sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Duas Revoluções: Rússia e China




Por Pedro Ramos de Toledo – Comentário sobre o livro de Perry Anderson


Publicado em 2010 na revista New Left Review, importante periódico de teoria e análise marxista, Duas Revoluções apresentou um esforço comparativo de Perry Anderson para compreender os díspares destinos que esperavam as Revoluções Russa e Chinesa no final do século XX.

Em suas anotações – brevíssima introdução que abre sua reflexão – Anderson salienta o contraste dos percalços dos Estados ali surgidos: enquanto a URSS, cujo nascimento e trajetória marcou todo o século XX, “(…) desintegrou-se após sete décadas, quase sem um tiro,  tão rapidamente como surgira”, a República Popular da China (RPC) “(…) é uma força motriz da economia mundial; o líder em exportações seja para a União Europeia, seja para o Japão, seja para os Estados Unidos; o maior detentor de reservas cambiais do mundo.” (p. 23).

Em seu esforço para explicar tal contraste  Anderson elaborou quatro planos diversos, nos quais encontra-se dividido seu artigo: “Matrizes”, em que buscou identificar similitudes entre as estratégias e políticas implementadas pelos agentes vitoriosos de ambas as revoluções; “Mutações”, que versa sobre as condições históricas que determinaram os programas de reformas levados a cabo pelos Partidos Comunistas da União Soviética e China; “Pontos de Ruptura”, em que Anderson analisa as consequências dessas reformas; e “O Novum”, seção final em que Anderson debate o legado de longa duração dessas revoluções e em que medida atuaram como fatores determinantes para o desfecho de ambos os países.

Além do artigo de Anderson que dá título à obra foram incorporados nessa edição três textos que se encontram em direto diálogo com o documento principal:  uma introdução escrita por Luiz Gonzaga Belluzzo; uma réplica ao artigo de Anderson, elaborada por Wang Chauhua e publicada na New Left Review em 2015; e o posfácio assinado por Rosana Pinheiro-Machado. Como veremos, essas adições enriquecem sobremaneira a leitura do texto central de Anderson sem no entanto se reduzirem a meras anotações de suas qualidades e fraquezas.

Em sua introdução, Beluzzo nos apresenta um panorama contrastante acerca do desenvolvimento econômico dos Estados soviético e chinês. As condições em que se encontra a Rússia na vitória da Revolução de 1917 são profundamente restritivas: uma violenta guerra civil que opôs ao nascente Estado soviético as forças combinadas das principais potências imperialistas e de um exército contra-revolucionário; a oferta agrícola deprimida, resultante da desintegração da vida campesina decorrente dos esforços de guerra e das enormes fatalidades impostas ao exército russo (composto em sua quase totalidade por conscritos camponeses) durante a Primeira Guerra Mundial; e um complexo industrial frágil acabaram por tornar urgente a reconstrução da economia soviética, abrindo caminho para a Nova Política Econômica (Novaya Economiskaya Politika – NEP), na qual, sob o controle do Estado, atuariam como forças motrizes do desenvolvimento a pequena propriedade privada e empresas estatais orientadas para o lucro. Sem atentar para o período de estalinização dos anos 30, caracterizado pela implementação dos planos quinquenais, Beluzzo passa a demonstrar os impactos da Segunda Guerra Mundial sobre a estrutura política e econômica da URSS. O brutal esforço de guerra empreendido pela sociedade soviética, somado às perdas irreparáveis ocorridas no conflito, acabou por militarizar não somente a sociedade como a própria economia. O fortalecimento da Economia de Comando e o investimento prioritário no complexo industrial-militar impediu – naqueles que Perry Anderson denomina “anos de estagnação” –  que a economia soviética acompanhasse as transformações produtivas e informacionais pelas quais passava o mundo capitalista. As crescentes distorções no cálculo econômico deprimiam a produção de bens de consumo e aumentavam as dificuldades de crescimento intensivo da economia soviética. Já no final dos anos 80, a ausência de oferta transfigurava-se por um lado em excesso de dinheiro acumulado, e por outro em um crescente déficit orçamentário. A reforma de preços imposta pela Perestroika acabou por gerar efeitos hiperinflacionários e produziu efeitos desastrosos sobre a produção e o emprego.  O “choque de mercado”, como explica Belluzzo ao citar Peter Nolan, foi uma tentativa desastrada de saltar “…do stalinismo puro e duro para as crenças igualmente dogmáticas do livre-mercado” (Beluzzo, 2018: p. 13).

A República Popular da China, por outro lado, escolheu para suas reformas uma rota diversa, cujos resultados contrastam com a catástrofe da Perestroika. Estabelecendo-se como uma nova fronteira para o capitalismo mundial, a RPC embarcou no final dos anos 70 em uma ampla reforma de sua economia, que permitiu ao país saltar de 1% de participação no comércio mundial em 1980 para 10,4% em 2010. Belluzzo nos apresenta de forma sintética um panorama daquilo que Deng Xiao Ping definiu como “socialismo à moda chinesa”: a atração de investimentos diretos; a absorção de tecnologia; fixação de metas de exportação; balança comercial avitária; controle do movimento de capitais; taxa de câmbio fixa; e políticas industriais que privilegiam as empresas nacionais. Tais medidas sustentam-se na relação simbiótica existente entre o Partido Comunista Chinês (PCC), o Estado e o mercado. A partir de um sistema de consulta às bases o PCC estabelece, com razoável independência em relação aos interesses dos agentes econômicos, o conjunto de diretrizes de longo prazo, cabendo ao Estado e suas esferas executivas a devida implementação. À iniciativa privada cabe atuar como força motriz da inovação tecnológica  e garantir um ambiente competitivo entre os agentes econômicos. Soma-se a isso um rígido controle do mercado de capitais, que torna o ambiente econômico da RPC um espaço hostil para a prática do rentismo, garantindo assim o investimento direto nos setores produtivos. A RPC alia assim o máximo de competição ao máximo de controle através de um sistema econômico indicativo que conta com o papel ativo do Estado no desenvolvimento da economia.

Em “Anotações”, introdução de Anderson ao próprio artigo, o historiador britânico apresenta brevemente seus objetivos: compreender, a partir dos destinos contrastantes que aguardavam as Repúblicas Chinesa e Soviética no final dos anos 80, as condições objetivas e diferenças estratégicas dos sujeitos políticos envolvidos que colaboraram com o desvio de rumos tomados por Estados nascidos na mesma tradição revolucionária.

