priar-se de taxas ele­vadas de mais-valia con­centra e cen­tra­liza a ri­queza em par­celas cada vez me­nores da pró­pria classe ca­pi­ta­lista ou bur­guesa.

No de­sen­vol­vi­mento dessa con­tra­dição, os países ca­pi­ta­listas mais avan­çados deram um salto es­tru­tural a partir dos anos 1970. Por um lado, re­es­tru­tu­raram suas em­presas como cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais de altas tec­no­lo­gias e in­ten­si­fi­caram o de­sem­prego es­tru­tural. Ou seja, au­men­taram a ca­pa­ci­dade de pro­dução ao mesmo tempo em que o de­sem­prego afe­tava cres­cen­te­mente não só os tra­ba­lha­dores sem qua­li­fi­cação téc­nica, mas também os qua­li­fi­cados.

Ou seja, ao mesmo tempo em que cri­aram con­di­ções téc­nicas para o cres­cente aten­di­mento das de­mandas so­ciais, re­du­ziram bru­tal­mente a ca­pa­ci­dade desse aten­di­mento ao criar massas de de­sem­pre­gados e tornar mais evi­dente o sig­ni­fi­cado ne­ga­tivo da con­tra­dição entre as forças pro­du­tivas em cons­tante de­sen­vol­vi­mento e a emer­gência de massas hu­manas ex­cluídas do tra­balho, do es­tudo e das con­di­ções bá­sicas de vida.

Para pi­orar, os países ca­pi­ta­listas avan­çados, em es­pe­cial o norte-ame­ri­cano, re­es­tru­tu­raram ra­di­cal­mente sua ex­por­tação de ca­pi­tais. In­ten­si­fi­caram não só a ex­por­tação de pro­dutos fi­nan­ceiros es­pe­cu­la­tivos, mas também de plantas in­dus­triais, seg­men­tadas ou com­pletas, para países de mão-de-obra mais ba­rata. Com isso, in­ten­si­fi­caram não só a trans­fe­rência de di­vi­dendos para suas ma­trizes, mas também o de­sem­prego em seus ter­ri­tó­rios.

Di­zendo de outro modo: por um lado o uso de tec­no­lo­gias (tra­balho morto) ofe­receu cres­centes con­di­ções para atender a todas as ne­ces­si­dades hu­manas. Por outro, a apro­pri­ação pri­vada desse tra­balho morto elevou a con­cen­tração e a cen­tra­li­zação do ca­pital (vide a emer­gência das cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais), in­ten­si­ficou a queda da taxa média de lucro, levou o ca­pi­ta­lismo a pro­curar na mul­ti­pli­cação fic­tícia do di­nheiro a fonte de ele­vação de sua lu­cra­ti­vi­dade, am­pliou a pos­si­bi­li­dade de crises fi­nan­ceiras e es­tru­tu­rais, re­duziu in­ten­sa­mente a ne­ces­si­dade de con­tratar força de tra­balho hu­mano (tra­balho vivo) e am­pliou as massas hu­manas des­pro­vidas de con­di­ções de tra­balho e de vida.

Basta re­parar na atual si­tu­ação do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano, com sua in­tensa subs­ti­tuição do tra­balho vivo por tra­balho morto, enorme acu­mu­lação da ri­queza, grande parte fic­tícia, au­mento brutal da mi­se­ra­bi­li­dade da classe tra­ba­lha­dora, li­qui­dação cres­cente do mer­cado con­su­midor e ge­ração de crises cí­clicas des­tru­tivas, como as que vêm aba­lando o mundo desde 2007-08. Dei­xado a si pró­prio, o ca­pi­ta­lismo tende a gerar crises cres­centes em seu modo de pro­dução e pode levar a um co­lapso geral. E como se torna cada vez mais um modo de pro­dução pla­ne­tário ou global, também tende a levar o mundo e a es­pécie hu­mana ao co­lapso.

