sábado, 31 de agosto de 2019

A China tem uma alternativa ao neoliberalismo



Como país constrói uma economia de mercado regulada. Por manter finanças e moeda sob controle público, investe em infraestrutura, reduz rapidamente a pobreza e resiste a crises. O que esta experiência pode ensinar ao resto do mundo.





Por Ellen Brown | Tradução: Felipe Calabrez

Quando o banco central dos EUA (o Federal Reserve, Fed) cortou as taxas de juros na semana passada, comentaristas ficaram se perguntando sobre o porquê. Segundo dados oficiais, a economia estava se recuperando, o desemprego estava abaixo de 4% e o crescimento do produto interno bruto estava acima de 3%. Pelo raciocínio do próprio Fed, o que se esperaria era, ao contrário, um aumento das taxas

Os especialistas de mercado explicaram tratar-se de uma guerra comercial e de uma guerra cambial. Outros bancos centrais estavam cortando suas taxas, e o Fed teve que segui-los para evitar que o dólar ficasse supervalorizado em relação a outras moedas. A teoria é que um dólar mais barato tornará os produtos norteamericanos mais atraentes nos mercados externos, ajudando as bases industriais e a mão-de-obra do país.

No fim de semana, o presidente Trump foi além ds cortes de juros, ameaçando impor, em 1º de setembro, uma tarifa suplementar de 10% sobre produtos chineses no valor de 300 bilhões de dólares. A China respondeu suspendendo as importações de produtos agrícolas dos EUA por empresas estatais e deixando cair o valor do yuan. Na segunda-feira, o índice Dow Jones Industrial Average caiu quase 770 pontos, seu pior dia em 2019. A guerra prosseguia.

O problema é que as guerras cambiais não têm vencedores. Isso foi demonstrado políticas de “peça a seu vizinho” [“beggar-thy-neighbor”] dos anos 1930, que apenas aprofundaram a Grande Depressão. Como o economista Michael Hudson observou em uma entrevista concedida em junho à jornalista Bonnie Faulkner, tornar os produtos norte-americanos mais baratos no exterior pouco contribuirá para a economia do país, que não tem mais uma base de produção competitiva ou produtos para vender. Os trabalhadores de hoje estão em grande parte nas indústrias de serviços – motoristas de táxi, funcionários de hospitais, agentes de seguros e afins. Um dólar mais barato no exterior só faz com que os bens de consumo no Walmart e as matérias-primas importadas para as empresas dos EUA fiquem mais caras.

O que é realmente desvalorizado, quando a cotação de uma moeda cai, diz Hudson, são o preço e as condições de trabalho de seus assalariados. A razão pela qual os trabalhadores norte-americanos não podem competir com estrangeiros não é a sobrevalorização do dólar. São os custos maiores de moradia, educação, serviços médicos e transporte. Nos países concorrentes, esses custos são geralmente subsidiados pelo Estado.

O principal concorrente dos EUA na guerra comercial é obviamente a China, que subsidia não apenas os custos dos trabalhadores, mas também os custos de suas empresas. O governo controla 80% dos bancos, que fazem empréstimos em condições favoráveis a empresas nacionais, especialmente estatais. Se as empresas não puderem pagar os empréstimos, nem os bancos nem as empresas são levadas à falência, pois isso significaria perder empregos e fábricas. Os empréstimos inadimplentes são apenas contabilizados nos balanços ou caducam. Nenhum credor privado é ferido, uma vez que o credor é o governo e os empréstimos foram criados nos livros dos bancos, em primeiro lugar (seguindo, aliás a prática bancária padrão a nível global). Jeff Spross analisou o fenômeno em detalhes, em um artigo da Reuters de maio de 2018 intitulado “Os bancos chineses são grandes. Muito grandes?

Como o governo chinês é dono da maioria dos bancos, e imprime a moeda, tecnicamente pode manter esses bancos vivos e emprestando para sempre. Pode soar estranho dizer que os bancos da China nunca entrarão em colapso, não importando o quão absurdas sejam suas posições de empréstimo. Mas os sistemas bancários são assim: lidam apenas com o fluxo de dinheiro.

Spross citou Richard Vague, ex-executivo-chefe de banco e presidente da Governor’s Woods Foundation, de Filadélfia, que explicou: “A China comprometeu-se com um alto nível de crescimento. E crescimento depende fundamentalmente do financiamento. Pequim vai “entrar e determinar a lucratividade, o capital, sanar a dívida ruim dos bancos estatais… por todos os meios que você e eu não veríamos adotados nos Estados Unidos”.

Agitação política e trabalhista é um grande problema na China. Spross escreve que o governo mantém a população satisfeita ao estimular crescimento econômico alto e distribuir seus frutos entre os cidadãos. Cerca de dois terços da dívida chinesa são devidos apenas pelas corporações, que também são em grande parte estatais. O crédito corporativo é, portanto, uma forma indireta de política industrial financiada pelo governo – não por meio de impostos, mas pelo privilégio exclusivo que os bancos têm de criar dinheiro em seus balanços.

A China considera que este é um modelo bancário melhor do que o sistema ocidental privado, focado em lucros de curto prazo para seus acionistas. Mas os formuladores de políticas dos EUA [e de quase todos os países ocidentais] consideram os subsídios que a China oferece a suas empresas e trabalhadores como “práticas comerciais desleais”. Eles querem que a China renuncie aos subsídios do Estado e a outras políticas protecionistas para nivelar a competição. Mas Pequim argumenta que as reformas exigidas equivalem a um “golpe de Estado econômico”. Como diz Hudson: “Essa é a luta que Trump tem contra a China. Ele quer que os bancos governem a China e tenham um “livre” mercado a seu dispor. Ele diz que a China enriqueceu nos últimos cinquenta anos por meios injustos, com ajuda do governo e empreendimento público. Na verdade, ele quer que os trabalhadores chineses sintam-se tão ameaçados e inseguros quanto os norte-americanos. Eles devem se livrar de seus transportes públicos. Eles devem se livrar de seus subsídios. Eles devem deixar muitas de suas empresas irem à falência para que as corporações estadunidenses possam comprá-las. Eles devem ter o mesmo tipo de mercado livre que destruiu a economia dos EUA.“

Num artigo publicado em 1º/8, na revista “Foreign Affairs”, Kurt Campbell e Jake Sullivan chamam isso de “uma emergente disputa de modelos”.

Um Guerra Fria Econômica

Para entender o que está acontecendo, vale olhar um pouco para a História. O modelo de livre mercado esvaziou a base industrial dos EUA no início da era Thatcher / Reagan, dos anos 70 e 80, quando as políticas econômicas neoliberais se consolidaram. Enquanto isso, as economias emergentes da Ásia, lideradas pelo Japão, roubavam a cena com um novo modelo econômico chamado “capitalismo de mercado guiado pelo Estado“. O Estado determinou as prioridades, encomendou o trabalho e contratou empresas privadas para executá-lo. O modelo superou os defeitos do sistema comunista, que havia colocado a propriedade e o controle direto nas mãos do Estado.