No primeiro capítulo de seu opúsculo, “Matrizes”, Anderson discorre sobre as condições historicamente recebidas por ambos os movimentos revolucionários que levaram a cabo as revoluções russa e chinesa e de que forma tais condições fornecem pontos de contato e rupturas entre as duas experiências. Ao analisar inicialmente o processo revolucionário russo, o autor apresenta como seus fatores característicos o caráter insurreicional majoritariamente urbano; a exígua base social desse movimento, composta pelo jovem proletariado russo; a guerra civil que se seguiu à Revolução de Outubro e que fora responsável pela destruição quase completa do parque industrial do país; o caráter internacionalista do movimento vitorioso, arrefecido já nos anos 20 pelas derrotas revolucionárias na Europa ocidental. É-nos apresentado um cenário que ressalta o isolamento em que se encontravam os sujeitos responsáveis pela revolução bolchevique de 1917, agora responsáveis pela consolidação do nascente estado soviético em meio às ruínas da Rússia czarista e dependentes exclusivamente de seus esforços.

As particularidades constitutivas do processo revolucionário chinês, por outro lado, são apresentadas por Anderson de forma a contrastar com a descrição do caso russo. Como frisa o autor: “A Revolução Chinesa, embora inspirada na russa, inverteu praticamente todos os seus termos” (p.26). Fundado em 1921, o PCC protagonizou uma longa guerra de atrito (1926-1949) contra o Kuomintang, os senhores da guerra chineses e, posteriormente, os invasores japoneses, estabelecendo-se enquanto poder dual a partir de sua ampla capilaridade nas regiões rurais da China. Tal capilaridade expressava o amplo apoio que o PCC recebia das camadas sociais rurais, resultado das amplas reformas (anulação de dívidas, redistribuição de terras) que o partido realizava nos territórios que controlava. Tais condições – o controle territorial e a resistência ao invasor estrangeiro – possibilitaram ao PCC “… um grau de penetração social que o partido russo jamais alcançou” (p.29).

Se tais condições particulares separam o nascimento e a vitória das revoluções russa e chinesa, Perry Anderson identifica elementos convergentes, notadamente as questões concernentes ao campesinato e aos quadros burocráticos. Do lado russo, o autor salienta o papel desintegrador que a coletivização forçada das terras, a partir de 1928, exerceu sobre a classe camponesa russa. Esta”guerra contra o campesinato” acabou por produzir milhões de vítimas, entre mortos e degredados, uma catástrofe da qual a agricultura soviética nunca conseguiu se recuperar. No que se refere aos quadros burocráticos, Perry Anderson ressalta a “Iejovshchina”, ápice do terror estalinista, quando toda a velha guarda revolucionária de 1917, incluindo importantes nomes militares da Guerra Civil de 1919 e figuras proeminentes do universo cultural e político dos anos de 1920, foi dizimada pelo aparato burocrático-policial de Stálin. A liquidação dos antigos quadros explica-se, para o autor, na impossibilidade que Stalin encontrou em se impôr como líder revolucionário, restando tão somente o extermínio de qualquer dissidência, representada principalmente na geração heroica dos anos 20.

A China, por sua vez, acabou por encontrar dificuldades similares. Buscando acelerar o desenvolvimento da economia chinesa, Mao Tse Tung lançou, em 1958, o “Grande Salto para a Frente” (GSF), programa baseado na criação de comunas populares e na difusão descentralizada de pequenas indústrias leves. O desvio de mão-de-obra campesina para estas indústrias, aliada ao baixo rendimento das safras e a cotas elevadas de produção acabaram por produzir enorme carestia de grãos e uma subsequente onda de fome, causando mais de 30 milhões de mortes. Oito anos após o fracasso do GSF, coube à Revolução Cultural o expurgo sistemático de quadros burocráticos do PCC, em um processo que perdurou até a morte de Mao Tse Tung em 1976.

A despeito do papel central que tais paroxismos exerceram nas futuras reformas pelas quais passaram ambos os estados, Anderson toma o cuidado em ressaltar que suas causas e consequências foram radicalmente diversas. Diferentemente da Rússia, cuja coletivização se realizou através de uma guerra declarada ao campesinato e que levou à desmoralização do maior estrato social da URSS, o GSF não buscou a sujeição ao campesinato. Seu objetivo era integrar as populações campesinas a um ambicioso processo de industrialização das zonas rurais sem com isso despojá-las do trato e cultivo da terra. Seu fracasso se deu principalmente pela carência de dados fidedignos sobre o rendimento agrícola e: “[…] a vida nas aldeias, mesmo nas regiões mais gravemente afetadas, normalizou-se com surpreendente rapidez” (p.33). Quanto aos quadros burocráticos, as causalidades são ainda mais contrastantes. Ainda que parida nas disputas internas do PCC, a Revolução Cultural não objetivou eliminar os grupos dissidentes, mas impedir que a burocracia do PCC  caminhasse para a formação de um casta burocrática semelhante àquela que se consolidou no poder da URSS após os anos de expurgo. Sem se utilizar diretamente do aparato militar-policial, a Revolução Cultural encontrou na juventude chinesa a novidade política que, por dez anos, balançou as estruturas burocráticas do estado chinês. Como ressalta Anderson: “Mao tinha conduzido a Revolução Chinesa para a vitória, e não houve massacre da velha guarda que combatera ao seu lado.” (p. 35)

No segundo capítulo, “Mutações”, Perry Anderson trata dos projetos de reformas empreendidos pelos Estados Soviético e Chinês, que acabaram justapostos nos anos 1980. A despeito das três décadas que separam os movimentos revolucionários da China e URSS, a simultaneidade de tais processos se explica pelas particularidades trilhadas por cada Estado, que Anderson descreve como “o fracasso dos esforços precedentes de reconstrução” (p. 37). Fiel ao seu método, isto é, utilizar o fracasso soviético enquanto espelho negativo para o sucesso chinês, Anderson apresenta para o leitor uma história das reformas empreendidas pela URSS, desde as condições historicamente dadas que as ensejaram até o papel que suas conduções tiveram na desintegração do Estado soviético, em 1991. Por um lado o historiador ressalta o longo período de estagnação entre os anos 60 e 80, que compreendeu os regimes de Krushchev e Brejnev, causados pela incapacidade que o estado soviético demonstrou em compreender as transformações produtivas pelas quais passava o capitalismo no pós-guerra, conservando como base de seu desenvolvimento uma economia de comando fortemente centralizada e concentrada na indústria pesada e no complexto bélico-militar; por outro, a cristalização de uma nomenklatura gerontocrática, já há muito afastada dos princípios e virtudes da geração revolucionária dos anos 1920.