Por outro lado, essas ten­dên­cias ca­pi­ta­listas aguçam as con­tra­di­ções que opõem a classe dos tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados e ou­tros se­tores so­ciais à classe pro­pri­e­tária ca­pi­ta­lista. Par­tindo da luta pela re­dução do grau de ex­plo­ração e da do­mi­nação da bur­guesia, essa con­tra­dição pode cul­minar na ne­gação da pro­pri­e­dade pri­vada e sua subs­ti­tuição pela pro­pri­e­dade so­cial, trans­for­mando o ca­pi­ta­lismo numa for­mação econô­mico-so­cial su­pe­rada.

Em so­ci­e­dades ca­pi­ta­listas avan­çadas, essa luta das classes ex­plo­radas pode trans­formar o modo de pro­dução ca­pi­ta­lista num modo que tenha por base o tra­balho de má­quinas tec­no­lo­gi­ca­mente avan­çadas. A cir­cu­lação de seus pro­dutos pode atender a todas as ne­ces­si­dades so­ciais e sua dis­tri­buição pode atender às ne­ces­si­dades in­di­vi­duais de todos e de cada um dos mem­bros da so­ci­e­dade. Com isso, a es­pécie hu­mana pode ser li­be­rada para ad­mi­nis­trar o aten­di­mento das ne­ces­si­dades so­ciais e in­di­vi­duais e apro­fundar o tra­balho ci­en­tí­fico, tec­no­ló­gico e cul­tural.

Os so­ci­a­listas ci­en­tí­ficos acre­di­tavam que, his­to­ri­ca­mente, essa trans­for­mação de­veria ocorrer pri­meiro nos países ca­pi­ta­listas avan­çados, o so­ci­a­lismo não pas­sando de um breve in­ter­regno de tran­sição do ca­pi­ta­lismo para o co­mu­nismo. Mas isso não ocorreu assim. O so­ci­a­lismo se apre­sentou prin­ci­pal­mente como so­ci­e­dade de tran­sição de países atra­sados do ponto de vista ca­pi­ta­lista, com va­ri­a­ções muito mais com­plexas e va­ri­adas do que se su­punha.

Aliás, o pro­cesso his­tó­rico de evo­lução e trans­for­mação da hu­ma­ni­dade nunca foi li­near. A pas­sagem dos es­tá­gios pri­mi­tivos da caça e pesca, da re­vo­lução agrí­cola e pe­cuária es­cra­vista para o in­ter­mezzo da ser­vidão e da re­vo­lução in­dus­trial ca­pi­ta­lista, re­sultou numa mi­ríade de povos em es­tá­gios di­fe­rentes de de­sen­vol­vi­mento econô­mico, so­cial e po­lí­tico, nem sempre os mais avan­çados saindo na frente.

Atu­al­mente, a grande mai­oria dos povos já vive sob o guante do modo de pro­dução, cir­cu­lação e dis­tri­buição ca­pi­ta­lista, mas suas formas e seus ní­veis de de­sen­vol­vi­mento são de­si­guais e des­com­bi­nados. Al­gumas poucas na­ções ca­pi­ta­listas são muito de­sen­vol­vidas, per­mi­tindo que ajam de forma im­pe­ri­a­lista em re­lação às de­mais. A mai­oria ainda é atra­sada, ou me­di­a­na­mente de­sen­vol­vida, e apre­senta ca­rac­te­rís­ticas de de­pen­dência, su­bor­di­nação e/ou des­na­ci­o­na­li­zação.

Mesmo assim, foi jus­ta­mente a pers­pec­tiva de in­de­pen­dência e de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal, econô­mico, so­cial e po­lí­tico que em­purrou vá­rias delas a adotar algum tipo de ca­minho so­ci­a­lista, que nada tem a ver com o mar­xismo cul­tural ou ou­tros brincos ide­o­ló­gicos do bol­so­na­rismo.

domingo, 5 de maio de 2019

O marxismo na América Latina: rupturas, continuidades e crítica ao eurocentrismo



por ANTONIO OZAÍ DA SILVA



A introdução a O marxismo na América Latina, escrita por Michael Löwy, que também organizou esta coletânea, é essencial para a leitura e compreensão dos documentos e textos que compõem a obra e também dos dilemas e evolução do marxismo latino-americano. Como observou Isabel Loureiro, no texto das orelhas, a introdução “é bem articulada teoricamente, cujo grande mérito é dar uma visão estruturada do campo altamente complexo formado pelas diferentes tendências e vertentes do pensamento marxista latino-americano”.

