domingo, 22 de novembro de 2020

Friedrich Engels: 200 anos

 

                                                        Desenho de David Maciel. Arte final de Alexandre Pimenta 
                                                                                      (editores de marxismo21)


MARXISMO21


Há 200 anos, em 28 de novembro de 1820, nascia Friedrich Engels, em Barmen, na então Prússia Renana. Filho de um industrial do ramo têxtil, cedo desvinculou-se política e filosoficamente de sua origem e condição de classe participando do movimento intelectual de crítica à realidade alemã promovido pelos jovens hegelianos e se aproximando dos operários fabris e de sua luta na cidade de Manchester (Inglaterra), para onde foi enviado pelo pai para administrar os negócios da família. Esta posição permitiu-lhe passar da crítica da religião e da filosofia para a crítica da economia politica e para a centralidade da “questão social”, antes mesmo de seu encontro com Marx.

Com Marx elaborou os fundamentos teóricos e políticos do materialismo histórico, para o qual contribuiu não só como pensador original, trazendo contribuições em diversos temas, mas também como militante revolucionário, organicamente ligado ao movimento operário. Junto com Marx militou na Liga dos Comunistas e participou ativamente da Revolução de 1848-49 na Alemanha, chegando a “pegar em armas” contra as forças da ordem. Graças à sua condição social burguesa, como sócio de uma empresa industrial, Engels contribuiu financeiramente durante décadas para a sobrevivência de dezenas de militantes revolucionários, não apenas para Marx como também para organizações de trabalhadores, que tinham nele um apoio material permanente.

Como pesquisador original, Engels estudou e produziu obras importantes sobre um notável leque de temas e disciplinas, que foram da filosofia, da economia politica, da antropologia e da história à biologia, à química e à física, além da arte militar e do que hoje chamaríamos “tecnologia”. Foi, assim, um típico intelectual do século XIX, quando a especialização acadêmica ainda não pesava como uma mortalha sobre o cérebro dos vivos. Após se libertar do “cativeiro egípcio”, apodo com o qual ele designava jocosamente o trabalho na administração dos negócios da família, passou a se dedicar de modo integral à elaboração intelectual e à militância política, produzindo algumas das obras fundamentais do aparato marx-engelsiano, tornando-se um dos principais dirigentes da Associação Internacional dos Trabalhadores e contribuindo para a criação e formação teórico-política dos primeiros partidos operários.

Após a morte de Marx tornou-se o legatário da obra do camarada d’armas e amigo, responsabilizando-se por sua divulgação e pela publicação de diversos trabalhos ainda inéditos, entre os quais os livros II e III d’O Capital (dos quais é um verdadeiro co-autor tamanho o volume de suas intervenções para sistematizar e mesmo complementar os manuscritos deixados por Marx). Em seus últimos anos, Engels tornou-se uma espécie “farol” do movimento socialista internacional, esclarecendo problemas conceituais e políticos suscitados pela ascensão do marxismo à condição de principal referência teórico-política do movimento operário e aconselhando dirigentes partidários e sindicais em sua luta cotidiana (apesar de nem sempre os dirigentes social-democratas seguirem seus conselhos!). Faleceu em Londres, em 5 de agosto de 1895, com 75 anos incompletos.

Durante muito tempo seus esforços para abordar temas das ciências físicas e naturais à luz do materialismo histórico e para sistematizar os resultados teóricos a que chegaram Marx e ele em suas pesquisas foram vistas como uma tentativa de transformar o materialismo histórico numa doutrina filosófico-científica global, capaz de tratar de qualquer assunto a partir determinados postulados apriorísticos, suscitando críticas de diversos autores, particularmente ligados à tradição do chamado marxismo ocidental, que viam neste esforço uma negação do método marxiano das “aproximações sucessivas”. Esses questionaram o senso comum no movimento socialista em torno da identidade entre os dois fundadores do materialismo histórico presente na entidade “Marx-Engels” como um mito fabricado com finalidades políticas pela social democracia e mais tarde pelo stalinismo (que incorporou Lênin e Stálin ao duo), insistindo nas diferenças entre os dois, e acusaram Engels de abrir as portas para a contaminação positivista do marxismo. Neste âmbito sua obra. passou a ser negligenciada, tida como irrelevante ou desviante da real perspectiva analítica de Marx. De “segundo violino”, como ele mesmo definiu seu papel na criação do materialismo histórico, Engels caiu para a condição de primeiro “marxista positivista”, o que contribuiu para o esquecimento de sua contribuição fundamental para áreas tão variadas como a historiografia, a antropologia, a sociologia do trabalho, a ciência política e a própria crítica da economia política.

