Por Haroldo Lima
O marxismo, doutrina fundada por Marx e Engels na segunda metade do século 19, influenciou grandemente o pensamento progressista do mundo desde então, até os dias atuais. Os maiores movimentos revolucionários do século 20, a Revolução Russa de 1917 e a chinesa de 1949 apoiaram-se em seus preceitos. As duras lutas de libertação nacional – a do Vietnã e de vários países africanos – também. E a febril atividade democrática, socialista e comunista, teórica e prática, presente na maior parte dos países durante todo o século passado, norteou-se por suas ideias.
As antigas experiências socialistas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, no Leste europeu e em países da Ásia, e as que continuam na China, no Vietnã, em Cuba e na Coréia do Norte deram-se, ou prosseguem, sob a égide do marxismo e de seus desenvolvimentos.
Contudo, o fim do socialismo na URSS e nos países do Leste europeu, que se coroou com a dissolução da própria URSS em 1991, mostrou as insuficiências e os erros na economia e na política, em geral com base na interpretação do marxismo e do leninismo existente na URSS, após a morte de Lênin.
Lênin faleceu em 1924, mas ainda estava vivo, embora vitimado por dois AVCs, quando surgiram em 1923, entre intelectuais marxistas, os primeiros questionamentos do marxismo prevalecente na União Soviética. Seus autores foram Georg Lukács, membro do Partido Comunista da Hungria, que publicou uma coletânea de textos sob o título de História e Consciência de Classe, e Karl Korsch, do Partido Comunista da Alemanha, que divulgou seu Marxismo e Filosofia.
A Internacional Comunista condenou essas obras no seu V Congresso, em 1924.
Em 1925, veio a público outro trabalho de Lukács, desta vez uma crítica ao Tratado do Materialismo Histórico do comunista russo Nicolai Bukhárin, desenvolvimento de seu livro anterior ABC do Comunismo, escrito em 1920.
Lukács e Korsch são considerados os iniciadores do chamado "marxismo ocidental". Nos referidos trabalhos realçaram e criticaram o mecanicismo na concepção materialista, a esquematização reducionista no marxismo, o dogmatismo que sacrificava a dialética.
Os dramáticos acontecimentos de 1989 a 1991, que redundaram no fim da União Soviética e do antigo campo socialista do Leste europeu, provocaram grandes mudanças no mundo.
Começa pela alteração na correlação de forças em escala mundial, com os segmentos à esquerda, socialista e comunista, postos em uma situação de grande defensiva, uma defensiva estratégica.
Depois, pela mudança na linha de construção socialista, que se referenciava, até então, no que se poderia chamar de modelo soviético e que passou, depois, a seguir em linhas gerais o caminho adotado na China. O Partido Comunista da China, depois de se inspirar no modelo soviético e após experimentações diversas, afastou-se substancialmente da linha soviética de construção socialista e passou a sustentar, a partir de 1978, a ideia de que, nas condições existentes no mundo e na China, a ele caberia lutar por construir a "etapa primária" de um "socialismo com peculiaridades chinesas", onde coexistiriam o plano e o mercado, a propriedade pública e outras formas de propriedade dos meios de produção, incluindo a privada e a estrangeira, tudo sob o "predomínio da propriedade social".
Era uma originalidade. Dita diretriz propiciou o maior e mais prolongado desenvolvimento contínuo que uma sociedade já experimentou na história humana, levou a China à condição de segunda economia do mundo e terminou influenciando a adoção de rotas semelhantes nas construções socialistas do Vietnã e mais recentemente de Cuba.
Também os partidos comunistas do mundo reagiram de diferentes maneiras ao "1991". Houve quem abrisse mão da continuidade da luta pelos objetivos estratégicos, o socialismo e o comunismo, e abandonaram doutrina, nome, sigla, cor, símbolo e bandeira. E houve os que reafirmaram seus objetivos gerais, sua doutrina e seus símbolos, e procuraram atuar no curso dos acontecimentos, com independência, procurando acumular forças para a consecução de suas metas maiores.
