segunda-feira, 24 de junho de 2019

Marta Harnecker e os caminhos do poder


“Um mundo a construir” faz um balanço dos governos de esquerda na América Latina, apontando lacunas e desafios



Por Pedro Carrano


A socióloga chilena valoriza as novas formas de mobilização, os diferentes setores que capitanearam
as mobilizações na América Latina - Créditos: Divulgação


A América Latina, este subcontinente de povos com Histórias tão semelhantes, viveu um nítido ciclo progressista e de esquerda a partir do final dos anos 90. No início daquela década, durante o período de aplicação de políticas de caráter neoliberal, que impactaram as condições de vida da população, rebeliões com diferentes formatos estouraram no continente. Esses movimentos criaram uma nova correlação de forças que permitiu a chegada da esquerda ao governo – da América Central à Patagônia, em ao menos doze países.

“Um mundo a construir” (editora Expressão Popular, 271 páginas), livro de Martha Harnecker, socióloga e intelectual orgânica chilena, busca, embasado da teoria marxista, dimensionar o papel desses governos, seus limites e avanços em relação à conquista do poder do Estado. A autora também analisa os avanços na construção de protagonismo popular, com ênfase no caso venezuelano.

O livro provoca, neste sentido, um debate muitas vezes deixado de lado pela universidade e mesmo no âmbito da luta social. A tomada do poder do Estado, para mudar a correlação de forças em favor dos trabalhadores, é reforçada por Harnecker como uma “condição indispensável”, ainda que a via para isso tenha se apresentado na forma institucional, em casos como Venezuela, Bolívia e Equador. Com isso, apenas uma parcela do Estado (o poder executivo) esteve sobre o controle direto da esquerda.

O livro foi finalizado antes sem conhecer a onda conservadora que, neste exato momento, reverteu processos em vários países do continente, colocou a classe trabalhadora num momento de defensiva, restando apenas Venezuela, Bolívia e Nicarágua em resistência, ao lado da vitória de Lopez Obrador no México. Mesmo assim, o trabalho serve de referência para se pensar quais os desafios da esquerda e dos trabalhadores em um próximo ciclo de crescimento de lutas.

Tarefa imediata

“Um mundo a construir” subsidia justamente o balanço/projeção sobre quais devem ser as tarefas da esquerda uma vez no governo. A autora admite que não houve no período anterior, marcado por revoltas que conduziram à chegada de governos de esquerda, a tomada do poder político. “Elas (revoltas populares) conseguiram derrubar presidentes, mas não foram capazes de conquistar o poder para iniciar um processo de transformações sociais profundas” (página 222). Ainda assim, a autora demonstra que exemplos como o da Bolívia, Venezuela e Equador buscam essa transição, mesmo sob condições limitadas.

Na página 82, a autora reforça: a tomada do poder do estado é imediata, mesmo se isso for feito por um governo que precise também tomar iniciativas de natureza capitalista. “(…) desde que essas medidas capitalistas permitam criar as condições para avançar depois para as reações de produção socialistas”.

Ao mesmo tempo, Harnecker se ancora também no embate travado desde a revolução Russa por Lênin – de que não se poderia esperar as condições a partir do desenvolvimento das burguesias locais, porém a tomada do poder hegemonizada pelo movimento dos trabalhadores é tarefa obrigatória.

Numa tipologia dos governos latinoamericanos, Harnecker aponta aqueles que buscam “refundar o neoliberalismo”, alinhados diretamente com os interesses estadunidenses, entre os quais Colômbia, Chile e México (à época). E governos que buscaram alternativas ao modelo neoliberal, no qual a autora aposta nos seguintes critérios mínimos: “a luta pela igualdade social, pela democratização da política, pela soberania nacional e pela integração regional” (página 72). No entanto, neste último tópico, a autora elenca os governos  que “rompem com políticas neoliberais apoiando-se em seu povo”.