O sistema japonês de mercado guiado pelo Estado foi eficaz e eficiente – tão eficaz que foi considerado uma ameaça à existência do modelo neoliberal baseado em dívida e em “mercados livres”, promovido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo o autor William Engdahl em A Century of War, no final da década de 1980 o Japão era considerado a principal potência econômica e bancária do mundo. Seu modelo guiado pelo Estado também provou ser altamente bem-sucedido na Coreia do Sul e nas outras economias dos “Tigres Asiáticos”. Quando a União Soviética entrou em colapso no final da Guerra Fria, o Japão propôs seu modelo aos antigos países comunistas, e muitos começaram a considerá-lo, bem como o exemplo da Coreia do Sul, como alternativas viáveis ao sistema de livre mercado dos EUA. O capitalismo guiado pelo Estado assegurava o bem-estar geral sem destruir o incentivo capitalista. Engdahl escreveu:

As economias dos Tigres Asiáticos criaram um grande embaraço para o modelo de livre mercado do FMI. Seu sucesso em conciliar empresas privadas com um papel econômico forte do Estado foi uma ameaça à agenda do Fundo. Enquanto os Tigres Asiáticos demonstrassem sucesso com um modelo baseado em um forte papel estatal, os antigos estados comunistas, e não apenas eles, poderiam argumentar contra o projeto extremista representado pelo FMI. No leste da Ásia, durante a década de 1980, taxas de crescimento econômico anual de 7-8%, segurança social crescente, educação universal e alta produtividade do trabalho foram todas apoiadas por orientação e planejamento estatal, embora em uma economia de mercado – uma forma asiática de paternalismo benevolente.

Assim como os EUA entraram em uma Guerra Fria para destruir o modelo comunista soviético, os interesses financeiros ocidentais começaram a destruir essa ameaça emergente asiática. Ela foi desarmada quando economistas neoliberais ocidentais persuadiram o Japão e os Tigres Asiáticos a adotar um sistema de livre mercado e abrir suas economias e empresas a investidores estrangeiros. Os especuladores ocidentais então derrubaram os países vulneráveis, um por um, na “crise asiática” de 1997-8. Somente a China permaneceu como uma ameaça econômica ao modelo neoliberal ocidental, e essa ameaça existencial é o alvo das guerras comerciais e monetárias hoje.

Se não se pode vencê-los…

Em seu artigo de 1º/8 na Foreign Affairs, intitulado “Competição sem catástrofe”, Campbell e Sullivan escrevem que a tentação é comparar essas guerras comerciais econômicas com a Guerra Fria contra a Rússia; mas a analogia é inadequada:

“A China é hoje uma concorrente mais formidável economicamente, mais sofisticada diplomaticamente e mais flexível ideologicamente do que a União Soviética jamais foi. E, ao contrário da União Soviética, a China está profundamente integrada ao mundo e entrelaçada com a economia dos EUA.”

Ao contrário do sistema comunista soviético, não se pode esperar que o sistema chinês “desmorone sob seu próprio peso”. Os EUA não podem esperar, e nem deveriam querer, destruir a China, dizem Campbell e Sullivan. Em vez disso, devem buscar um estado de “coexistência em termos favoráveis aos interesses e valores dos EUA”.

A implicação é que a China, sendo forte demais para ser eliminada do jogo como a União Soviética foi, precisa ser coagida ou bajulada a adotar o modelo neoliberal e abandonar o apoio estatal de suas indústrias e a propriedade de seus bancos. Mas o sistema chinês, embora obviamente não seja perfeito, tem um histórico impressionante de sustentar o crescimento e o desenvolvimento a longo prazo. Enquanto a base manufatureira dos EUA estava sendo solapada sob o modelo de livre mercado, a China estava sistematicamente construindo sua própria base de manufatura e investindo pesadamente em infraestrutura e tecnologias emergentes, e o estava fazendo com o crédito gerado por seus bancos estatais. Em vez de tentar destruir o sistema econômico da China, poderia ser mais “favorável aos interesses e valores dos EUA” adotar suas práticas industriais e bancárias mais eficazes.

Os EUA não podem vencer uma guerra cambial através da adoção de medidas de desvalorizações cambiais competitivas que desencadeiam uma “corrida para o fundo do poço”. E não podem vencer uma guerra comercial instalando barreiras comerciais competitivas que simplesmente os afastem dos benefícios do comércio cooperativo. Mais favorável aos interesses e valores norte-americanos do que a guerra com seus parceiros comerciais seria cooperar no compartilhamento de soluções, incluindo soluções bancárias e de crédito. Os chineses provaram a eficácia do seu sistema bancário público no apoio às suas indústrias e seus trabalhadores. Em vez de vê-lo como uma ameaça existencial, os EUA poderiam agradecê-los por testar o modelo e obrigá-los a uma virada.


sábado, 24 de agosto de 2019

Negri: hora de repensar a Revolução?



Por Lorenzo Cini 




Em entrevista surpreendente, filósofo da “Multidão” dialoga com David Harvey e reafirma sua aposta nos sujeitos pós-industriais. Mas dispara: chega de cultivar o mito horizontalista e de renegar a política!


Barricada na Revolução Espanhola (1935-37). Negri sustenta: "Entendemos
 a questão do poder de forma excessivamente negativa. Agora podemos
reinterpretá-la em termos de multidões e de democracia absoluta".

Alguns meses atrás, a revista ROAR compareceu ao encontro Euronomade em Passignano (Itália), que reuniu dúzias de ativistas e pensadores da tradição italiana pós-trabalhista. Este ano, o Euronomade convidou o geógrafo marxista David Harvey a participar do evento juntamente com vários outros convidados, inclusive Michael Hardt e Srećko Horvat.

Sentamos com o lendário militante e teórico italiano Antono Negri para conversar sobre a recente convergência entre seu trabalho e o de Harvey, a centralidade do terreno metropolitano para as lutas sociais contemporâneas, o destino dos levantes globais de 2011, o estado dos movimentos na Europa de hoje e o significado de novas forças políticas como o Syriza e o Podemos.

Em anos recentes, parece haver alguma forma de convergência entre sua abordagem e a de Harvey. O que considera serem as coincidências mais importantes no trabalho de vocês? E o que seriam as principais diferenças ou tensões?

Parece haver uma convergência muito clara e explícita entre as posições de Harvey e aquelas da minha própria corrente de pensamento, mais claramente na transformação contemporânea do trabalho produtivo, do trabalho vivo – ou seja, do trabalho capaz de gerar mais valia. Se me permitem usar a linguagem de Marx em The Fragment on Machines [1], diria que há um chão comum substancial entre o trabalho de Harvey e o meu próprio na análise da transformação das formas de valor, ou seja, na passagem do que considera o valor conectado às estruturas da indústria de larga escala para a situação atual, na qual a sociedade está inteiramente sujeita à lógica do capital – não apenas na esfera produtiva, mas também no que tange à reprodução e circulação.