No entanto, as pesquisas suscitadas pela edição das obras completas de Marx e Engels a partir dos anos 70 e a incorporação de suas contribuições como uma referência fundamental para pesquisas em áreas diversas das ciências sociais tem suscitado a retomada dos estudos em torno de sua obra e uma compreensão mais equilibrada e realista de sua contribuição para o marxismo, para as ciências sociais e para a luta revolucionária. O dossiê que ora publicamos se orienta nesta direção.

Editoria, 16 de novembro de 2020


FONTE: Portal do PCB

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Marx e ecossocialismo



Por Michael Löwy*


Ecologistas tradicionais frequentemente rejeitam Marx por considerá-lo “produtivista” e cego para problemas ecológicos. Um corpo crescente de escritos eco-marxistas tem sido desenvolvido recentemente nos Estados Unidos, o que contradiz agudamente esse senso comum. Os pioneiros desta nova linha de pesquisa foram John Bellamy Foster e Paul Burkett, seguidos por Ian Angus, Fred Magdoff e outros; eles contribuíram para transformar a Monthly Review em uma revista eco-marxista. Seu principal argumento é que Marx estava completamente ciente das consequências destrutivas da acumulação capitalista para o meio-ambiente, um processo que ele descreveu por meio do conceito de ruptura metabólica. Alguém pode discordar de algumas das interpretações feitas sobre os escritos de Marx, mas essas pesquisas foram decisivas para um novo entendimento da contribuição dele para a crítica ecológica do capitalismo.

Kohei Saito é um jovem acadêmico marxista japonês que pertence a essa importante escola eco-marxista. Seu livro, publicado pela Monthly Review Press, é uma contribuição muito valiosa para a reavaliação da herança Marxista, de uma perspectiva ecossocialista.

Uma das ótimas qualidades de sua obra é que – ao contrário de muitos outros acadêmicos – ele não trata os escritos de Marx como um conjunto sistemático de escritos, definidos, do início ao fim, por um forte compromisso ecológico (conforme alguns), ou por uma forte tendência não-ecológica (conforme outros). Como Saito muito persuasivamente argumenta, há elementos de continuidade na reflexão de Marx sobre a natureza, mas há também algumas mudanças muito significativas, e reorientações. Além disso, como o subtítulo do livro sugere, suas reflexões críticas sobre a relação entre economia política e meio ambiente estão “inacabadas”.

Dentre as continuidades, uma das mais importantes é a questão da “separação” capitalista entre os homens e a terra, isto é, a natureza. Marx acreditava que em sociedades pré-capitalistas existia uma forma de unidade entre os produtores e a terra, e ele viu como uma das tarefas chave do socialismo restabelecer a unidade original entre homens e natureza, destruída pelo capitalismo – mas em um patamar superior (negação da negação). Isso explica o interesse de Marx por comunidades pré-capitalistas, tanto em sua discussão ecológica (por exemplo, de Carl Fraas) ou em sua pesquisa antropológica (Franz Maurer): ambos os autores foram percebidos como “socialistas inconscientes”. E, é claro, em seu último documento importante, a carta para Vera Zassoulitsch (1881), Marx afirma que, com o fim do capitalismo, sociedades modernas poderiam retornar para uma forma elevada de um tipo “arcaico” de propriedade e produção coletivas. Eu argumentaria que isso pertence ao momento “anti-capitalista romântico” nas reflexões de Marx… Em todo caso, essa interessante percepção de Saito é muito relevante hoje, quando comunidades indígenas nas Américas, do Canadá à Patagônia, estão na linha de frente da resistência à destruição capitalista do meio-ambiente.

