sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Utopia de Tomás Morus: sonho ou contestação?



Por Wilson Correia[*]

Introdução

“En los utopistas ni todo es quimérico: algunos han sido reveladores, otros han actuado como estimulantes o fermento” (RIBOT).



Na vida cotidiana, quase sempre tomada pelas preocupações imediatas, é como que natural ver o homem não dar muito valor àquilo que escapa do âmbito dos problemas mais prementes. Uma dessas coisas é a utopia.

Por não se prestar à utilidade, às coisas postas à mão, o homem comum parece não ter clareza sobre a utopia. Por isso, muitas vezes, a utopia é entendida como sonho, algo do plano do quimérico, do irrealizável.

É até compreensível quando esse entendimento vem das pessoas não dadas à investigação científica e filosófica sobre o sentido das coisas. Porém, quando a mesma compreensão aparece na boca de alguém dado à busca e à produção do conhecimento, então é o caso de se perguntar: essa pessoa não está fazendo uma leitura apressada sobre o sentido da utopia?

Então, a primeira providência de quem deseja estudar a utopia de maneira rigorosa é não colocar todas as manifestações históricas no mesmo balaio. A República, de Platão, Cidade do Sol, de Campanella, Nova Atlântida, de Bacon, o pensamento rousseauísta, as idéias iluministas e as teses dos socialistas utópicos, por exemplo, são trabalhos do espírito humano que apresentam especificidade para com a qual é desejável, no mínimo, a atitude de respeito.

Na esteira da consideração anterior pode ser incluída a obra renascentista A Utopia, de Tomás Morus, sobre a qual podemos indagar: ela é a elaboração de um sonho ou é um trabalho de contestação da realidade social?

Para tentar averiguar se a utopia moreana pode ser qualificada de sonho, vou me valer de Freud, aquele que melhor investigou a atividade onírica. Para tentar perscrutar a utopia como contestação, vou me deter na análise da própria obra A Utopia, de Morus. Esse, aliás, é o objetivo do presente artigo.

A Utopia moreana

O termo utopia será empregado neste artigo na acepção de não-lugar-feliz (ou-topos, não lugar; u-topos, lugar feliz). É um termo que nomeia a felicidade ainda não concretizada pelo homem em nenhum lugar. Mas isso não autoriza o entendimento de que a utopia possa ser um surto de pensamentos absurdos, meramente alegóricos. Ao contrário, eles podem ser vistos como o corolário de um trabalho meticuloso do exercício de pensamento, o qual não dispensa a contribuição da imaginação, aquela que Einstein tanto privilegiou em seu trabalho de produção científica ao notar o valor da “invenção” (apud POPPER, 1975, p. 525).
A Utopia de Tomás Morus é, ao estilo platônico, um diálogo entre o próprio Morus e um inveterado navegador português, chamado Rafael Hitlodeu. Uma leitura acurada da obra moreana evidenciará a profundidade de pensamento que o diálogo revela, no qual Hitlodeu funciona como um alter ego do autor.

Na primeira parte da obra, Morus faz uma ampla análise sobre a sociedade inglesa do século XVI, a qual funciona como uma espécie de diagnóstico da sociedade inglesa de que fazia parte e que se encontrava combalida pelo desprazer e pela falta de liberdade.

Essa crítica moreana se estende a três dimensões da sociedade criticada, a saber: a composição social, o aspecto político e a dimensão econômica.

Do ponto de vista da composição social, a Inglaterra estava “fracionada” entre nobres, “artífices da corrupção”; clero, “os primeiros vagabundos deste mundo”; os soldados, que viviam na “ociosidade”; e os miseráveis, cujo destino era o de ser “enforcados com todas as formas de processo” (MORUS, 1990, p. 36, 49, 34 e 37). Nessa composição social, não havia a liberdade necessária à vida cidadã.

Na perspectiva da política, o que se via era a figura do príncipe absoluto, cujo axioma moral expressava o entendimento de que o soberano era “o proprietário universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os súditos”, os quais dependiam “do bel-prazer do soberano” (MORUS, 1990, p. 58). Aí a liberdade tinha sido abortada na raiz. O soberano era o dono da vida e da morte das pessoas. A palavra dele era lei.

Na esfera econômica, o “direito de propriedade” prevalecia acima de tudo e de todos. Como decorrência da propriedade, assistia-se à busca do “lucro imediato”, a “carestia dos víveres” e o “luxo e as loucas despesas que este ocasiona” (MORUS, 1990, p. 65, 39, 30 e 39). Desse modo, a propriedade estava funcionando como fonte de todos os males pelos quais os ingleses coetâneos de Morus se viam passando.

Segundo Morus, “A causa principal da miséria pública é o número excessivo de nobres, ociosos zangões que vivem à custa do suor do trabalho de outrem, e que no cultivo das terras exploram os rendeiros até o osso, para aumentarem seus rendimentos” (MORUS, 1990, p. 34).

Em face dessa realidade, Morus propõe o que ele denomina de “caminho oblíquo” (MORUS, 1990, p. 62), segundo o qual a tarefa primeira da “filosofia oblíqua” não seria a de elaborar um programa político, mas dizer as mesmas coisas numa linguagem diferente, utópica.

No segundo livro de A Utopia, o objeto é o relato da vida feliz do “lugar-nenhum”, a ilha tornada o mais desejável dos oásis possíveis. A capital dessa ilha, era Amaurota, a “cidade dos sonhos”, das “nuvens”, o “castelo no ar”. O rio Anidro, sem água, banhava a capital. Alaopolitas, “cidadãos sem cidade”, habitavam-na. Os governantes eram os ademus, “aqueles que não tem povo”. Os vizinhos dos utopianos são os acórios, “homens sem país” (MORUS, 1990, passim).

Dessa maneira, ao descrever, em detalhes, a vida do povo utopiano, Morus faz a defesa da felicidade humana, resultante de um estilo de vida baseado na razão e na organização social fundada na cooperatividade. Morus tenta demonstrar com sua filosofia oblíqua que o desejo de felicidade pode qualificar uma “comunidade de vida”, no prazer e na liberdade. Esse desejo ele o expressa com a última frase de seu livro “Desejo-o mais do que espero” (MORUS, 1990, p. 169).

O sonho segundo Freud

Para Freud, “A interpretação dos sonhos é a estrada real para um conhecimento das atividades inconscientes da mente” (FREUD, 1969, p. 608). Foi com tal certeza que ele se dedicou ao estudo do sonho, chegando à conclusão de que o sonho realiza um desejo: “El sueño es la realización (disfrazada) de um deseo reprimido (FREUD, 1969, p. 340).