O operaísmo italiano já desenvolvera tal análise no final dos anos 1970, sugerindo, na época, novas formas de luta que as situaria dentro da esfera social mais ampla. Havíamos entendido que o social se tornara um lócus de produção de valor. Já naqueles anos identificamos a mudança crucial no lócus da produção de mais valia: uma mudança para longe da fábrica, em direção à metrópole mais ampla. E essa mesma mudança parece haver se tornado central no trabalho de Harvey. Esse é um ponto essencial: daqui, ambas as questões, a da extração do excedente de produção e a questão da transformação do lucro em renda, tornaram-se centrais na análise crítica do capitalismo contemporâneo que Harvey e eu desenvolvemos.

Quais são, então, as diferenças? Acredito ser simplesmente uma questão de genealogia, da trajetória teórica que nos trouxe a essa análise compartilhada. Eu cheguei a essas conclusões começando com a análise da transformação da natureza do trabalho — que é, na verdade, o conceito sobre o qual se baseia toda a abordagem operaísta. Em outras palavras, parti do conceito operaísta de recusa ao trabalho. Com essa ideia, exprimíamos duas coisas. De um lado, nós a víamos como uma rejeição da lei do valor como norma fundamental da ordem capitalista. De outro, a interpretamos de forma mais construtiva, como um chamado para o reconhecimento de novas formas de produtividade do trabalho para além da fábrica, num nível social mais amplo. Desta análise marxista da transformação interna do trabalho chegamos às mesmas conclusões a que Harvey chegou – e sobre a qual ele desenvolveu uma análise empírica mais minuciosa.

Partindo do que acaba de dizer, o conceito de trabalho produtivo, gostaríamos de refletir com você sobre as formas e conteúdo das lutas contemporâneas. Em seu livro Commonwealth [2], em coautoria com Michael Hardt, você escreveu que hoje a metrópole é para a multidão o que a fábrica foi no passado para a classe trabalhadora. À luz dessa mudança de paradigma, parece adequado identificar nos recentes levantes que irromperam em países como o Brasil e a Turquia um conjunto de lutas ligadas a questões sobre produção e reprodução da vida metropolitana, instâncias de uma nova classe de lutas conduzidas em nível metropolitano?

Sim, muito. Tanto na Turquia como no Brasil, foram lutas claramente biopolíticas. Como, então, podemos ligar essa dimensão biopolítica às novas formas de trabalho que discutimos antes? Essa é uma pergunta com a qual Michael Hardt e eu vimos lidando desde 1995, quando começamos a trabalhar em Império [3]. Parecia-nos que se o trabalho torna-se trabalho social, e se a opressão e a produção capitalista foram engolindo a esfera social, então a questão do bio tornou-se essencial. O conjunto de lutas desenvolvendo-se em torno do Estado de bem-estar social estava se tornando um dos aspectos centrais da luta de classes. Essa descoberta tornou-se ainda mais importante quando entendemos que o trabalho produtivo era não apenas (ou mesmo principalmente) uma atividade material, mas também (e principalmente) imaterial. Isto é, uma atividade ligada ao cuidado, ao afeto, à comunicação e aquilo que podemos chamar de processos e atividades “genericamente humanos”.

Foi essa atenção ao “genericamente humano” que nos ajudou a entender como o processo produtivo se havia tornado fundamentalmente um processo biopolítico. Consequentemente, as lutas politicamente mais significativas tornaram-se aquelas instaladas no terreno biopolítico. O que isso significava, em termos mais concretos? Não tínhamos uma resposta final e exaustiva. Sim, tínhamos alguma intuição de que era preciso lutar contra, por exemplo, a privatização da saúde e da educação, mas àquele tempo não conseguíamos agarrar completamente aquilo que mais tarde se revelou para nós com as lutas formidáveis de 2011. Foram aquelas lutas que revelaram a completa articulação do discurso biopolítico, isto é, o novo caráter das lutas contemporâneas. E tornou-se muito claro que a metrópole é o seu palco essencial. Isso não significa que será sempre assim, mas hoje é certo que a metrópole é o lócus crucial dessa luta.

A greve metropolitana ocorrida em Paris em 1995 foi essencial para que eu compreendesse isso. Uma cidade tão complexa e articulada como Paris apoiou completamente a luta, que bloqueou a cidade inteiramente, a começar pelo transporte. Aquela luta expressou num sentido paradigmático os elementos cooperativos e afetivos das formas de conflito e conhecimento que estavam emergindo no palco metropolitano naqueles aos. Não é coincidência que esses aspectos, ligados a cooperação e à produção de afeto, sejam ainda centrais nas lutas metropolitanas contemporâneas, que são completamente biopoliticas.

O ciclo de lutas que teve início em 2011 sugeriu, por um momento, o possível nascimento de um novo processo constituinte. Hoje parece que muitos desses cinco movimentos estão confrontados com aquilo que você e Michael Hardt chamaram de “fechamento termidoriano”, trazendo à tona o restabelecimento do velho regime. Qual é sua análise do estado atual dessas lutas, e o que de diferente poderia ter sido feito para evitar o resultado presente?

Para começar, é preciso estabelecer algumas diferenças. A mobilização espanhola, por exemplo, tem uma força e um grau de originalidade política que é evidente ainda hoje, e constitui um fenômeno importante que precisa também ser visto como parcialmente surgido da tormentosa história da Espanha no século XX, da guerra civil e da transição democrática incompleta, ao fracasso do Partido Socialista.

De outro lado, há um fenômeno muito mais ambíguo como o Occupy, que parece ser uma mobilização das chamadas classes médias, mais que uma expressão da classe trabalhadora cognitiva. E ainda assim, além dessas fragilidades óbvias, também o Occupy mostrou um importante degrau de originalidade, especialmente em termos da luta desenvolvida na questão da dívida e do capital financeiro.

Finalmente, há o processo árabe, que monopolizou nossa atenção durante um longo tempo, e que – desafortunadamente – teve um final absolutamente trágico. Falando estritamente, o único resultado “termidoriano” foi o da Tunísia, onde uma ordem aparentemente democrática — mas substancialmente falsificada — está agora estabelecida. Quanto ao resto, testemunhamos meramente os inícios de revolução, isto é, a tomada da Bastilha mais do que qualquer outra coisa. De qualquer forma, acredito que esse processo revolucionário extremamente articulado tem muito tempo à frente e ainda está, neste momento, completamente aberto.

Até aqui, esse processo revolucionário revelou a presença de novas forças de liberdade no mundo árabe, de trabalho cognitivo, que se opuseram tenazmente aos velhos regimes militares e feudais. Há ainda, contudo, um problema enorme no Egito, Síria, Líbia e Irã, o problema da natureza “medieval” desses Estados – que são extremamente reacionários e repressivos. Assim, tenho a impressão de que a semente de revolta plantada em 2011 em vários Estados árabes assemelha-se, de algum modo, ao 1848 europeu: um momento de antecipação de um processo revolucionário. Espero, contudo, que não tenha as mesmas consequências que teve na Europa, onde também produziu pensamento e prática nacionalista, que ao final deu combustível para a ascensão do fascismo e nacional socialismo.