No primeiro capítulo, o organizador selecionou textos de Juan B. Justo e Luis Emilio Recabarren referentes aos primeiros tempos do marxismo na América Latina. A seguir, enfocou o período revolucionário, dos anos 20 a meados da década de 1930. São documentos da Internacional Comunista e textos que nos permitem averiguar não apenas como as lideranças e os organismos internacionais viam a América Latina, mas também como os acontecimentos vinculados à Revolução Russa impactaram os pioneiros do marxismo latino-americano. Este foi um período de relativa autonomia para os comunistas na América Latina.

Nesta fase, esboçou-se entre nós a perspectiva do desenvolvimento de um marxismo vinculado às particularidades latino-americanas. José Carlos Mariátegui (1895-1930), fundador do comunismo no Peru, é um dos pensadores que se destacam. Sua originalidade possibilitou a construção de uma “síntese dialética entre o universal e o particular, o internacional e o latino-americano”. Em Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, publicado em 1928, sua principal obra, Mariátegui apresenta uma das primeiras tentativa “de análise marxista de uma formação latino-americana concreta”, superando o eurocentrismo e o excepcionalismo aprista. (LÖWY, 2006, págs. 17 e 18). Os textos publicados nesta coletânea são ilustrativos da preocupação deste autor em incorporar a questão indígena, isto é, a tradição e a continuidade da identidade latino-americana inca. Nas palavras de Michael Löwy:

“Na realidade, seu pensamento caracteriza-se justamente por uma fusão entre os aspectos mais avançados da cultura européia e as tradições milenares da comunidade indígena, e por uma tentativa de assimilar a experiência social das massas camponesas numa reflexão teórica marxista” (id.).

As lutas internas na pátria do socialismo e, por decorrência, no interior da Internacional Comunista (IC), aliado às mudanças na conjuntura política mundial, incidiram sobre a realidade do marxismo latino-americano. As transformações políticas no movimento comunista internacional, isto é, a bolchevização e a stalinização da IC, com a conseqüente imposição da linha política stalinista, abortaram as iniciativas originais dos marxistas em solo latino-americano. Lideranças como José Carlos Mariátegui e Julio Antonio Mella (1903-1929), fundador do Partido Comunista Cubano, tiveram seus espaços reduzidos e logo foram suplantados pelos novos líderes vinculados ao aparato da IC. Estes se mantiveram fiéis às orientações, ainda que contraditórias, emanadas da Meca socialista e implementadas pelas diversas seções da Internacional Comunistas, os partidos comunistas nacionais. Com a hegemonia do stalinismo consolida-se também a perspectiva eurocentrista do marxismo.

O período stalinista, de meados da década de 1930 até 1959, é o tema do terceiro capítulo desta coletânea. As palavras impressas nestas páginas são também um testemunho de uma cultura política-ideológica que sobrevive ao stalinismo e marca a nossa formação. Acompanhemos os argumentos, a concepção etapista sobre a revolução democrática-burguesa, as reviravoltas na linha política – da Frente Popular nos anos 1930 ao caminho pacífico da revolução brasileira de 1958 – e estudemos, por exemplo, a trajetória do Partido dos Trabalhadores e dos principais partidos comunistas em nosso país e, talvez, possamos entender a atualidade. A estratégia etapista – e a sua crítica – é o fio condutor para o entendimento da linha política predominante, que se manteve mesmo com os ziguezagues conjunturais.

Porem, nenhuma força política hegemônica é eterna. A crítica à estratégia democrática-burguesa, ainda que minoritária, mas já presente nos autores do período revolucionário, desafiou a ortodoxia stalinista afirmando a possibilidade da revolução socialista. Isto significava reconhecer a incapacidade da burguesia nacional em cumprir as tarefas que historicamente são debitadas à sua responsabilidade.

