segunda-feira, 10 de junho de 2019

Dois marxismos?



Por Greg Godels



Greg Godels
O Google sabe que tenho um interesse permanente no marxismo. Consequentemente, recebo links frequentes para artigos que os algoritmos do Google seleccionam como populares ou influentes. Sistematicamente, no topo da lista, estão artigos de ou sobre o irreprimível Slavoj Žižek. Žižek dominou os truques de um intelectual público – divertido, pomposo, escandaloso, calculadamente obscuro e amaneirado. A pose desalinhada e a barba desgrenhada somam-se a uma quase caricatura do professor europeu, a presentear o mundo com grandes ideias profundamente embebidas em camadas de obscurantismo – uma maneira infalível de parecer profundo. E uma maneira infalível de promover o valor comercial do entretenimento. 

Seguidores próximos do "mestre" até postam vídeos de Žižek a devorar hot dogs – um em cada mão! Ele está actualmente a ganhar dinheiro com um debate público com um congénere de direita que é um saco vazio, o qual supostamente torna obscenos os preços dos ingressos. O marxismo como empreendedorismo. 

Žižek é uma das mais recentes repetições de uma longa linhagem de académicos em grande parte europeus que constroem uma modesta celebridade pública a partir de uma identificação com o marxismo ou a tradição marxista. De Sartre e o existencialismo até o estruturalismo, pós-modernismo, pós-essencialismo, pós-fordismo e política identitária, académicos apropriaram-se de partes da tradição marxista e afirmaram repensar aquela tradição, enquanto mantinham uma distância segura e bem medida em relação a qualquer movimento marxista. Eles são marxistas quando isso lhes traz uma audiência, mas raramente respondem ao chamado à acção. 

O curioso sobre este marxismo intelectual, de salão de conversa, o marxismo diletante, é que nunca é completo; é marxismo com reservas sérias. O marxismo é bom se for o do Marx "primitivo", do Marx "humanista", do Marx "hegeliano", do Marx dos Grundrisse, do Marx sem Engels, do Marx sem a classe trabalhadora, do Marx antes do bolchevismo, ou antes do comunismo. Compreensivelmente, se quiser ser o próximo grande domador de Marx, deve separar-se da manada, deve repensar o marxismo, redescobrir o Marx "real", mostrar onde Marx errou. 

Gerações anteriores de estudantes universitários bem-intencionados, mas com confusão de classe, foram seduzidas por pensadores "radicais" que oferecem um gostinho de rebeldia num pacote académico sexy. Estudantes carregam montes de livros não lidos, mas livros de autores na moda como Marcuse, Althusser, Lacan, Deleuze, Laclau, Mouffe, Foucault, Derrida, Negri e Hardt – autores que compartilhavam características comuns com livros de títulos exóticos e provocativos e prosa impenetrável. Livros que prometiam muito, mas entregavam trevas. 

Com uma nova geração de jovens de mentalidade radical em busca de alternativas ao capitalismo e curiosos acerca do socialismo, é inevitável que muitos estejam a olhar para Marx. E para onde se voltam? 

Um professor de Yale desavergonhadamente apresenta na badalada Jacobin Magazine uma cartilha para iniciantes intitulada Como ser um marxista . O professor Samuel Moyn actualmente exerce na cadeira Henry R. Luce [1] de jurisprudência. Aparentemente, Moyn não se sente desconfortável em possuir uma cadeira dotada por um dos mais notórios editores anti-comunistas e anti-marxistas do país quando apresenta o seu guia para o marxismo. 

A pretensão de Moyn de guiar os que não têm conhecimento do marxismo não se justifica nem se explica. No entanto, ele sente-se confiante para recomendar dois académicos recentemente falecidos, Moishe Postone e Erik Olin Wright (juntamente com o ainda vivo Perry Anderson), como representando os últimos da "…geração de grandes intelectuais cujas experiências da década de 1960 levaram-nos a dedicar a vida inteira a recuperar e re-imaginar o marxismo". 

Confesso que a sua escolha de Moishe Postone deixou-me desconcertado. Deveria eu ficar embaraçado por dizer que nunca conheci o trabalho do professor Postone ou que não o conheci como marxista? Quando encontrei no YouTube uma entrevista com o estimado Professor Postone, descobri rapidamente que ele enfaticamente e sem reservas nega ser marxista. Além disso, Postone pretende que a maior parte do que chamamos de marxismo foi escrita por Frederick Engels. Postone admite que Engels era "realmente um bom rapaz", mas que Engels nunca entendeu Marx adequadamente. Postone, por outro lado, sim. E o seu Marx não "glorifica" a classe trabalhadora industrial. 

