sábado, 3 de agosto de 2019

Socialismo Democrático: o papel da autonomia



Transformados, Big Data e algoritmos permitiriam superar mercado; produzir e distribuir riquezas de forma desalienada. Mas este sistema, ao contrário do que se pensou ao longo do século XX, não precisa ser controlado de cima para baixo






Por Duncan Foley (1) | Tradução e introdução: Eleutério F. S. Prado (2) | Imagem: Hussein Salim


“Outras Palavras” publicou recentemente duas séries de artigos sobre o renascimento e fortalecimento da ideia do socialismo democrático. Elas exploram novas possibilidades de coordenação das atividades sociais e econômicas em sociedades complexas, as quais se tornaram possíveis devido aos novos sistemas de informação surgidos das tecnologias da informática e do “Big Data”. A primeira, em três partes sob o título geral de “Socialismo, utopia inviável?”, saiu nos dias 28 de junho, 3 e 5 de julho. A segunda, sob o título geral de “Pós-capitalismo na era do algoritmo”, foi publicada nos dias 12, 17 e 19 de julho de 2019.

Nessa discussão sobre as possibilidades abertas à renovação do socialismo democrático há uma questão de fundo que foi muito bem apresentada pelo professor Duncan Foley da “New School for Social Research“ de Nova Iorque. Ainda que na prática sempre se combinem em alguma medida, há dois modos básicos de estruturar o socialismo enquanto forma de organização da sociedade: de cima para baixo ou de baixo para cima (3). Como o socialismo democrático baseia-se crucialmente nessa segunda possibilidade, vale ler e refletir sobre o que ele diz sobre esses dois modos (Eleutério Prado).


Barone e Pareto (4) abordaram o problema da alocação socialista usando o método simples de análise do equilíbrio econômico estático, centrando-se na ideia de que a competição forçará uma igualdade entre custo marginal e preço. Nos anos 1920 e 1930, um grupo de matemáticos, estatísticos e economistas, incluindo Abraham Wald, John von Neumann e Oskar Morgenstern uniram-se ao “Círculo de Viena” comandado por Karl Menger. As discussões aí travadas lançaram as bases para a abordagem matemática da economia, a qual dominou a teoria econômica na segunda metade do século XX. Em particular, os seus estudos esclareceram o problema de como evitar que os preços se tornem negativos; as assim chamada condições de “folga complementar” permitem preços não-zero apenas quando os recursos são totalmente utilizados.

Um desenvolvimento dessa linha de pensamento consiste em situar o problema da alocação econômica de recursos no contexto mais amplo da teoria do controle ótimo. A teoria matemática do controle ótimo aplica-se ao projeto de criar mecanismos de realimentação que podem estabilizar sistemas dinâmicos complexos para atingir objetivos específicos. Um exemplo paradigmático é o problema da artilharia antiaérea, que se tornou um aspecto fundamental do combate militar na Segunda Guerra Mundial. Como observou Mirowski (5), o duelo entre a artilharia antiaérea (que tenta mirar no ponto em que o bombardeiro estará quando o petardo atingir a altitude da aeronave) e o piloto do bombardeiro (que tenta escapar por meio da manobra do avião) inspirou a teoria dos jogos de soma zero de von Neumann e Morgenstern e a “cibernética” de Norbert Wiener. (É também a raiz da moderna teoria financeira, onde o problema aparece como a tarefa de prever onde os preços dos ativos estarão quando as transações dos aplicadores estiverem realmente consumadas.)

