Renda do capital ainda é renda do capital, assim como renda do trabalho continua sendo renda trabalho. Por mais que a remuneração mensal dos despossuídos tenha evoluído, o conceito de classes sociais e seus conflitos de interesses continuam valendo para a análise do modo capitalista de produção.
Por Paulo Kliass
A Presidência da República está colocando em marcha uma delicada operação política, que pode trazer conseqüências perigosas para a análise e a compreensão de nossa realidade social e econômica. Tudo começou com o anúncio, por parte da Secretaria de Assuntos Estratégicas (SAE), do lançamento de um novo programa, considerado prioritário no âmbito do governo. Foi batizado com o nome de “As Vozes da Classe Média”.
Em tese, nada demais a chamar atenção, não é mesmo? Afinal, esse tema da classe média tem ocupado as páginas dos grandes jornais de forma crescente, ao longo dos últimos tempos. No entanto, vale a pena chamar a atenção para alguns elementos do entorno desse programa em especial e do simbolismo político envolvido com o fato. O atual titular da SAE é o dirigente do PMDB/RJ, Wellington Moreira Franco, que substituiu o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães desde o início do mandato da Presidenta Dilma. O órgão mais importante de sua pasta, porém, é o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), que era presidido desde 2007 pelo economista Marcio Pochmann, professor da UNICAMP e pesquisador crítico das correntes mais conservadoras dos vários campos das ciências sociais. Sob tais condições, o ministro carioca pouco conseguia influenciar na política interna do instituto.
As mudanças na direção do IPEA: de Pochmann a Neri
Convencido a disputar a prefeitura de Campinas pelo PT, Pochmann pediu demissão do cargo e Dilma optou há poucos dias pela nomeação definitiva de outro economista: Marcelo Neri, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). Com esse passo, a avaliação reinante nos corredores do poder é que o conservadorismo tem todas as possibilidades de retornar às áreas dirigentes do IPEA. Independentemente de sua competência técnica e suas qualidades profissionais, o novo presidente do órgão representa grupos e correntes ligados à ortodoxia econômica e à ressonância de todo o pensamento neoliberal em solo tupiniquim. Afinal, as posições da FGV são mais do que conhecidas nesse domínio.
O lançamento do novo programa “Vozes da Classe Média” é a perfeita expressão política de mais um movimento de mudança no interior do governo. Neri é um estudioso da questão da distribuição de renda e coordenou recentemente uma publicação chamada “A nova classe média – o lado brilhante da base da pirâmide”, onde todo o foco reside nessa suposta nova composição de classe social em nossas terras. Do ponto de vista político, o trabalho articulado pelo pesquisador da fundação carioca cai como sopa no mel para os dirigentes políticos governistas. Tanto que a própria Presidenta fez referência pública ao autor, em um evento no Rio de Janeiro, ainda em abril passado, elogiando e recomendando a leitura da obra. Bingo: o recado político estava dado, para quem quisesse ouvir. Talvez tampouco seja mera coincidência o fato do PT não ter lançado candidato a prefeito no Rio de Janeiro e do governo federal apoiar o peemedebista Eduardo Paes, sempre ao lado do governador Sérgio Cabral, também do PMDB e muito prestigiado pelo núcleo duro de Dilma. O círculo se fecha.
Já Pochmann, havia lançado um livro com interpretação bastante diferente desse oficialismo chapa branca. A Editora Boitempo publicou há pouco a obra “Qual classe média?”, que chama a atenção logo de início pelo ponto de interrogação no próprio título. Como estudioso sério e crítico, o ex-presidente do IPEA lança uma série de indagações a respeito da suposta unanimidade em torno desse “novo” conceito de classe média. E demonstra que não se pode confundir a inegável melhoria nas condições de renda na base da sociedade com a transformação em sua estrutura de classes sociais. Com a devida vênia de nossa Presidenta, eu recomendaria também a leitura do livro de Pochmann. No entanto, por se tratar de um estudo que não compartilha desse clima de oba-oba ufanista e irresponsável, ele não é tão útil nem funcional para alavancagem da política governamental no varejo e no cotidiano. Afinal, a honestidade intelectual exige alguns “poréns” e algumas observações de reparo metodológico. Xi, lá vem o chato do Paulo Kliass outra vez... Pois é, são os ossos do ofício!
“Voices of the poor” e “Vozes da classe média”: do Banco Mundial à SAE
Em sua apresentação oficial, está dito que o programa “Vozes da classe média” pretende servir como parâmetro para a elaboração de políticas públicas pelo governo federal. Talvez não seja por outra simples coincidência que ele tenha recebido esse nome. Na verdade, trata-se de uma quase versão para o português de um conhecido programa do Banco Mundial lançado lá em 2000, na virada do milênio, que é chamado de “Voices of the poor” (Vozes dos pobres). Era uma tentativa de ouvir e estudar o fenômeno da pobreza ao redor do mundo, incluindo países como Brasil, Etiópia, Índia, Indonésia, Uzbequistão, entre outros. Mas para além desse vício de paternidade, o caminho que o governo pretende adotar agora contém graves equívocos metodológicos. Como a idéia é sempre elogiar o suposto sucesso da política de melhoria das condições da população da base da pirâmide, entra em marcha um verdadeiro “vale-tudo” no sentido de organizar, rearranjar e espremer os números e os dados estatísticos. O objetivo é oferecer resultados convincentes e belas conclusões. Tudo perfeito e adequado para o recheio do discurso oficial, a ser faturado politicamente.