Estou no entanto familiarizado com o outro alegado exemplar de uma devoção de "grande intelectual" ao marxismo, Erik Olin Wright. Wright foi um membro consagrado e proeminente da chamada escola do "Marxismo Analítico". Wright, como os demais membros desse movimento intelectual, tentou colocar o marxismo numa base "legítima", onde a legitimidade era obtida submetendo o marxismo aos rigores da ciência social anglo-americana convencional. O conceito de que a ciência social anglo-americana é sem viézes ou que nada tem a aprender com o método de Marx jamais é questionado com essa gente. Mas, para crédito de Wright, ele lutou com unhas e dentes para apreender o conceito de classe social. 

A fim de "salvar a esquerda de se meter em vários becos sem saída", o professor Moyn oferece o último livro de seu "colega brilhante", Martin Hägglund. Moyn assegura-nos que "This Life: Secular Faith and Spiritual Freedom" ("Esta vida: Fé laica e libertação espiritual") é excelente para começar por aqueles que querem estimular a teoria do socialismo, ou mesmo construir a sua própria teoria de uma variante marxista dela". 

Basta apenas um breve momento para verificar que Martin Hägglund e seu admirável colega estão a levar-nos a outros becos sem saída, alguns pisados por muitas gerações anteriores. A jornada de Hägglund revisitaria o existencialismo, Hegel e as tradições cristãs em busca do evasivo "sentido da vida". Embora muitos de nós pensassem que Marx oferecia uma análise profundamente informada da mudança social e da justiça social, Moyn / Hägglund, seguindo Postone, avançam com "as perguntas finais que todos devem fazer: que trabalho deveria eu fazer? Como deveria gastar meu tempo finito?" Acumular capital contrapõe-se, sugerem eles, a "maximizar... o tempo livre individual a despendê-lo como lhe agradar..." 

Assim, a luta pela emancipação, neste repensar do marxismo, não é a emancipação da classe trabalhadora, mas o arrebatar de tempo livremente descartável das garras do trabalho. Os professores admitem que esta luta é muito mais fácil para académicos do que para os "miseráveis da terra". 

"E finalmente", conclui Moyn, "há a proposta de Hägglund de que os marxistas podem abandonar o comunismo – que, em qualquer caso, Marx descreveu vagamente – em favor da democracia. Não está totalmente claro o que Hägglund quer dizer com democracia, algo que nem o próprio Marx nem muitos marxistas optaram por investigar teoricamente. Assim, Hägglund destila "marxismo" numa rejeição do comunismo e num abraço de uma vaga "democracia". Eu teria de concordar com Moyn quando ele diz: "Na verdade, é notável quão poucas pessoas pensaram que a teoria marxista tornara-se a tentativa de Hägglund de recomeçá-la no nosso tempo". Aparentemente, o segredo agora revelado de se tornar um marxista é descartar Marx 

Tal como muitos auto-proclamados "marxistas", que antecederam Postone, Hägglund e Moyn, a intenção dos mesmos parece ser mais a de defraudar o marxismo do que a de promovê-lo. 

Ideias perigosas 

A verdade nua e crua é que o marxismo – desde a época da censura de Marx e das suas múltiplas expulsões de diferentes países – é uma ideia perigosa. A incapacidade de Marx de assegurar nomeações académicas e a sua constante vigilância e perseguição por parte das autoridades provou ser um precursor do destino de quase todos os intelectuais marxistas autênticos. O capitalismo não dá àqueles que defendem a destruição do capitalismo honra académica ou celebridade. E aqueles "marxistas" que se tornam aclamados por académicos, que obtêm lucrativos negócios de livros, que desfrutam de exposição nos media, raramente representam grande ameaça ao sistema. 

É um facto revelador que, embora a história tenha produzido muitos marxistas "orgânicos", marxistas com raízes na classe trabalhadora e em movimentos que desafiam o capitalismo, suas contribuições raramente povoam as bibliografias de professores universitários, a menos que sejam para ridicularizá-las. O emprego universitário raramente está disponível para fornecedores de ideias perigosas ou para a defesa de uma versão de Marx que apele a mudanças revolucionárias. 

Um historiador marxista como o falecido Herbert Aptheker – que fez mais do que qualquer outro intelectual para desafiar a representação distorcida, em Nascimento de uma nação / E tudo o vento levou, de um Sul benévolo e da sua heróica defesa de um nobre estilo de vida – não conseguiu encontrar trabalho em universidades dos EUA. Na verdade, até foi preciso um movimento pela liberdade de expressão para que lhe fosse permitido falar nos campi dos EUA. Seus livros desapareceram da circulação e poucos estudantes de história afro-americana têm acesso às suas contribuições. 