Finalmente, sucedeu que o próprio marxismo, nessa fase pós-1991, viu-se reexaminado mais a fundo e desafiado a enfrentar novos problemas, em movimento para perseverar no objetivo socialista, revigorando a doutrina. É neste contexto que se insere a coletânea que ora apresentamos de autoria de Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira.
Duarte Pereira é um marxista brasileiro forjado na luta recente que nosso povo travou nas duras condições da clandestinidade contra a ditadura militar implantada em 1964. Anteriormente, deixara fama de aluno brilhante na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Fora presidente do Centro Acadêmico Ruy Barbosa de sua faculdade e um dos vice-presidentes da União Nacional dos Estudantes no atribulado período do governo João Goulart, derrubado pelo golpe militar de 1964. Em 1963, fora um dos fundadores da Ação Popular, a organização política brasileira que tanto contribuiu na resistência à ditadura, mormente no meio estudantil, ao encabeçar a postura antiditatorial militante que tiveram os estudantes brasileiros durante os 21 anos do regime discricionário. Ao surgir, a Ação Popular lançou seu documento-base, que a identificava ideológica e politicamente. Duarte foi um de seus redatores.
Acompanhei a trajetória política de Duarte desde o início e até agora. Atuamos conjuntamente por anos a fio, especialmente nas ásperas condições da luta contra a ditadura, quando cada um de nós vivia na clandestinidade. Tivemos muita unidade e também divergências. E nunca nos unimos ou divergimos por questões menores.
Todos os que bem conhecem Duarte, ou mesmo os que têm a seu respeito um conhecimento menor, sabem da firmeza de sua têmpera de luta, da decisão inquebrantável com que mantém suas convicções, da perspicácia de suas análises, da acuidade com que percebe as coisas relevantes. Foi ele quem, na Ação Popular, pela primeira vez formulou e fundamentou o ponto de vista de que essa organização deveria procurar os caminhos de se unir ao Partido Comunista do Brasil.
Mas, se essas são características amplamente reconhecidas em Duarte, a que mais o singulariza é outra, é o seu vigor intelectual, seu lastro teórico, seu elevado nível cultural. Impressiona sua enorme capacidade de expor ideias.
Dentre o material teórico produzido por Duarte Pereira nos anos que se seguiram à dissolução da URSS e até 2008, há um conjunto no qual ele questiona interpretações conhecidas e até celebradas do marxismo, mostrando suas limitações ou discrepâncias, quando cotejadas com os fundamentos da doutrina. Há textos que realçam problemas da atualidade, desafios decorrentes da crise do socialismo, da reestruturação do capitalismo, das formas mais adequadas para se encaminhar a luta de classes em países de tradição democrática e elevado nível econômico, de como entender a configuração moderna do proletariado e outras questões. A investigação histórica perpassa todos os estudos.
Como são artigos escritos em distintas oportunidades e publicados espaçadamente em diferentes veículos, pareceu-me oportuno juntá-los todos em um compêndio único, pois que cada um deles, e todos em conjunto, transmitem forte apelo à investigação e ao enfrentamento dos problemas novos com espírito aberto e criador.
Com o consentimento do autor e o apoio da Editora Anita Garibaldi, organizei esse Repensando o marxismo, uma coletânea de textos marxistas de Duarte Pereira.
Um alerta precisa ser feito. Algumas informações neles contidas não estão atualizadas, porque os textos não foram reescritos. No artigo sobre o Tibete, por exemplo, não há referência às melhorias que a região recebeu em período posterior, como a construção de uma audaciosa ferrovia que hoje liga o restante do país ao Teto do Mundo, nem às mudanças ocorridas recentemente na divisão político-administrativa da China. Os próprios termos "proletariado" e "operariado" são usados ora como sinônimos, ora como realidades distintas, sendo que hoje Duarte formula o operariado industrial e agrícola como o núcleo de uma classe proletária mais ampla.
Repensando o marxismo adverte sobre os riscos da simplificação que depaupera a realidade, da esquematização que empobrece a dialética, do dogmatismo que deforma as análises e soluções. Questiona se velhos temas e conceitos foram bem tratados no passado, quando certa visão determinista predominou. Pensava-se, por exemplo, que o socialismo era inevitável...
