Por David Priestland
Cem anos após a Revolução Russa, o mundo parece mais desigual e injusto que nunca. A velha fênix, que já viveu três vezes, poderá ressurgir das cinzas?
Por David Priestland | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Zhang Daxin, Mamãe vem com um trator (1960)
“Ura! Ura! Ura!”
Lembro-me vivamente da parede de som que se formou quando soldados severos, em
uniformes cinzentos responderam ao brado de seu comandante: “Saudações no 70º
aniversário da Grande Revolução Socialista de Outubro!”
Estudante de
intercâmbio em Moscou, em 1987, eu havia viajado à Rua Gorky naquela manhã
trepidante de novembro, para assistir à parada militar a caminho da Praça
Vermelha. Uma fileira de autoridades soviéticas e estrangeiras observava os
jovens soldados prestar homenagem ao Mausoléu de Lênin. A cena impressionante
deveria servir para demonstrar tanto a energia revolucionária duradoura do
comunismo quanto seu alcance global.
O líder soviético,
Mikhail Gorbachev, falou sobre um movimento revigorado pelos valores de 1917 a
uma audiência de líderes de esquerda que incluía Oliver Tambo, do Congresso
Nacional Africano, e Yasser Arafat, da Organização pela Libertação da
Palestina. Cartazes ostentavam a proclamação do poeta Vladimir Mayakovsky:
“Lênin viveu, Lênin vive, Lênin viverá para sempre!”
As palavras soavam
ocas, pois os problemas econômicos da União Soviética eram evidentes para
todos, especialmente para meus amigos estudantes, que dependiam de
universidades mal abastecidas para comer. Ainda assim, o sistema ainda parecia
tão sólido quando o mármore do mausoléu. Como a maioria dos observadores, eu
não teria acreditado que em dois anos o comunismo estaria desmoronando, e
em quatro a própria União Soviética teria ruído.
Logo, a visão
popular sobre 1917 mudou inteiramente. A desregulação dos mercados parecia
natural e inevitável. O comunismo parecia ter sido sempre condenado à “lata de
lixo da História” de Trotsky. Se houvesse desafios à ordem liberal globalizada,
eles viriam do islamismo ou do capitalismo de Estado chinês, não mais de um
marxismo desacreditado.
Agora, quando
passaram-se cem anos da Revolução de Fevereiro – que precedeu à tomada do poder
pelos bolcheviques de Lênin, em novembro – a História mudou de novo. A China e
a Rússia exibem símbolos de sua herança comunista para fortalecer um
nacionalismo antiliberal. No Ocidente, a confiança no capitalismo de livre
mercado não se recuperou, desde o crash financeiro de 2008. Novas forças de
extrema direita e de esquerda ativista disputam popularidade. A força
inesperada do socialista independente Bernie Sanders, nos EUA; e as vitórias
eleitorais do novo partido Podemos, liderado por um ex comunista, na Espanha,
são sinais de um ressurgimento de base da esquerda. Na Grã-Bretanha, o
“Manifesto Comunista”, obra clássica escrita por Marx e Engels em 1848, foi um
best seller em 2015.
Terei testemunhado,
naquele dia em Moscou, o último hurra do comunismo? Ou um comunismo remodelado
para o século 21 estará lutando para nascer?
Há sinais de uma
resposta nesta epopeia complexa e centenária, um arco narrativo cheio de falsos
começos, quase mortes e reviveres imprevistos.
Observe a vida de
Semyon Kanatchikov. Filho de um ex-servo, ele trocou a pobreza rural por um
emprego de operário e a excitação da modernidade. Entusiasmado e sociável,
Kanatchikov lutou para se aperfeiçoar tendo como guia “O Autodidata de Dança e
das Boas Maneiras”. Em Moscou, uniu-se a um círculo de discussões socialista e
mais tarde ao Partido Bolchevique.
