Por Wladimir Pomar
Um capitalismo industrial e comercial subordinado, dependente e desnacionalizado,
ao qual foi agregada uma fração agrícola modernizada à custa da maior
parte da sociedade, tendia não só a manter, mas a agravar aquilo que alguns
autores chamam de “desigualdade anacrônica”. Um dos exemplos mais característicos
dessa tendência, ou da incapacidade do capitalismo brasileiro em
mudar os elevados graus de desigualdade social, pode ser encontrado na
crise que se seguiu ao “milagre econômico” da ditadura militar.
Tal milagre chegou a suscitar esperanças em setores da própria classe operária.
Esta, renovada e engrossada pelos grandes contingentes de ex-agregados
rurais liberados para vender sua força de trabalho nos centros urbanos,
nutriu ilusões de que o processo de geração de empregos seria constante.
No entanto, sendo subordinado, dependente e desnacionalizado, o milagre
capitalista comandado pela ditadura foi incapaz de resistir às crises
mundiais do petróleo e da dívida externa dos anos 1970 e 1980. Morreu, forçando
uma retirada estratégica dos militares. E deixou como herança um desemprego
de grande parte dos que haviam sido deslocados dos campos para as cidades,
dando origem a uma imensa massa excluída, na qual sobressaem os sem (escola)-sem
(emprego).
É verdade que os intelectuais desse capitalismo descarregam sobre o
próprio povo brasileiro a responsabilidade por tais infortúnios.
Para alguns deles, um povo mestiço, criado pela colonização lusa atrasada,
jamais seria capaz de seguir os passos dos “pioneiros” norte-americanos.
Para outros, ao contrário, seria justamente a mestiçagem que nos empurraria
para a frente. Dizendo de outro modo, ambos acreditam que a raça é o fator decisivo
para explicar os traços característicos de nosso povo e de suas classes sociais.
Deixaram de lado a pesquisa histórica sobre o desenvolvimento real das
forças produtivas e das relações de produção no Brasil. E chegam a explicitar
que a colonização do Brasil teria sido diferente se houvesse sido realizada
pelos ingleses ou pelos holandeses, a exemplo da colonização inglesa da
América do Norte.
Com isso, por exemplo, esquecem ou encobrem os resultados da colonização
inglesa na Índia e na África do Sul e da holandesa na Indonésia, diferentes
da que ocorreu na América do Norte. Como já vimos, os Estados Unidos não tiveram
a mesma sorte (ou azar) da Índia e do Brasil porque a Inglaterra precisava
reduzir a pressão populacional dos desterrados pela criação de ovelhas
e pelo desenvolvimento ainda incipiente das manufaturas. Grande parte
das terras parcamente habitadas da América do Norte de então apresentavam
condições para receber tais desterrados, onde podiam estabelecer-se
como agricultores independentes e até copiar as novas técnicas e relações
de produção que estavam sendo implantadas na metrópole. Nas colônias nortistas
puderam desenvolver uma indústria local e, para completar, realizaram
duas guerras revolucionárias, a de independência e a de liquidação
do escravismo e implantação do trabalho assalariado em todos os Estados
Unidos.
Assim,
enquanto a burguesia norte-americana, na segunda metade do século 19, legitimava
sua hegemonia econômica e social, seja em confronto aberto com a Espanha,
seja disfarçadamente com a Inglaterra, a insignificante burguesia
brasileira somente deu seus primeiros passos no final daquele século, com
as experiências fracassadas e/ou esmagadas do Barão de Mauá e de Delmiro
Gouveia. Sob influência do tratamento dado pelos latifundiários a seus
agregados, nas três primeiras décadas do século 20 tal burguesia ainda se
esforçava para demonstrar que reivindicações operárias não passavam
de arruaças e assuntos policiais. Segundo ela, greves não deveriam
fazer parte das características do povo dócil e cordial que teria, pacificamente,
“conquistado” sua independência, “libertado” os escravos e “proclamado”
a República.
É
lógico que essa burguesia, subordinada aos latifundiários, não conseguia
esconder totalmente a ocorrência da Confederação do Equador, dos Alfaiates,
da Balaiada, das Cabanadas, de Canudos e de outras revoltas populares
da história brasileira. Mas esses acontecimentos foram sempre considerados
pontos fora da curva e, como tais, teriam merecido um esmagamento exemplar.
Talvez por isso vários autores não se acanhem em afirmar que, no Brasil, a
burguesia surgiu no século 16, e o proletariado no final do século 20.
Contra
todas as evidências históricas, tentam justificar tal disparate citando
a burguesia europeia, que teria sido forjada como classe muitos séculos
antes da existência do proletariado. A verdade é que tal burguesia, embora
surgindo primeiro como classe média proprietária subalterna, não dominante,
só acumulou força econômica, social e política à medida que subordinou
sua circulação de mercadorias ao desenvolvimento de suas manufaturas
acionadas pelo trabalho assalariado. E só realizou a revolução burguesa
para conquistar o poder político e exercer sua hegemonia quando seu poder
econômico alcançou dimensão igual ou superior ao dos feudais.
Em
outras palavras, os autores que eliminam as relações de produção assalariadas
como base para a geração da mais-valia e a acumulação de força econômica
desconhecem que, embora os habitantes dos burgos da Idade Média fossem chamados
de burgueses, a burguesia somente se conformou como classe social quando o
sistema de uso da força de trabalho livre pelo assalariamento se tornou
predominante. Sem tal relação de produção haveria burgueses habitantes
de burgos, mas não burguesia como classe social.