Não obstante, a principal contribuição de Saito é mostrar o movimento, a evolução das reflexões de Marx sobre a natureza, num processo de aprendizado, repensando e remodelando seus pensamentos. Antes d’O Capital (1867), alguém poderia achar na obra de Marx uma avaliação um tanto acrítica do “progresso” capitalista – uma atitude frequentemente descrita pelo termo mitológico vago “Prometeanismo”. Isso é óbvio no Manifesto Comunista, o qual celebra a capitalista “sujeição das forças da natureza ao homem” e a “limpeza de continentes inteiros para o cultivo”; mas isso também se aplica aos Cadernos de Londres (1851), aos Manuscritos econômicos de 1861-63, e a outros escritos daqueles anos. Curiosamente, Saito parece excluir o Grundrisse (1857-58) de seu criticismo, uma exceção que, em minha visão, não se justifica, considerando o quanto Marx admira, nesse manuscrito, “a grande missão civilizatória do capitalismo” em relação à natureza e às comunidades pré-capitalistas, prisioneiras de seu localismo e de sua “idolatria da natureza”!.

A mudança vem em 1865-66, quando Marx descobre, pela leitura dos escritos do químico agrícola Justus Von Liebig, os problemas da exaustão do solo e a ruptura metabólica entre sociedades humanas e ambiente natural. Isso levará, n’O Capital vol. 1 (1867) – mas também nos demais volumes interminados – à uma avaliação muito mais crítica da natureza destrutiva do “progresso” capitalista, particularmente na agricultura. Após 1868, pela leitura de outro cientista alemão, Carl Fraas, Marx vai descobrir também outras questões ecológicas importantes, tais quais desmatamento e alteração do clima local. De acordo com Saito, caso Marx tivesse sido capaz de terminar os volumes 2 e 3 d’O Capital, ele teria enfatizado com mais veemência a crise ecológica – o que também implica, ao menos implicitamente, que em seu estado inacabado atual não há ênfase forte o bastante sobre tais questões…

Isso leva-me ao meu principal desacordo com Saito: em diversas passagens do livro ele afirma que, para Marx, “a insustentabilidade ambiental do capitalismo é a contradição do sistema” (p. 142, ênfase do autor) –  ou que em seus anos tardios ele chegou a ver as rupturas metabólicas como “o mais sério problema do capitalismo”, ou que o conflito com limites naturais é, para Marx, “a principal contradição do modo capitalista de produção”.

Eu me pergunto onde Saito encontrou, nos escritos, livros publicados, manuscritos ou cadernos de Marx, quaisquer dessas declarações… Elas não podem ser encontradas, e por uma boa razão: a insustentabilidade do sistema capitalista não era uma questão decisiva no século XIX, como se tornou hoje; ou melhor, desde 1945, quando o planeta entrou em uma nova era geológica, o Antropoceno. Aliás, eu acredito que a ruptura metabólica, ou o conflito com limites naturais, não é um “problema do capitalismo” ou uma “contradição do sistema”; é muito mais que isso! É uma contradição entre o sistema e “as eternas condições naturais” (Marx), e, por isso mesmo, com as condições naturais da vida humana no planeta. De fato, como Paul Burkett (citado por Saito) argumenta, o capital pode continuar sua acumulação sob quaisquer condições naturais, ainda que degradadas, desde que não haja uma completa extinção da vida humana: a civilização pode desaparecer antes da acumulação de capital tornar-se impossível…

Saito conclui seu livro com uma avaliação sóbria que me parece sumarizar de forma muito apta do problema: O Capital (o livro) continua um projeto inacabado. Marx não solucionou todas as questões, nem previu o mundo de hoje. Contudo, sua crítica do capitalismo fornece uma base teórica extremamente útil para a compreensão da crise ecológica atual. Portanto, eu acrescentaria, o ecossocialismo pode se inspirar nas reflexões de Marx, mas deve, com as mudanças da era Antropocena no século XXI, desenvolver por completo um novo, eco-marxista, modo de enfrentamento.


*Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique


Tradução por Marina Bueno

Kohei Saito. Karl Marx’s Ecosocialism. Capitalism, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy. New York: Monthly Review Press, 2017.


FONTE: A Terra é Redonda

terça-feira, 3 de novembro de 2020

O caminho chinês

 Por Wladimir Pomar 


A experiência, até agora exitosa na China e no Vietnã, demonstra que o socialismo de mercado é um poderoso vetor de crescimento econômico e social, cujos paradigmas podem ser utilizados por qualquer país para seu desenvolvimento

A Chin tem sido uma das nações mais eficientes para debelar
 o surto epidêmico. É a nação que mais rapidamente
está retomando sua economia. Foto: Alv Song/Reuters

                                     

A China se torna, cada vez mais, ponto de referência mundial, embora muitas vezes seus conhecidos pontos positivos na luta contra a covid-19 sejam imediatamente contraditados por supostos aspectos negativos. Até mesmo intelectuais que se autodenominam “marxistas” a acusam de ser uma sociedade fechada, sob uma ditadura possuidora de uma máquina de propaganda estatal poderosa, fornecendo informações incompletas ou maquiadas à Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo causado a morte do oftalmologista de Wuhan que alertou a existência de um problema virótico novo... e por aí afora.