A China  em contrapartida encontrava-se, no final dos anos 1970, vivendo a ressaca da Revolução Cultural, que paralisou por dez anos a vida intelectual do país e produziu feridas profundas no quadro burocrático do PCC. O boom econômico dos tigres asiáticos – notadamente Coréia do Sul, Taiwan e Japão – colocavam em cheque o modelo socialista chinês, que via o abismo econômico que a separava do capitalismo asiático se alargar. Foi esta condição – o crescimento do hiato social-econômico que os separavam das potências capitalistas  – que encontrou ambos os estados no final dos anos 70 e que tornou a necessidade de reformas uma agenda prioritária.

No caso da URSS, as condições iniciais eram elusivamente melhores: uma sociedade industrializada que contava com índices plenos de alfabetização além de uma ampla comunidade científica. Essas vantagens, por outro lado, acabavam anuladas por uma gigantesca economia de comando que contava com mais de 60.000 produtos tabelados, cuja inércia exigia um gigantesco esforço para mudar de rumos. As tecnologias de informação, centrais para a reelaboração dos setores planificados da economia, não foram assimiladas; e os bens de capital eram obsoletos, impactando na relação capital/produto. Soma-se a isso o papel da Guerra Fria nesse cenário de estagnação, ao embargar recursos para a modernização da economia em favor da elevação contínua dos gastos militares e em detrimento dos setores de produção de bens de capital e consumo (Anderson, 2018 [2010]: p. 39). Ao ascender ao poder em  1985, Mikhail Gorbachev encontrou uma economia estagnada: taxa de crescimento quase nula e desequilíbrio cambial decorrente da queda do preço do petróleo. Frente a esse quadro, Gorbachev buscou reformar os quadros político (Glasnost) e econômico (Perestroika). Perry Anderson atenta para a ênfase que acaba sendo dada por Gorbachev na reforma política em detrimento das reformas econômicas, em cuja atuação se mostraria desastrado, produzindo déficits seguidos e hiperinflação. Ao assumir o poder, Gorbachev passa a atender as reivindicações políticas de uma intelligentsia unificada pela crítica ao regime soviético, que exigia a realização de eleições livres, a desativação da Guerra Fria e a introdução da economia de mercado. A busca por apoio popular e as resistências de seus membros às reformas liberalizantes implicou na progressiva alienação do PCUS, separando neste contexto o Partido dirigente do poder do Estado. Anderson aponta nesta escolha política o ponto fulcral para a desintegração do Estado Soviético, uma vez que o PCUS era o elemento que garantia a unidade das repúblicas. Uma tempestade perfeita, derivada da confluência entre apagões político e econômico, acabou por desintegrar a URSS da noite para o dia.

A partir deste momento Anderson se dedica inteiramente aos processos de reforma chineses. Seu ponto de partida é determinado por aquilo que considera as “vantagens negativas” da China: um nível inferior de industrialização que garantia metas de produção mais modestas; um sistema de planejamento mais maleável, decorrente de tradições campesinais mais arraigadas e infraestrutura mais pobre; maior autonoma das províncias e municípios, garantindo aos poderes locais maior autonomia; e um campesinato que constituía “a pedra angular da nação”, e do qual o PCC usufruía de grande apoio. No campo internacional, a aproximação com os EUA em 1976 e uma política de não-participação direta na Guerra Fria dotaca a RPC de um grau de manobra inimaginável então para URSS, garantindo ao primeiro ajuda financeira e fortes investimentos estrangeiros aos primeiros sinais de uma abertura de mercado. Como salienta Anderson: “[…] não havia nenhum descontentamento profundo no campo, tampouco havia ameaça imperialista direta vinda do estrangeiro, pela primeira vez na história moderna do país.” (p 45). Esses fatores, aliados à alta popularidade de Deng Xiao Ping e os “oito imortais”, permitiram que a China iniciasse suas reformas em condições bastante diversas daquelas que encontrava a URSS. Anderson ressalta o papel daquilo que considera uma liderança enérgica, sensível às transformações pelas quais passava o capitalismo global  e que desfrutou de grande apoio popular decorrente do sucesso econômico, além de conduzir os processos sucessórios sem grandes solavancos .

Anderson identifica como ponto de partida das reformas chinesas a transformação das relações fundiárias, com uma nova reforma agrária que desativou as antigas comunas e parcelou a terra entre a população, garantindo o usufruto da terra e a comercialização dos excedentes de produção, desde que atendidas as cotas  estabelecidas pelo Estado. No setor industrial ocorreu uma flexibilização dos preços tabelados, permitindo aos gestores de empresas estatais, agora arrendatários de suas empresas, negociar os excedentes a preços de mercado. Foram criadas também as empresas de povoados e aldeias (Township and Village Enterprises ou TVEs), que se beneficiavam com baixos impostos e crédito facilitado. Este modelo, que transita entre as propriedade privada, coletiva e estatal, se mostrou altamente lucrativo, aproveitando-se da vasta mão de obra disponível. O terceiro pilar do programa de reformas chinesa foi a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), cujo objetivo era repatriar massas de capital a partir do baixo custo manufatureiro além de absorver tecnologias. É a partir das ZEEs que a RPC equaciona uma ambiciosa agenda de inovação, cuja produção voltada à exportação se concentraria principalmente em eletrodomésticos e produtos eletrônicos.

Nos dois últimos capítulos, “Pontos de Ruptura” e “Novum”, Perry Anderson apresenta suas conclusões sobre as reformas chinesas, tanto pela perspectiva de seus resultados, quando das possibilidades que se abrem no começo do século XXI.  O sucesso das reformas implementadas nos anos 1980 possibilitou que a RPC intensificasse na década seguinte a implementação de ferramentas de mercado em sua economia, ao mesmo tempo em que possibilitou ao PCC enorme capital político, então utilizado para conter demandas democráticas e reprimir vozes dissidentes. Este hiato entre as liberdades econômica e política se evidenciaram em 1989, com a brutal repressão lançada por Deng Xiao Ping sobre os manifestantes da Praça da Paz Celestial, quando então o Exército de Libertação Popular dissolveu violentamente o movimento. Esse episódio representou a reafirmação do poder central do PCC, diferentemente da crise de poder que se abateu sobre o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) na esteira das reformas de Gorbachev. Durante a década de 1990, a China experimentou grandes taxas de crescimento, superando a década anterior. Foi durante este período que a RPC reorganizou sua estrutura industrial, conservando a propriedade estatal de setores estratégicos ao mesmo tempo em que privatizou boa parte das TVEs e permitiu maior autonomia aos gestores provinciais para fazer uso das empresas estatais. Foi neste segundo períodos de reformas que a RPC fez uso agressivo de tarifas industriais baixas para atrair grandes volumes de capital estrangeiro, maximizando os lucros advindos do comércio exterior e se consolidando como a maior plataforma de exportação de manufaturados do planeta. A China chega ao século XXI com força total.

