Por Wilson Correia[*]
Introdução
“En los utopistas ni todo es quimérico: algunos han sido reveladores, otros han actuado como estimulantes o fermento” (RIBOT).
Na vida cotidiana, quase sempre tomada pelas preocupações imediatas, é como que natural ver o homem não dar muito valor àquilo que escapa do âmbito dos problemas mais prementes. Uma dessas coisas é a utopia.
Por não se prestar à utilidade, às coisas postas à mão, o homem comum parece não ter clareza sobre a utopia. Por isso, muitas vezes, a utopia é entendida como sonho, algo do plano do quimérico, do irrealizável.
É até compreensível quando esse entendimento vem das pessoas não dadas à investigação científica e filosófica sobre o sentido das coisas. Porém, quando a mesma compreensão aparece na boca de alguém dado à busca e à produção do conhecimento, então é o caso de se perguntar: essa pessoa não está fazendo uma leitura apressada sobre o sentido da utopia?
Então, a primeira providência de quem deseja estudar a utopia de maneira rigorosa é não colocar todas as manifestações históricas no mesmo balaio. A República, de Platão, Cidade do Sol, de Campanella, Nova Atlântida, de Bacon, o pensamento rousseauísta, as idéias iluministas e as teses dos socialistas utópicos, por exemplo, são trabalhos do espírito humano que apresentam especificidade para com a qual é desejável, no mínimo, a atitude de respeito.
Na esteira da consideração anterior pode ser incluída a obra renascentista A Utopia, de Tomás Morus, sobre a qual podemos indagar: ela é a elaboração de um sonho ou é um trabalho de contestação da realidade social?
Para tentar averiguar se a utopia moreana pode ser qualificada de sonho, vou me valer de Freud, aquele que melhor investigou a atividade onírica. Para tentar perscrutar a utopia como contestação, vou me deter na análise da própria obra A Utopia, de Morus. Esse, aliás, é o objetivo do presente artigo.
A Utopia moreana
O termo utopia será empregado neste artigo na acepção de não-lugar-feliz (ou-topos, não lugar; u-topos, lugar feliz). É um termo que nomeia a felicidade ainda não concretizada pelo homem em nenhum lugar. Mas isso não autoriza o entendimento de que a utopia possa ser um surto de pensamentos absurdos, meramente alegóricos. Ao contrário, eles podem ser vistos como o corolário de um trabalho meticuloso do exercício de pensamento, o qual não dispensa a contribuição da imaginação, aquela que Einstein tanto privilegiou em seu trabalho de produção científica ao notar o valor da “invenção” (apud POPPER, 1975, p. 525).
A Utopia de Tomás Morus é, ao estilo platônico, um diálogo entre o próprio Morus e um inveterado navegador português, chamado Rafael Hitlodeu. Uma leitura acurada da obra moreana evidenciará a profundidade de pensamento que o diálogo revela, no qual Hitlodeu funciona como um alter ego do autor.
Na primeira parte da obra, Morus faz uma ampla análise sobre a sociedade inglesa do século XVI, a qual funciona como uma espécie de diagnóstico da sociedade inglesa de que fazia parte e que se encontrava combalida pelo desprazer e pela falta de liberdade.
Essa crítica moreana se estende a três dimensões da sociedade criticada, a saber: a composição social, o aspecto político e a dimensão econômica.
Do ponto de vista da composição social, a Inglaterra estava “fracionada” entre nobres, “artífices da corrupção”; clero, “os primeiros vagabundos deste mundo”; os soldados, que viviam na “ociosidade”; e os miseráveis, cujo destino era o de ser “enforcados com todas as formas de processo” (MORUS, 1990, p. 36, 49, 34 e 37). Nessa composição social, não havia a liberdade necessária à vida cidadã.