A
burguesia “brasileira”, constituída em grande parte por parcelas ou frações
estrangeiras e por latifundiários que aproveitaram a necessária substituição
das importações para se tornarem industriais, só começou a ganhar corpo
nas primeiras décadas do século 20. Nos anos 1930 e 1940, época de crise e
guerra mundial, a fração nacional dessa burguesia cresceu bafejada por investimentos
e financiamentos estatais, mas não chegou a ter um poder econômico e uma
hegemonia que lhe permitisse substituir a classe latifundiária e as
frações estrangeiras no poder político.
Essa
fração nacional manteve-se sempre subordinada à classe latifundiária e
às frações capitalistas estrangeiras, em especial à norte-americana.
Viveu sempre do acordo ou da conciliação com esses setores dominantes,
tornando-se incapaz de dirigir qualquer processo real de desenvolvimento
capitalista soberano. Mesmo durante a ditadura militar, que modernizou
os latifúndios e transformou seus proprietários em fração agrária da
burguesia, completando o processo de implantação do sistema capitalista
no Brasil, a fração burguesa nacional foi incapaz de se impor. A hegemonia
continuou em poder dos setores industriais e financeiros estrangeiros,
enquanto os latifundiários se reorganizavam como fração agrária da burguesia.
Essas
características próprias da evolução da formação econômica e social
brasileira causaram inúmeros embaraços aos seus estudiosos. Algumas
correntes autodenominadas marxistas chegaram a admitir a existência
de uma formação social feudal, tendo por base as relações de agregação aparentadas
ao feudalismo. O que levou alguns a considerarem que a burguesia nacional
deveria ter um papel revolucionário. Supuseram que ela poderia transformar
as relações de produção (universalização do trabalho assalariado),
desenvolver o capitalismo e até mesmo criar as condições para a revolução
socialista depois que a revolução democrático-burguesa houvesse cumprido
seu papel histórico. As diferentes alianças e a subordinação dessas correntes
a setores da burguesia tinham por base esse pressuposto teórico.
Outras
correntes marxistas tentaram escapar desse embaraço analítico defendendo
que o modo de produção dominante no Brasil teria sido escravista colonial.
O que pode explicar a maior parte da sociedade brasileira até 1888, mas
não o meio século seguinte em que predominou a agregação e em que, nas cidades,
se disseminaram as relações monetárias para a compra e venda da força
de trabalho. Para complicar, ainda houve correntes que resolveram virar
Marx de cabeça para baixo e afirmar que a colonização no Brasil e nos demais
países da América Latina teria sido capitalista, ou que consideravam a
economia mundial uma estrutura centro-periferia que se perpetuaria,
mesmo em ritmos diferentes.
Um
estudo mais apropriado do desenvolvimento capitalista nos Estados
Unidos e no Brasil durante as décadas de 1970-1990 pode demonstrar com mais
crueza como as tendências do capitalismo avançado, previstas por Marx,
foram intensificadas, e como as características desiguais de subordinação,
dependência e desnacionalização do capitalismo brasileiro se acentuaram.
Nos
Estados Unidos surgiram corporações ainda maiores do que as multinacionais,
as transnacionais. Elas utilizaram cada vez mais seu poder de monopólio
e de oligopólio para eliminar a concorrência (ou competição), driblar
as leis antitruste, concentrar e centralizar cada vez mais a riqueza (1%
da população norte-americana detém mais riqueza do que os demais 99%),
não dar qualquer atenção aos problemas ecológicos e, cada vez mais, substituir
o trabalho vivo (realizado diretamente pelos homens) pelo trabalho
morto (realizado por máquinas programadas), intensificando o desemprego
estrutural e as pauperizações absoluta e relativa.
Além
disso, na busca pela centralização dos capitais e pela elevação do lucro,
o capitalismo norte-americano intensificou as exportações de capital,
seja na forma financeira, seja na forma de transferência de plantas industriais
segmentadas e/ou completas. Assim, por um lado saqueou e desindustrializou
economias nacionais subordinadas aos capitais especulativos (caso
do Brasil) e desindustrializou a si próprio (vide Trump). Por outro, intensificou
a industrialização de países atrasados do ponto de vista capitalista,
mas politicamente soberanos, criando novos concorrentes (casos da
China, Índia etc.).
A
burguesia brasileira, hegemonizada por suas frações financeira, industrial
estrangeira e, crescentemente, também por sua fração agrária, em obediência
às políticas neoliberais do Consenso de Washington, operou nessas mesmas
décadas para fazer com que o país retornasse à posição de exportador de
commodities minerais e agrícolas e de centro de transferência da riqueza
nacional (expressa no produto nacional bruto) para os países capitalistas
centrais.
O
resultado, evidenciado na crise do final dos anos 1990, foi a privatização
e a transferência, para outros países, de grande parte do parque industrial
implantado nos anos anteriores (na prática, uma quebra ou desindustrialização
industrial), a intensificação do desemprego e das desigualdades sociais,
e a crescente ascensão do agronegócio, ou da fração agrária da burguesia,
a uma posição hegemônica em parceria com as frações financeira e estrangeira.
FONTE: Correio da Cidadania
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