O processo revolucionário e os desafios para uma geração

A autora atualiza o tema do socialismo do século 21, palavra de ordem lançada pelo presidente Hugo Chávez como forma de educar e chamar a atenção para o processo de socialização em curso no país. Harnecker acredita que esse processo, ao buscar convocatória e participação popular, buscava se distanciar do  burocratismo presente na experiência russa, sobretudo no que toca a crítica à relação entre burocratização e extrema centralização das iniciativas vindas do Estado.

Harnecker recolhe ensinamentos do processo venezuelano no que se refere ao esforço constante de gerar envolvimento popular. Protagonismo que chegou a ser previsto inclusive após a Assembleia Constituinte de 1999 naquele país. Ela resgata o conceito de soberania popular, atualizando a crítica ao Estado enquanto ferramenta que deve ser substituída pelo protagonismo dos trabalhadores – o que significa controle da gestão nos locais de trabalho; participação nas decisões da empresa; um novo perfil de produtividade que leve em conta o desenvolvimento humano e intelectual de seus trabalhadores.

A reflexão central de Harnecker  é como envolver a participação popular, contar com espaços de organização, em um processo de transição ao socialismo. O desafio apontado pela autora é como trabalhadores podem se sentir parte do processo, o que rompe com a tradição clientelista da política latinoamericana. O empoderamento popular nessa relação é fundamental:

“Não é a mesma coisa, dizia o dirigente político venezuelano, que uma comunidade conquiste uma passarela para a qual tenha se organizado e lutado, ou que o receba como um presente do Estado” (página 107).

Talvez aqui tenhamos a chave principal para entender o processo que foi do auge à atual contraofensiva enfrentada pela esquerda, em golpes promovidos pelos EUA que não encontraram resistência ativa na população – a não ser na Venezuela, onde a mobilização nas ruas se opõem à ação imperialista.

Camiños hay

A partir do acompanhamento do processo bolivariano, Harnecker defende um socialismo contruído em um processo de transição, mas que não seja apenas feito de iniciativas vindas do velho Estado, mas sim a partir da energia, fermento e criatividade popular.

Os caminhos existem. E a autora sistematiza os exercícios feitos para o empoderamento popular, entre os quais: a prestação de contas e escuta das demandas dos municípios pequenos, presentes na experiência do governo de Rafael Corrêa; comunicação com o povo e formação presentes nos governos de Hugo Chávez; as experiências venezuelanas de conselhos comunais, que tiveram ligação direta como uma célula da organização social.

No Brasil, o PT acumulou experiências nesse sentido, mas usou-as sobretudo nas gestões municipais e não no governo federal – e hoje sem dúvida se verifica que a ausência de organização popular foi o principal responsável por abrir o flanco para os setores golpistas.

A autora lembra ainda do desafio atual na luta de classes no Brasil, de retomar o trabalho de base, a confiança e a relação com a população. “Se a partir desse mal estar for possível realizar um trabalho de conscientização casa por casa, sala de aula por sala de aula, local de trabalho por local de trabalho”, reflete, resgatando por coincidência uma palavra de ordem que foi comum no segundo turno das eleições de 2018 no Brasil: casa por casa.

É o poder do Estado!

A socióloga chilena valoriza as novas formas de mobilização, os diferentes setores que capitanearam as mobilizações na América Latina nos anos 1990, advoga que a esquerda deve valorizar essa nova morfologia e composição das mobilizações. Mas o ponto no qual a autora não parece recuar é na percepção da necessidade de toma do poder do Estado e condução no sentido de uma transição com horizonte socialista.

“Esses movimentos geralmente começam rejeitando a política e os políticos, mas à medida que avança o processo de luta, passam gradualmente de uma atitude apolítica de mera resistência ao neoliberalismo e lutas pontuais a uma atitude cada vez mais política, de questionamento do poder estabelecido, e começam a compreender a necessidade de construir seus próprios instrumentos políticos”, afirma.


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