Dessa maneira, o primeiro passo para se compreender o trabalho onírico é ter clara a distinção entre conteúdo manifesto e conteúdo latente envolvido nessa atividade. O conteúdo manifesto é o que constitui o relato do sonho. O conteúdo latente é o que dá significado ao sonho. Esses conteúdos constituem o contexto do desejo.

“Para nosotros se interpola, em efecto, entre el contenido onírico y los resultados de nuestra observación un nuevo material psíquico: el contenido latente o ideas latentes del sueño que nuestro procedimiento analítico nos lleva a descubrir. De este contenido latente y no del manifesto es del que desarrollamos la solición del sueño” (FREUD, 1948, p. 398).

No contexto do sonho, quatro são as atividades que podem ser verificadas: a condensação, o deslocamento, a representação e a elaboração secundária.

A condensação refere-se à atividade que impede a nítida correspondência entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. Pelo fato de o conteúdo latente ser muito maior do que o conteúdo manifesto, o sonho pode representar inúmeros motivos ou desejos. Assim, uma gama variada de desejos pode ser condensada num só sonho: “La constituición de personas colectivas y mixtas es uno de los principales medios de que se sirve la condensación onírica” (FREUD, 1948, p. 406).

O deslocamento relaciona-se com o disfarce que o sonho realiza. Assim, a acentuação, o interesse ou a intensidade de uma representação torna-se susceptível de se deslocar para outras, ligadas a elas por uma cadeia associativa. “Resultado de este processo es que el contenido manifesto no se muestra igual al nódulo de las ideas latentes, no reproduciendo el sueño sino uma deformación del deseo onírico inconsciente” (FREUD, 1948, p. 413).

O processo de representação consiste na transformação dos pensamentos oníricos ou conteúdo latente para imagens do conteúdo manifesto. Por essa atividade, um sonho aproxima duas manifestações de desejos diferentes de maneira imagética. Para o indivíduo que sonha, essas imagens aparecem de forma confusa, e, ao relatar o sonho, ele não sabe se de fato é essa ou aquela imagem que apareceu:

“Así, pues, allí donde el sujetio del sueño introduce en el relato del mismo una habitacón, etc., no muestra o sueño tal alternativa, sino simplemente uma yuxtaposición, y lo que al introducir la alternativa queremos significar en nuestro relato del sueño es la vaguedad e imprecisión de un elemento del mismo. La regla de interpretación aplicable a este caso consiste em situar em un mismo plano los diversos miembros de la aparente alternativa y unirlos com la cunjunción copulativa ‘y’” (FREUD, 1948, p. 417).

A elaboração secundária é atividade que ordena, dá lógica e coerência ao conteúdo do sonho, de modo a apresentá-lo num todo aceitável e compreensível. Essa atividade escolhe, remodela e acrescenta algo ao conteúdo do sonho, sendo o efeito da censura. O próprio Freud conta que há cadeias de pensamentos divergentes, “radicalmente opuestas”, com “elementos iguales, pero contrários” (FREUD, 1948, p. 419) que se fazem representar no sonho manifesto.

Ao procurar demonstrar o trabalho complexo do sonho, Freud teve sempre presente que o sonho é a realização de um desejo, assinalando que o sonho “Es un acabado fenômeno psíquico, y precisamente una realización de deseos” (FREUD, 1949, p. 320). E o desejo está relacionado a essa dinâmica do trabalho onírico, fazendo parte da força inconsciente que busca realização.

Utopia moreana: sonho ou contestação da realidade?

O termo realidade pode significar: do francês realité, própria e especificamente, o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou dela independentes; do latim medieval realitas, realis, de res (coisa), termos que dizem respeito às coisas e fatos que se opõem ao fictício, ilusório, fantasmagórico ou aparente
.
Quando se fala que a utopia de Morus é uma crítica ao real, ao real que não abrange a totalidade do existente, o termo está sendo empregado na primeira acepção do parágrafo anterior. Porém, quando se afirma que a utopia de Morus recria o real, o termo real é empregado na acepção inversa da primeira, pois se trata de um real que somente passa a existir como produto da mente humana e que dela depende. Assim, a utopia é o resultado desses dois tipos de trabalho mental, na medida em que parte do concreto percebido para criar algo que jamais fora percebido.

Em Freud, a realidade do sonho permanece fundada no inconsciente e no interior da mente. Ainda que condense, desloque, represente ou elabore secundariamente o conteúdo da vida vivida, ele perdura como atividade psíquica. Em Morus a realidade é sempre exterior à mente, a qual é criticada não pelo trabalho do inconsciente, mas segundo a vigilância da razão cônscia de si e do entorno natural e humano que toma como objeto de análise, a qual qualifica pela regras da lógica.

Em Morus a realidade exterior não depende da ação da mente humana. Em Freud, o trabalho onírico é que é o responsável pelo produto chamado de sonho, incluindo a latência e o relato consciente dele. Desse modo, o real utópico só existe e se justifica em função da realidade exterior. Assim, a contestação do real vivido pela elaboração do real utópico consiste na recriação do primeiro, em que este suplante aquele pela perfeição.

Em Freud o prazer está relacionado ao processo de diminuição de tensões (LAPLANCHE, 1967, p. 466/7), sendo um dos pólos do conflito psíquico que se estabelece no interior da mente entre id, ego e superego. Em Morus o prazer constitui um princípio moral, regulador da ação e equilibrador do agir externo, o qual, um produto epistêmico, deve ser consciente e racionalmente apreendido. Ademais, em Morus o desejo não é apenas impulso ou o querer o que não se tem, mas o motivador da ação rumo ao alcance da felicidade utópica mediante o trabalho racional.

Se em Freud a imaginação é tão-somente reprodutora, uma vez que o sonho não vai além do vivido, em Morus a imaginação é criadora, dado que re-cria estilo existencial e modelo societário que atendam ao anseio humano por realização e felicidade. Em Morus, pois, a razão trabalha de maneira clara e transparente, em vigília, não desprezando a interferência da racionalidade que dá conta, por completo, da realidade com que trabalha, critica e inventa.

Em Freud, o sonho é produto da pressão do conteúdo latente ou do desejo reprimido, prevalecendo em estado de sonolência. Em Morus, o trabalho da razão criadora, a utopia, é resultado do desejo que não se satisfaz com o que a realidade oferece, necessitando, pois, para permanecer realizável, da criação de uma outra realidade, sob a vigilância da consciência.

Desse modo, esta análise não nos permite tratar coisas tão díspares como se fossem a mesma coisa, a saber: o sonho, de acordo com Freud, e a utopia, segundo Morus. Assim, quando alguém diz que a utopia é um sonho, é preciso entender de que sonho ele está falando. Na perspectiva da psicanálise parece-nos que não pode ser.