Uma tradição persistente de pensamento adota a visão tecnocrática de que a tarefa do socialismo é identificar e implementar uma alocação socialmente ótima de recursos e de distribuição de produtos. Consiste, pois, numa visão “de cima para baixo” do socialismo, na qual os participantes da divisão do trabalho entregam sua autonomia a um mecanismo centralizado (presumivelmente) benevolente de controle social. O desenvolvimento de sofisticadas teorias de controle ótimo apoia esta visão descendente de controle. Pois, mostra quais são características matematicamente exatas das condições de alocação ótima que são, em princípio, generalizáveis a um número arbitrário de bens produzidos, além de permitir, em teoria, lidar com problemas de tempo e incerteza. Nesta perspectiva, estabelecer o socialismo consiste em construir instituições sociais que possam implementar as soluções de problemas de controle ótimo. O poder desses métodos matemáticos e o prestígio da matemática nas ciências naturais levaram muitos pensadores sofisticados a aceitar o eventual triunfo dos métodos de controle ótimos como inescapável. Schumpeter (6), por exemplo, viu-se a si mesmo lutando contra um movimento nesse sentido que condenava em nome de um impulso ao empreendedorismo capitalista cada vez mais obsoleto, pois estava diante de uma racionalização burocrática da produção social cada vez mais invasiva.

O programa de controle ótimo que fundamenta o planejamento de cima para baixo ganhou força a partir de dois outros desenvolvimentos importantes ocorridos na década de 1930, os quais, aliás, foram aprimorados durante a Segunda Guerra Mundial.

Um deles era o sistema de insumo-produto de Wassily Leontief (7), que nada mais é do que uma compilação de dados sobre transações intersetoriais em um nível de detalhe anteriormente inconcebível (da ordem de dezenas ou mesmo centenas de setores econômicos). Para o socialista tecnocrata parecia apenas um pequeno salto ir das tabelas de Leontief à implementação de planos de produção e distribuição realizáveis. De fato, durante a Segunda Guerra Mundial, os métodos de Leontief contribuíram significativamente para resolver os gargalos reais criados pela produção planejada de armamentos.

O segundo foi a invenção do computador digital por Alan Turing, von Neumann e outros, um resultado da convergência de correntes da matemática pura da teoria da prova, a combinatória da quebra de códigos secretos, dispositivos para guiar a artilharia, armas antiaéreas e bombardeios aéreos, assim como os avanços rápidos da eletrônica. Von Mises sentira-se, pois, confiante em atacar o conceito de planejamento central do socialismo na década de 1930, com base no fato de que era humanamente impossível resolver todas as equações que caracterizam o equilíbrio competitivo de mercado, exceto por meio das interações de mercado. Mas apenas alguns anos depois, o socialismo tecnocrático tinha à sua disposição um instrumental matemático sofisticado da alocação de recursos sociais. Este encarava o planejamento como um problema de controle ótimo que era solucionável mediante uma tecnologia de computação em rápido desenvolvimento. Esta tecnologia se afigurava como precisamente adaptada para resolver os problemas matemáticos originados do uso de dados de insumo-produto – ainda rudimentares, mas generalizáveis –, o que fornecia uma base para realizar os cálculos relevantes para a alocação de recursos no mundo real.

Os interessados no desenvolvimento dessa tecnologia nascente de planejamento social não se resumiam aos socialistas idealistas que tinham a cabeça nas nuvens. Tal como as bombas nucleares, essas inovações da engenharia social desempenharam um papel centralmente eficaz na organização do esforço de guerra bem-sucedido. (Na verdade, tem-se um bom argumento quando se diz que o impacto cumulativo dessas inovações da engenharia social e do planejamento no modo de levar a frente a guerra excedeu em muito a importância marginal das armas nucleares.) Diante do espectro paranoico da Guerra Fria, a expansão das instituições de planejamento racional parecia oferecer uma vantagem crítica no crepúsculo de uma longa batalha.

Talvez tenha sido a consciência de tal consenso ameaçador que levou Hayek ao pânico e o motivou a escrever O Caminho da Servidão. Eis que essa perspectiva tende a juntar todas as variedades de ação social coletiva possíveis na forma de um “coletivismo” monolítico que passa a ameaçar a liberdade humana individual. De qualquer forma, não é difícil ver, do ponto de vista marxista, que o programa de alocação racional centralizada tecnocrática enfrentaria uma pesada oposição dos próprios capitalistas. A reação capitalista deixou sua marca na profissão econômica. Levou à supressão efetiva do livro keynesiano de Lorie Tarshis e à sua substituição pela síntese neoclássica, um keynesianismo cuidadosamente higienizado por Paul Samuelson. Levou também a pressões ininterruptas e finalmente bem-sucedidas para marginalizar e desfazer o programa de pesquisa de Leontief.