Enfim, o livro que ora apresentamos perfila-se ao lado do inquieto Lênin que, em 1914, sentindo a necessidade de aprofundar Hegel, lançou-se ao seu estudo, após o que, como mostra Duarte, declara: “É completamente impossível entender O Capital de Marx, e em especial seu primeiro capítulo, sem ter estudado e entendido a fundo toda a lógica de Hegel. Portanto, faz meio século que nenhum marxista tem entendido Marx!”.
Na coletânea, merece atenção especial o trabalho Lênin e a dialética hegeliana, onde Duarte examina, em 2003, o livro de Kevin Anderson Lênin, Hegel e o marxismo ocidental, escrito em 1995 nos Estados Unidos.
Duarte observa que Anderson pesquisou durante 15 anos o conteúdo e as implicações de uma obra pouco conhecida de Lênin, Cadernos Filosóficos, só publicada na URSS depois da Segunda Guerra Mundial, cerca de 25 anos depois de escrita, e só recentemente disponibilizada ao leitor brasileiro. Esses Cadernos resultaram dos estudos desenvolvidos por Lênin, de setembro de 1914 a dezembro de 1915, basicamente sobre A Ciência da Lógica de Hegel, durante seu exílio em Berna, na Suíça.
Lênin já havia escrito, em 1908, seu Materialismo e Empiriocriticismo, onde fizera uma apresentação de sua concepção do materialismo e da dialética. Pois bem. Duarte Pereira mostra, apoiando-se nas pesquisas de Kevin Anderson, que Lênin, após seus estudos de Hegel, passou a formular de forma diferente sua concepção da dialética. E ele, que pouco antes havia escrito o verbete sobre Karl Marx para a Enciclopédia Granat, no curso dos estudos sobre Hegel consultou, em janeiro de 2015, o editor da Enciclopédia sobre se ainda havia tempo para refazer o verbete que escrevera. Não era mais possível.
Outro tema no qual Duarte é particularmente afeito é o da China.
A propósito, nos primeiros anos após o golpe de 1964, enquanto não entrara na clandestinidade, Duarte Pereira trabalhou na revista Realidade, lançada naquela época pela Editora Abril e que é um dos marcos proeminentes do jornalismo brasileiro. Em sua edição de outubro de 1966, ela traz longa matéria, pesquisada e escrita por Duarte Pacheco (como assinava na época), intitulada Eis a China. Em uma revista da Editora Abril, em pleno regime ditatorial, quando o noticiário sobre a China era escasso e em geral vazado em anticomunismo militante e primário, a matéria de Duarte foi a primeira publicada no Brasil em órgão de grande imprensa que era diferente: objetiva, fundada em fatos, trazendo dados concretos e simpáticos à China. Com esses atributos, foi pioneira no Brasil.
Em Repensando o marxismo, o tema da China marca presença em três oportunidades.
Há um texto de 2001, onde Duarte arrola seis observações sobre ela, realçando períodos fundamentais da história desse país, acontecimentos marcantes, vitórias memoráveis e riscos que sobrevivem.
Há um trabalho de 2006, Mao e o socialismo, onde ele reexamina aspectos da Revolução Cultural da China a partir das pesquisas feitas pelo historiador britânico Roderick Macfarquhar e pelo cientista político sueco Michael Schoenhals, publicadas no livro A última revolução de Mao, de 2006.
As pesquisas de Macfarquhar e Schoenhals duraram 30 anos, informa Duarte. Versados na língua chinesa, esses autores tiveram acesso a textos, discursos, documentos e publicações só grafados em mandarim, às vezes no original, o que muita gente que escreve sobre a China não consegue. Assim, recompuseram o quadro conjuntural onde se deu a chamada Revolução Cultural e apresentaram pormenores de fatos e incidentes importantes acontecidos na época. Um deles é a morte, em 1971, de Lin Biao, então ministro da Defesa da China e sucessor escolhido de Mao Zedong pelo IX Congresso do PCCh – Partido Comunista Chinês.