A despeito deste ano, ainda acredito fortemente numa dinâmica progressiva da história, e estou confiante de que eventos de ruptura revolucionária conseguirão, no futuro, quebrar a ordem política e social feudal e reacionário de muitos países árabes.

Vamos discutir as lutas de hoje na Europa. Tomando como pista um artigo que você escreveu com Sandro Mezzadra pouco antes das eleições europeias de 2014, e um outro de sequência publicado logo antes das eleições gregas, queríamos perguntar se vê a dimensão européia como a única em que os movimentos podem agir para avançar um projeto do comum como uma alternativa genuína para a crise capitalista atual.

Esta é com certeza a questão política mais oportuna e importante, hoje. Atualmente, na Europa, estamos na fase mais baixa do ciclo de lutas, Não acredito na teoria segundo a qual quanto pior a situação política, social e econômica, mais forte é o movimento revolucionário. Estamos diante de uma séria crise econômica que teve consequências extremamente negativas. O establishment capitalista explorou com sucesso, até aqui, a regressão e transformação produtiva pós-fordista que derrotou a massa trabalhadora industrial. Hoje, estamos vivendo as conseqüências de nossa derrota nos anos 1970, na ausência de uma organização política capaz de expressar os interesses da força de trabalho contemporânea e, mais genericamente, da sociedade produtiva contemporânea que emergiu do processo de transformação capitalista.

Contudo, nessa situação negativa, ainda temos de considerar cuidadosamente se e como o capital será capaz de superar a crise. Por exemplo, tendo a concordar com a análise de Wolfgang Streeck, que examina a crise atual à luz de certa literatura dos anos 1970 tal como Offe, Hirsche e O’Connor, que viam a crise dos tempos como uma consequência da queda da taxa de lucro. Essa queda, no entanto, está intimamente ligada à desvalorização da força de trabalho, à incapacidade de considerar a força de trabalho como um ator central no desenvolvimento.

É necessário ser muito cuidadoso numa série de pontos. Quando se diz que algumas instâncias do comum, certas demandas da luta pelo comum podem ser, e têm sido, reabsorvidas pela e na “gestão da crise” e em todos os mecanismos de gerenciamento do comum, frequentemente se ignora que essa absorção pelo capitalismo não é criativa. Não é, por exemplo, comparável à assimilação da classe trabalhadora que ocorreu no paradigma fordista e keynesiano, quando essa absorção gerou um crescimento de demandas e manifestou-se numa economia forte e enégica.

Hoje, estamos diante de uma contração capitalista que deixa sem ar até mesmo aqueles que operam a contração. Nesse contexto, temos de ser extremamente atentos, porque o risco real é fazer uma leitura completamente pessimista de uma situação que, é claro, é caracterizada como uma crise importante – mas cujo resultado ainda está completamente aberto.

Com esta última pergunta gostaríamos de refletir com você sobre a inovação representada por alguns fenômenos políticos que estão ocorrendo em alguns países europeus neste momento. Vê-se na Europa, hoje, uma organização política capaz de iniciar um processo constituinte e criar um projeto político transnacional com base no comunismo do século 21 – ou seja, um projeto político baseado na prática do comum? E o que você considera que pode ser significativo, sob esta luz, em novas forças políticas como Syriza e Podemos?

Antes de responder sua pergunta, devo confessor que desenvolvi um problema nos últimos anos. Se sou chamado a avaliar as lutas de 2011, não consigo deixar de concentrar minhas observações críticas na questão da horizontalidade – ou de horizontalidade exclusiva, ao menos. Tenho de criticar isso porque penso que não há projeto ou desenvolvimento político capaz de transformar a espontaneidade horizontal numa realidade instituinte. Penso, ao contrário, que essa passagem deve ser governada, de um modo ou de outro. Governada desde a base, claro, na base de programas compartilhados, mas sempre sustentando a necessidade de ter, nessa passagem, uma força política organizada capaz de constituir-se a si mesma e de gerenciar essa transformação.

Penso que a situação atual do movimento nos força a fazer autocrítica sobre o que aconteceu em 2011, e que essa autocrítica deve focar na questão da organização política. Precisamos tomar consciência, por exemplo, de que a experiência da Lista Tsipras na Itália foi um fracasso trágico, ainda que eu, junto com Sandro Mezzadra e outros companheiros, lhe tenhamos dado as boas vindas com fé e esperança. Contudo, de outro lado, poderia ter ficado claro, desde o início, que com partidos organizados tais como o SEL ou a Refundação Comunista teria sido impossível encontrar formas políticas capazes de canalizar e permitir que as forças espontâneas da base se afirmassem.

Com o Podemos, contudo, estamos provavelmente lidando com algo diferente. Além das ideologias questionáveis em torno das quais este partido-movimento se constituiu, acredito que – talvez por causa da boa vontade de seus líderes, ou talvez graças à situação na qual se encontra – o Podemos é infinitamente mais poderoso do que é organizado. Está produzindo, no momento, um movimento extremamente interessante e ativo que pode ser capaz de contribuir com uma saudável institucionalização das lutas.

Nessa questão da luta em nível institucional e de organização política, gostaria de concluir com mais duas proposições gerais. A primeira é que depois de 2011 a horizontalidade deve ser criticada e superada, claramente e sem ambiguidade – e não apenas num sentido hegeliano. Segundo, a situação está provavelmente madura o suficiente para tentar uma vez mais aquela que é a mais política das passagens: a tomada do poder. Entendemos a questão do poder, por tempo demais, de uma forma excessivamente negativa. Agora podemos reinterpretar a questão do poder em termos de multidões, em termos de democracia absoluta – o que significa dizer, em termos de uma democracia que vá além das formas canônicas institucionais tais como monarquia, aristocracia e “democracia”. Acredito que hoje o problema da democracia é melhor formulado e expressa em termos de multidão.

Notas da tradutora

[1] Seção de uma obra conhecida, porém essencial, de Karl Marx: o Grundrisse (1858). Para muitos, é um livro essencial para compreender, a partir de uma perspectiva marxista, a era pós-fordista (ou pós-industrialista), que começaria mais de um século depois.
[2] Commonwealth, Michael Hardt e Antonio Negri, sem tradução para o português.
[3] Empire, de 2000, traduzido para o português em 2005.


sábado, 10 de agosto de 2019

Zizek: por que os EUA podem guinar à esquerda



Nos preparativos para eleições cruciais de 2020, são os Socialistas Democráticos que desafiam Trump. Para fazê-lo propõem redistribuir riquezas, ampliar serviços públicos e nova articulação entre feminismo, antirracismo e justiça social


Alejandra Ocasio-Cortez e Bernie Sanders

Por Slavoj Zizek | Tradução: Antonio Martins


Nos Estados Unidos, muitos dos chamados membros “moderados” do Partido Democrata preferem que Donald Trump mantenha a presidência, a uma vitória de Bernie Sanders ou de outro autêntico partidário de posições à esquerda. Neste sentido, são espelhos dos republicanos ligados ao establishment — como George W. Bush e Colin Powell –, que expressaram publicamente seu apoio a Hillary Clinton, nas eleições de 2016.

