sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

China: não se espantem com seu futuro


Por Wladimir Pomar 


O país apoiou a inovação de tecnologias chaves e a elevação de sua competitividade internacional, de modo a agilizar a transformação de seus produtos. A tecnologia 5G é apenas um exemplo dessa estratégia


Robôs usados para atendimento ao cliente em uma fábrica 
em Lianyungang, no leste da China. Reprodução

A imprensa mundial noticiou que o 19º Comitê Central do Partido Comunista da China traçou um roteiro de 15 anos para guiar o país em direção à modernização, incluindo o 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento, entre 2021 e 2025, e as Metas de Longo Prazo para 2035. O PCC reiterou que, para tal crescimento, a China deveria empenhar-se na inovação científica e tecnológica, na construção de um forte mercado interno, no fortalecimento das áreas rurais, e no desenvolvimento verde, de modo a construir uma sociedade modestamente próspera.

A base do novo plano consiste no progresso obtido entre 2010 e 2020, com os 12º e 13º Planos Quinquenais, que elevaram o produto interno bruto da China para cerca de 100 trilhões de yuans, retiraram da pobreza cerca de 55,75 milhões de habitantes rurais, elevaram a produção anual chinesa de cereais a mais de 650 milhões de toneladas, construíram o maior sistema de seguridade social do mundo etc.

Faltou ao noticiário lembrar que a China possui um projeto de desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo que, partindo de 2010, tem metas definidas para 2020, 2035 e 2050. Ou seja, desde 2010, a China traçou um caminho de desenvolvimento com base em seu sistema político socialista de mercado, no qual o mercado desempenha um papel primário sob a macrorregulação governamental, e em que a tradicional civilização chinesa se esforça para assimilar a importante herança cultural do mundo.

A inovação tem sido o núcleo central dos planos chineses, levando o país a se tornar, em 2020, uma “nação inovadora”, em 2035, “líder internacional em inovação” e, em 2050, uma potência mundial em inovação científica e tecnológica. De outro lado, para realizar tal desenvolvimento, a China não se envergonha de dizer que é e será seguidora e imitadora dos avanços de outros povos, até encontrar um caminho de acordo com as leis de desenvolvimento científico e tecnológico adaptadas às condições nacionais chinesas.

A China tem consciência de que a transição da imitação para a inovação é uma mudança científica dramática. Tal transição não ocorre espontaneamente, depende da capacidade de explorar as abordagens para tais mudanças, assim como os estágios alcançados, os ajustes das prioridades nacionais, e as orientações para a inovação científica e tecnológica. Por isso, em geral, a China tem dado ênfase aos estudos de importância para o desenvolvimento da alta tecnologia, assim como ao desenvolvimento de um conjunto institucional e cultural apropriado para maturar as capacidades empresariais em inovação tecnológica e em competitividade, apoiar as atividades inovativas, reestruturar o sistema nacional de educação, e desenvolver uma força de trabalho inovativa e empresarial.

Por volta de 2010, a China já havia elaborado seus “sistemas de desenvolvimento econômico e social”, de modo a orientar sua modernização através das ciências e das tecnologias e criar uma base para a modernização das forças produtivas. A rigor, esforçou-se para integrar os recursos de inovação em linha com a abertura ao mundo exterior; incentivou pessoas talentosas através da inovação prática, em linha com o princípio de colocar o povo em primeiro lugar; integrou o papel primário do mercado com a regulação governamental macro; e assegurou a divisão do trabalho, assim como a cooperação, entre os participantes do sistema nacional de inovação.

Desde então, a China adotou a prática de elevar seu papel na crescente e dura competição global nos campos da economia e da revolução científica, tecnológica e militar, através da integração sistemática de inovações, assim como da assimilação e renovação tecnológica, absorvendo os recursos da inovação global num ambiente aberto. E, para obter benefícios inovativos e estabelecer novos setores industriais, se empenhou em construir instituições abertas e eficientes para as transferências tecnológicas e para a comunicação científica.

Além disso, para que os benefícios socioeconômicos das inovações servissem aos interesses do povo e realizassem contribuições importantes ao seu desenvolvimento cultural, a China intensificou a busca por grande número de talentos nacionais, assim como para atrair inovadores e empreendedores de todos os países. Manteve uma atitude aberta frente aos conhecimentos criados em todo o mundo, que podem servir como ponto de partida para sua inovação e crescimento, assim como para se resguardar contra a suposição de que a inovação seja um esforço unicamente chinês.

A China está convencida de que a tendência de desenvolvimento mundial exige uma visão estratégica ampla sobre o desenvolvimento científico e tecnológico. Por isso, desenvolve esforços para intensificar o intercâmbio e a cooperação com diferentes países, e para atrair profissionais, recursos intelectuais, tecnologias, e gerenciamento, de todo o mundo. Parte do princípio de que a inovação original é a fonte da competitividade internacional de cada país. Mas, como as tecnologias chaves não são vendáveis, a única forma de reduzir a dependência tecnológica consiste em elevar a capacidade nacional de inovação.