Na perspectiva da política, o que se via era a figura do príncipe absoluto, cujo axioma moral expressava o entendimento de que o soberano era “o proprietário universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os súditos”, os quais dependiam “do bel-prazer do soberano” (MORUS, 1990, p. 58). Aí a liberdade tinha sido abortada na raiz. O soberano era o dono da vida e da morte das pessoas. A palavra dele era lei.
Na esfera econômica, o “direito de propriedade” prevalecia acima de tudo e de todos. Como decorrência da propriedade, assistia-se à busca do “lucro imediato”, a “carestia dos víveres” e o “luxo e as loucas despesas que este ocasiona” (MORUS, 1990, p. 65, 39, 30 e 39). Desse modo, a propriedade estava funcionando como fonte de todos os males pelos quais os ingleses coetâneos de Morus se viam passando.
Segundo Morus, “A causa principal da miséria pública é o número excessivo de nobres, ociosos zangões que vivem à custa do suor do trabalho de outrem, e que no cultivo das terras exploram os rendeiros até o osso, para aumentarem seus rendimentos” (MORUS, 1990, p. 34).
Em face dessa realidade, Morus propõe o que ele denomina de “caminho oblíquo” (MORUS, 1990, p. 62), segundo o qual a tarefa primeira da “filosofia oblíqua” não seria a de elaborar um programa político, mas dizer as mesmas coisas numa linguagem diferente, utópica.
No segundo livro de A Utopia, o objeto é o relato da vida feliz do “lugar-nenhum”, a ilha tornada o mais desejável dos oásis possíveis. A capital dessa ilha, era Amaurota, a “cidade dos sonhos”, das “nuvens”, o “castelo no ar”. O rio Anidro, sem água, banhava a capital. Alaopolitas, “cidadãos sem cidade”, habitavam-na. Os governantes eram os ademus, “aqueles que não tem povo”. Os vizinhos dos utopianos são os acórios, “homens sem país” (MORUS, 1990, passim).
Dessa maneira, ao descrever, em detalhes, a vida do povo utopiano, Morus faz a defesa da felicidade humana, resultante de um estilo de vida baseado na razão e na organização social fundada na cooperatividade. Morus tenta demonstrar com sua filosofia oblíqua que o desejo de felicidade pode qualificar uma “comunidade de vida”, no prazer e na liberdade. Esse desejo ele o expressa com a última frase de seu livro “Desejo-o mais do que espero” (MORUS, 1990, p. 169).
O sonho segundo Freud
Para Freud, “A interpretação dos sonhos é a estrada real para um conhecimento das atividades inconscientes da mente” (FREUD, 1969, p. 608). Foi com tal certeza que ele se dedicou ao estudo do sonho, chegando à conclusão de que o sonho realiza um desejo: “El sueño es la realización (disfrazada) de um deseo reprimido (FREUD, 1969, p. 340).
Dessa maneira, o primeiro passo para se compreender o trabalho onírico é ter clara a distinção entre conteúdo manifesto e conteúdo latente envolvido nessa atividade. O conteúdo manifesto é o que constitui o relato do sonho. O conteúdo latente é o que dá significado ao sonho. Esses conteúdos constituem o contexto do desejo.
“Para nosotros se interpola, em efecto, entre el contenido onírico y los resultados de nuestra observación un nuevo material psíquico: el contenido latente o ideas latentes del sueño que nuestro procedimiento analítico nos lleva a descubrir. De este contenido latente y no del manifesto es del que desarrollamos la solición del sueño” (FREUD, 1948, p. 398).
No contexto do sonho, quatro são as atividades que podem ser verificadas: a condensação, o deslocamento, a representação e a elaboração secundária.
A condensação refere-se à atividade que impede a nítida correspondência entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. Pelo fato de o conteúdo latente ser muito maior do que o conteúdo manifesto, o sonho pode representar inúmeros motivos ou desejos. Assim, uma gama variada de desejos pode ser condensada num só sonho: “La constituición de personas colectivas y mixtas es uno de los principales medios de que se sirve la condensación onírica” (FREUD, 1948, p. 406).