Num dos debates acalorados prévios à escolha do candidato democrata, semana passada, o ex-governador do Colorado, John Hickenlooper, advertiu que “poderíamos entregar a eleição para Donald Trump”, caso o partido adote posições radicais – como o Green New Deal, o programa de assistência médica pública e gratuita para todos, proposto por Bernie Sanders e outras iniciativas que mudam paradigmas.

O debate que se seguiu expôs claramente os dois campos no Partido Democrata: os “moderados” (que representam o establishment do partido, cuja face principal é Joe Biden) e os democratas socialistas (Bernie Sanders, talvez Elizabeth Warren e as quatro congressistas apelidadas por Trump de “esquadrão democrata” [Dem Squad], cuja face mais popular é agora Alexandria Ocasio-Cortez.

Esta disputa é provavelmente a mais importante batalha política que ocorre hoje, em qualquer parte do mundo.

Poder parecer que os moderados têm uma posição convincente. Afinal, os socialistas democráticos não são, claramente, radicais demais para conquistar a maioria dos eleitores? A verdadeira batalha não é pelos eleitores indecisos (e moderados), que nunca apoiariam uma muçulmana, como Ilhan Omar, cujos cabelos são cobertos por um véu? E o próprio Trump não sabe disso, tendo inclusive atacado o “esquadrão” e obrigado o conjunto do Partido Democrata a solidarizar-se com as quatro garotas, elevadas ao status de símbolos partidários?

Para os centristas do Partido Democrata, o importante é livrar-se de Trump e retornar à hegeonia normal, liberal-democrata, que as eleições de 2016 desfizeram.

Déjà Vu

Infelizmente, esta estratégia já foi testada: Hillary Clinton seguiu-a, e uma vasta maioria da mídia julgou que ela não poderia perder, porque Trump seria inelegível. Até mesmo dois ex-presidentes republicanos, Bush pai e filho, apoiaram-na, mas ela perdeu para Trump. Sua vitória solapou o establishment a partir da direita.

Agora, não seria a hora de e esquerda democrata fazer o mesmo? Como Trump há três anos, ela tem chance real de vencer. 

Trata-se, é claro, de uma perspectiva que coloca o conjunto do establishment em pânico. Os economistas do mainstream preveem o colapso econômico dos EUA no caso de uma vitória de Sanders, e os analistas políticos de establishment temem a emergência de um socialismo de Estado totalitário. Ao mesmo tempo, esquerdistas moderados simpatizam com os objetivos dos socialistas democráticos mas advertem que, infelizmente, são irrealistas. Algo inteiramente novo está ocorrendo nos Estados Unidos 

O mais animador, na ala esquerda do Partido Democrata é o fato de ela ter deixado para trás as águas paradas do Politicamente Correto, que afloraram recentemente nos excessos do movimento “Me Too”. Embora apoiem firmemente as lutas feministas e antirracistas, os integrantes desta ala estão focados em temas sociais como assistência universal à Saúde e as ameaças ecológicas.

Estão muito longe de ser socialistas loucos, interessados em transformar os EUA numa nova Venezuela. Simplesmente levam aos EUA um pouco da boa e velha social-democracia europeia. Basta um rápido olhar a seu programa para que fique muito claro: eles não representam ameaça maior às liberdades ocidentais que  Willy Brandt ou Olof Palme.

Tudo mudou

Mas ainda mais importante é que eles não são a única voz da jovem geração radicalizada. Suas faces públicas – quatro jovens mulheres e um velho homem branco – já contam uma história diferente. Sim, eles demonstram claramente que a maioria da jovem geração nos EUA está cansada do establishment em todas as suas versões. Também é cética sobre a possibilidade do capitalismo, tal com o conhecemos, lidar com os problemas que enfrentamos. Para eles, a palavra socialismo já não é um tabu.

Entretanto, o verdadeiro milagre é o fato de muitos que se somaram aos “velhos homens brancos”, como Sanders, serem integrantes da geração mais antiga de trabalhadores comuns, gente que frequentemente tendia a votar no Partido Republicano ou mesmo em Trump.

O fenômeno em curso é algo que os partidários das Guerras Culturais e das políticas identitárias consideravam impossível: antirracistas, feministas e ecologistas somando forças com o que era considerado a “maioria moral” de trabalhadores comuns. Bernie Sanders – e não a “nova” extrema direita – é a verdadeira voz da maioria moral, se é que este termo tem algum sentido positivo.

Portanto, a possível ascensão dos democratas socialistas não favorece a reeleição de Trump. Na verdade, John Hickenlooper e outros moderados estavam enviando uma mensagem a Trump, do debate. O que queriam dizer é: “podemos ser seus inimigos, mas tudo o que queremos é a derrota de Bernie Sanders. Não se preocupe. Se ele ou alguém semelhante for o candidato do Partido Democrata, não o apoiaremos. Nós, secretamente, preferimos que você ganhe”.


sábado, 3 de agosto de 2019

Socialismo Democrático: o papel da autonomia



Transformados, Big Data e algoritmos permitiriam superar mercado; produzir e distribuir riquezas de forma desalienada. Mas este sistema, ao contrário do que se pensou ao longo do século XX, não precisa ser controlado de cima para baixo






Por Duncan Foley (1) | Tradução e introdução: Eleutério F. S. Prado (2) | Imagem: Hussein Salim


“Outras Palavras” publicou recentemente duas séries de artigos sobre o renascimento e fortalecimento da ideia do socialismo democrático. Elas exploram novas possibilidades de coordenação das atividades sociais e econômicas em sociedades complexas, as quais se tornaram possíveis devido aos novos sistemas de informação surgidos das tecnologias da informática e do “Big Data”. A primeira, em três partes sob o título geral de “Socialismo, utopia inviável?”, saiu nos dias 28 de junho, 3 e 5 de julho. A segunda, sob o título geral de “Pós-capitalismo na era do algoritmo”, foi publicada nos dias 12, 17 e 19 de julho de 2019.

Nessa discussão sobre as possibilidades abertas à renovação do socialismo democrático há uma questão de fundo que foi muito bem apresentada pelo professor Duncan Foley da “New School for Social Research“ de Nova Iorque. Ainda que na prática sempre se combinem em alguma medida, há dois modos básicos de estruturar o socialismo enquanto forma de organização da sociedade: de cima para baixo ou de baixo para cima (3). Como o socialismo democrático baseia-se crucialmente nessa segunda possibilidade, vale ler e refletir sobre o que ele diz sobre esses dois modos (Eleutério Prado).


Barone e Pareto (4) abordaram o problema da alocação socialista usando o método simples de análise do equilíbrio econômico estático, centrando-se na ideia de que a competição forçará uma igualdade entre custo marginal e preço. Nos anos 1920 e 1930, um grupo de matemáticos, estatísticos e economistas, incluindo Abraham Wald, John von Neumann e Oskar Morgenstern uniram-se ao “Círculo de Viena” comandado por Karl Menger. As discussões aí travadas lançaram as bases para a abordagem matemática da economia, a qual dominou a teoria econômica na segunda metade do século XX. Em particular, os seus estudos esclareceram o problema de como evitar que os preços se tornem negativos; as assim chamada condições de “folga complementar” permitem preços não-zero apenas quando os recursos são totalmente utilizados.

