por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
A introdução a O marxismo na América Latina, escrita por Michael Löwy, que também organizou esta coletânea, é essencial para a leitura e compreensão dos documentos e textos que compõem a obra e também dos dilemas e evolução do marxismo latino-americano. Como observou Isabel Loureiro, no texto das orelhas, a introdução “é bem articulada teoricamente, cujo grande mérito é dar uma visão estruturada do campo altamente complexo formado pelas diferentes tendências e vertentes do pensamento marxista latino-americano”.
No primeiro capítulo, o organizador selecionou textos de Juan B. Justo e Luis Emilio Recabarren referentes aos primeiros tempos do marxismo na América Latina. A seguir, enfocou o período revolucionário, dos anos 20 a meados da década de 1930. São documentos da Internacional Comunista e textos que nos permitem averiguar não apenas como as lideranças e os organismos internacionais viam a América Latina, mas também como os acontecimentos vinculados à Revolução Russa impactaram os pioneiros do marxismo latino-americano. Este foi um período de relativa autonomia para os comunistas na América Latina.
Nesta fase, esboçou-se entre nós a perspectiva do desenvolvimento de um marxismo vinculado às particularidades latino-americanas. José Carlos Mariátegui (1895-1930), fundador do comunismo no Peru, é um dos pensadores que se destacam. Sua originalidade possibilitou a construção de uma “síntese dialética entre o universal e o particular, o internacional e o latino-americano”. Em Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, publicado em 1928, sua principal obra, Mariátegui apresenta uma das primeiras tentativa “de análise marxista de uma formação latino-americana concreta”, superando o eurocentrismo e o excepcionalismo aprista. (LÖWY, 2006, págs. 17 e 18). Os textos publicados nesta coletânea são ilustrativos da preocupação deste autor em incorporar a questão indígena, isto é, a tradição e a continuidade da identidade latino-americana inca. Nas palavras de Michael Löwy:
“Na realidade, seu pensamento caracteriza-se justamente por uma fusão entre os aspectos mais avançados da cultura européia e as tradições milenares da comunidade indígena, e por uma tentativa de assimilar a experiência social das massas camponesas numa reflexão teórica marxista” (id.).
As lutas internas na pátria do socialismo e, por decorrência, no interior da Internacional Comunista (IC), aliado às mudanças na conjuntura política mundial, incidiram sobre a realidade do marxismo latino-americano. As transformações políticas no movimento comunista internacional, isto é, a bolchevização e a stalinização da IC, com a conseqüente imposição da linha política stalinista, abortaram as iniciativas originais dos marxistas em solo latino-americano. Lideranças como José Carlos Mariátegui e Julio Antonio Mella (1903-1929), fundador do Partido Comunista Cubano, tiveram seus espaços reduzidos e logo foram suplantados pelos novos líderes vinculados ao aparato da IC. Estes se mantiveram fiéis às orientações, ainda que contraditórias, emanadas da Meca socialista e implementadas pelas diversas seções da Internacional Comunistas, os partidos comunistas nacionais. Com a hegemonia do stalinismo consolida-se também a perspectiva eurocentrista do marxismo.
O período stalinista, de meados da década de 1930 até 1959, é o tema do terceiro capítulo desta coletânea. As palavras impressas nestas páginas são também um testemunho de uma cultura política-ideológica que sobrevive ao stalinismo e marca a nossa formação. Acompanhemos os argumentos, a concepção etapista sobre a revolução democrática-burguesa, as reviravoltas na linha política – da Frente Popular nos anos 1930 ao caminho pacífico da revolução brasileira de 1958 – e estudemos, por exemplo, a trajetória do Partido dos Trabalhadores e dos principais partidos comunistas em nosso país e, talvez, possamos entender a atualidade. A estratégia etapista – e a sua crítica – é o fio condutor para o entendimento da linha política predominante, que se manteve mesmo com os ziguezagues conjunturais.
Porem, nenhuma força política hegemônica é eterna. A crítica à estratégia democrática-burguesa, ainda que minoritária, mas já presente nos autores do período revolucionário, desafiou a ortodoxia stalinista afirmando a possibilidade da revolução socialista. Isto significava reconhecer a incapacidade da burguesia nacional em cumprir as tarefas que historicamente são debitadas à sua responsabilidade.