Na realidade, a China tem sido uma das nações mais eficientes para enfrentar e debelar o surto epidêmico. Seu índice de mortalidade é baixíssimo (2 por 1 milhão). E ela é a nação que mais rapidamente está recolocando sua economia em funcionamento, inclusive na produção de instrumentos indispensáveis para que os Estados Unidos e vários outros países da Europa e do resto mundo se contraponham à pandemia.

Tudo isso, se aumenta os ataques a ela, também eleva o interesse por sua história, em especial por sua história moderna. Mesmo porque não são poucas as pessoas que ignoram o fato de que a China realizou, nos últimos quarenta anos, um desenvolvimento industrial, técnico e científico que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos levaram cerca de duzentos anos para completar. Ou que a China, no passado feudal, com a atividade comercial de sua antiga Rota da Seda e de sua frota marítima do século 14, foi um dos impérios que contribuíram, seja para a expansão da navegação oceânica, com a invenção da bússola, do leme e da vela triangular (que permitiu navegar contra o sentido do vento), seja para a acumulação primitiva do capital na própria Europa.

É verdade que esse caminho chinês de comércio internacional naufragou, ao ser incendiada sua frota, poucos séculos depois, por imposição dos senhores de guerra feudais, manchus e hans, incomodados com a emergência de uma classe comercial burguesa e, também, pelas guerras de domínio impostas à China pelas emergentes nações capitalistas coloniais. Estas a subordinaram, impedindo-a de ingressar no desenvolvimento capitalista como nação independente.

Somente em 1949, com a vitória da revolução democrática e popular comandada pelo PC, a China se livrou da dominação imperialista, realizou a reforma agrária e tentou ingressar no desenvolvimento industrial através de uma aliança de operários, camponeses e intelectuais com os burgueses nacionais. Esse novo caminho, porém, naufragou em virtude das ações especulativas da própria burguesia chinesa, levando o país a ingressar num caminho de estatização e planejamento idêntico ao do socialismo da União Soviética.

Tal caminho, porém, tinha o defeito de dar pouca atenção à produção de bens de consumo corrente e não estimular a competição entre as empresas estatais no sentido de evitar a burocratização, elevar a produtividade, ampliar a produção e reduzir os preços. Se já eram graves na União Soviética, tais defeitos se tornaram ainda mais complexos ao se confrontarem com o tamanho da população chinesa. Ou seja, a produção insuficiente de bens de consumo corrente tendia a intensificar as contradições internas na China com muito mais rapidez que na União Soviética.

De outro lado, na suposição de que tal problema poderia ser resolvido através da luta ideológica, o Partido Comunista da China (PCC) ainda fez um esforço extra para resolvê-lo através da Grande Revolução Cultural. Mas fracassou, e foi obrigado a voltar atrás e descobrir que Marx tinha certa razão ao afirmar que o socialismo de transição da sociedade capitalista para a sociedade comunista só seria possível quando o próprio capitalismo tivesse esgotado suas possibilidades históricas.

Isto é, houvesse centralizado de tal modo a propriedade capitalista e elevado sua produtividade a tal ponto que não mais precisasse de muitos trabalhadores assalariados para o processo produtivo. Isso criaria a contradição insustentável, e humanitária, entre a enorme capacidade produtiva do capitalismo e a presença de uma imensa massa de trabalhadores sem emprego e incapaz de consumir a produção de quem não lhe permitia trabalho nem salário.

O PC, da China, então sob a direção de Deng Xiaoping, deu-se conta dessa contradição. E também do fato histórico de que muitas sociedades humanas haviam enfrentado, em sua transição para uma sociedade de tipo superior, um processo intermediário em que as características da nova e da antiga sociedade conviveram, em cooperação e em conflito, até o novo tipo de sociedade se impor através do desenvolvimento de suas características básicas.

As histórias da transição do escravismo para o feudalismo, no Império Romano em decadência, assim como da sociedade feudal da Inglaterra, França e outros países, para a sociedade capitalista, são cheias de exemplos da convivência complexa de diferentes forças produtivas e diferentes relações de produção na transição de um tipo de sociedade para outro.