Um desenvolvimento dessa linha de pensamento consiste em situar o problema da alocação econômica de recursos no contexto mais amplo da teoria do controle ótimo. A teoria matemática do controle ótimo aplica-se ao projeto de criar mecanismos de realimentação que podem estabilizar sistemas dinâmicos complexos para atingir objetivos específicos. Um exemplo paradigmático é o problema da artilharia antiaérea, que se tornou um aspecto fundamental do combate militar na Segunda Guerra Mundial. Como observou Mirowski (5), o duelo entre a artilharia antiaérea (que tenta mirar no ponto em que o bombardeiro estará quando o petardo atingir a altitude da aeronave) e o piloto do bombardeiro (que tenta escapar por meio da manobra do avião) inspirou a teoria dos jogos de soma zero de von Neumann e Morgenstern e a “cibernética” de Norbert Wiener. (É também a raiz da moderna teoria financeira, onde o problema aparece como a tarefa de prever onde os preços dos ativos estarão quando as transações dos aplicadores estiverem realmente consumadas.)

Uma tradição persistente de pensamento adota a visão tecnocrática de que a tarefa do socialismo é identificar e implementar uma alocação socialmente ótima de recursos e de distribuição de produtos. Consiste, pois, numa visão “de cima para baixo” do socialismo, na qual os participantes da divisão do trabalho entregam sua autonomia a um mecanismo centralizado (presumivelmente) benevolente de controle social. O desenvolvimento de sofisticadas teorias de controle ótimo apoia esta visão descendente de controle. Pois, mostra quais são características matematicamente exatas das condições de alocação ótima que são, em princípio, generalizáveis a um número arbitrário de bens produzidos, além de permitir, em teoria, lidar com problemas de tempo e incerteza. Nesta perspectiva, estabelecer o socialismo consiste em construir instituições sociais que possam implementar as soluções de problemas de controle ótimo. O poder desses métodos matemáticos e o prestígio da matemática nas ciências naturais levaram muitos pensadores sofisticados a aceitar o eventual triunfo dos métodos de controle ótimos como inescapável. Schumpeter (6), por exemplo, viu-se a si mesmo lutando contra um movimento nesse sentido que condenava em nome de um impulso ao empreendedorismo capitalista cada vez mais obsoleto, pois estava diante de uma racionalização burocrática da produção social cada vez mais invasiva.

O programa de controle ótimo que fundamenta o planejamento de cima para baixo ganhou força a partir de dois outros desenvolvimentos importantes ocorridos na década de 1930, os quais, aliás, foram aprimorados durante a Segunda Guerra Mundial.

Um deles era o sistema de insumo-produto de Wassily Leontief (7), que nada mais é do que uma compilação de dados sobre transações intersetoriais em um nível de detalhe anteriormente inconcebível (da ordem de dezenas ou mesmo centenas de setores econômicos). Para o socialista tecnocrata parecia apenas um pequeno salto ir das tabelas de Leontief à implementação de planos de produção e distribuição realizáveis. De fato, durante a Segunda Guerra Mundial, os métodos de Leontief contribuíram significativamente para resolver os gargalos reais criados pela produção planejada de armamentos.

O segundo foi a invenção do computador digital por Alan Turing, von Neumann e outros, um resultado da convergência de correntes da matemática pura da teoria da prova, a combinatória da quebra de códigos secretos, dispositivos para guiar a artilharia, armas antiaéreas e bombardeios aéreos, assim como os avanços rápidos da eletrônica. Von Mises sentira-se, pois, confiante em atacar o conceito de planejamento central do socialismo na década de 1930, com base no fato de que era humanamente impossível resolver todas as equações que caracterizam o equilíbrio competitivo de mercado, exceto por meio das interações de mercado. Mas apenas alguns anos depois, o socialismo tecnocrático tinha à sua disposição um instrumental matemático sofisticado da alocação de recursos sociais. Este encarava o planejamento como um problema de controle ótimo que era solucionável mediante uma tecnologia de computação em rápido desenvolvimento. Esta tecnologia se afigurava como precisamente adaptada para resolver os problemas matemáticos originados do uso de dados de insumo-produto – ainda rudimentares, mas generalizáveis –, o que fornecia uma base para realizar os cálculos relevantes para a alocação de recursos no mundo real.

Os interessados no desenvolvimento dessa tecnologia nascente de planejamento social não se resumiam aos socialistas idealistas que tinham a cabeça nas nuvens. Tal como as bombas nucleares, essas inovações da engenharia social desempenharam um papel centralmente eficaz na organização do esforço de guerra bem-sucedido. (Na verdade, tem-se um bom argumento quando se diz que o impacto cumulativo dessas inovações da engenharia social e do planejamento no modo de levar a frente a guerra excedeu em muito a importância marginal das armas nucleares.) Diante do espectro paranoico da Guerra Fria, a expansão das instituições de planejamento racional parecia oferecer uma vantagem crítica no crepúsculo de uma longa batalha.

Talvez tenha sido a consciência de tal consenso ameaçador que levou Hayek ao pânico e o motivou a escrever O Caminho da Servidão. Eis que essa perspectiva tende a juntar todas as variedades de ação social coletiva possíveis na forma de um “coletivismo” monolítico que passa a ameaçar a liberdade humana individual. De qualquer forma, não é difícil ver, do ponto de vista marxista, que o programa de alocação racional centralizada tecnocrática enfrentaria uma pesada oposição dos próprios capitalistas. A reação capitalista deixou sua marca na profissão econômica. Levou à supressão efetiva do livro keynesiano de Lorie Tarshis e à sua substituição pela síntese neoclássica, um keynesianismo cuidadosamente higienizado por Paul Samuelson. Levou também a pressões ininterruptas e finalmente bem-sucedidas para marginalizar e desfazer o programa de pesquisa de Leontief.

O programa “duro” de alocação racional, centralizada e tecnocrática de recursos, baseada ademais em dados concretos, provavelmente alcançou o seu limite máximo no fim dos anos 1940, embora continue exercendo uma influência real no pensamento e no discurso político até os dias atuais.

De baixo para cima (8)


Há uma curiosa conexão de proximidade entre a matemática da teoria do controle ótimo e a matemática da termodinâmica. A termodinâmica é o ramo da física um tanto improvável, mas extremamente bem-sucedido, que lida com sistemas que são complexos demais para serem tratados diretamente pelos métodos da dinâmica. Um exemplo paradigmático é o comportamento das moléculas em gases difusos tal como aquele da atmosfera terrestre: um volume relativamente pequeno de gás contém um número tão grande (na ordem de 1023) de moléculas que estaria além da capacidade humana de calcular em detalhes a sua dinâmica (ora, isto parece ter influenciado a crítica de von Mises do socialismo de planejamento central). A engenhosa aplicação do raciocínio estatístico a esse tipo de problema leva a previsões muito poderosas e úteis sobre o comportamento macroscópico dos gases, independentemente dos detalhes de seus movimentos moleculares. Os métodos termodinâmicos levam a profundos insights sobre os comportamentos de uma enorme variedade de fenômenos complexos, embora os resultados geralmente não sejam tão simples quanto aquele que se obtém analisando o comportamento de gases difusos.