Por outro lado, há que considerar as mudanças históricas e o desafio que elas representaram para o domínio stalinista. Novos processos revolucionários abrem novos focos de crítica à sua hegemonia. A Revolução Chinesa e a Revolução Cubana, ainda que tenham se mantido inicialmente na órbita de Moscou, desempenharam este papel. Abriu-se um novo período revolucionário, cujos textos selecionados no quarto capítulo são essenciais para compreendê-lo. As forças hegemônicas, isto os partidos e organizações comunistas stalinizados em cada país, se vêem obrigados a enfrentar a nova realidade expressa pelo castrismo e guevarismo da revolução cubana, o maoísmo e até mesmo o trotskismo, que ganha novo alento com a crise da hegemonia stalinista. Torna-se possível a construção de uma nova esquerda em ruptura com o stalinismo e a nova geração ideologicamente assimilada ao marxismo. Além de representarem fonte de referenciais alternativos, as revoluções chinesa e cubana colocaram o socialismo na ordem do dia, em contraposição à tese da etapa democrática-burguesa.

No quinto e último capítulo, o organizador apresenta textos sobre as novas tendências do marxismo latino-americano. Na conjuntura política da década de 1980 e 1990, os marxismos, vinculados ou não à tradição stalinista, se vêem confrontados com as novas forças e idéias representadas pelo movimento feminista, a crescente influência da Teologia da Libertação na esquerda latino-americana e outras manifestações de movimentos sociais como o MST brasileiro e o EZLN no México. No Brasil, esta experiência é sintetizada pelo Partido dos Trabalhadores. São textos de intervenção e análise escritos por militantes como Elizabeth Souza-Lobo, Frei Betto, Enrique Dussel, João Pedro Stédile e Frei Sérgio entre outros. Há também documentos do Partido dos Trabalhadores e do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).

Esta obra possibilita o resgate da história do marxismo latino-americano, suas formulações teóricas e políticas para a luta social e as polêmicas em seu interior. Um olhar neste passado contribui para compreendemos com maior acuidade a esquerda brasileira e latino-americana atual em suas diversas manifestações. O estudo aprofundado sobre o marxismo nos ajuda a detectar os fatores que representam a ruptura e aqueles que, a despeito de se apresentarem como novidades, nada mais são do que a repetição da história em novo contexto. E mesmo o que parece radicalmente novo carrega em si as marcas da tradição. O “novo” embute em si o “velho”, a ruptura pressupõe também a continuidade.

Toda seleção de textos, como admite Michael Löwy, “tem certo grau de arbitrariedade” (p.65). Ela também representa a subjetividade do organizador. Não obstante, ele logra superar os riscos inerentes a uma obra com esta característica e oferece ao leitor, estudioso e/ou militante, um excelente panorama sobre o marxismo na América Latina.

Uma das principais contribuições dessa obra é a exposição dos traços que permitem identificar uma certa continuidade cultural e histórica essencialmente eurocêntrica e que, simultaneamente, nos revela a possibilidade da crítica. O ponto de partida é a admissão de que desconhecemos a América Latina, seus povos, particularidades e história. Nossos olhares, e nem me refiro à elite econômica brasileira e/ou à classe média consumista e perdulária, volta-se para a Europa e Estados Unidos. A nossa cultura é impregnada pelos valores europeus e estadunidenses. No cinema e na TV, a produção hollywoodiana e de baixo nível se impõe. A nossa segunda língua é o inglês.

Na esquerda, isto é, entre os que se consideram não alienados e lutadores por um outro mundo que, dizem, é possível, não é muito diferente. Nossas raízes políticas e ideológicas são eurocêntricas. Conhecemos mais a historia do movimento operário alemão do que a nossa própria história. Sabemos mais sobre a revolução francesa, o iluminismo e os grandes pensadores do século XIX, do que sobre os movimentos sociais latino-americanos, suas formas de organização política, lideranças e ideologias. Comemoramos cinqüentenários, centenários etc. de fatos históricos, nascimentos e morte dos ícones, datas de publicação desta ou daquela obra “santificada”. Reverenciamos, e praticamente beatificamos, os líderes revolucionários da Europa Ocidental e de países com a Rússia.