Ao modo de conclusão

O exposto anteriormente nos garante no entendimento de que, na perspectiva da teoria dos sonhos de Freud, não é possível reafirmar a utopia moreana como sonho. Ela é uma manifestação da inteligibilidade humana, processo e produto do exercício do pensamento.
A utopia moreana, ainda que possa ser considerada um produto da razão que permite em paralelo o trabalho da faculdade da imaginação, constitui-se em um trabalho de crítica e contestação da realidade natural, humana, social, o qual não vai além daquilo que se acomoda na concretude de tudo o que pode ser percebido pelo ser humano.

O pensamento utópico realiza esse trabalho de crítica contestadora por meio da criação de um outro de si dessa realidade vivida, agora na forma de não-lugar, de felicidade ainda não experimentada, de modo de vida ainda não concretizado pelo homem e pela mulher. Aí a fórmula oblíqua da filosofia utopista moreana, que não pretendeu ser uma teoria da reforma social.

De outra maneira, e buscando a inspiração nas lições que aprendemos com a utopia de Morus, talvez possamos dizer que a utopia, em seu sentido lato, é o tipo de pensamento que rompe a desordem como ordem do real, hoje, amanhã e sempre, para propor o novo, razão pela qual a tese fundamental da mensagem utópica, que aponta para a possibilidade de recriação da vida e da realidade, possa ter em Morus uma relevante fonte inspiradora.

Como foi dito em outro lugar deste artigo, a utopia é a expressão da esperança. A esperança é o motivo da vida, a qual pode renovar-se e ser recriada incessantemente. Quem perder a esperança, ao que parece, bem que poderia encomendar a própria máxima lapidar.


Bibliografia
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 2. ed.Trad. A. Bosi. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARNOLD. W. et al. Dicionário de psicologia. São Paulo: Loyola, 1992.
BRENNER, C. Noções básicas de psicanálise. Trad. A. M. Spira. São Paulo: Edusp, 1975.
COELHO, T. O que é utopia. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DUARTE JÚNIOR, J. F. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 1989.
FREIRE, R. & BRITO, F. Utopia e paixão: política do cotidiano. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: Obras completas, IV vol. Trad. W. I. de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
FREUD, S. La interpretación de los suemos, I vol. In: Obras completas. Trad. L. Lopes-Ballesteros Y de Torres. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1948.
LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. Vocabulário de psicanálise. Trad. P. Tamem. São Paulo: Martins Fontes, 1967.
MORUS, T. A Utopia. 7. ed. Trad. J. Marinho. Lisboa: Guimarães Editores, 1990.
POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. ed. Trad. L. Hegenberg & O. S. da Mota. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1975.


Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins, Campo Universitário de Arraias. É autor de “TCC não é um bicho-de-sete-cabeças”. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009 (no prelo). Email: wilsoncorreia@uft.edu.br



sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Boaventura: Revolução Russa, ano 100


Aventura soviética teve limites,  contradições e misérias, mas ao menos um enorme mérito.  Ela
demonstrou que havia alternativa ao capitalismo e o obrigou a recuar.


Por Boaventura de Sousa Santos

(Primeiro de uma série de ensaios do autor sobre o tema)


Assinalam-se este ano os 100 anos da Revolução Russa (RR)1 e também os 150 anos da publicação do primeiro volume de Das Kapital de Karl Marx. Juntar as duas efemérides pode parecer estranho porque Marx nunca escreveu em detalhe sobre a revolução e a sociedade comunista e, se tivesse escrito, é inimaginável que o que escrevesse tivesse alguma semelhança com o que foi a União Soviética (URSS), sobretudo depois que Stalin assumiu a liderança do partido e do Estado. A verdade é que muitos dos debates que a obra de Marx suscitou durante o século XX, fora da URSS, foram um modo indireto de discutir os méritos e os deméritos da RR. Agora, que as revoluções feitas em nome do marxismo ou terminaram ou evoluíram para… o capitalismo, talvez Marx (e o marxismo) tenha finalmente a oportunidade de ser discutido como merece – como teoria social. A verdade é que o livro de Marx, que levou cinco anos a vender os primeiros mil exemplares antes de se tornar um dos livros mais influentes do século XX, voltou a ser um bestseller em tempos recentes e, duas décadas depois da queda do Muro de Berlim, estava finalmente a ser lido em países que tinham sido parte da URSS. Que atração poderá suscitar um livro tão denso? Que apelo pode ter num momento em que tanto a opinião pública como a esmagadora maioria dos intelectuais estão convencidos de que o capitalismo não tem fim e que, se tiver, não será certamente seguido pelo socialismo? Há 23 anos anos publiquei um texto sobre o marxismo como teoria social.2 Numa próxima coluna indicarei o que desde então mudou e não mudou na minha opinião e procurarei responder a estas perguntas. Hoje debruço-me sobre a o significado da Revolução Russa.

Muito provavelmente os debates que durante este ano tiverem lugar sobre a Revolução Russa irão repetir tudo o que já foi dito e debatido e terminarão com a mesma sensação de que é impossível um consenso sobre se a RR foi um êxito ou um fracasso. À primeira vista é estranho que assim seja, pois quer se considere que a RR terminou com a chegada de Stalin ao poder (a posição de Trotsky, um dos líderes da revolução) ou com o golpe de Estado de Boris Yeltsin em 1993, parece evidente que fracassou. E, no entanto, tal não é evidente, e a razão não está na avaliação do passado mas na avaliação do nosso presente. O triunfo da RR reside em ter levantado todos os problemas com que as sociedades capitalistas se debatem ainda hoje. O seu fracasso reside em não ter resolvido nenhum. Excepto um. Em próximas colunas abordarei alguns dos problemas que a RR não resolveu e nos continuam a apoquentar. Hoje debruço-me sobre o único problema que ela resolveu.




Pode o capitalismo promover o bem estar das grandes maiorias sem que esteja no terreno da luta social uma alternativa credível e inequívoca? Este foi o problema que a RR resolveu e a resposta é não. A RR mostrou às classes trabalhadoras de todo mundo, e muito especialmente às europeias, que o capitalismo não era uma fatalidade, que havia uma alternativa à miséria, à insegurança do desemprego iminente, à prepotência dos patrões, a governos que serviam os interesses de minorias poderosas mesmo quando diziam o contrário. Mas a RR ocorreu num dos países mais atrasados da Europa e Lenine tinha plena consciência de que o êxito da revolução socialista mundial e da própria RR dependia de ela poder estender-se aos países mais desenvolvidos, com sólida base industrial e amplas classes operárias. Na altura, esse país era a Alemanha. O fracasso da revolução alemã de 1918-1919 fez com que o movimento operário se dividisse e uma boa parte dele passasse a defender que era possível atingir os mesmos objetivos por vias diferentes da seguida pelos operários russos. Mas a ideia da possibilidade de uma sociedade alternativa à sociedade capitalista manteve-se intacta. Consolidava-se, assim, o que se passou a designar por reformismo, o caminho gradual e democrático para uma sociedade socialista que combinasse as conquistas sociais da RR com as conquistas políticas, democráticas dos países ocidentais. No pós-guerra o reformismo dava origem à social-democracia europeia, um sistema político que combinava altos níveis de produtividade com altos níveis de proteção social. Foi então que as classes trabalhadoras puderam, pela primeira vez na história, planejar a sua vida e futuro dos seus filhos. Educação, saúde e segurança social públicas, entre muitos outros direitos sociais e laborais. Tornou-se claro que a social democracia nunca caminharia para uma sociedade socialista mas que parecia garantir o fim irreversível do capitalismo selvagem e a sua substituição por um capitalismo de rosto humano.