Parte-se de um fato inegável: ao longo dos últimos anos, a política de transferência de renda (via programas como Bolsa Família) e a política de valorização do salário mínimo foram o carro chefe de uma transformação significativa nas condições da população mais pobre em nosso País. Com elas vieram também a ampliação dos benefícios concedidos pela previdência social, a melhoria das condições no mercado de trabalho e o acesso ao crédito. No entanto, também é amplamente reconhecido que a política econômica desse período continuou a favorecer e beneficiar as camadas mais ricas de nossa sociedade, por meio da política de juros elevadíssimos (que só começou a mudar no último ano), das isenções fiscais, das desonerações tributárias, da ampliação da privatização e toda a sorte de benesses dirigidas ao capital em geral e ao setor financeiro em particular.
Assim, apesar de ter ocorrido uma melhoria na distribuição na base da sociedade, o restrito topo da pirâmide foi ainda muito mais beneficiado. E como os níveis da desigualdade e de concentração são muito elevados, o aspecto significativo seria analisar o que ocorreu com os 0,5% mais ricos na comparação com os 99,5% restantes. Se pegarmos faixas amplas com os 10% ou 20% das famílias com maior renda, estaremos misturando alhos com bugalhos e as conclusões serão, obviamente, apressadas e equivocadas. Isso porque os dados utilizados vêm da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, onde apenas uma pequena amostra do total das famílias responde a um extenso questionário de forma voluntária. Com isso, os domicílios familiares de renda mais elevada tendem a subestimar as informações fornecidas a respeito dos valores e das fontes de seu rendimento efetivo.
Os números do programa e as conclusões equivocadas
De acordo, com o programa “Vozes da classe média”, os limites para fazer parte desse novo recorte de “classe” são os seguintes: de R$ 291 a R$1.091 como renda mensal familiar per capita. Dessa forma, as conclusões são uma maravilha! Mais de 50% da população brasileira estão nesse perfil – um total superior a 100 milhões de pessoas. Então, vamos lá verificar – na realidade concreta da vida real - quem está enquadrado dentro dessa inovadora definição de “nova classe média” e quem já está recebendo uma renda tão elevada que está até acima desse nível, passa a fazer parte das elites, da classe alta.
Consideremos o caso de um jovem casal, sem filhos. Um dos cônjuges recebe um salário mínimo e o outro está desempregado. Sua renda mensal é de R$ 620, o que nos permite concluir uma renda per capita de R$ 310 a cada 30 dias. Imaginemos ainda que seus vizinhos sejam um casal com 2 filhos, onde os pais trabalham e recebem cada um deles salário mínimo também. A renda mensal da família é de R$ 1.240, com uma renda per capita de R$ 310, como no caso anterior. Vejam que ambas as famílias são integrantes da “nova classe média”, pois estão acima do patamar mínimo de R$ 291, o que lhes permitiria a chave de acesso ao paraíso do consumo, segundo as capas das revistas semanais penduradas nas bancas de jornal. Pouco se fala a respeito da qualidade dos serviços públicos que recebem, como saúde, educação, saneamento, transporte público, etc. O que importa é a renda auferida.
Cabe ao leitor optar: o estabelecimento arbitrário desses valores seria ato de ingenuidade ou de maldade? Afinal, não é lá muito difícil contabilizar os níveis de despesa mensal dessas unidades familiares: o transporte coletivo numa grande cidade; o aluguel de moradia em péssimas condições; as contas de água, luz e telefone celular; o gás para cozinha; as compras de cesta básica e seus complementos; etc. Ora, o retrato é de uma sobrevivência nesse nível básico, que não permite quase nenhuma capacidade de poupança, nem o usufruto das boas condições de vida. Quem teria a coragem de afirmar que esses indivíduos seriam integrantes da “nova classe média”? Em sentido oposto, Pochmann nos oferece uma interessante reflexão a respeito do fenômeno, na apresentação de seu livro:
“O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais.”
Por outro lado, tão ou mais impressionantes são as conseqüências da definição casuística do limite superior para o enquadramento em “nova classe média”. Imaginemos outra vez a situação de um casal típico de assalariados, com um filho. Ele acabou de conseguir um emprego numa empresa automobilística no ABC e recebe o piso da categoria. Ela é empregada de um banco e também recebe o piso salarial assegurado pelos acordos dos sindicatos com a FENABAN. A renda mensal do trio familiar supera R$ 3.300, com um equivalente per capita superior aos R$ 1.091 do programa oficial do governo. Dessa forma, a conclusão é assustadora: pasmem, mas essa família de trabalhadores não seria mais integrante da “nova classe média”. Em função dessa “estupenda” remuneração mensal, eles já teriam sido alçados à condição da elite, fazem parte das classes altas da sociedade brasileira! Uma loucura, para dizer o mínimo!
Trabalhadores ou classe média?
As políticas desenvolvidas ao longo da última década contribuíram para a melhoria das condições de vida da maioria da população. No entanto, o elevado grau de desigualdade social e econômica nos coloca ainda entre os países mais injustos do planeta. Assim, não se “acaba com a pobreza” da noite para o dia, apenas com uma canetada, estabelecendo um limite arbitrário de renda de forma injustificada. O caminho é longo e passa pelo aprofundamento das políticas de distribuição de renda. Não será por força dos limites quantitativos constantes de um eventual Decreto que o Brasil amanhecerá menos pobre ou menos injusto.
Reconhecer as significativas transformações ocorridas com a população de menor renda em nosso País ao longo dos últimos 10 anos não nos permite tentar avançar na deturpação dos dados da realidade. Não se pode ser conivente com a utilização política e eleitoral de informações viesadas, com o fim exclusivo de propiciar análises encomendadas para usufruto do governo de plantão. Renda do capital ainda é renda do capital, assim como renda do trabalho continua sendo renda trabalho. Por mais que a remuneração mensal dos despossuídos tenha evoluído, o conceito de classes sociais e seus conflitos de interesses continuam valendo para a análise do modo capitalista de produção.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
FONTE: Carta Maior
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