Em suas considerações finais, Anderson convoca três das principais correntes interpretativas acerca do sucesso do modelo chinês: a primeira de cunho historiográfico, que enxerga laços entre o despontar da RPC e o passado imperial; a segunda, em voga principalmente entre economistas, que interpreta tal sucesso a partir da integração tardia da China ao sistema capitalista global; e, por fim, aquela que atribui o protagonismo da Revolução Chinesa e o combate de Mao Tse Tung a uma possível tendência de degeneração burocrática. Ainda admitindo que tal resposta envolve diferentes elementos das três interpretações, o autor pende de forma nítida em favor do papel da Revolução Chinesa e de seus líderes na condução da RPC para uma economia de mercado, ressaltando a título de exemplo o processo de despossessão do campesinato a partir do sistema Houkou, instituído no Grande Salto pra Frente (GSP), e que garantia a segregação do campo em relação às cidades, fornecendo ao Estado o controle dos fluxos migratórios e, consequentemente, do processo de acumulação primitiva dele advindo. Anderson finaliza  apontando alguns dos desafios que se abrem à RPC, como a desigualdade social galopante; a corrupção endêmica; a brutalidade das relações de produção presentes na indústria chinesa; a brutal perseguição aos dissidentes políticos, concentrados à esquerda do Partido; e a contínua espoliação  do campesinato, alicerce que sustenta a legitimidade do PCC. Seu último parágrafo é dedicado à falibilidade que espera qualquer um que intentar fazer predições sobre o destino da RPC, dada a natureza complexa de tal processo histórico, que pendula entre a fascinação pelo ocidente e o chauvinismo do Han, entre um futuro democrático e o paternalismo autoritário in perpetuo: “Rumo a que horizontes está se deslocando o gigantesco junco da RPC, isso é algo que resiste ao cálculo, ao menos quando se utilizam os astrolábios ora conhecidos”.

O terceiro ensaio que compõe a obra é escrito por Wang Chaohua, intelectual chinesa que figurou entre as principais lideranças dos protestos da Praça da Paz Celestial. Intitulado “O Partido e sua história de sucesso: uma resposta a duas “revoluções”, Chaohua buscou prover um contraponto ao trabalho comparativo proposto por Anderson, por entendê-lo assimétrico na forma como tratou as revoluções russa e chinesa, cabendo “[…] ao caso russo ajudar a lançar luz sobre o caso chinês”. (Chaochua, p. 73).ParaChaohua, a tentativa comparativa de Anderson resvala em três problemas fundamentais: o tratamento assimétrico em desfavor do caso russo; a inadequação da forma ensaio quando se precisa comparar processos de longa duração tão complexos como as duas revoluções; e o problema de periodização, causado pelo esforço em comparar processos de reforma deflagrados sincronicamente, mas cujas causas estão separadas por mais de 30 anos. Tal discrepância, de acordo com a autora “[…] inevitavelmente gera simplificação e má interpretação do processo na China” (Chaochua, p. 74). Em seu ensaio, Wang Chaohua tenta equalizar tais discrepâncias em dois movimentos: no primeiro, ela fornece positividade ao espelho russo, ressaltando elementos qualitativos daquela em relação à revolução chinesa, tais como o caráter mais sofisticado da utopia revolucionária russa e o amplo apoio da URSS a movimentos comunistas internacionais. O segundo movimento é um olhar mais aprofundado sobre o período de reformas pós-Mao, cujo desenvolvimento acabou, de acordo com a autora, por desenraizar o PCC de suas tradições revolucionárias, sujeitando todas as estratégias à Realpolitik em favor do desenvolvimento a qualquer custo. O avanço da economia acabou por ocultar as contradições políticas internas, expressadas por problemas de caráter sucessório; pela concentração de poder na figura do presidente; pelo potente aparator repressor; a formação de um subproletariado em escala inédita na história mundial; e esvaziamento do discurso socialista, cujas promessas garantiram a vitória da revolução em primeiro lugar. Para Chaochua, o “socialismo de características chinesas” serve somente para mascarar o oposto dos príncipios que supostamente defende.

O posfácio da obra – “Rumo e Repressão” – ficou ao encargo da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado. A autora nos apresenta um conjunto de permanências históricas milenares presentes nas estruturas de poder chinesas e a forma como tais estruturas são convocadas com o objetivo de dar legitimidade às autoridades. Respeito às tradições e a crença no equilíbrio do universo são alguns dos elementos trazidos às práticas do poder pelo legado de sistemas filosóficos, como o confucionismo, o taoísmo e o legalismo, cuja ativação fornece o alicerce para a noção de Xiaokang (conforto econômico), conceito central para o desenvolvimento desse posfácio. Como afirma Pinheiro Machado: “[…] ‘a grande harmonia’ confuciana entre o mandato celestial dos governantes e a população só existe com xiaokang” (Pinheiro-Machado, 2018: p. 117). Através da percepção de conforto e rumo, as insatisfações populares tendem a se voltar contra poderes locais, poupando por isso os poderes centrais.  A autora demonstra que o Xiaokang configura formas particulares de ação coletiva dos chineses, cujo direito de rebelião não deve interfirir na estabilidade. Seu trabalho ajuda a corroer o falso mito da passividade chinesa frente a um estado autoritário: ocorrem a cada ano mais de 3000 greves e 200.000 protestos na China. Esses números mostram uma pungente vida coletiva e que vai ao encontro da característica enérgica que Perry Anderson imputa ao povo chinês, sem no entanto colocar em risco o aparato governamental do PCC chinês, que traz a China para a vanguarda da produção científica e tecnológica após duas décadas de “desenvolvimentismo de sobrevivência”, conceito que Pinheiro-Machado utiliza para explicar um modelo de exportação baseado na produção de manufaturas baratas, trabalho intensivo e manipulação da moeda. A despeito da violência das relações de produção que caracterizavam essa fase, o padrão de vida da cidade e do campo melhorou. Xiaokang. (Pinheiro-Machado, 2018: p.125)

É por meio do Xiaokang que a China mantém a conciliação entre ação coletiva e repressão. Pinheiro-Machado demonstra como tal conceito permeia mesmo os momentos mais explosivos de contestação dos poderes estabelecidos, como a RCP. A autora nos mostra que a China “…tem demasiada história e demasiado sentido histórico para abandonar seus tiques milenares de governar” (p 125) e ajuda a olharmos para o “Império do Meio” de forma menos estranhada, e talvez por isso, com mais assombro.