Pode-se dizer que foi um fenômeno histórico idêntico que fez com que a China, a partir do final dos anos 1970, fosse levada a ingressar no chamado socialismo de mercado, combinando e confrontando a propriedade estatal e a propriedade privada, orientação estatal e disputa de mercado, trabalho assalariado e trabalho cooperativo. Para facilitar, e também para complicar, isso ocorreu paralelamente às reformas estruturais no capitalismo desenvolvido, caracterizadas em grande medida por investimentos externos em países com mão-de-obra mais barata, investimentos que incluíam a transferência de plantas industriais, inteiras ou segmentadas, para tais países. Tal processo deu surgimento ao que foi chamado de “globalização” capitalista.

Para aproveitar-se dessa reestruturação do capitalismo desenvolvido e intensificar a recepção desse tipo de investimentos externos, após realizar uma reforma agrícola que privilegiou as unidades familiares camponesas, a China criou inúmeras Zonas Econômicas Especiais, onde os investidores estrangeiros podiam investir desde que se associassem a empresas chinesas, inclusive estatais, e transferissem a elas novas ou altas tecnologias.

De qualquer modo, naquela ocasião e, também, agora, essas medidas levaram e levam muita gente a crer que a China estava privatizando tudo e retornando ao capitalismo, ainda por cima subordinada ao imperialismo capitalista. Sequer se deram e se dão conta, no entanto, que a China não só manteve suas empresas estatais, embora evitando seu monopólio setorial, como as incentivou a concorrerem entre si e com as empresas privadas, de modo a elevar sua capacidade tecnológica para disputarem o mercado e não se burocratizarem.

Ao mesmo tempo, a China modificou seu antigo sistema de trabalho 3 por 1 (três trabalhadores por posto de trabalho, como forma de reduzir o desemprego, mas de baixa produtividade) e incentivou e financiou os trabalhadores dispostos a elaborar e a levar adiante projetos industriais privados, financiados por bancos estatais. Com isso reconstituiu a burguesia nacional para intensificar a disputa no mercado com as empresas estrangeiras e as estatais.

Ou seja, da mesma forma que a transição do Império Romano para o feudalismo incluiu a convivência, por certo tempo histórico, de relações de produção escravistas e feudais, seja em cooperação, seja em conflito, o socialismo de mercado chinês (assim como o vietnamita) tende a ser uma das soluções para o problema da transição de países e povos economicamente atrasados que se adiantaram, antes que seu capitalismo tivesse se desenvolvido plenamente, na transição para uma sociedade mais avançada e igualitária.

Os efeitos do socialismo de mercado, desde seu início em 1978 até hoje, resultaram na transformação da China rural e agrícola numa China predominantemente urbana e industrial. As 31 províncias chinesas estão colocadas entre as 32 economias mundiais de maior crescimento. Os dois maiores bancos chineses, ambos estatais, estão entre os dez maiores mundiais. Entre as quinhentas maiores empresas globais estão 61 chinesas. A China também possui seis dos dez maiores portos mundiais, e a segunda maior rede ferroviária do mundo.

Do ponto de vista social, é reconhecido que a China retirou da pobreza mais de 800 milhões de seus habitantes (quase quatro Brasis), sua taxa de pobreza caindo de 65% para 10%. Seu seguro-desemprego e sua renda mínima, que associam o pagamento à obrigação de ingressar em cursos técnicos ou realizar trabalhos comunitários, apontam para caminhos concretos de superação da pobreza e da ignorância. Portanto, ao mesmo tempo que se transforma num país altamente industrializado, a China se encaminha também para criar as condições que a tornem também um país socialmente livre da pobreza e crescentemente igualitário.

Comparada com os países capitalistas mais desenvolvidos, a China só se encontra atrás, em termos estritamente produtivos, dos Estados Unidos, devendo ultrapassá-lo, mesmo nesse quesito, nos próximos anos, ao menos mantidas as tendências atuais de baixo crescimento e alto desemprego da potência norte-americana e de crescimento positivo chinês, embora bem abaixo dos seguidos 10% que manteve durante vários anos.