Ninguém elaborou uma história do movimento trabalhista americano que rivalizasse com a do falecido marxista Phillip Foner , os 10 volumes de History of the Labor Movement. Os cinco volume de The Life and Writings of Frederick Douglass , também de Foner, restabeleceram Douglasse como uma figura proeminente na abolição da escravatura nos EUA. Uma universidade historicamente negra, a Lincoln University, corajosamente contratou Foner após anos de listas negras. Infelizmente, hoje, suas obras são amplamente ignoradas nos campos em que foi pioneiro. 

As sérias contribuições de muitos outros intelectuais marxistas dos EUA podem ser encontradas em edições antigas de publicações como Science and Society , Political Affairs, Masses, Masses and Mainstream e Freedomways a descansarem em prateleiras recônditas e poeirentas, diminuídas pelo macarthismo, pelas listas negras, pela covardia académica e pelo anticomunismo grosseiro. 

As portas e o discurso público da academia e dos mass media foram igualmente fechados aos marxistas da classe trabalhadora (a menos que renunciassem aos seus pontos de vista!). Apesar de sua liderança dos movimentos da classe trabalhadora e de escrever prolificamente, os trabalhos marxistas de William Z. Foster sobre organização, estratégia e tácticas trabalhistas e economia política estão em grande medida esquecidos, a menos que reapareçam como o pensamento de outra pessoa. A outras importantes figuras marxistas responsáveis por alguns dos melhores momentos da força de trabalho e pela sua interpretação, como Len De Caux e Wyndham Mortimer, é-lhes negada a entrada no clube. 

Analogamente, pioneiros marxistas nos movimentos de igualdade dos negros e das mulheres, como Benjamin Davis, William Patterson e Claudia Jones, não são nem louvados como tais nem são apresentados como exemplos de "Como ser um marxista". 

A obra do economista político marxista Victor Perlo na identificação dos limites superiores do capital financeiro e da teoria económica do racismo estão curiosamente ausentes de qualquer conversação académica relevante. 

O que todos esses marxistas compartilham é uma vida política activista no Partido Comunista dos EUA, um distintivo orgulhoso, mas denegrido pela maior parte dos intelectuais americanos. 

Os melhores escritos da venerável Monthly Review sofrem a mesma marginalização. Seus fundadores foram ameaçados o suficiente para serem vitimizados pelo Red scare . E o seu co-fundador Paul Sweezy, um sério economista político marxista, nunca foi entusiasticamente recebido nos círculos académicos. 

Hoje, Michael Parenti é o mais perigoso intelectual marxista nos EUA. Sei disto porque apesar de incontáveis livros, vídeos e palestras, apesar de um compromisso intransigente com uma interpretação marxista da história e dos acontecimentos actuais, apesar de um profundo, mas fundamentado ódio ao capitalismo, e apesar de um estilo admiravelmente acessível e com grandes ideias, ele não tem emprego em universidades e é-lhe negado acesso a todos os media, excepto os mais à esquerda ou marginais. 

Outro impressionante estudioso marxista dos EUA, Gerald Horne , embora desfrutando de estabilidade académica, merece ser estudado por todos os "esquerdistas" nos EUA pela integridade, acessibilidade e qualidade do seu trabalho. 

O marxismo autêntico, em oposição ao marxismo da moda, do modismo, ou do marxismo caprichoso, é implacável, agressivo e inspirador de acção. Ele disseca diligentemente o funcionamento interno do sistema capitalista. É implacável e impiedoso na sua rejeição ao capitalismo. Ele desafia o pensamento convencional, fazendo poucos amigos na imprensa capitalista e abalando a gentileza e a colegialidade do liberalismo tranquilo da academia. O marxismo não é um avanço de carreira, mas um compromisso ingrato. 

Os marxistas reais são necessariamente anómalos (outliers). Até as condições para mudanças revolucionárias amadurecerem, eles são frequentemente sujeitos a cepticismo, desinteresse, até escárnio e hostilidade. Os que posam como marxistas são alérgicos a organizações políticas, activismo e risco intelectual, ao passo que marxistas comprometidos são obrigados a buscar e unir movimentos pela mudança. Eles são levados a servir a muito citada tese de Marx e raramente atendida na décima primeira tese sobre Feurbach: "Os filósofos só interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão no entanto é mudá-lo". 

[1] Magnata da imprensa, en.wikipedia.org/wiki/Henry_Luce 

O original encontra-se em https://mltoday.com/two-marxisms/ 



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