Perry Anderson realiza um sólido trabalho de síntese em seu ensaio Duas Revoluções, apresentando ao leitor, em 44 páginas, um panorama do desenvolvimento do modelo socialista chinês a partir dos pontos de contato e ruptura entre os estados nascidos a partir das duas mais importantes revoluções do século XX, a russa e a chinesa. No entanto, é forçoso dizer que as críticas de Wang Chaohua ao trabalho de Anderson fazem eco. A assimetria de tratamento que Anderson presta às revoluções em desfavor da Revolução Russa, servindo tão somente para realçar o sucesso da Revolução Chinesa, coloca em xeque o objetivo comparativo que se espera ao ler o título da obra. Nesse sentido, a réplica de Chaohua, antes de negar, complementa o esforço comparativo de Anderson ao delinear aspectos político-sociais da Revolução Russa que acabam por passar despercebidos ou pouco tratados pelo historiador britânico e apresenta de forma mais pormenorizada contradições internas presentes no modelo chinês que problematizam algumas simplificações presentes no ensaio de Perry Anderson. Talvez em decorrência do modelo metodológico escolhido pelo autor – uma comparação em reflexo das duas revoluções a partir de seus pontos de contato e ruptura – também sentimos falta de um “ponto de inversão”: similaridades possíveis entre as reformas chinesas nos anos 80 e a Nova Política Econômica (NEP) de Lenin e Bukharin, datada dos anos heroicos da Revolução Russa. Em que medida a introdução da economia de mercado, o direito à propriedade do excedente de produção e o estímulo à competição entre empresas estatais em torno da possibilidade de lucro não refletem a influência e o apreço que Deng Xiao Ping nutria pelo NEP (HUI, 2017: pp.  705), inclusive como resposta à economia de comando gessificada dos anos brejnevistas? Perry Anderson dedica pouco espaço para o NEP, ressaltando unicamente seu caráter limitado. Esta é uma abordagem que a obra deixa em aberto e que faz coro à forma assimétrica com que Anderson trata os Estados soviético e Chinês. Resta em aberto a incógnita acerca do destino que espera o desenlace do “socialismo à moda chinesa”, uma charada que nem os mais usados futurólogos ousam apontar. Perry Anderson nos possibilita a partir de sua leitura um vislumbre das tramas que acobertam tal destino.

Referências

Perry Anderson. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo, Boitempo, 126 págs.


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Repensar e desenvolver o marxismo



Por Haroldo Lima

O mar­xismo, dou­trina fun­dada por Marx e En­gels na se­gunda me­tade do sé­culo 19, in­flu­en­ciou gran­de­mente o pen­sa­mento pro­gres­sista do mundo desde então, até os dias atuais. Os mai­ores mo­vi­mentos re­vo­lu­ci­o­ná­rios do sé­culo 20, a Re­vo­lução Russa de 1917 e a chi­nesa de 1949 apoi­aram-se em seus pre­ceitos. As duras lutas de li­ber­tação na­ci­onal – a do Vi­etnã e de vá­rios países afri­canos – também. E a fe­bril ati­vi­dade de­mo­crá­tica, so­ci­a­lista e co­mu­nista, teó­rica e prá­tica, pre­sente na maior parte dos países du­rante todo o sé­culo pas­sado, nor­teou-se por suas ideias.

As an­tigas ex­pe­ri­ên­cias so­ci­a­listas na União das Re­pú­blicas So­ci­a­listas So­vié­ticas, no Leste eu­ropeu e em países da Ásia, e as que con­ti­nuam na China, no Vi­etnã, em Cuba e na Co­réia do Norte deram-se, ou pros­se­guem, sob a égide do mar­xismo e de seus de­sen­vol­vi­mentos.

Con­tudo, o fim do so­ci­a­lismo na URSS e nos países do Leste eu­ropeu, que se co­roou com a dis­so­lução da pró­pria URSS em 1991, mos­trou as in­su­fi­ci­ên­cias e os erros na eco­nomia e na po­lí­tica, em geral com base na in­ter­pre­tação do mar­xismo e do le­ni­nismo exis­tente na URSS, após a morte de Lênin.

Lênin fa­leceu em 1924, mas ainda es­tava vivo, em­bora vi­ti­mado por dois AVCs, quando sur­giram em 1923, entre in­te­lec­tuais mar­xistas, os pri­meiros ques­ti­o­na­mentos do mar­xismo pre­va­le­cente na União So­vié­tica. Seus au­tores foram Georg Lu­kács, membro do Par­tido Co­mu­nista da Hun­gria, que pu­blicou uma co­le­tânea de textos sob o tí­tulo de His­tória e Cons­ci­ência de Classe, e Karl Korsch, do Par­tido Co­mu­nista da Ale­manha, que di­vulgou seu Mar­xismo e Fi­lo­sofia.

A In­ter­na­ci­onal Co­mu­nista con­denou essas obras no seu V Con­gresso, em 1924.

Em 1925, veio a pú­blico outro tra­balho de Lu­kács, desta vez uma crí­tica ao Tra­tado do Ma­te­ri­a­lismo His­tó­rico do co­mu­nista russo Ni­colai Bukhárin, de­sen­vol­vi­mento de seu livro an­te­rior ABC do Co­mu­nismo, es­crito em 1920.

Lu­kács e Korsch são con­si­de­rados os ini­ci­a­dores do cha­mado "mar­xismo oci­dental". Nos re­fe­ridos tra­ba­lhos re­al­çaram e cri­ti­caram o me­ca­ni­cismo na con­cepção ma­te­ri­a­lista, a es­que­ma­ti­zação re­du­ci­o­nista no mar­xismo, o dog­ma­tismo que sa­cri­fi­cava a di­a­lé­tica.

Os dra­má­ticos acon­te­ci­mentos de 1989 a 1991, que re­dun­daram no fim da União So­vié­tica e do an­tigo campo so­ci­a­lista do Leste eu­ropeu, pro­vo­caram grandes mu­danças no mundo.

Co­meça pela al­te­ração na cor­re­lação de forças em es­cala mun­dial, com os seg­mentos à es­querda, so­ci­a­lista e co­mu­nista, postos em uma si­tu­ação de grande de­fen­siva, uma de­fen­siva es­tra­té­gica.