Quando as interações das partes constituintes de sistemas complexos são mais complicadas do que as colisões por meio das quais as moléculas de gás trocam energia entre si – um exemplo são as compras e vendas de mercadorias –, o sistema pode produzir um comportamento macroscópico que é adaptativo e emergente. Exceto em casos incomuns, os quais podem ser tratados tal como se faz com os gases difusos, apenas é possível estudar as propriedades emergentes de sistemas complexos por meio de métodos de simulação, os quais são, como se sabe, de limitada precisão. Há razões consideráveis para se pensar que fenômenos tais como a divisão do trabalho e as interações de mercado na economia capitalista são melhor entendidos como sistemas complexos (9). De fato, como eu mesmo sugeri num texto já publicado, a economia política clássica pode ser compreendida como uma tentativa de raciocinar sobre a produção e a circulação de mercadorias como um sistema complexo.

A última metade do século XX viu um aumento no interesse em sistemas auto-organizados que funcionam de baixo para cima, tais como os formigueiros, as colmeias de abelhas, bandos de aves, redes de computadores, algoritmos de aprendizado não supervisionados, como redes neurais, a economia capitalista, possivelmente o cérebro humano e uma série de outros exemplos semelhantes. Vários recursos desses sistemas que funcionam de baixo para cima chamam a atenção dos pensadores da teoria dos sistemas.

Por um lado, em comparação com os sistemas de controle ótimo que operam de cima para baixo, os sistemas auto-organizados que funcionam de baixo para cima tendem a ser mais “resilientes” e mais “robustos”. Sistemas auto-organizados frequentemente (embora não invariavelmente) continuam a funcionar (possivelmente de modo degradado) apesar da interrupção ou até da destruição de subsistemas importantes e, em certos casos, podem se recuperar de tais danos espontaneamente. Os sistemas que funcionam de cima para baixo podem ser construídos com considerável “redundância”, mas tendem a ser mais vulneráveis à interrupção de elementos-chave, particularmente das realimentações responsáveis por suas propriedades ideais de controle.

Outra propriedade intrigante dos sistemas auto-organizados que funcionam de baixo para cima é que, embora não sejam projetados para atingir um desempenho ideal, eles geralmente apresentam um desempenho surpreendentemente bom. Formigueiros, por exemplo, são extremamente eficientes na localização e exploração das fontes de alimento.

Os sistemas auto-organizados que operam de baixo para cima também exibem um grau alto de adaptabilidade a novas situações. Sistemas ótimos de controle tendem a ser otimizados para um contexto particular no qual eles são projetados para operar. Sistemas auto-organizados podem se adaptar a uma ampla gama de mudanças ambientais (embora normalmente existam limites para a magnitude dos choques que um sistema desse tipo pode sobreviver).

O próprio capitalismo é um bom exemplo de todas essas características de sistemas que funcionam de baixo para cima e se organizam de modo algo espontâneo: as instituições capitalistas históricas tendem a se reproduzir mesmo após a destruição causada por guerras e revoluções; a alocação capitalista de recursos possui um grau bom de eficiência; e o capitalismo provou ser altamente adaptável em face de mudanças ambientais maciças (muitas das quais surgem da dinâmica da própria acumulação de capital).

A visão da economia como um sistema complexo se deve a Hayek. E ela permite uma compreensão de como a produção de mercadorias no capitalismo está organizada “de baixo para cima”. Também sugere uma visão paralela do socialismo como um sistema que decorre da organização espontânea da produção por meio de uma estrutura de instituições diferente daquela baseada na apropriação privada e na troca de mercadorias.

Esta visão ascendente de organização social ressoa em importantes correntes políticas do final do século XX. Sabe-se que os movimentos da “nova esquerda” dos anos 1960 rebelaram-se contra as tendências centralizadoras e disciplinadoras do socialismo e do comunismo da “velha esquerda”, exigindo a descentralização, a participação e a primazia política da liberdade, assim como da possibilidade da expressão individual. A esquerda atualmente, tal como labuta no mundo contemporâneo do capitalismo globalizado, encontra-se mais atraída por uma visão de sociedade espontânea do que pela construção de instituições políticas que operam de cima para baixo.

Esse entusiasmo pela espontaneidade sem coordenação central ou direção tem chamado a atenção de diferentes grupos de esquerda para vários experimentos, planos, filosofias e modelos econômicos descentralizados. Alguns deles, como as instituições de microcrédito, implicam em modificações muito pequenas no sistema capitalista produtor de mercadorias (que, às vezes, podem ser consideradas como extensões de sua lógica intrínseca).

Uma ideia que floresce perenemente na esquerda é o controle da produção pelos trabalhadores como uma alternativa ao capitalismo. Em sua forma mais simples, essa visão aceita a organização da divisão do trabalho com base na mercadoria e no dinheiro, mas propõe substituir os capitalistas pelos trabalhadores como organizadores da produção. As empresas seriam de propriedade de coletivos ou de cooperativas de trabalhadores, que dão ou tomam empréstimos de capital e constituem o que os economistas chamam de “requerentes residuais” da renda resultante da produção de mercadorias. O controle da produção pelos trabalhadores tem características de espontaneidade, adaptabilidade e resiliência, algo que herdam da própria produção mercantil capitalista.

Como as empresas capitalistas, as empresas controladas pelos trabalhadores poderiam se formar e se dissolver em resposta aos sinais do mercado; são assim capazes de realizar uma realocação descentralizada dos recursos à medida que a sociedade muda e evolui. É possível imaginar instituições que possibilitam as realocações de capital, que permitam a livre formação de novas empresas e, portanto, um grau substancial de competição. As cooperativas de trabalhadores, como produtoras de mercadorias podem coexistir com (e competir com) as firmas capitalistas. Nesse caso, se o conteúdo do socialismo é o controle dos trabalhadores, seria possível imaginar um processo evolutivo de transformação da economia capitalista numa economia socialista. Ao aceitar o arcabouço da produção de mercadorias mediada pelo dinheiro, a visão do controle da produção pelos trabalhadores resolve muitos dos quebra-cabeças que assombram as visões mais radicais do socialismo.

De fato, as cooperativas de trabalhadores funcionam como um setor subsidiário da maioria das economias capitalistas, florescendo até mesmo em certas circunstâncias. Elas têm uma longa história na região basca da Espanha, no centro-oeste americano e na Itália, entre muitos outros lugares. Durante alguns anos, uma importante economia europeia, a Iugoslávia, estava comprometida com a forma de organização da produção social baseada no controle da produção pelos trabalhadores. A sua economia funcionava amplamente nessa base, proporcionando uma experiência histórica inestimável para esclarecer como esse sistema funciona. Os teóricos econômicos(10) produziram uma análise rigorosa das propriedades das empresas e economias controladas pelos trabalhadores.