Mas também é importante perceber que há uma diferença básica entre os dois países. Reside no fato de que a potência industrial norte-americana já atingiu o grau de produtividade industrial que lhe permite substituir, em grande escala e de forma crescente, o trabalho vivo pelo trabalho morto. Ou, dizendo de outro modo, substituir a força de trabalho humana pela força de trabalho de máquinas e aparelhos. Isso, por um lado, elevou a produtividade e a capacidade produtiva. Mas, mantidas as relações de produção capitalistas, a substituição do trabalho vivo por máquinas impede um número crescente de proprietários da mercadoria força de trabalho de vender sua única fonte de sobrevivência, reduzindo, portanto, sua capacidade de sobrevivência.

Ao mesmo tempo, a substituição da força viva de trabalho pela força morta também incide negativamente sobre a taxa média de lucro do capital, empurrando seus donos a apelarem para o mercado financeiro especulativo. E a experiência internacional capitalista, pelo menos desde 1857, tem sido a de que esse mercado de dinheiro, centralizador de mais dinheiro, é gerador de crises cada vez mais destrutivas.

Na atualidade, tendo como fonte principal o sistema financeiro da maior potência capitalista, essas crises tendem cada vez mais, conforme apontava a crítica da economia política do final do século 19, para o fato de que o capitalismo da potência estadunidense está se aproximando de uma situação limite. Ou bem se verá diante da necessidade de substituir sua estrutura econômico-social de propriedade privada por algum tipo de socialismo ou será empurrado para um processo de destruição brutal de forças produtivas já acumuladas, a exemplo de uma guerra em grande escala.

A China, por seu lado, cresce há quarenta anos seguidos, mas ainda não alcançou o estágio em que o mercado pode ser substituído pela administração coletiva das coisas. Os próprios chineses fazem planos científicos e tecnológicos para se aproximar, de modo muito mais favorável que os Estados Unidos, por volta de 2050, das condições objetivas que podem fornecer as possibilidades de livrá-los do mercado.

Dizendo de outro modo, o que ocorre na China e também no Vietnã pouco tem a ver com supostos tipos de sociedades asiáticas, anteriores ao capitalismo, denominadas erroneamente de “modos de produção asiáticos”. Sociedades escravistas e feudais com fortes componentes estatizantes e mercantis ocorreram tanto na Ásia quanto na Europa (o Império Romano, por exemplo, foi o criador dos primeiros proletários históricos conhecidos, mas nem por isso ele gerou qualquer modo de produção asiático ou capitalista). Na China, por outro lado, em várias ocasiões, os senhores feudais impuseram aos mercadores fortes restrições a suas atividades, a exemplo do que fizeram com a armada de Zheng He, no século 14, totalmente incendiada e selando o fim do comércio marítimo da China com a África Oriental e a Arábia.

O que muito provavelmente não estava na previsão dos principais críticos do capitalismo, como Marx e Engels, é que sociedades atrasadas do ponto de vista capitalista se tornassem os primeiros palcos das tentativas de superação prática do capitalismo. Algumas delas geraram práticas totalmente estatizantes, que fracassaram, enquanto as experiências de socialismo de mercado, até agora em processo de desenvolvimento, ainda não têm uma perspectiva clara de como ocorrerá a superação do mercado e da burguesia proprietária.

De qualquer modo, a concorrência e as contradições entre a propriedade estatal e a propriedade privada fazem parte do cotidiano das experiências e contradições que permeiam o socialismo de mercado. Os proprietários privados, em geral, consideram que a propriedade estatal é burocrática e um estorvo ao desenvolvimento pleno da economia e da sociedade. Com base nessa suposição, fazem uso de mecanismos como a corrupção, para desmoralizar o sistema estatal e abrir caminho para que o mercado se liberte da orientação estatal e se torne o único agente orientador da sociedade chinesa. Nessa luta de classes ainda relativamente surda, não é por acaso que os chineses consideram que a corrupção é o principal perigo estratégico do socialismo de mercado, precisando ser duramente combatido.

Mas é difícil dizer se o socialismo de mercado será a formação econômica e social de transição de todos os países capitalistas pouco desenvolvidos, para realizar o crescimento econômico, técnico e científico, tendo a indústria como principal instrumento, que os levará a uma sociedade superior ao capitalismo. Apesar disso, a experiência até agora exitosa na China e no Vietnã demonstra que o socialismo de mercado é um poderoso vetor de crescimento econômico e social, cujos paradigmas podem ser utilizados por qualquer país para seu desenvolvimento. Vale a pena estudá-los.


Wladimir Pomar é escritor, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate


FONTE: Teoria e Debate