O deslocamento relaciona-se com o disfarce que o sonho realiza. Assim, a acentuação, o interesse ou a intensidade de uma representação torna-se susceptível de se deslocar para outras, ligadas a elas por uma cadeia associativa. “Resultado de este processo es que el contenido manifesto no se muestra igual al nódulo de las ideas latentes, no reproduciendo el sueño sino uma deformación del deseo onírico inconsciente” (FREUD, 1948, p. 413).
O processo de representação consiste na transformação dos pensamentos oníricos ou conteúdo latente para imagens do conteúdo manifesto. Por essa atividade, um sonho aproxima duas manifestações de desejos diferentes de maneira imagética. Para o indivíduo que sonha, essas imagens aparecem de forma confusa, e, ao relatar o sonho, ele não sabe se de fato é essa ou aquela imagem que apareceu:
“Así, pues, allí donde el sujetio del sueño introduce en el relato del mismo una habitacón, etc., no muestra o sueño tal alternativa, sino simplemente uma yuxtaposición, y lo que al introducir la alternativa queremos significar en nuestro relato del sueño es la vaguedad e imprecisión de un elemento del mismo. La regla de interpretación aplicable a este caso consiste em situar em un mismo plano los diversos miembros de la aparente alternativa y unirlos com la cunjunción copulativa ‘y’” (FREUD, 1948, p. 417).
A elaboração secundária é atividade que ordena, dá lógica e coerência ao conteúdo do sonho, de modo a apresentá-lo num todo aceitável e compreensível. Essa atividade escolhe, remodela e acrescenta algo ao conteúdo do sonho, sendo o efeito da censura. O próprio Freud conta que há cadeias de pensamentos divergentes, “radicalmente opuestas”, com “elementos iguales, pero contrários” (FREUD, 1948, p. 419) que se fazem representar no sonho manifesto.
Ao procurar demonstrar o trabalho complexo do sonho, Freud teve sempre presente que o sonho é a realização de um desejo, assinalando que o sonho “Es un acabado fenômeno psíquico, y precisamente una realización de deseos” (FREUD, 1949, p. 320). E o desejo está relacionado a essa dinâmica do trabalho onírico, fazendo parte da força inconsciente que busca realização.
Utopia moreana: sonho ou contestação da realidade?
O termo realidade pode significar: do francês realité, própria e especificamente, o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou dela independentes; do latim medieval realitas, realis, de res (coisa), termos que dizem respeito às coisas e fatos que se opõem ao fictício, ilusório, fantasmagórico ou aparente
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Quando se fala que a utopia de Morus é uma crítica ao real, ao real que não abrange a totalidade do existente, o termo está sendo empregado na primeira acepção do parágrafo anterior. Porém, quando se afirma que a utopia de Morus recria o real, o termo real é empregado na acepção inversa da primeira, pois se trata de um real que somente passa a existir como produto da mente humana e que dela depende. Assim, a utopia é o resultado desses dois tipos de trabalho mental, na medida em que parte do concreto percebido para criar algo que jamais fora percebido.
Em Freud, a realidade do sonho permanece fundada no inconsciente e no interior da mente. Ainda que condense, desloque, represente ou elabore secundariamente o conteúdo da vida vivida, ele perdura como atividade psíquica. Em Morus a realidade é sempre exterior à mente, a qual é criticada não pelo trabalho do inconsciente, mas segundo a vigilância da razão cônscia de si e do entorno natural e humano que toma como objeto de análise, a qual qualifica pela regras da lógica.
Em Morus a realidade exterior não depende da ação da mente humana. Em Freud, o trabalho onírico é que é o responsável pelo produto chamado de sonho, incluindo a latência e o relato consciente dele. Desse modo, o real utópico só existe e se justifica em função da realidade exterior. Assim, a contestação do real vivido pela elaboração do real utópico consiste na recriação do primeiro, em que este suplante aquele pela perfeição.