Entretanto, do outro lado da “cortina de ferro”, a República Soviética (URSS), apesar do terror de Stalin, ou precisamente por causa dele, revelava um pujança industrial portentosa que transformava em poucas décadas uma das regiões mais atrasadas da Europa num potência industrial que rivalizava com o capitalismo ocidental e, muito especialmente com os EUA, o país que emergira da segunda guerra mundial como o mais poderoso do mundo. Esta rivalidade veio a traduzir-se na Guerra Fria que dominou a política internacional nas décadas seguintes. Foi ela que determinou o perdão em 1953 de boa parte da imensa dívida da Alemanha Ocidental contraída nas duas guerras que inflingira à Europa e perdera. Era preciso conceder ao capitalismo alemão ocidental condições para rivalizar com o desenvolvimento da Alemanha Oriental, então a república soviética mais desenvolvida. As divisões entre os partidos que se reclamavam da defesa dos interesses dos trabalhadores (os partidos socialistas ou social-democratas e os partidos comunistas) foram uma parte importante da Guerra Fria, com os socialistas a atacarem os comunistas por serem coniventes com os crimes de Stalin e defenderem a ditadura soviética, e os comunistas a atacarem os socialistas por terem traído a causa socialista e serem partidos de direita muitas vezes ao serviço do imperialismo norte-americano. Mal podiam imaginar então o muito que os unia.

Entretanto, o Muro de Berlim caiu em 1989 e pouco depois colapsou a URSS. Era o fim do socialismo, o fim de uma alternativa clara ao capitalismo, celebrado incondicional e desprevenidamente por todos os democratas do mundo. Entretanto, para surpresa de muitos, consolidava-se globalmente a versão mais anti-social do capitalismo do século XX, o neoliberalismo, progressivamente articulado (sobretudo a partir da presidência de Bill Clinton) com a dimensão mais predadora da acumulação capitalista: o capital financeiro. Intensificava-se a guerra contra os direitos econômicos e sociais, os ganhos de produtividade desligavam-se das melhorias salariais, o desemprego voltava como o fantasma de sempre, a concentração da riqueza aumentava exponencialmente. Era a guerra contra a social-democracia que na Europa passou a ser liderada pela Comissão Europeia, sob a liderança de Durão Barroso, e pelo Banco Central Europeu.

Os últimos anos mostraram que, com a queda do Muro de Berlim, não colapsou apenas o socialismo, colapsou também a social-democracia. Tornou-se claro que os ganhos das classes trabalhadoras das décadas anteriores tinham sido possíveis porque a URSS e a alternativa ao capitalismo existiam. Constituíam uma profunda ameaça ao capitalismo e este, por instinto de sobrevivência, fizera as concessões necessárias (tributação, regulação social) para poder garantir a sua reprodução. Quando a alternativa colapsou e, com ela, a ameaça, o capitalismo deixou de temer inimigos e voltou à sua vertigem predadora, concentradora de riqueza, aprisionado na sua pulsão para, em momentos sucessivos, criar imensa riqueza e destruir imensa riqueza, nomeadamente humana. Desde a queda do Muro de Berlim estamos num tempo que tem algumas semelhanças com o período da Santa Aliança que, a partir de 1815 e após a derrota de Napoleão, procurou varrer da imaginação dos europeus todas as conquistas da Revolução Francesa. Não por coincidência e salvas as devidas proporções (as conquistas das classes trabalhadoras que ainda não foi possível eliminar por via democrática), a acumulação capitalista assume hoje uma agressividade que faz lembrar o período pré-RR. E tudo leva a crer que, enquanto não surgir uma alternativa credível ao capitalismo, a situação dos trabalhadores, dos pobres, dos imigrantes, dos aposentados, das classes médias sempre-à-beira-da-queda-abrupta-na-pobreza não melhorará significativamente. Obviamente que a alternativa não será (nem seria bom que fosse) do tipo da que foi criada pela RR. Mas terá de ser uma alternativa clara. Mostrar isto mesmo foi grande mérito da Revolução Russa.

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1 Quando me refiro à Revolução Russa refiro-me exclusivamente à Revolução de Outubro porque foi essa que abalou o mundo e condicionou a vida de cerca de um terço da população mundial nas décadas seguintes. Foi precedida da Revolução de Fevereiro do mesmo ano que depôs o Czar e que durou até 26 de Outubro (segundo o calendario juliano então em vigor na Russia), quando os Bolsheviques, liderados por Lenine e Trotsky, tomaram o poder com as palavras de ordem “ paz, pão e terra”, “todo o poder aos sovietes”, ou seja, aos conselhos de operários, camponeses e soldados.

2 Pela Mão de Alice, originalmente publicado em 1994. Pode consultar a 9ª edição revista e aumentada publicada em 2013 por Edições Almedina, p.33-56.

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Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

PROBLEMAS DA CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO [ Parte 3 ]


Por Alberto Anaya Gutiérrez, Alfonso Ríos Vázquez, Arturo López Cándido, José Roa Rosas [ * ]


III - BALANÇO DO CHAMADO SOCIALISMO REAL


A URSS e a Europa oriental

A conformação do socialismo de Estado e do chamado "campo socialista" foi a cristalização final de processo iniciado peIa Revolução Russa de 1917. O traço burocrático-militar, presente na política externa da URSS, conferiu um acentuado carácter imperialista ao seu próprio Estado e às relações que estabeleceu com os países que formaram o bloco soviético. O modelo teve as suas origens numa concepção do poder, da sociedade, da democracia, da cultura e da ideologia, a saber: consolidar as bases dos privilégios da "nova classe", da burocracia. Produziu-se um íntimo conúbio entre economia, política e cultura, entre matéria, ideologia e poder.