O programa “duro” de alocação racional, centralizada e tecnocrática de recursos, baseada ademais em dados concretos, provavelmente alcançou o seu limite máximo no fim dos anos 1940, embora continue exercendo uma influência real no pensamento e no discurso político até os dias atuais.

De baixo para cima (8)


Há uma curiosa conexão de proximidade entre a matemática da teoria do controle ótimo e a matemática da termodinâmica. A termodinâmica é o ramo da física um tanto improvável, mas extremamente bem-sucedido, que lida com sistemas que são complexos demais para serem tratados diretamente pelos métodos da dinâmica. Um exemplo paradigmático é o comportamento das moléculas em gases difusos tal como aquele da atmosfera terrestre: um volume relativamente pequeno de gás contém um número tão grande (na ordem de 1023) de moléculas que estaria além da capacidade humana de calcular em detalhes a sua dinâmica (ora, isto parece ter influenciado a crítica de von Mises do socialismo de planejamento central). A engenhosa aplicação do raciocínio estatístico a esse tipo de problema leva a previsões muito poderosas e úteis sobre o comportamento macroscópico dos gases, independentemente dos detalhes de seus movimentos moleculares. Os métodos termodinâmicos levam a profundos insights sobre os comportamentos de uma enorme variedade de fenômenos complexos, embora os resultados geralmente não sejam tão simples quanto aquele que se obtém analisando o comportamento de gases difusos.

Quando as interações das partes constituintes de sistemas complexos são mais complicadas do que as colisões por meio das quais as moléculas de gás trocam energia entre si – um exemplo são as compras e vendas de mercadorias –, o sistema pode produzir um comportamento macroscópico que é adaptativo e emergente. Exceto em casos incomuns, os quais podem ser tratados tal como se faz com os gases difusos, apenas é possível estudar as propriedades emergentes de sistemas complexos por meio de métodos de simulação, os quais são, como se sabe, de limitada precisão. Há razões consideráveis para se pensar que fenômenos tais como a divisão do trabalho e as interações de mercado na economia capitalista são melhor entendidos como sistemas complexos (9). De fato, como eu mesmo sugeri num texto já publicado, a economia política clássica pode ser compreendida como uma tentativa de raciocinar sobre a produção e a circulação de mercadorias como um sistema complexo.

A última metade do século XX viu um aumento no interesse em sistemas auto-organizados que funcionam de baixo para cima, tais como os formigueiros, as colmeias de abelhas, bandos de aves, redes de computadores, algoritmos de aprendizado não supervisionados, como redes neurais, a economia capitalista, possivelmente o cérebro humano e uma série de outros exemplos semelhantes. Vários recursos desses sistemas que funcionam de baixo para cima chamam a atenção dos pensadores da teoria dos sistemas.

Por um lado, em comparação com os sistemas de controle ótimo que operam de cima para baixo, os sistemas auto-organizados que funcionam de baixo para cima tendem a ser mais “resilientes” e mais “robustos”. Sistemas auto-organizados frequentemente (embora não invariavelmente) continuam a funcionar (possivelmente de modo degradado) apesar da interrupção ou até da destruição de subsistemas importantes e, em certos casos, podem se recuperar de tais danos espontaneamente. Os sistemas que funcionam de cima para baixo podem ser construídos com considerável “redundância”, mas tendem a ser mais vulneráveis à interrupção de elementos-chave, particularmente das realimentações responsáveis por suas propriedades ideais de controle.