Ao examinar a história e a experiência do controle da produção pelos trabalhadores, alguns pontos se destacam. Um deles é central para a análise econômica: o papel dos trabalhadores reais nas empresas como requerentes residuais da renda gerada pela empresa produz em geral uma distorção; as empresas controladas pelos trabalhadores tendem a evitar a contratação de novos trabalhadores porque ela aumenta a competição dos trabalhadores existentes pelos excedentes residuais da empresa. Esse fenômeno, por sua vez, dá origem a pressões para diferenciar os ganhos providos das receitas excedentes aos custos entre os diferentes estratos de trabalhadores.

Quando as empresas controladas pelos trabalhadores se tornam muito bem-sucedidas, a hierarquia de trabalhadores resultante começa a se assemelhar à das firmas capitalistas. Quando as contradições entre a forma jurídica de organização da empresa e as reivindicações substantivas de diferentes camadas de trabalhadores em relação às receitas excedentes se tornam agudas, é comum que as empresas controladas pelos trabalhadores se privatizem espontaneamente, convertendo-se em firmas capitalistas tradicionais.

Um segundo ponto é que, apesar da capacidade demonstrada pelas empresas controladas por trabalhadores para competirem com sucesso com empresas capitalistas sob diversas circunstâncias, nunca apareceu uma tendência de que elas, ao crescerem espontaneamente, viessem a expulsar empresas capitalistas dos mercados em que atuam: os setores controlados pelos trabalhadores mantêm-se em geral relativamente pequenos, mesmo em sociedades onde a tradição e a prática favorecem essa forma de organização produtiva.

Outro notável modelo alternativo, constituído também de baixo para cima, para empresas capitalistas enquanto formas de organizar a produção vem do movimento de “código aberto” (open source) ou “produção por pares” (peer production), que originalmente foi bem-sucedido no desenvolvimento de programas de computador, mas depois veio a ser generalizado para alguns outros campos semelhantes, tais como o desenvolvimento de medicamentos farmacêuticos e a implementação da tecnologia genética.

A produção por pares é uma forma descentralizada e espontânea de empregar recursos produtivos; por meio dela, um grupo de interessados ​​e participantes contribui com tempo, energia e capital para a produção de produtos socialmente úteis. TeX e LaTeX, por exemplo, são programas para escrita acadêmica e científica amplamente utilizados; os servidores Apache para a rede digital, assim como o sistema operacional Linux são também exemplos de produtos gerados por meio da produção por pares. Os programas de computador assim criados, além de serem “livres”, funcionam melhor e de forma mais confiável do que os produtos concorrentes, produzidos com fins lucrativos e visando dominar ramos importantes da tecnologia da computação. A produção por pares é uma demonstração bastante convincente da viabilidade (e mesmo da superioridade) da organização da divisão de trabalho em áreas tecnicamente sofisticadas por meio de relações sociais de produção espontâneas e primariamente não mercantis e/ou monetárias.

Existem alguns obstáculos importantes à produção por pares como modelo universal de produção social. O capital envolvido no desenvolvimento de programas de computador é relativamente pequeno em comparação com a contribuição proporcionada pelo trabalho humano. Grande parte do capital necessário para o desenvolvimento de tais programas, principalmente para computadores e conexões de rede, é pequeno e já está disponível para os participantes de projetos de código aberto. (A rede em si, a internet, é fornecida socialmente por meio de uma mistura complicada de instituições de cima para baixo e de baixo para cima.)

Ademais, os participantes de projetos de código aberto geralmente têm outras ocupações, as quais lhes proporcionam rendas para pagar o aluguel e para pôr a comida na mesa – ou seja, eles participam da divisão de trabalho organizado pelo sistema mercantil capitalista. Os participantes na produção por pares são motivados por suas próprias necessidades e interesses, tal como os mais humildes colecionadores, bem como por forças poderosas de aprovação social e reconhecimento devido às conquistas que podem proporcionar. Muitos “voluntários” na produção de pares estão, na verdade, participando do sistema de instrução de seus empregadores capitalistas; e estes têm, como bem se sabe, fins lucrativos, veem vantagens comerciais no envolvimento com o desenvolvimento de programas de código aberto.

Os produtos dos esforços da produção por pares são o que os economistas chamam de bens “não-rivais”. São exemplos, aqueles programas ou fontes de informações cujo custo marginal de provisão para um usuário adicional é insignificante quando comparado ao custo fixo, por exemplo, do desenvolvimento do programa. Se pensarmos em generalizar a produção por pares para setores como alimentos ou têxteis ou construção, muitas contradições surgirão imediatamente e se tornaram aparentes.

O aumento explosivo do poder de computação e a emergência das redes de computadores resolvem potencialmente os problemas da coordenação socialista, tanto na abordagem de baixo para cima quanto na abordagem de cima para baixo. Uma questão central da organização de qualquer divisão social do trabalho é – tal como Hayek bem apontou – de ordem informacional. (Essa não é a única questão – claro –, já que os incentivos e a coordenação da produção implicam em outras dificuldades bem significativas).

O sistema capitalista produtor de mercadorias depende em grande medida dos mercados e da formação de preços de mercado para gerar e difundir as informações necessárias para organizar a divisão do trabalho. Um sistema socialista que não dependa de mercados ou os elimine de modo completo terá de depender, alternativamente, de outros processos sofisticados e descentralizados capazes de gerar e de difundir informação. A disponibilização de computadores e de potentes redes digitais oferece pelo menos uma possibilidade de que se possa criar sistemas interativos que venham a substituir os mercados do capitalismo.

A visão de “cima para baixo” de uma sociedade otimamente controlada produzida pelos matemáticos do Círculo de Viena transformou-se, por meio da termodinâmica, numa visão de “baixo para cima” gerada pelo Instituto Santa Fé, ou seja, de um sistema social auto-organizado e descentralizado de dinâmicas sociais.


Notas:

(1)Este texto foi preparado para conferências no Havens Institute da Universidade de Wisconsin, em Madison, em abril de 2011. Título original: “Alternativas socialistas ao capitalismo: de Viena à Santa Fé”

(2)Professor do Departamento de Economia da FEA/USP.

(3)N. T.: Tradução aproximada de “top-down”

(4)N. T.: Enrico Barone (1859) e Vilfredo Pareto (1848-1923) foram dois célebres economistas italianos que ousaram pensar o socialismo em termos formais.

(5)Mirowski, Philip – Machine Dreams: Economic become a cyborg science, Cambridge University Press, 2002.

(6)Schumpeter, Joseph – Capitalism, socialism, and democracy. Harper and Brothers, 1942.

(7)Leontief, Wassily – Input-output economics. Oxford University Press, 1966.

(8)N. T.: Tradução aproximada de “botton-up”

(9)Ver Foley, Duncan K. Unholy Trinity: labor, capital and land in the new economy. Routledge, 2003; Foley Duncan K.; Albin, Peter S. – Barriers and bounds to rationality: essays on economic complexity and dynamics in interactive systems. Princeton University Press, 1998.

(10)Por exemplo, Vanek, Jean – The general theory of labour-managed market economics, Cornell University Press, 1970