As características centrais do socialismo soviético foram a estatização total da economia e a vida social, a completa eliminação da democracia política e as liberdades civis, e a ideologização extrema da cultura e da ciência. A sociedade estruturou-se em torno de uma pirâmide administrativa de poder ("nomenclatura"), cujo vértice burocrático e militar detinha enormes privilégios pelas funções que desempenhava, converteram-na num grupo explorador. Neste quadro, o povo foi excluído das decisões do poder, da gestão económica e do direito à organização independente. Mas apesar disso, obteve importantes conquistas em matéria de segurança e serviços sociais. Também a mulher se viu favorecida, mas a persistência da cultura patriarcal e o grande atraso na produção de bens para o lar generalizaram a dupla jornada feminina a ponto de eliminar praticamente o seu tempo livre e exclui-la da atividade cívica e cultural a um nível maior que no capitalismo. Este tipo de desenvolvimento estatal-burocrático afastou-se em questões filosóficas, sociais e políticas fundamentais do ideal socialista original e da teoria marxista clássica. Apesar disso, para sectores muito amplos da intelectualidade e do movimento popular dos países coloniais e atrasados foi muito atrativa, pois representava a materialização "real" dos ideais e princípios socialistas, e era vista como o único meio para alcançar um desenvolvimento socialmente mais justo que qualquer outro face ao capitalismo. Chegou-se a pensar, então, que este sucumbiria perante a superioridade do sistema soviético.

Tendo como antecedentes a constituição e o desenvolvimento da URSS, o bloco euro-soviético constituiu-se sem ter resultado de revoluções socialistas. Ao terminar a segunda guerra mundial, Estaline instalou governos pró-soviéticos e empenhou-se em converte-los em cópias fiéis da URSS. A "Doutrina Truman" (1947), que desencadeou a "guerra-fria", reforçou a política externa do Kremlin. Apesar da "desestalinização" do XX Congresso do PCUS (1956), a situação prevaleceu até ao derrube do sistema socialista em 1989-1991. O sistema era dominado peIa "nomenclatura" ou "nova classe" (Djilas), a qual excluía o povo da tomada de decisões, da gestão económica e do direito a organizar-se de forma independente. Nos anos setenta, o sistema entra em estagnação e sobrevém uma grave decomposição social. No económico, o derrube obedeceu principalmente à baixa produtividade do trabalho (excesso de pessoal, tecnologia obsoleta e falta de incentivos) e ao parasitismo burocrático. No político, social e cultural, a fusão do Estado e do partido anularia toda a possibilidade de uma vida democrática. Nestas circunstâncias, a reforma do sistema ficou limitada às iniciativas da cúpula dirigente.

A crise do estalinismo nos anos cinquenta, a ruptura sino-soviética e as invasões da Hungria e da Checoslováquia foram apenas avisos de uma crise maior, mas num contexto aparentemente mais favorável expresso - entre outros factos - na revolução cubana, na guerra do Vietname e na revolução cultural chinesa. Na década de setenta, vários países do sudeste asiático, de África e da América Latina foram sacudidos por movimentos revolucionários conotados ou aliados ao campo socialista. Simultaneamente, os acontecimentos internacionais dessa década foram bastante desfavoráveis ao capitalismo e ao imperialismo: a derrota no Vietname, o problema do petróleo e a crise mundial de 1974 -1975. No entanto, em vez de isto ter constituído o prólogo do triunfo mundial do socialismo de Estado, foi o início da sua queda. 

Nos anos setenta, o socialismo de Estado não se comporta melhor que as economias industrializadas do Ocidente. A economia da URSS e do campo socialista entra numa etapa de declínio e estagnação. Baixou acentuadamente o nível de vida da população e apareceram sintomas muito graves de decomposição social, como a generalização do alcoolismo, do absentismo laboral, da corrupção administrativa e do mercado negro, fenómenos que se tornaram visíveis na década seguinte. No plano externo, a crise se expressou principalmente nas guerras entre países socialistas e nos subsídios a governos envolvidos nelas, o que gerou o repúdio do povo soviético e agravou ainda mais a frágil economia soviética. No plano interno, estava-se perante o esgotamento do padrão de desenvolvimento económico herdado da etapa estalinista (sustentado na extrema centralização das decisões e controlo, no desbaratar dos recursos materiais e da força de trabalho, que privilegia a indústria pesada e militar em detrimento da agricultura e da indústria de bens de consumo), sustentado a qualquer preço, apesar de as condições terem mudado. Este padrão pode funcionar nas difíceis condições de atraso, mas deixou de funcionar ao aparecerem condições económicas, sociais e culturais que requeriam um desenvolvimento sustentado na mudança tecnológica, no incremento da produtividade do trabalho, a descentralização das decisões e o uso cuidadoso dos recursos naturais e do ambiente. Dito de outro modo, o campo socialista não levou a cabo a necessária transição para o socialismo desenvolvido. 

No campo estritamente económico, este processo foi bloqueado principalmente peIa baixa produtividade média do trabalho e sua tendência descendente. Isto foi resultado tanto do excesso relativo de pessoal e da utilização de tecnologia obsoleta em quase todos os ramos industriais (à excepção do militar), como da falta de verdadeiros incentivos ao trabalho e à eficiência (cumpriam-se formalmente os planos, e premiava-se a lealdade política e o conformismo social em sobreposição ao compromisso com o trabalho). A acrescentar a isto, o parasitismo burocrático absorvia a maior parte do excedente económico, a enorme despesa militar consumia grande parte do produto nacional (entre 15 e 20%) e concentrava os melhores recursos produtivos, em vez de financiar a reestruturação económica e libertar recursos para melhorar as condições de vida da população.

A rigidez da organização económica teve a sua correspondente na vida política, social e cultural. Em todas as partes a fusão do Estado e do partido coincidiu com a total supressão da democracia. Este facto afectou particularmente os sectores mais dinâmicos da população, generalizou o conformismo e impediu a necessária transformação do sistema. Nestas condições, as possibilidades de o reformar estavam confinadas às iniciativas da própria cúpula dirigente. A esta evolução interior juntaram-se as consequências das transformações mundiais. Desde finais dos anos setenta a revolução informática teve grande impacto sobre o desenvolvimento das forças produtivas, as comunicações e os modos de vida e de consumo. Surgia a nível mundial um novo tipo de economia baseado na automatização, na flexibilidade, na qualidade e na descentralização. Estes factos tinham lugar num mundo cada vez mais internacionalizado e competitivo, que impunha a todos os países a necessidade de se adaptarem ou de correr o risco de isolamento e de decomposição económica e social. 