Outra propriedade intrigante dos sistemas auto-organizados que funcionam de baixo para cima é que, embora não sejam projetados para atingir um desempenho ideal, eles geralmente apresentam um desempenho surpreendentemente bom. Formigueiros, por exemplo, são extremamente eficientes na localização e exploração das fontes de alimento.

Os sistemas auto-organizados que operam de baixo para cima também exibem um grau alto de adaptabilidade a novas situações. Sistemas ótimos de controle tendem a ser otimizados para um contexto particular no qual eles são projetados para operar. Sistemas auto-organizados podem se adaptar a uma ampla gama de mudanças ambientais (embora normalmente existam limites para a magnitude dos choques que um sistema desse tipo pode sobreviver).

O próprio capitalismo é um bom exemplo de todas essas características de sistemas que funcionam de baixo para cima e se organizam de modo algo espontâneo: as instituições capitalistas históricas tendem a se reproduzir mesmo após a destruição causada por guerras e revoluções; a alocação capitalista de recursos possui um grau bom de eficiência; e o capitalismo provou ser altamente adaptável em face de mudanças ambientais maciças (muitas das quais surgem da dinâmica da própria acumulação de capital).

A visão da economia como um sistema complexo se deve a Hayek. E ela permite uma compreensão de como a produção de mercadorias no capitalismo está organizada “de baixo para cima”. Também sugere uma visão paralela do socialismo como um sistema que decorre da organização espontânea da produção por meio de uma estrutura de instituições diferente daquela baseada na apropriação privada e na troca de mercadorias.

Esta visão ascendente de organização social ressoa em importantes correntes políticas do final do século XX. Sabe-se que os movimentos da “nova esquerda” dos anos 1960 rebelaram-se contra as tendências centralizadoras e disciplinadoras do socialismo e do comunismo da “velha esquerda”, exigindo a descentralização, a participação e a primazia política da liberdade, assim como da possibilidade da expressão individual. A esquerda atualmente, tal como labuta no mundo contemporâneo do capitalismo globalizado, encontra-se mais atraída por uma visão de sociedade espontânea do que pela construção de instituições políticas que operam de cima para baixo.

Esse entusiasmo pela espontaneidade sem coordenação central ou direção tem chamado a atenção de diferentes grupos de esquerda para vários experimentos, planos, filosofias e modelos econômicos descentralizados. Alguns deles, como as instituições de microcrédito, implicam em modificações muito pequenas no sistema capitalista produtor de mercadorias (que, às vezes, podem ser consideradas como extensões de sua lógica intrínseca).

Uma ideia que floresce perenemente na esquerda é o controle da produção pelos trabalhadores como uma alternativa ao capitalismo. Em sua forma mais simples, essa visão aceita a organização da divisão do trabalho com base na mercadoria e no dinheiro, mas propõe substituir os capitalistas pelos trabalhadores como organizadores da produção. As empresas seriam de propriedade de coletivos ou de cooperativas de trabalhadores, que dão ou tomam empréstimos de capital e constituem o que os economistas chamam de “requerentes residuais” da renda resultante da produção de mercadorias. O controle da produção pelos trabalhadores tem características de espontaneidade, adaptabilidade e resiliência, algo que herdam da própria produção mercantil capitalista.

Como as empresas capitalistas, as empresas controladas pelos trabalhadores poderiam se formar e se dissolver em resposta aos sinais do mercado; são assim capazes de realizar uma realocação descentralizada dos recursos à medida que a sociedade muda e evolui. É possível imaginar instituições que possibilitam as realocações de capital, que permitam a livre formação de novas empresas e, portanto, um grau substancial de competição. As cooperativas de trabalhadores, como produtoras de mercadorias podem coexistir com (e competir com) as firmas capitalistas. Nesse caso, se o conteúdo do socialismo é o controle dos trabalhadores, seria possível imaginar um processo evolutivo de transformação da economia capitalista numa economia socialista. Ao aceitar o arcabouço da produção de mercadorias mediada pelo dinheiro, a visão do controle da produção pelos trabalhadores resolve muitos dos quebra-cabeças que assombram as visões mais radicais do socialismo.