Em Freud o prazer está relacionado ao processo de diminuição de tensões (LAPLANCHE, 1967, p. 466/7), sendo um dos pólos do conflito psíquico que se estabelece no interior da mente entre id, ego e superego. Em Morus o prazer constitui um princípio moral, regulador da ação e equilibrador do agir externo, o qual, um produto epistêmico, deve ser consciente e racionalmente apreendido. Ademais, em Morus o desejo não é apenas impulso ou o querer o que não se tem, mas o motivador da ação rumo ao alcance da felicidade utópica mediante o trabalho racional.
Se em Freud a imaginação é tão-somente reprodutora, uma vez que o sonho não vai além do vivido, em Morus a imaginação é criadora, dado que re-cria estilo existencial e modelo societário que atendam ao anseio humano por realização e felicidade. Em Morus, pois, a razão trabalha de maneira clara e transparente, em vigília, não desprezando a interferência da racionalidade que dá conta, por completo, da realidade com que trabalha, critica e inventa.
Em Freud, o sonho é produto da pressão do conteúdo latente ou do desejo reprimido, prevalecendo em estado de sonolência. Em Morus, o trabalho da razão criadora, a utopia, é resultado do desejo que não se satisfaz com o que a realidade oferece, necessitando, pois, para permanecer realizável, da criação de uma outra realidade, sob a vigilância da consciência.
Desse modo, esta análise não nos permite tratar coisas tão díspares como se fossem a mesma coisa, a saber: o sonho, de acordo com Freud, e a utopia, segundo Morus. Assim, quando alguém diz que a utopia é um sonho, é preciso entender de que sonho ele está falando. Na perspectiva da psicanálise parece-nos que não pode ser.
Ao modo de conclusão
O exposto anteriormente nos garante no entendimento de que, na perspectiva da teoria dos sonhos de Freud, não é possível reafirmar a utopia moreana como sonho. Ela é uma manifestação da inteligibilidade humana, processo e produto do exercício do pensamento.
A utopia moreana, ainda que possa ser considerada um produto da razão que permite em paralelo o trabalho da faculdade da imaginação, constitui-se em um trabalho de crítica e contestação da realidade natural, humana, social, o qual não vai além daquilo que se acomoda na concretude de tudo o que pode ser percebido pelo ser humano.
O pensamento utópico realiza esse trabalho de crítica contestadora por meio da criação de um outro de si dessa realidade vivida, agora na forma de não-lugar, de felicidade ainda não experimentada, de modo de vida ainda não concretizado pelo homem e pela mulher. Aí a fórmula oblíqua da filosofia utopista moreana, que não pretendeu ser uma teoria da reforma social.
De outra maneira, e buscando a inspiração nas lições que aprendemos com a utopia de Morus, talvez possamos dizer que a utopia, em seu sentido lato, é o tipo de pensamento que rompe a desordem como ordem do real, hoje, amanhã e sempre, para propor o novo, razão pela qual a tese fundamental da mensagem utópica, que aponta para a possibilidade de recriação da vida e da realidade, possa ter em Morus uma relevante fonte inspiradora.
Como foi dito em outro lugar deste artigo, a utopia é a expressão da esperança. A esperança é o motivo da vida, a qual pode renovar-se e ser recriada incessantemente. Quem perder a esperança, ao que parece, bem que poderia encomendar a própria máxima lapidar.
Bibliografia
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MORUS, T. A Utopia. 7. ed. Trad. J. Marinho. Lisboa: Guimarães Editores, 1990.
POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. ed. Trad. L. Hegenberg & O. S. da Mota. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1975.
Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins, Campo Universitário de Arraias. É autor de “TCC não é um bicho-de-sete-cabeças”. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009 (no prelo). Email: wilsoncorreia@uft.edu.br
FONTE: Revista Espaço Acadêmico
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