As reformas tiveram lugar em meados dos anos oitenta, mas no quadro da crise económica, do crescente protesto social e político e da pressão das novas condições mundiais. Fracassou a tentativa de reativar a economia e ampliar o consenso social. Pelo contrário, agudizaram-se as contradições entre as forças apostadas na restauração capitalista, a resistência da burocracia em perder os seus privilégios e a débil oposição dos sectores que aspiravam a uma mudança em direção de um socialismo democrático. Nestas circunstâncias, o derrube do socialismo foi inevitável.

China 

A experiência da China seguiu um caminho distinto do soviético. Convertido de facto em "colónia internacional", de natureza semi-feudal e sem as condições para um desenvolvimento capitalista próprio, o país teve que defrontar uma longa e penosa guerra popular revolucionária (1927-1949) e encontrar o seu próprio caminho: o PCCh compreendeu que não podia Ievar a cabo uma revolução socialista "clássica". No texto "Acerca da nova democracia", Mao Tse-tung caracteriza a revolução chinesa como um processo em duas etapas sem ruptura: "a ditadura da aliança de todas as classes revolucionárias chinesas dirigidas pelo proletariado", e "a reorganização da sociedade socialista na China". Depois da guerra revolucionária, o país estava devastado. Procedeu-se à coletivização do campo peIa via oposta a empregada na URSS. A industrialização também seguiu um caminho diferente: a indústria foi levada ao campo. No período do " Grande Salto em Frente" (1958-1965) conseguiu-se impulsionar o desenvolvimento económico e a democracia socialista mediante a formação das comunas agrícolas (Ta chai) e industriais (Ta ching). Não obstante, com o objectivo de corrigir o desenvolvimento de tendências burguesas no partido e no Estado, Mao teve que impulsionar a Revolução Cultural (1966-1967), a qual postulava duas questões centrais: 1) corrigir as tendências para a burocratização, e 2) retificar o caminho da construção socialista. A concepção integral do socialismo chinês prevaleceu até à morte de Mao (1976). Nos anos seguintes redefiniu-se o rumo. No final dos anos setenta, a China empreendeu a mudança com fortes traços de restauração capitalista. 

O Presidente Deng Xiaoping (1979) delineou quatro princípios cardinais que definiam o futuro desenvolvimento sob as normativas de: 1) planificação socialista, 2) ditadura do proletariado, 3) liderança do Partido Comunista da China, e 4) continuidade ideológica baseada no marxismo-Ieninismo-pensamento Mao Tse-Tung. A República Popular da China abria-se ao mundo estabelecendo relações com 115 países e aderindo a 12 organizações internacionais. A nova estratégia da China ficou definida no Plano das Quatro Modernizações, cujos objetivos eram: revigorar os quadros políticos e profissionais; uma maior produtividade rural; uma administração industrial diferente e eficaz; a ampliação do comércio externo; o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e a criação de uma grande corrente de investimento para o país. Os esforços do Estado centravam-se numa economia socialista de mercado, que se associava a uma política favorável ao investimento estrangeiro, à expansão do mercado internacional e ao desenvolvimento das áreas urbanas.

Introduziu-se na planificação uma maior participação do mercado na economia. A China começou a participar no mercado mundial, incrementou as suas exportações, atraiu vultuosos investimentos estrangeiros, estabeleceu zonas especiais de desenvolvimento económico, impulsionou os investimentos internos e pôs a sua infra-estrutura ao serviço do desenvolvimento. Os resultados foram impressionantes. Durante as décadas de oitenta e noventa, o PIB cresceu a uma taxa média de 10% e o PIB per capita cresceu a uma taxa de 80%: duzentos milhões de pessoas superaram o nível de pobreza e a China se converteu na segunda economia mundial, ultrapassando o Japão, pelo menos em paridade de poder de compra. O poderio económico da China permitiu-lhe superar da melhor maneira a crise asiática de 1997-1998, que fustigou os mercados financeiros e cujo epicentro se deu na Tailândia, com a desvalorização bath. No 15º Congresso do Partido Comunista, em 1997, se reconheceu a iniciativa privada como um sector importante na economia. Em Março de 1999 a Constituição Chinesa reconheceu a propriedade privada o princípio de legalidade. Em Outubro de 2003, a China se converteu no terceiro país a colocar em órbita um ser humano. Este lançamento, segundo palavras do presidente Hu Jintao, constitui um passo histórico do povo chinês no seu empenho em alcançar o cume da ciência e da tecnologia mundiais. A economia chinesa tem crescido nos últimos anos (2003-2005) a uma taxa média de 9 por cento. 

Vietname 

A experiência socialista do Vietname teve um paralelismo com a China. Um processo revolucionário vitorioso marca a etapa posterior, no difícil contexto da "guerra-fria". A revolução vietnamita estende-se dos primeiros anos do pós-guerra até 1975. De facto, o processo revolucionário no Sul entrelaçou-se em 1960 com os primeiros passos na construção do socialismo no Norte. Em 1954 foi imposto à França um acordo de paz que deu origem ao regime comunista no Vietname do Norte, que desde esse ano foi dominado por três problemas centrais: a) a consolidação do poder, b) a reconstrução e desenvolvimento económico, y c) a reunificação do Sul para formar um Estado socialista unitária. As acões fundamentais com vista à construção do socialismo foram: reforma agrária em grande escala, coletivização do campo e nacionalização progressiva da indústria. A guerra revolucionária no Sul seguiu a mesma senda do Norte. Em 1975 o povo vietnamita tinha logrado derrotar o país mais poderoso do mundo. Apesar da devastação, o triunfo e a unificação permitiriam avançar nos objetivos iniciais da construção socialista: a reforma agrária e a coletivização do campo, a reconstrução económica e o impulso do desenvolvimento industrial. Os sucessos foram importantes, embora limitados. 

O colapso soviético induziu uma severa crise económica e financeira na primeira metade dos anos noventa, que provocou uma crise política. O governo e o Partido vietnamitas avançaram com um conjunto de reformas. No plano económico: reordenar as empresas estatais não rentáveis; dissolver entidades ineficientes; impulsionar e fortalecer a economia mista; consolidar as cooperativas no campo; permitir ao sector privado desenvolver-se, embora sob controlo do governo; e explorar ao máximo as próprias forças para evitar assistência estrangeira. Até agora estas reformas não ultrapassaram os limites impostos pelo governo e favoreceram o desenvolvimento agrícola (para abastecimento interno e exportação). O Vietname ainda regista acentuados sinais de pobreza e atraso: pobreza rural elevada, diferenças relevantes entre a cidade e o campo, a empresa estatal é deficiente, a ciência e a tecnologia registam atrasos, etc. Finalmente, no quadro da situação descrita, está-se levando a cabo no Vietname um processo de renovação de gerações muito acelerado. Um numeroso sector de jovens preparados está tomando um papel preponderante nos comandos do poder político e do Partido. O antídoto que se está aplicando para que esse grupo não se converta numa tecnocracia, consiste no requisito de que estejam solidamente forjados no campo ideológico e político na linha da construção do socialismo. 