De­pois, pela mu­dança na linha de cons­trução so­ci­a­lista, que se re­fe­ren­ciava, até então, no que se po­deria chamar de mo­delo so­vié­tico e que passou, de­pois, a se­guir em li­nhas ge­rais o ca­minho ado­tado na China. O Par­tido Co­mu­nista da China, de­pois de se ins­pirar no mo­delo so­vié­tico e após ex­pe­ri­men­ta­ções di­versas, afastou-se subs­tan­ci­al­mente da linha so­vié­tica de cons­trução so­ci­a­lista e passou a sus­tentar, a partir de 1978, a ideia de que, nas con­di­ções exis­tentes no mundo e na China, a ele ca­beria lutar por cons­truir a "etapa pri­mária" de um "so­ci­a­lismo com pe­cu­li­a­ri­dades chi­nesas", onde co­e­xis­ti­riam o plano e o mer­cado, a pro­pri­e­dade pú­blica e ou­tras formas de pro­pri­e­dade dos meios de pro­dução, in­cluindo a pri­vada e a es­tran­geira, tudo sob o "pre­do­mínio da pro­pri­e­dade so­cial".

Era uma ori­gi­na­li­dade. Dita di­re­triz pro­pi­ciou o maior e mais pro­lon­gado de­sen­vol­vi­mento con­tínuo que uma so­ci­e­dade já ex­pe­ri­mentou na his­tória hu­mana, levou a China à con­dição de se­gunda eco­nomia do mundo e ter­minou in­flu­en­ci­ando a adoção de rotas se­me­lhantes nas cons­tru­ções so­ci­a­listas do Vi­etnã e mais re­cen­te­mente de Cuba.

Também os par­tidos co­mu­nistas do mundo re­a­giram de di­fe­rentes ma­neiras ao "1991". Houve quem abrisse mão da con­ti­nui­dade da luta pelos ob­je­tivos es­tra­té­gicos, o so­ci­a­lismo e o co­mu­nismo, e aban­do­naram dou­trina, nome, sigla, cor, sím­bolo e ban­deira. E houve os que re­a­fir­maram seus ob­je­tivos ge­rais, sua dou­trina e seus sím­bolos, e pro­cu­raram atuar no curso dos acon­te­ci­mentos, com in­de­pen­dência, pro­cu­rando acu­mular forças para a con­se­cução de suas metas mai­ores.

Fi­nal­mente, su­cedeu que o pró­prio mar­xismo, nessa fase pós-1991, viu-se re­e­xa­mi­nado mais a fundo e de­sa­fiado a en­frentar novos pro­blemas, em mo­vi­mento para per­se­verar no ob­je­tivo so­ci­a­lista, re­vi­go­rando a dou­trina. É neste con­texto que se in­sere a co­le­tânea que ora apre­sen­tamos de au­toria de Du­arte Brasil Lago Pa­checo Pe­reira.

Du­arte Pe­reira é um mar­xista bra­si­leiro for­jado na luta re­cente que nosso povo travou nas duras con­di­ções da clan­des­ti­ni­dade contra a di­ta­dura mi­litar im­plan­tada em 1964. An­te­ri­or­mente, dei­xara fama de aluno bri­lhante na Fa­cul­dade de Di­reito da Uni­ver­si­dade Fe­deral da Bahia. Fora pre­si­dente do Centro Aca­dê­mico Ruy Bar­bosa de sua fa­cul­dade e um dos vice-pre­si­dentes da União Na­ci­onal dos Es­tu­dantes no atri­bu­lado pe­ríodo do go­verno João Gou­lart, der­ru­bado pelo golpe mi­litar de 1964. Em 1963, fora um dos fun­da­dores da Ação Po­pular, a or­ga­ni­zação po­lí­tica bra­si­leira que tanto con­tri­buiu na re­sis­tência à di­ta­dura, mor­mente no meio es­tu­dantil, ao en­ca­beçar a pos­tura an­ti­di­ta­to­rial mi­li­tante que ti­veram os es­tu­dantes bra­si­leiros du­rante os 21 anos do re­gime dis­cri­ci­o­nário. Ao surgir, a Ação Po­pular lançou seu do­cu­mento-base, que a iden­ti­fi­cava ide­o­ló­gica e po­li­ti­ca­mente. Du­arte foi um de seus re­da­tores.

Acom­pa­nhei a tra­je­tória po­lí­tica de Du­arte desde o início e até agora. Atu­amos con­jun­ta­mente por anos a fio, es­pe­ci­al­mente nas ás­peras con­di­ções da luta contra a di­ta­dura, quando cada um de nós vivia na clan­des­ti­ni­dade. Ti­vemos muita uni­dade e também di­ver­gên­cias. E nunca nos unimos ou di­ver­gimos por ques­tões me­nores.

Todos os que bem co­nhecem Du­arte, ou mesmo os que têm a seu res­peito um co­nhe­ci­mento menor, sabem da fir­meza de sua têm­pera de luta, da de­cisão in­que­bran­tável com que mantém suas con­vic­ções, da pers­pi­cácia de suas aná­lises, da acui­dade com que per­cebe as coisas re­le­vantes. Foi ele quem, na Ação Po­pular, pela pri­meira vez for­mulou e fun­da­mentou o ponto de vista de que essa or­ga­ni­zação de­veria pro­curar os ca­mi­nhos de se unir ao Par­tido Co­mu­nista do Brasil.

Mas, se essas são ca­rac­te­rís­ticas am­pla­mente re­co­nhe­cidas em Du­arte, a que mais o sin­gu­la­riza é outra, é o seu vigor in­te­lec­tual, seu lastro teó­rico, seu ele­vado nível cul­tural. Im­pres­siona sua enorme ca­pa­ci­dade de expor ideias.

Dentre o ma­te­rial teó­rico pro­du­zido por Du­arte Pe­reira nos anos que se se­guiram à dis­so­lução da URSS e até 2008, há um con­junto no qual ele ques­tiona in­ter­pre­ta­ções co­nhe­cidas e até ce­le­bradas do mar­xismo, mos­trando suas li­mi­ta­ções ou dis­cre­pân­cias, quando co­te­jadas com os fun­da­mentos da dou­trina. Há textos que re­alçam pro­blemas da atu­a­li­dade, de­sa­fios de­cor­rentes da crise do so­ci­a­lismo, da re­es­tru­tu­ração do ca­pi­ta­lismo, das formas mais ade­quadas para se en­ca­mi­nhar a luta de classes em países de tra­dição de­mo­crá­tica e ele­vado nível econô­mico, de como en­tender a con­fi­gu­ração mo­derna do pro­le­ta­riado e ou­tras ques­tões. A in­ves­ti­gação his­tó­rica per­passa todos os es­tudos.