A experiência de
Kanatchikov tornou-o receptivo a ideias revolucionárias: uma atenção aguda ao
abismo entre ricos e pobres, a sensação de que uma velha ordem bloqueava a
emergência do novo e ódio ao poder arbitrário. Os comunistas ofereciam soluções
claras e convincentes. Ao contrário dos liberais, defendiam a igualdade
econômica; mas, diferente dos anarquistas, queriam a indústria moderna e o
planejamento estatal; e, em oposição aos socialistas moderados, argumentavam
que a mudança teria de vir por meio da luta de classes revolucionária.
Na prática, foi
difícil combinar estes ideais. Um Estado muito poderoso tendeu a sufocar o
crescimento, ao mesmo tempo em que criou novas elites. A violência da revolução
trouxe consigo periódicas caças aos “inimigos”. Também Kanatchkov tornou-se
vítima. Embora fosse levado a postos de prestígio após a revolução, seus laços
com Trotsky, o arqui-rival de Stalin, provocaram seu rebaixamento, em 1926.
Àquela altura, as
perspectivas do comunismo eram sombrias. As primeiras chamas da revolução na
Europa Central, logo após a I Guerra Mundial, estavam extintas. A União
Soviética viu-se isolada, e os Partidos Comunistas em outras partes do mundo
eram pequenos e conflagrados. A modernidade forjada dos EUA dos flamejantes
anos 1920 era despudoradamente consumista, não comunista.
Mas as fraquezas do
laissez-faire logo vieram em socorro do comunismo. O crash de Wall Street em
1929 e a Depressão que se seguiu fizeram das ideias socialistas de igualdade e
planejamento estatal uma alternativa poderosa à mão invisível do mercado. E a
militância comunista emergiu como uma das forças preparadas a resistir à ameaça
do fascismo.
Mesmo o terreno
árido dos Estados Unidos, não congênito ao coletivismo e ao socialismo sem
Deus, tornou-se fértil. Quando Moscou trocou, em 1935, sua doutrina sectária
por uma política de apoio às “frentes populares”, os comunistas
norte-americanos somaram-se a esquerdistas moderados contra o fascismo. Al
Richmond, um jornalista novaiorquino no Daily Worker lembrava-se do otimismo
renovado quando ele e seus colegas passavam noites num restaurante italiano
fazendo brindes “à vida, àquela era, a seus presságios e esperanças, certos de
nossas respostas ao ritmo deste tempo, porque nele sentíamos nossa pulsação”.
Tal otimismo, era
partilhado por um grupo seleto. Vítima dos expurgos de Stalin, Semyon
Kanatchikov morreu no Gulag, em 1940.
Muitos aceitavam
esquecer do terror stalinista para preservar a unidade anti-fascista. Mas a
segunda ascensão do comunismo no final dos anos 1930 e início dos 40 não
sobreviveu à derrota do fascismo. Quando a Guerra Fria intensificou-se, a
identificação do comunismo com o império soviético comprometeu sua tentativa de
apresentar-se como libertador. Na Europa Ocidental, um capitalismo reformado e regulado,
que os EUA incentivavam, ofereceu níveis de vida mais altos e o Estado do
Bem-estar Social. As economias de comando, que faziam sentido no período de
guerra, estavam menos aptas para a paz.
Mas se o comunismo
se esvaía no Norte global, no Sul ele tomava corpo. Lá, as promessas dos
comunistas de modernização rápida, liderada pelo Estado, incendiaram a
imaginação de muitos nacionalistas anticoloniais. Aqui, ergueu-se uma terceira
onda vermelha, que irrompeu na Ásia Oriental nos anos 1940 e no Sul pós-colonial
a partir do final dos 60.
Para Geng Chansuo,
um chinês que visitou uma fazenda-modelo coletiva na Ucrânia, em 1952 – três
anos depois que as guerrilhas comunistas entraram em Beijing –, o legado de
1917 continuava potente. Sóbrio líder camponês de Wugong, um vilarejo cerca de
200 km. ao sul de Beijing, ele foi transformado pela viagem. Ao voltar, tirou a
barba e o bigode, vestiu roupas ocidentais e começou a pregar em favor da
coletivização agrícola e do milagroso trator.
A China
revolucionária fortaleceu a determinação de Washington em conter o comunismo.