Coreia do Norte 

A experiência socialista da Coreia tem os seus antecedentes em dois aspectos significativos: a prolongada ocupação japonesa da Península e a sua situação geopolítica no contexto da "guerra fria". De 1900 a 1930 organizam-se os primeiros grupos políticos para a libertação do território nacional. A partir de 1930, inicia-se a luta político-militar encabeçada por Kim Il Sung contra a invasão japonesa. Em 1945, por acordo dos Aliados (URSS, EUA e Grã-Bretanha), a Península foi dividida em duas partes. Nesse mesmo ano foi fundada a República Popular Democrática da Coreia e o Partido do Trabalho da Coreia, e instaurado um regime democrático e popular. Entre 1945 e 1950 foi impulsionada a formação generalizada de organizações de massas de carácter nacional e sectorial, a transformação socialista da economia e do Estado, e o fortalecimento das forças armadas.

A guerra de libertação (1950-1953) procurava expulsar os EUA e consumar a unificação do país. O imperialismo norte-americano reagiu com todo o seu poderio militar e económico. Pretendia conquistar a Coreia do Norte para destruir o regime socialista e implantar aí o capitalismo. A República Popular Democrática da Coreia conseguiu estabelecer um acordo de paz. A Coreia ficou devastada. De 1953 até à data se empreendeu a reconstrução da sua infra-estrutura económica e das suas cidades, e conseguiu-se criar emprego e habitação suficiente para toda a população, assim como educação e cuidados de saúde gratuitos. Os benefícios conseguidos incluem também o fornecimento de água e eletricidade. Desde 1945 a industrialização privilegiou a indústria pesada, considerando que essa orientação garantiria a longo prazo a consolidação do regime socialista. No mesmo sentido incorporaram-se ao cultivo a totalidade das terras aráveis disponíveis. O nível de cultura geral elevou-se, conseguindo que toda a população tenha acesso a praticar as artes, a literatura, etc. A função central do partido consistiu em construir e manter a unidade ideológica socialista. Essa foi a razão fundamental para manter a via coreana do socialismo, apesar da constante agressão do imperialismo, do derrube do campo soviético ou inclusive da sua própria crise económica que entre 1996 e 2002 fez cair de forma acentuada os níveis de bem-estar social já então alcançados.

Depois de superar os problemas económicos desses difíceis anos, a economia voltou a crescer e permitiu retomar programas estratégicos para o desenvolvimento das forças produtivas, reforçar a defesa do país e solucionar as carências nos níveis de consumo e de vida do povo coreano. Isto significou a abertura de uma nova e vigorosa etapa na construção do socialismo na República Popular Democrática da Coreia. 

Cuba 

A revolução também marca profundamente a experiência socialista cubana. A dependência económica da ilha relativamente aos EUA durante a primeira metade do século XX, tornou-se praticamente absoluta. A riqueza estava concentrada em poucas mãos, o desemprego era muito grande, assim como era muito acentuada a falta de instituições educativas e instalações de saúde, assim como da rede de comunicações. A corrupção envolvia toda a maquinaria governante. As tensões e conflitos sociais eram intensos e frequentes. A ditadura de Fulgêncio Batista (1952-1958), corrupta e brutal, precipitou a crise revolucionária. A primeira tentativa (1953) fracassou, mas entre 1957 e 1959 a revolução triunfaria. Originalmente os seus objetivos fundamentais não eram socialistas. A viragem radical da revolução obedeceu pelo menos a dois aspectos centrais: a mobilização das massas rurais e urbanas, que as sensibilizou em defesa da revolução; e as pressões dos ataques perpetrados pelo imperialismo norte-americano. Face ao bloqueio comercial dos EUA, Cuba teve que estreitar relações económicas e de outro tipo com a URSS. Nas quase três décadas que se seguiram, a construção do socialismo foi marcada por avanços diferenciados. Coletivizou-se o campo e modernizou-se a produção de açúcar. Desenvolveram-se esforços para criar novas indústrias e reduzir assim a dependência do açúcar. 

As reformas sociais incluíram a melhoria da educação pública, da habitação, da saúde, dos serviços médicos e das comunicações. Da mesma forma, promoveu-se firmemente a igualdade racial e os direitos das mulheres. Impulsionou-se em grande escala a produção cultural e o acesso à cultura. Combateu-se e reduziu-se a corrupção. O derrube da URSS fez recrudescer os problemas da Ilha. A economia caiu entre 1989 e 1996 até um terço do seu nível. o governo empreendeu medidas para reordenar a economia e explorar novas possibilidades de crescimento. Facilitou-se a abertura comercial e financeira externa. Fixou-se como limite os 49% de investimento estrangeiro no capital das empresas. A liberalização sob o esquema de economia mista abrangeu praticamente todos os sectores e ramos económicos. A crise tinha sido de tal magnitude que estas medidas tinham como objectivo primordial atender com urgência os problemas alimentares da população. A abertura externa foi acompanhada de um amplo e vigoroso processo de liberalização parcial da economia interna. O governo e o povo de Cuba empenharam-se nestes últimos anos em preservar as conquistas sociais da revolução e da construção do socialismo: a educação gratuita, a saúde e as possibilidades de emprego para toda a população.

A reativação e reformulação do poder popular foi uma medida da mais alta prioridade. O seu aspecto mais destacado foi talvez a reanimação dos Comités de Defesa da Revolução (CDR's), conferindo-lhes funções de carácter social como a atenção à saúde nas comunidades, ações sanitárias, etc, além das tradicionais funções de controlo e vigilância do processo revolucionário. As mudanças a nível mundial em curso estão impondo novos desafios a todas as regiões e países, e muito especialmente àqueles que se empenham em preservar o projecto socialista. A experiência da construção do socialismo em Cuba não escapou a estas circunstâncias, mas o seu desempenho depois de superar o "Período Especial" em 1996 foi coroado de êxito.

Com efeito, depois da profunda queda da economia cubana a uma taxa média anual de 7.8% no período de 1991-1995, as reformas introduzidas pelo governo revolucionário permitiram retomar com novo ímpeto a senda do crescimento, que entre os anos de 1996 e 2000 registou uma taxa média anual de 4.6% e entre 2001 e 2005 foi de 4.2%. Isto tornou possível avançar com amplos programas de infra-estrutura, de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, de extensão dos serviços básicos para toda a população, assim como de abastecimento massivo de bens de equipamento domésticos para as famílias cubanas, o que representou um significativo aumento do seu nível de vida. Também permitiu estabelecer acordos estratégicos de cooperação com diversos países para apoiar o desenvolvimento da saúde e da educação nesses países, e para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas em Cuba.