De fato, as cooperativas de trabalhadores funcionam como um setor subsidiário da maioria das economias capitalistas, florescendo até mesmo em certas circunstâncias. Elas têm uma longa história na região basca da Espanha, no centro-oeste americano e na Itália, entre muitos outros lugares. Durante alguns anos, uma importante economia europeia, a Iugoslávia, estava comprometida com a forma de organização da produção social baseada no controle da produção pelos trabalhadores. A sua economia funcionava amplamente nessa base, proporcionando uma experiência histórica inestimável para esclarecer como esse sistema funciona. Os teóricos econômicos(10) produziram uma análise rigorosa das propriedades das empresas e economias controladas pelos trabalhadores.

Ao examinar a história e a experiência do controle da produção pelos trabalhadores, alguns pontos se destacam. Um deles é central para a análise econômica: o papel dos trabalhadores reais nas empresas como requerentes residuais da renda gerada pela empresa produz em geral uma distorção; as empresas controladas pelos trabalhadores tendem a evitar a contratação de novos trabalhadores porque ela aumenta a competição dos trabalhadores existentes pelos excedentes residuais da empresa. Esse fenômeno, por sua vez, dá origem a pressões para diferenciar os ganhos providos das receitas excedentes aos custos entre os diferentes estratos de trabalhadores.

Quando as empresas controladas pelos trabalhadores se tornam muito bem-sucedidas, a hierarquia de trabalhadores resultante começa a se assemelhar à das firmas capitalistas. Quando as contradições entre a forma jurídica de organização da empresa e as reivindicações substantivas de diferentes camadas de trabalhadores em relação às receitas excedentes se tornam agudas, é comum que as empresas controladas pelos trabalhadores se privatizem espontaneamente, convertendo-se em firmas capitalistas tradicionais.

Um segundo ponto é que, apesar da capacidade demonstrada pelas empresas controladas por trabalhadores para competirem com sucesso com empresas capitalistas sob diversas circunstâncias, nunca apareceu uma tendência de que elas, ao crescerem espontaneamente, viessem a expulsar empresas capitalistas dos mercados em que atuam: os setores controlados pelos trabalhadores mantêm-se em geral relativamente pequenos, mesmo em sociedades onde a tradição e a prática favorecem essa forma de organização produtiva.

Outro notável modelo alternativo, constituído também de baixo para cima, para empresas capitalistas enquanto formas de organizar a produção vem do movimento de “código aberto” (open source) ou “produção por pares” (peer production), que originalmente foi bem-sucedido no desenvolvimento de programas de computador, mas depois veio a ser generalizado para alguns outros campos semelhantes, tais como o desenvolvimento de medicamentos farmacêuticos e a implementação da tecnologia genética.

A produção por pares é uma forma descentralizada e espontânea de empregar recursos produtivos; por meio dela, um grupo de interessados ​​e participantes contribui com tempo, energia e capital para a produção de produtos socialmente úteis. TeX e LaTeX, por exemplo, são programas para escrita acadêmica e científica amplamente utilizados; os servidores Apache para a rede digital, assim como o sistema operacional Linux são também exemplos de produtos gerados por meio da produção por pares. Os programas de computador assim criados, além de serem “livres”, funcionam melhor e de forma mais confiável do que os produtos concorrentes, produzidos com fins lucrativos e visando dominar ramos importantes da tecnologia da computação. A produção por pares é uma demonstração bastante convincente da viabilidade (e mesmo da superioridade) da organização da divisão de trabalho em áreas tecnicamente sofisticadas por meio de relações sociais de produção espontâneas e primariamente não mercantis e/ou monetárias.

Existem alguns obstáculos importantes à produção por pares como modelo universal de produção social. O capital envolvido no desenvolvimento de programas de computador é relativamente pequeno em comparação com a contribuição proporcionada pelo trabalho humano. Grande parte do capital necessário para o desenvolvimento de tais programas, principalmente para computadores e conexões de rede, é pequeno e já está disponível para os participantes de projetos de código aberto. (A rede em si, a internet, é fornecida socialmente por meio de uma mistura complicada de instituições de cima para baixo e de baixo para cima.)