Mas enquanto os EUA travavam sua desastrosa guerra no Vietnã, uma nova geração
de nacionalistas marxistas emergia no Sul, atacando o “neo-imperialismo” que,
acreditavam, havia sido tolerado por seus antecessores, socialistas moderados.
A Conferência Tricontinental de socialistas africanos, latinoamericanos e
asiáticos, patrocinada por Cuba e realizada em 1966, abriu uma nova série de
revoluções. Por volta de 1980, os Estados marxistas-leninistas estendiam-se do
Afeganistão a Angola, ao Yêmen do Sul e à Somália.
O Ocidente também
assistiu a um revival marxista nos 60, mas seus estudantes radicais tinham, ao
fim, mais compromisso com autonomia individual, democracia na vida quotidiana e
cosmopolitismo do que com disciplina leninista, luta de classes e poder de
Estado. A trajetória do estudante alemão radical Joschka Fischer é um exemplo
expressivo. Membro de um grupo denominado Luta Revolucionária, que tentou
inspirar um levante comunista entre trabalhadores da indústria automobilística
em 1971, ele tornou-se mais tarde líder do Partido Verde alemão.
A emergência, a
partir do final dos anos 1970, de uma ordem americana dominada pelos mercados
globais, seguida pela queda do comunismo soviético ao apagar dos 80, causou uma
crise generalizada da esquerda radical. Fischer, como muitos outros estudantes
dos 60, adaptou-se ao novo mundo. Como ministro do Exterior da Alemanha, ele
apoiou os bombardeios dos EUA em Kosovo (contra as forças de Slobodan Milosevic,
antigo líder comunista sérvio), e defendeu os cortes no Estado de Bem-estar
Social da Alemanha, em 2003.
No Sul, o FMI
forçou reformas de mercado em países pós-comunistas endividados, e algumas das
antigas elites comunistas fizeram uma conversão ardente ao neoliberalismo.
Resta agora só um punhado de Estados denomidos comunistas: Coreia do Norte e
Cuba, além de China, Vietnã e Laos, mais capitalistas.
Hoje, mais de um
quarto de século após o colapso da União Soviética, seria possível uma quarta
encarnação do comunismo?
Um grande obstáculo
é a divisão pós-60 entre uma velha esquerda que prioriza a igualdade econômica
e os herdeiros de Fischer, que ostentam valores cosmopolitas, políticas de
gênero e multiculturalismo. Além disso, defender os interesses dos exluídos, em
escala global, parece uma tarefa quase impossível. O crash de 2008 apenas
intensificou os dilemas da esquerda, enquanto criou, para nacionaistas radicais
como Donald Trump e Marine Le Pen, uma oportunidade de explorar a ira diante
das desigualdades econômicas do Norte global.
Estamos apenas no
início de um período de grandes mudanças econômicas e agitações sociais. À
medida em que um tecno-capitalismo altamente desigual for incapaz de oferecer
empregos decentes, os jovens poderão adotar uma agenda econômica mais radical.
Uma nova esquerda poderia ser capaz de unir estes hoje derrotados — estejam na
economia do material ou do imaterial – em favor de uma nova ordem econômica. Já
surgem reivindicações de um Estado mais redistributivo. Ideias como a renda
universal da cidadania, que a Holanda e Finlândia estão experimentando,
aproximam-se, na concepção, à visão de Marx sobre a aptidão do comunismo para
suprir os quereres de todos – “de cada um segundo sua capacidade para cada um
segundo sua necessidade”.
Um longo caminho
nos separa da Praça Vermelha de Moscou em 1987 – e ainda mais do Palácio de
Inverno de Petrogrado em 1917. Não haverá volta ao comunismo dos planos
quinquenais e dos gulags. Mas se há algo que esta história turbulenta
ensina é que os “últimos hurras” podem ser tão ilusórios quando o “fim da
ideologia” previsto nos anos 1950 ou o “fim da História” de Fukuyama, em 1989.
Lênin já não vive e
o velho comunismo pode estar morto, mas o senso de injustiça que os animou está
vivíssimo…
–
Texto publicado originalmente no “New York Times”, que dedica seção
especial aos cem anos da Revolução Russa
FONTE : Outras Palavras
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