Compreendo a necessidade de reverenciar os mestres, chorar e homenagear os mártires, festejar e rememorar datas que marcaram a caminhada de luta e sangue derramado. Compreendo o desejo de resgatar os fatos, nomes, eventos e obras impactantes. Até mesmo entendo que isso seja feito como um ritual profano que alimenta os mitos. Tudo isso é necessário à alma humana. Mesmos os ateus precisam acreditar em algo!

Não obstante, nossa razão e emoção permanecem impregnadas pelo eurocentrismo. Isto produziu graves problemas para o marxismo latino-americano, com seqüelas que marcaram a nossa história. A crítica à nossa formação eurocêntrica é fundamental. Como escreve Löwy:

“Foi o eurocentrismo, mais do que qualquer outra tendência, que devastou o marxismo latino-americano. Com esse termo queremos nos referir a uma teoria que se limita a transplantar mecanicamente para a América Latina os modelos de desenvolvimento econômica socioeconômico que explicam a evolução histórica da Europa ao longo do século XIX. Para cada aspecto da realidade européia estudado por Marx e Engels – a contradição entre as forças produtivas capitalistas e relações feudais de produção, o papel historicamente progressista da burguesia, a revolução democrático-burguesa contra o Estado feudal absolutista – procurou-se laboriosamente o equivalente latino-americano, transformando o marxismo em um leito de Procusto, sobre o qual a realidade era impiedosamente “recortada” ou “esticada” conforme as necessidades do momento. (...) Nessa problemática, toda a especificidade da América Latina foi implícita ou explicitamente negada, e o continente concebido como uma espécie de Europa tropical, com seu desenvolvimento retardado de um século, e sob o domínio do império norte-americano” (pp. 10-11).

O eurocentrismo é mais do que uma teoria, é uma forma de pensar que, a despeito das divergências no interior do marxismo, se tornou predominante. É mais do que um pensamento teórico, é uma cultura e prática militante. Não obstante, a crítica ao eurocentrismo não significa negar a positividade do pensamento europeu ocidental, nem substituir um dogma por outro. Não se trata de absolutizar a peculiaridade cultural e histórica das sociedades latino-americanas, mas de construir uma síntese entre o marxismo importado e a realidade da América Latina.[1] Por um lado, não há como negar a influência eurocêntrica incorporada em nossa história desde o século XIX – vale lembrar que o marxismo em nossa região tem suas raízes na imigração européia. Por outro lado, é preciso recusar a pretensão desta em ditar os modelos teóricos de organização e ação política, como se fosse a única possibilidade de agir diante do mundo.

Esta obra, Marxismo na América Latina, nos permite avançar na perspectiva da crítica ao eurocentrismo e para além das nossas eternas verdades. Ela contribui para o conhecimento de uma realidade sócio-política pertinentes à nossa história social, mas nem sempre reconhecida como deveria. Romper com o eurocentrismo é afirmar a nossa autonomia de pensar e agir a partir da nossa própria realidade histórica, é admitir a nossa ignorância da história latino-americana, mesmo com as exceções.

Precisamos conhecer a história do marxismo no Brasil e na América Latina. A práxis militante sem este conhecimento favorece a continuidade da veneração de ícones e teorias assimilados acriticamente. Em vez da ação consciente e que leve em conta a especificidade da nossa realidade história e cultural, tendemos a formar “militantes papagaios”, autômatos que repetem slogans, palavras-de-ordem, teorias deslocadas no tempo e no espaço histórico e que cultuam os profetas mortos e/ou os que se impõem na moda do presente. Eis um bom início para quem deseje superar tais limitações.



[1] Como nota Löwy (2006:10): “O excepcionalismo indo-americano tende a absolutizar a especificidade da América latina e de sua cultura, história ou estrutura social. Levado às suas últimas conseqüências, esse particularismo americano acaba por colocar em questão o próprio marxismo como teoria exclusivamente européia. O exemplo mais significativo dessa abordagem foi a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) ...”




ANTONIO OZAÍ DA SILVA. Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em Ciência Política (PUC/SP); Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Núcleo de Estudos de Ideologia e Lutas Sociais (NEILS) - PUC/SP


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LÖWY, Michael (org.) O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2006 (2ª edição ampliada), 585p.

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