Por outro lado, há que considerar as mudanças históricas e o desafio que elas representaram para o domínio stalinista. Novos processos revolucionários abrem novos focos de crítica à sua hegemonia. A Revolução Chinesa e a Revolução Cubana, ainda que tenham se mantido inicialmente na órbita de Moscou, desempenharam este papel. Abriu-se um novo período revolucionário, cujos textos selecionados no quarto capítulo são essenciais para compreendê-lo. As forças hegemônicas, isto os partidos e organizações comunistas stalinizados em cada país, se vêem obrigados a enfrentar a nova realidade expressa pelo castrismo e guevarismo da revolução cubana, o maoísmo e até mesmo o trotskismo, que ganha novo alento com a crise da hegemonia stalinista. Torna-se possível a construção de uma nova esquerda em ruptura com o stalinismo e a nova geração ideologicamente assimilada ao marxismo. Além de representarem fonte de referenciais alternativos, as revoluções chinesa e cubana colocaram o socialismo na ordem do dia, em contraposição à tese da etapa democrática-burguesa.
No quinto e último capítulo, o organizador apresenta textos sobre as novas tendências do marxismo latino-americano. Na conjuntura política da década de 1980 e 1990, os marxismos, vinculados ou não à tradição stalinista, se vêem confrontados com as novas forças e idéias representadas pelo movimento feminista, a crescente influência da Teologia da Libertação na esquerda latino-americana e outras manifestações de movimentos sociais como o MST brasileiro e o EZLN no México. No Brasil, esta experiência é sintetizada pelo Partido dos Trabalhadores. São textos de intervenção e análise escritos por militantes como Elizabeth Souza-Lobo, Frei Betto, Enrique Dussel, João Pedro Stédile e Frei Sérgio entre outros. Há também documentos do Partido dos Trabalhadores e do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
Esta obra possibilita o resgate da história do marxismo latino-americano, suas formulações teóricas e políticas para a luta social e as polêmicas em seu interior. Um olhar neste passado contribui para compreendemos com maior acuidade a esquerda brasileira e latino-americana atual em suas diversas manifestações. O estudo aprofundado sobre o marxismo nos ajuda a detectar os fatores que representam a ruptura e aqueles que, a despeito de se apresentarem como novidades, nada mais são do que a repetição da história em novo contexto. E mesmo o que parece radicalmente novo carrega em si as marcas da tradição. O “novo” embute em si o “velho”, a ruptura pressupõe também a continuidade.
Toda seleção de textos, como admite Michael Löwy, “tem certo grau de arbitrariedade” (p.65). Ela também representa a subjetividade do organizador. Não obstante, ele logra superar os riscos inerentes a uma obra com esta característica e oferece ao leitor, estudioso e/ou militante, um excelente panorama sobre o marxismo na América Latina.
Uma das principais contribuições dessa obra é a exposição dos traços que permitem identificar uma certa continuidade cultural e histórica essencialmente eurocêntrica e que, simultaneamente, nos revela a possibilidade da crítica. O ponto de partida é a admissão de que desconhecemos a América Latina, seus povos, particularidades e história. Nossos olhares, e nem me refiro à elite econômica brasileira e/ou à classe média consumista e perdulária, volta-se para a Europa e Estados Unidos. A nossa cultura é impregnada pelos valores europeus e estadunidenses. No cinema e na TV, a produção hollywoodiana e de baixo nível se impõe. A nossa segunda língua é o inglês.
Na esquerda, isto é, entre os que se consideram não alienados e lutadores por um outro mundo que, dizem, é possível, não é muito diferente. Nossas raízes políticas e ideológicas são eurocêntricas. Conhecemos mais a historia do movimento operário alemão do que a nossa própria história. Sabemos mais sobre a revolução francesa, o iluminismo e os grandes pensadores do século XIX, do que sobre os movimentos sociais latino-americanos, suas formas de organização política, lideranças e ideologias. Comemoramos cinqüentenários, centenários etc. de fatos históricos, nascimentos e morte dos ícones, datas de publicação desta ou daquela obra “santificada”. Reverenciamos, e praticamente beatificamos, os líderes revolucionários da Europa Ocidental e de países com a Rússia.