Ademais, os participantes de projetos de código aberto geralmente têm outras ocupações, as quais lhes proporcionam rendas para pagar o aluguel e para pôr a comida na mesa – ou seja, eles participam da divisão de trabalho organizado pelo sistema mercantil capitalista. Os participantes na produção por pares são motivados por suas próprias necessidades e interesses, tal como os mais humildes colecionadores, bem como por forças poderosas de aprovação social e reconhecimento devido às conquistas que podem proporcionar. Muitos “voluntários” na produção de pares estão, na verdade, participando do sistema de instrução de seus empregadores capitalistas; e estes têm, como bem se sabe, fins lucrativos, veem vantagens comerciais no envolvimento com o desenvolvimento de programas de código aberto.

Os produtos dos esforços da produção por pares são o que os economistas chamam de bens “não-rivais”. São exemplos, aqueles programas ou fontes de informações cujo custo marginal de provisão para um usuário adicional é insignificante quando comparado ao custo fixo, por exemplo, do desenvolvimento do programa. Se pensarmos em generalizar a produção por pares para setores como alimentos ou têxteis ou construção, muitas contradições surgirão imediatamente e se tornaram aparentes.

O aumento explosivo do poder de computação e a emergência das redes de computadores resolvem potencialmente os problemas da coordenação socialista, tanto na abordagem de baixo para cima quanto na abordagem de cima para baixo. Uma questão central da organização de qualquer divisão social do trabalho é – tal como Hayek bem apontou – de ordem informacional. (Essa não é a única questão – claro –, já que os incentivos e a coordenação da produção implicam em outras dificuldades bem significativas).

O sistema capitalista produtor de mercadorias depende em grande medida dos mercados e da formação de preços de mercado para gerar e difundir as informações necessárias para organizar a divisão do trabalho. Um sistema socialista que não dependa de mercados ou os elimine de modo completo terá de depender, alternativamente, de outros processos sofisticados e descentralizados capazes de gerar e de difundir informação. A disponibilização de computadores e de potentes redes digitais oferece pelo menos uma possibilidade de que se possa criar sistemas interativos que venham a substituir os mercados do capitalismo.

A visão de “cima para baixo” de uma sociedade otimamente controlada produzida pelos matemáticos do Círculo de Viena transformou-se, por meio da termodinâmica, numa visão de “baixo para cima” gerada pelo Instituto Santa Fé, ou seja, de um sistema social auto-organizado e descentralizado de dinâmicas sociais.


Notas:

(1)Este texto foi preparado para conferências no Havens Institute da Universidade de Wisconsin, em Madison, em abril de 2011. Título original: “Alternativas socialistas ao capitalismo: de Viena à Santa Fé”

(2)Professor do Departamento de Economia da FEA/USP.

(3)N. T.: Tradução aproximada de “top-down”

(4)N. T.: Enrico Barone (1859) e Vilfredo Pareto (1848-1923) foram dois célebres economistas italianos que ousaram pensar o socialismo em termos formais.

(5)Mirowski, Philip – Machine Dreams: Economic become a cyborg science, Cambridge University Press, 2002.

(6)Schumpeter, Joseph – Capitalism, socialism, and democracy. Harper and Brothers, 1942.

(7)Leontief, Wassily – Input-output economics. Oxford University Press, 1966.

(8)N. T.: Tradução aproximada de “botton-up”

(9)Ver Foley, Duncan K. Unholy Trinity: labor, capital and land in the new economy. Routledge, 2003; Foley Duncan K.; Albin, Peter S. – Barriers and bounds to rationality: essays on economic complexity and dynamics in interactive systems. Princeton University Press, 1998.

(10)Por exemplo, Vanek, Jean – The general theory of labour-managed market economics, Cornell University Press, 1970


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