Como são ar­tigos es­critos em dis­tintas opor­tu­ni­dades e pu­bli­cados es­pa­ça­da­mente em di­fe­rentes veí­culos, pa­receu-me opor­tuno juntá-los todos em um com­pêndio único, pois que cada um deles, e todos em con­junto, trans­mitem forte apelo à in­ves­ti­gação e ao en­fren­ta­mento dos pro­blemas novos com es­pí­rito aberto e cri­ador.

Com o con­sen­ti­mento do autor e o apoio da Edi­tora Anita Ga­ri­baldi, or­ga­nizei esse Re­pen­sando o mar­xismo, uma co­le­tânea de textos mar­xistas de Du­arte Pe­reira.

Um alerta pre­cisa ser feito. Al­gumas in­for­ma­ções neles con­tidas não estão atu­a­li­zadas, porque os textos não foram re­es­critos. No ar­tigo sobre o Ti­bete, por exemplo, não há re­fe­rência às me­lho­rias que a re­gião re­cebeu em pe­ríodo pos­te­rior, como a cons­trução de uma au­da­ciosa fer­rovia que hoje liga o res­tante do país ao Teto do Mundo, nem às mu­danças ocor­ridas re­cen­te­mente na di­visão po­lí­tico-ad­mi­nis­tra­tiva da China. Os pró­prios termos "pro­le­ta­riado" e "ope­ra­riado" são usados ora como sinô­nimos, ora como re­a­li­dades dis­tintas, sendo que hoje Du­arte for­mula o ope­ra­riado in­dus­trial e agrí­cola como o nú­cleo de uma classe pro­le­tária mais ampla.

Re­pen­sando o mar­xismo ad­verte sobre os riscos da sim­pli­fi­cação que de­pau­pera a re­a­li­dade, da es­que­ma­ti­zação que em­po­brece a di­a­lé­tica, do dog­ma­tismo que de­forma as aná­lises e so­lu­ções. Ques­tiona se ve­lhos temas e con­ceitos foram bem tra­tados no pas­sado, quando certa visão de­ter­mi­nista pre­do­minou. Pen­sava-se, por exemplo, que o so­ci­a­lismo era ine­vi­tável...

Enfim, o livro que ora apre­sen­tamos per­fila-se ao lado do in­quieto Lênin que, em 1914, sen­tindo a ne­ces­si­dade de apro­fundar Hegel, lançou-se ao seu es­tudo, após o que, como mostra Du­arte, de­clara: “É com­ple­ta­mente im­pos­sível en­tender O Ca­pital de Marx, e em es­pe­cial seu pri­meiro ca­pí­tulo, sem ter es­tu­dado e en­ten­dido a fundo toda a ló­gica de Hegel. Por­tanto, faz meio sé­culo que ne­nhum mar­xista tem en­ten­dido Marx!”.

Na co­le­tânea, me­rece atenção es­pe­cial o tra­balho Lênin e a di­a­lé­tica he­ge­liana, onde Du­arte exa­mina, em 2003, o livro de Kevin An­derson Lênin, Hegel e o mar­xismo oci­dental, es­crito em 1995 nos Es­tados Unidos.

Du­arte ob­serva que An­derson pes­quisou du­rante 15 anos o con­teúdo e as im­pli­ca­ções de uma obra pouco co­nhe­cida de Lênin, Ca­dernos Fi­lo­só­ficos, só pu­bli­cada na URSS de­pois da Se­gunda Guerra Mun­dial, cerca de 25 anos de­pois de es­crita, e só re­cen­te­mente dis­po­ni­bi­li­zada ao leitor bra­si­leiro. Esses Ca­dernos re­sul­taram dos es­tudos de­sen­vol­vidos por Lênin, de se­tembro de 1914 a de­zembro de 1915, ba­si­ca­mente sobre A Ci­ência da Ló­gica de Hegel, du­rante seu exílio em Berna, na Suíça.

Lênin já havia es­crito, em 1908, seu Ma­te­ri­a­lismo e Em­pi­ri­o­cri­ti­cismo, onde fi­zera uma apre­sen­tação de sua con­cepção do ma­te­ri­a­lismo e da di­a­lé­tica. Pois bem. Du­arte Pe­reira mostra, apoi­ando-se nas pes­quisas de Kevin An­derson, que Lênin, após seus es­tudos de Hegel, passou a for­mular de forma di­fe­rente sua con­cepção da di­a­lé­tica. E ele, que pouco antes havia es­crito o ver­bete sobre Karl Marx para a En­ci­clo­pédia Granat, no curso dos es­tudos sobre Hegel con­sultou, em ja­neiro de 2015, o editor da En­ci­clo­pédia sobre se ainda havia tempo para re­fazer o ver­bete que es­cre­vera. Não era mais pos­sível.

Outro tema no qual Du­arte é par­ti­cu­lar­mente afeito é o da China.

A pro­pó­sito, nos pri­meiros anos após o golpe de 1964, en­quanto não en­trara na clan­des­ti­ni­dade, Du­arte Pe­reira tra­ba­lhou na re­vista Re­a­li­dade, lan­çada na­quela época pela Edi­tora Abril e que é um dos marcos pro­e­mi­nentes do jor­na­lismo bra­si­leiro. Em sua edição de ou­tubro de 1966, ela traz longa ma­téria, pes­qui­sada e es­crita por Du­arte Pa­checo (como as­si­nava na época), in­ti­tu­lada Eis a China. Em uma re­vista da Edi­tora Abril, em pleno re­gime di­ta­to­rial, quando o no­ti­ciário sobre a China era es­casso e em geral va­zado em an­ti­co­mu­nismo mi­li­tante e pri­mário, a ma­téria de Du­arte foi a pri­meira pu­bli­cada no Brasil em órgão de grande im­prensa que era di­fe­rente: ob­je­tiva, fun­dada em fatos, tra­zendo dados con­cretos e sim­pá­ticos à China. Com esses atri­butos, foi pi­o­neira no Brasil.

Em Re­pen­sando o mar­xismo, o tema da China marca pre­sença em três opor­tu­ni­dades.

Há um texto de 2001, onde Du­arte ar­rola seis ob­ser­va­ções sobre ela, re­al­çando pe­ríodos fun­da­men­tais da his­tória desse país, acon­te­ci­mentos mar­cantes, vi­tó­rias me­mo­rá­veis e riscos que so­bre­vivem.

Há um tra­balho de 2006, Mao e o so­ci­a­lismo, onde ele re­e­xa­mina as­pectos da Re­vo­lução Cul­tural da China a partir das pes­quisas feitas pelo his­to­ri­ador bri­tâ­nico Ro­de­rick Mac­farquhar e pelo ci­en­tista po­lí­tico sueco Mi­chael Scho­e­nhals, pu­bli­cadas no livro A úl­tima re­vo­lução de Mao, de 2006.

