Ascensão chinesa tirou 850 milhões da pobreza,
urbanizou o país e ampliou acesso a serviços públicos. Apostou no
“desenvolvimento”, conceito cada vez mais questionado. Mas subordinou-o a projeto nacional de soberania e
bem-estar
Por Diego Pautasso e Isis Paris Maia
O desenvolvimento é condição – embora não suficiente – para a erradicação da pobreza. Este não é força espontânea, mas depende do projeto nacional e do consequente lugar do país no sistema internacional. Do contrário, a mobilidade social resume-se a intencionalidades. Dessa forma, a compreensão das políticas públicas numa dada formação social relaciona-se à estrutura de poder e de riqueza social que atravessam as instituições de Estado.
No caso da China, a revolução se entrelaçou a um
complexo processo de reconstrução nacional. Trata-se da superação do longo
Século de Humilhações, período em que o país foi invadido e repartido entre
potências imperialistas, responsáveis por aniquilar o longevo e próspero
Império Chinês. Transformado num dos países mais pobres do mundo, o PIB da
China era de 60 dólares per capita em 1949, cerca de metade da média dos
paupérrimos países asiáticos, enquanto a expectativa de vida era de apenas 35
anos.
A partir da década de 1970, o país enfrentou uma
reorientação com a política de Reforma e Abertura liderada por Deng. Assim, o
governo chinês conseguiu retomar um ciclo virtuoso de desenvolvimento superando
as contradições internas, o isolamento internacional, a supremacia da
liberalização em voga dos anos 1980 e o subsequente colapso do socialismo. Ao
contrário, a China apostou na condução estatal do desenvolvimento e na
manutenção do regime, fazendo o PIB (em dólares correntes) saltar de 191,1
bilhões em 1980 para 14,7 trilhões de dólares em 2020, enquanto a renda per
capita foi de 220 para 10,4 mil dólares no mesmo período. Foi este processo de
desenvolvimento o responsável pela maior mobilidade social de que se tem
notícia. Grande parte deste feito ocorrido entre 1990 e 2010, no contexto da
arrancada industrial, cuja proporção de população pobre passou, neste período,
de 66,3% para 11,2% – de acordo com o Banco Mundial. Mesmo as desigualdades,
típicas de períodos de arrancada industrial, já estão recuando há mais de uma
década (segundo o índice de Gini).
A modernização acelerada, repleta de contradições,
permitiu ampliar a arrecadação e forjar as políticas públicas voltadas à
eliminação da pobreza extrema e na atual extensão de políticas sociais sob a
direção de Xi Jinping. Quando se tornou líder em 2013, havia apenas 43 milhões
de chineses na pobreza e ao longo da execução de seu programa de políticas
sociais direcionadas1 foram investidos US$ 246 bilhões para
construir 1,1 milhão de quilômetros de estradas na zona rural, levar acesso à
internet para 98% dos povoados pobres do país, reformar a casa de 25,68 milhões
de pessoas e construir casas novas para outras 9,6 milhões2.
Analisando em perspectiva histórica, após seu
momento mais acentuado do período de take off, a China está
transitando de um desenvolvimento quantitativo para outro qualitativo. Nesse
sentido, para além de ser um desígnio de revolução, a eliminação da pobreza e a
extensão dos direitos sociais respondem a vários determinantes: 1) as demandas
crescentes de uma sociedade urbano-industrial, 2) o acúmulo de recursos
decorrente da ampliação extrativa (arrecadatória) e 3) a necessidade de forjar
fronteiras de desenvolvimento ligados aos novos setores de serviço (saúde,
educação, etc.). Em outras palavras, falar em políticas públicas de bem-estar
(refletidos no IDH, por exemplo) sem desenvolvimento (produtividade) torna-se
inócuo. Não se trata, afinal, de tecnicidade, mas de política; nem de regras
formais ou desejos normativos, mas de projeto de país.
Justamente aí residem algumas lacunas. Além da
insistência de parte das ciências humanas no Ocidente em prescrever modelos com
viés etnocêntrico, são desconsideradas as singularidades civilizacionais e
sociopolíticas da China. Afinal, é um governo que se reivindica socialista e,
como tal, tem no Estado a responsabilidade primária pelo desenvolvimento da
economia, assim como pelo bem-estar social, de maneira indissociável. Aliás,
após décadas de promoção do mercado, Xi tensiona o fortalecimento do Estado
para enfrentar os desafios domésticos e o quadro internacional disruptivo.
Com efeito, a sub-representação da experiência de
construção estatal e de políticas sociais do Terceiro Mundo e em países
socialistas, além de um viés demasiado ocidental, reflete o imperativo de
desafiar o pensamento eurocêntrico. Este é exatamente o caso da China, cuja
relação entre planejamento e mercado, bem como os arranjos institucionais, não
cabem em certos quadros analíticos. Ou seja, está em completa assincronia com
abordagens dominantes no Ocidente e, por isso, ainda muito descoberta ou
enviesada na nossa produção científica.
A questão de fundo, contudo, vai além. Mais do que
desenvolvimento e mobilidade social, a ascensão da China está mudando o arranjo
global geoeconômico e geopolítico. Ainda escapa a amplos setores científicos e
políticos no Ocidente as mudanças profundas nas configurações de poder no mundo
que estão em curso. Enquanto, as estruturas hegemônicas de poder erigidas no
pós-guerra sob liderança de Washington estão sendo corroídas, partes das elites
ocidentais insistem em subestimar tais mudanças, cujo eixo estruturante das
transformações globais passa pela reação estadunidense ao desafio chinês.
Enfim, não seria ousado dizer que se trata de uma mudança civilizacional no
qual as lentes convencionais estão em descompasso com as novas realidades
emergentes.
__________
1 Explico o que são Politicas Públicas Direcionadas nesta entrevista cedida ao Brasil de Fato:
https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-1-socialismo-em-construcao/
FONTE: Outras Palavras
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