Compreendo a necessidade de reverenciar os mestres, chorar e homenagear os mártires, festejar e rememorar datas que marcaram a caminhada de luta e sangue derramado. Compreendo o desejo de resgatar os fatos, nomes, eventos e obras impactantes. Até mesmo entendo que isso seja feito como um ritual profano que alimenta os mitos. Tudo isso é necessário à alma humana. Mesmos os ateus precisam acreditar em algo!
Não obstante, nossa razão e emoção permanecem impregnadas pelo eurocentrismo. Isto produziu graves problemas para o marxismo latino-americano, com seqüelas que marcaram a nossa história. A crítica à nossa formação eurocêntrica é fundamental. Como escreve Löwy:
“Foi o eurocentrismo, mais do que qualquer outra tendência, que devastou o marxismo latino-americano. Com esse termo queremos nos referir a uma teoria que se limita a transplantar mecanicamente para a América Latina os modelos de desenvolvimento econômica socioeconômico que explicam a evolução histórica da Europa ao longo do século XIX. Para cada aspecto da realidade européia estudado por Marx e Engels – a contradição entre as forças produtivas capitalistas e relações feudais de produção, o papel historicamente progressista da burguesia, a revolução democrático-burguesa contra o Estado feudal absolutista – procurou-se laboriosamente o equivalente latino-americano, transformando o marxismo em um leito de Procusto, sobre o qual a realidade era impiedosamente “recortada” ou “esticada” conforme as necessidades do momento. (...) Nessa problemática, toda a especificidade da América Latina foi implícita ou explicitamente negada, e o continente concebido como uma espécie de Europa tropical, com seu desenvolvimento retardado de um século, e sob o domínio do império norte-americano” (pp. 10-11).
O eurocentrismo é mais do que uma teoria, é uma forma de pensar que, a despeito das divergências no interior do marxismo, se tornou predominante. É mais do que um pensamento teórico, é uma cultura e prática militante. Não obstante, a crítica ao eurocentrismo não significa negar a positividade do pensamento europeu ocidental, nem substituir um dogma por outro. Não se trata de absolutizar a peculiaridade cultural e histórica das sociedades latino-americanas, mas de construir uma síntese entre o marxismo importado e a realidade da América Latina.[1] Por um lado, não há como negar a influência eurocêntrica incorporada em nossa história desde o século XIX – vale lembrar que o marxismo em nossa região tem suas raízes na imigração européia. Por outro lado, é preciso recusar a pretensão desta em ditar os modelos teóricos de organização e ação política, como se fosse a única possibilidade de agir diante do mundo.
Esta obra, Marxismo na América Latina, nos permite avançar na perspectiva da crítica ao eurocentrismo e para além das nossas eternas verdades. Ela contribui para o conhecimento de uma realidade sócio-política pertinentes à nossa história social, mas nem sempre reconhecida como deveria. Romper com o eurocentrismo é afirmar a nossa autonomia de pensar e agir a partir da nossa própria realidade histórica, é admitir a nossa ignorância da história latino-americana, mesmo com as exceções.
Precisamos conhecer a história do marxismo no Brasil e na América Latina. A práxis militante sem este conhecimento favorece a continuidade da veneração de ícones e teorias assimilados acriticamente. Em vez da ação consciente e que leve em conta a especificidade da nossa realidade história e cultural, tendemos a formar “militantes papagaios”, autômatos que repetem slogans, palavras-de-ordem, teorias deslocadas no tempo e no espaço histórico e que cultuam os profetas mortos e/ou os que se impõem na moda do presente. Eis um bom início para quem deseje superar tais limitações.
[1] Como nota Löwy (2006:10): “O excepcionalismo indo-americano tende a absolutizar a especificidade da América latina e de sua cultura, história ou estrutura social. Levado às suas últimas conseqüências, esse particularismo americano acaba por colocar em questão o próprio marxismo como teoria exclusivamente européia. O exemplo mais significativo dessa abordagem foi a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) ...”
ANTONIO OZAÍ DA SILVA. Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em Ciência Política (PUC/SP); Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Núcleo de Estudos de Ideologia e Lutas Sociais (NEILS) - PUC/SP
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LÖWY, Michael (org.) O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2006 (2ª edição ampliada), 585p.
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FONTE: Revista Espaço Academico
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