Com a chegada de Bush ao governo dos Estados Unidos e o atentado de 11 de Setembro de 2001 contra as torres gémeas em Nova York, agravaram-se as políticas do Império contra a Ilha com a intenção de derrotar a Revolução Socialista. Foram empreendidas ações grotescas para endurecer o bloqueio e asfixiar a economia cubana, tais como: a centenas de milhar de cubanos residentes nos Estados Unidos foi proibido visitar os seus familiares em Cuba, autorizando essas visitas apenas uma vez em cada três anos e não a todos; Ia ajuda familiar foi reduzida quase a zero; não se cumpriram acordos sobre a emigração ilegal; foram recusadas propostas de cooperação em temas vitais como a luta contra o tráfico de drogas e de pessoas e para dificultar e impedir acções terroristas; multiplicaram-se as calúnias, classificando Cuba de país terrorista, inventaram-se mentiras sobre o fabrico de armas biológicas e planos de guerra eletrónica com o propósito de interferir nas comunicações do governo. Os Estados Unidos destinaram somas milionárias para interferir nas transmissões de rádio e televisão com o uso de aviões, emitindo transmissões contra-revolucionárias. O objectivo é tentar arranjar pretextos para uma agressão genocida contra o povo de Cuba.

Em meados de 2003 eliminou-se o dólar nas transações entre empresas e se implantou um controlo de câmbios no Banco Central para as operações externas. No passado, a participação do dólar excedia os 90%, enquanto na atualidade se mantém à volta de 30%, o que diminui substancialmente o risco derivado das ameaças do governo dos Estados Unidos. Durante o primeiro semestre de 2005 a Ilha enfrentou uma profunda seca, Ia escassez de energia eléctrica e as consequências do furacão Denis. No entanto, a capacidade de resistência e o retorno da economia cubana a um novo ciclo de crescimento demonstrou as suas capacidades. Em 2005 a economia cresceu a uma taxa de 11.8 % relativamente a 2004. Tal desempenho baseia-se no incremento dos ramos produtivos da economia, entre os quais destacam a construção, as comunicações, o comércio, os serviços, a produção de crude nacional e gás, eletricidade, a ferrosa, a metalúrgica não ferrosa, a de confecções, a alimentar e a de bebidas e tabaco. Os rendimentos do turismo cresceram cerca de 11.5 % relativamente a 2004. Mesmo assim, desenvolvem-se esforços para perfurar e por em operação novos poços de petróleo e de gás que possibilitem ao país um avanço para o auto-abastecimento. Se desenvolveu um programa de melhoria das redes eléctricas do país, que inclui a incorporação de uma instalação geradora de eletricidade de ciclo combinado e a adaptação de uma instalação termoeléctrica, com o fim de que para o segundo semestre de 2006 as famílias disponham do dobro de capacidade de energia eléctrica, comparada com a que contam atualmente.

Em matéria de habitação conta-se atualmente com 7 mil 300 habitações terminadas se acabaram de se reparar Ias casas afetadas pelo furacão Denis. Está programado construir mais de 10 mil novas das totalmente destruídas e se continuará a construção de novas habitações, até alcançar pelo menos 30 mil adicionais. Se ampliaram os utensílios domésticos para as famílias cubanas. Se trabalha na ampliação e remodelação da produção de iogurte de soja, ovos, carne de porco, cacau, de chocolate de leite, de café e de massas alimentícias. Se está investindo no transporte de carga por caminho-de-ferro. Estão em processo de aquisição equipamentos portuários, camiões de transporte urbano, metais para vias-férreas, e equipamentos e peças para camiões. De igual forma, para os sectores de saúde e educação. Foram aumentados os salários em alguns sectores da economia cubana. Nas exportações, destacam-se pela sua importância o níquel, os medicamentos genéricos e biotecnológicos, o tabaco e o açúcar, enquanto nos serviços desempenham importante papel os serviços médicos e o turismo.

Por último, como parte dos acordos derivados da ALBA (Alternativa Bolivariana para a América, mecanismo para criar vantagens cooperativas entre as nações participantes), criou-se uma filial bancária de um banco cubano na Venezuela e foi autorizada a abertura da filial de um banco venezuelano em Cuba. O acordo entre a República Bolivariana da Venezuela e a República de Cuba, subscrito sob os princípios da ALBA, constituiu um passo considerável no caminho da unidade e da integração entre os povos da América Latina e do Caribe. O projeto em marcha da Petrocaribe constitui outro passo de fraternidade e solidariedade entre estes dois povos e governos.

***A reforma da URSS começou em meados dos anos oitenta, quando o declínio agudo da economia, o crescente protesto social e político e a pressão internacional a tornaram inevitável. Se tinha o propósito de transitar ao socialismo desenvolvido, chegou tarde. A reforma fracassou rotundamente nos seus propósitos de reativar a economia e ampliar o consenso social. O que sem dúvida provocou, foi o gerar de tensões entre um processo de restauração capitalista em condições mais adversas, a renúncia das forças que aspiravam a uma viragem na direção do socialismo desenvolvido, assim como o recrudescimento dos movimentos independentistas e dos autonomismos regionais, e uma situação caótica de decomposição social e estatal. Com excepção da China, da Albânia, de Cuba, da Coreia do Norte e do Vietname, estes processos estenderam-se a tudo o que fora o campo socialista. 

O mais significativo para os que mantemos o objectivo da luta pelo socialismo, é que estes processos foram socialmente muito dolorosos e que de forma alguma resolveram, nem é previsível que possam resolver, os principais problemas do que foi o socialismo de Estado. Neste sentido, as experiências concretas do "socialismo real" confirmam que todo o projecto socialista com possibilidades de êxito está necessariamente associado a quatro premissas fundamentais: 1) o estabelecimento de uma organização económica eficiente baseada no continuo desenvolvimento das forças produtivas; 2) a democratização das decisões económicas, mas também e necessariamente daquelas que incidem sobre a vida política, social e cultural em geral; 3) a disciplina laboral fundamentada em inquestionáveis motivações materiais (incentivos económicos) e psicológicas (a confiança do povo num projecto que sente seu porque participa na tomada das decisões fundamentais); 4) a conversão da ideologização extrema num sistema de valores éticos e sociais decididos e compartilhados por toda a população. O socialismo democrático como genuína expressão do poder das massas populares, só será possível com base na cultura socialista de massas, a qual é absolutamente oposta à burocratização das vanguardas e aos privilégios de qualquer tipo.

[*] Responsáveis do Partido do Trabalho (México).   Comunicação apresentada no X Seminário "Os partidos e uma nova sociedade" Cidade  do México, 17-19 de Março de 2006. 


Tradução de Carlos Coutinho.