Lin Biao prefaciou o livro vermelho das Citações de Mao Zedong e foi um dos principais líderes da Revolução Cultural. Outro evento cujos pormenores eram pouco conhecidos é a prisão em 1976, logo após o falecimento do Mao, de quatro líderes da Revolução Cultural, à frente dos quais Jiang Quing, a última esposa de Mao Zedong. Sobre alguns desses episódios, anota Duarte, as informações recolhidas, na visão dos pesquisadores, ainda que novas e importantes, não parecem esclarecer conclusivamente os fatos.
Mas Duarte mostra como a avaliação final de Macfarquhar e Schoenhals sobre a Revolução Cultural corresponde, basicamente, à do Partido Comunista da China, que faz hoje um balanço eminentemente negativo dessa Revolução. O que Duarte ressalva é que, durante os dez anos em que esses acontecimentos se deram, de 1966 a 1976, nem tudo foi negativo, pois que, apesar do distúrbio que predominou no período, houve crescimento econômico, "a industrialização rural lançou raízes", "houve avanços na defesa do país", "as pressões e investidas norte-americanas e soviéticas foram derrotadas", "a abertura diplomática teve início", "o Partido Comunista se reconstruiu e o regime popular sobreviveu e se firmou".
Finalmente, há o texto A polêmica sobre o Tibete, escrito em 1999, quando se comemorava o 50º aniversário da proclamação da República Popular da China. Com o rigor que lhe é peculiar, Duarte examina a questão da soberania da China sobre a região e mostra como o Tibete, há 700 anos, foi e tem sido parte integrante do território chinês.
Nesse estudo, especial atenção merece o relato dos acontecimentos ocorridos após a revolução chinesa de 1949 e os esforços do poder central de Pequim para manter uma atitude harmoniosa em relação àquela parte de seu território, enfrentando com ponderação os problemas prevalecentes. Tudo levou a um resultado altamente simbólico, assim relatado por Duarte: "Em 1954, o 14o Dalai-Lama participou da primeira Assembleia Nacional Popular da China, que elaborou a Constituição da República Popular, tendo sido eleito um dos vice-presidentes do Comitê Permanente dessa Assembleia. Na ocasião, pronunciou um discurso afirmando: ‘Os rumores de que o Partido Comunista da China e o governo popular central arruinariam a religião no Tibete foram refutados. O povo tibetano tem gozado de liberdade em suas crenças religiosas’”. Assim foi, e assim é.
Engels foi o primeiro dos grandes clássicos marxistas que salientou não ser o marxismo um dogma, mas um guia para a ação. E Lênin, ao acentuar ser "a análise concreta da situação concreta a alma viva do marxismo", chamou a atenção para as bases teóricas cardeais do marxismo: "a dialética, a doutrina do desenvolvimento histórico multilateral e cheio de contradições; sua ligação com as tarefas práticas da época, que mudam a cada nova viragem da história".
Para os marxistas, redefinir as tarefas práticas, de uma época que passa por tantas viragens como esta nossa, só será possível se nos armarmos do método dialético de análise, se nos afastarmos das simplificações deformadoras, se abordarmos as questões novas com a "mente emancipada", como dizem os chineses.
Os textos de Duarte Pereira, em Repensando o marxismo, são um chamado à reflexão criadora sobre o mundo de hoje, sobre soluções e caminhos inovadores que se impõem, sobre desafios, cuidados e riscos. Em um de seus textos (Marxismo e Proletariado), o próprio Duarte mostra-se prevenido com ciladas que podem aparecer. Observa a necessidade de se "combater o dogmatismo sem resvalar no ecletismo, opor-se ao revolucionarismo voluntarista sem cair na acomodação reformista, renovar o projeto socialista preservando seus traços constitutivo".
Repensando o marxismo é, assim, um convite para se repensar corajosamente o marxismo e assim desenvolvê-lo.
FONTE: Correio da Cidadania
Sem comentários:
Enviar um comentário