As pes­quisas de Mac­farquhar e Scho­e­nhals du­raram 30 anos, in­forma Du­arte. Ver­sados na língua chi­nesa, esses au­tores ti­veram acesso a textos, dis­cursos, do­cu­mentos e pu­bli­ca­ções só gra­fados em man­darim, às vezes no ori­ginal, o que muita gente que es­creve sobre a China não con­segue. Assim, re­com­pu­seram o quadro con­jun­tural onde se deu a cha­mada Re­vo­lução Cul­tural e apre­sen­taram por­me­nores de fatos e in­ci­dentes im­por­tantes acon­te­cidos na época. Um deles é a morte, em 1971, de Lin Biao, então mi­nistro da De­fesa da China e su­cessor es­co­lhido de Mao Ze­dong pelo IX Con­gresso do PCCh – Par­tido Co­mu­nista Chinês.

Lin Biao pre­fa­ciou o livro ver­melho das Ci­ta­ções de Mao Ze­dong e foi um dos prin­ci­pais lí­deres da Re­vo­lução Cul­tural. Outro evento cujos por­me­nores eram pouco co­nhe­cidos é a prisão em 1976, logo após o fa­le­ci­mento do Mao, de quatro lí­deres da Re­vo­lução Cul­tural, à frente dos quais Jiang Quing, a úl­tima es­posa de Mao Ze­dong. Sobre al­guns desses epi­só­dios, anota Du­arte, as in­for­ma­ções re­co­lhidas, na visão dos pes­qui­sa­dores, ainda que novas e im­por­tantes, não pa­recem es­cla­recer con­clu­si­va­mente os fatos.

Mas Du­arte mostra como a ava­li­ação final de Mac­farquhar e Scho­e­nhals sobre a Re­vo­lução Cul­tural cor­res­ponde, ba­si­ca­mente, à do Par­tido Co­mu­nista da China, que faz hoje um ba­lanço emi­nen­te­mente ne­ga­tivo dessa Re­vo­lução. O que Du­arte res­salva é que, du­rante os dez anos em que esses acon­te­ci­mentos se deram, de 1966 a 1976, nem tudo foi ne­ga­tivo, pois que, apesar do dis­túrbio que pre­do­minou no pe­ríodo, houve cres­ci­mento econô­mico, "a in­dus­tri­a­li­zação rural lançou raízes", "houve avanços na de­fesa do país", "as pres­sões e in­ves­tidas norte-ame­ri­canas e so­vié­ticas foram der­ro­tadas", "a aber­tura di­plo­má­tica teve início", "o Par­tido Co­mu­nista se re­cons­truiu e o re­gime po­pular so­bre­viveu e se firmou".

Fi­nal­mente, há o texto A po­lê­mica sobre o Ti­bete, es­crito em 1999,  quando se co­me­mo­rava o 50º ani­ver­sário da pro­cla­mação da Re­pú­blica Po­pular da China. Com o rigor que lhe é pe­cu­liar, Du­arte exa­mina a questão da so­be­rania da China sobre a re­gião e mostra como o Ti­bete, há 700 anos, foi e tem sido parte in­te­grante do ter­ri­tório chinês.

Nesse es­tudo, es­pe­cial atenção me­rece o re­lato dos acon­te­ci­mentos ocor­ridos após a re­vo­lução chi­nesa de 1949 e os es­forços do poder cen­tral de Pe­quim para manter uma ati­tude har­mo­niosa em re­lação àquela parte de seu ter­ri­tório, en­fren­tando com pon­de­ração os pro­blemas pre­va­le­centes. Tudo levou a um re­sul­tado al­ta­mente sim­bó­lico, assim re­la­tado por Du­arte: "Em 1954, o 14o Dalai-Lama par­ti­cipou da pri­meira As­sem­bleia Na­ci­onal Po­pular da China, que ela­borou a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Po­pular, tendo sido eleito um dos vice-pre­si­dentes do Co­mitê Per­ma­nente dessa As­sem­bleia. Na oca­sião, pro­nun­ciou um dis­curso afir­mando: ‘Os ru­mores de que o Par­tido Co­mu­nista da China e o go­verno po­pular cen­tral ar­rui­na­riam a re­li­gião no Ti­bete foram re­fu­tados. O povo ti­be­tano tem go­zado de li­ber­dade em suas crenças re­li­gi­osas’”. Assim foi, e assim é.

En­gels foi o pri­meiro dos grandes clás­sicos mar­xistas que sa­li­entou não ser o mar­xismo um dogma, mas um guia para a ação. E Lênin, ao acen­tuar ser "a aná­lise con­creta da si­tu­ação con­creta a alma viva do mar­xismo", chamou a atenção para as bases teó­ricas car­deais do mar­xismo: "a di­a­lé­tica, a dou­trina do de­sen­vol­vi­mento his­tó­rico mul­ti­la­teral e cheio de con­tra­di­ções; sua li­gação com as ta­refas prá­ticas da época, que mudam a cada nova vi­ragem da his­tória".

Para os mar­xistas, re­de­finir as ta­refas prá­ticas, de uma época que passa por tantas vi­ra­gens como esta nossa, só será pos­sível se nos ar­marmos do mé­todo di­a­lé­tico de aná­lise, se nos afas­tarmos das sim­pli­fi­ca­ções de­for­ma­doras, se abor­darmos as ques­tões novas com a "mente eman­ci­pada", como dizem os chi­neses.

Os textos de Du­arte Pe­reira, em Re­pen­sando o mar­xismo, são um cha­mado à re­flexão cri­a­dora sobre o mundo de hoje, sobre so­lu­ções e ca­mi­nhos ino­va­dores que se im­põem, sobre de­sa­fios, cui­dados e riscos. Em um de seus textos (Mar­xismo e Pro­le­ta­riado), o pró­prio Du­arte mostra-se pre­ve­nido com ci­ladas que podem apa­recer. Ob­serva a ne­ces­si­dade de se "com­bater o dog­ma­tismo sem res­valar no ecle­tismo, opor-se ao re­vo­lu­ci­o­na­rismo vo­lun­ta­rista sem cair na aco­mo­dação re­for­mista, re­novar o pro­jeto so­ci­a­lista pre­ser­vando seus traços cons­ti­tu­tivo".

Re­pen­sando o mar­xismo é, assim, um con­vite para se re­pensar co­ra­jo­sa­mente o mar­xismo e assim de­sen­volvê-lo.