Desse modo, enquanto expandia seu escopo econômico, elevava sua estrutura industrial, e aumentava seu comércio exterior, a China se preparou para uma crescente e aguda competição internacional. Melhorou sua estratégia quanto aos direitos de propriedade intelectual, participou ativamente na formulação e revisão de importantes estatutos internacionais, intensificou os esforços para romper as barreiras internas. E apoiou a inovação de tecnologias chaves e a elevação de sua competitividade internacional, de modo a agilizar a transformação de seus produtos.

A tecnologia 5G é apenas um exemplo dos resultados dessa estratégia, que tem levado à criação de alguns gigantes empresariais direcionados pela inovação e pelo enfrentamento da competitividade internacional. Ao mesmo tempo, porém, a China se empenha na competitividade interna e internacional através de um grande número de pequenas e médias empresas inovadoras. E está se tornando pioneira na investigação básica e nas tecnologias estratégicas chaves em campos como o espaço, as profundidades marinhas, os supercomputadores, e a comunicação quântica.

Por exemplo: seus cientistas já criaram as bases para uma rede global de comunicações quânticas à prova de piratas informáticos; seu supercomputador Sunway Taihu Light foi reconhecido como o mais rápido do mundo; a extração de hidrato de gás, ou gelo combustível, no Mar Meridional da China, em substituição ao petróleo e ao gás natural, tornou-se inovação significativa de energia limpa; o laboratório espacial Tiangong2 converteu a China em potência espacial; e seu jato C919 a tornou a quarta potência mundial na fabricação de aviões de grande porte.

Em 2016, o Índice de Inovação Global indicou que a China já possuía mais de um milhão de patentes de novos inventos, colocando-a em terceiro lugar em nível global, atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão. Ou seja, à medida que suas vantagens competitivas anteriores, de baixo custo da mão de obra e das matérias primas se debilitaram, a China modificou rapidamente sua estrutura industrial através da inovação científica e tecnológica.

Portanto, os dois últimos Planos Quinquenais alcançaram as metas relacionadas a 2020. Já o 14º Plano e os dois posteriores devem materializar as metas de 2035. Isto é, fazer com que a China alcance um patamar ainda mais alto em sua força econômica e tecnológica. E, consequentemente, na renda per capita urbana e rural, na liderança global em inovação, numa indústria sem agressão ao meio ambiente e com alta aplicação da tecnologia da informação, na modernização agrícola, e numa urbanização ecologicamente saudável.

Ou seja, em 2035, a China pretende completar a construção de uma economia modernizada, assim como de um sistema de governança, em que seja assegurado o direito das pessoas participarem e se desenvolverem como iguais. Pretende, pois, se tornar forte em cultura, educação, talentos, esportes e saúde, num ambiente ecologicamente saudável, no qual as emissões de dióxido de carbono tenham diminuído continuamente. O PIB per capita atingirá o nível dos países moderadamente desenvolvidos, aumentando o tamanho do grupo de renda média, garantindo o acesso equitativo aos serviços públicos básicos, e reduzindo significativamente as desigualdades no desenvolvimento entre diferentes regiões e padrões de vida.

Nos três planos quinquenais posteriores a 2035, a China pretende intensificar as pesquisas de alta tecnologia estratégica, focando aquelas que possuem uma abordagem crítica sobre a competitividade internacional e sua segurança nacional, incluindo as maiores inovações integradas ou soluções sistêmicas, os rompimentos de paradigmas em tecnologias cruciais, e as tecnologias de significância guia ou estratégica para o desenvolvimento futuro da China.

De um lado, pretende buscar novos avanços na construção de uma civilização ecológica, promovendo o bem-estar das pessoas e fortalecendo a capacidade de governança. Hasteará a bandeira da paz, do desenvolvimento, da cooperação e do benefício mútuo, pretendendo criar um ambiente externo favorável e promover a construção de um novo tipo de relações internacionais e uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade.

De outro lado, pretende promover a indústria de alta tecnologia através de maior amplitude de suas fontes de irradiação tecnológica, forjando laços cooperativos entre governos e empresas locais, cultivando novas tecnologias, construindo plataformas de transferências tecnológicas para expandir a cadeia de valor da inovação, e promovendo a transferência e a comercialização dos empreendimentos científicos e tecnológicos.

Partindo dessa diretriz estratégica nacional, a estratégia de desenvolvimento regional das áreas costeiras do Leste da China deve priorizar o investimento em pesquisas de alta tecnologia, cruciais para o desenvolvimento industrial local e para o desenvolvimento de economias do conhecimento nessas áreas, além de aumentar a atenção para pesquisas no campo de recursos naturais, meio ambiente, população e saúde pública.

Nas áreas nordeste e central da China, a implementação da estratégia científica e tecnológica deve focar na renovação e atualização técnica das indústrias tradicionais e na modernização das práticas agrícolas. De outro lado, essas regiões também devem investir em pesquisa básica e de alta tecnologia relacionada ao desenvolvimento local de economias do conhecimento. Quanto à região noroeste, o apoio principal deve se voltar para as atividades de pesquisa relacionadas à proteção do meio ambiente e à exploração racional dos recursos naturais.

Finalmente, entre 2035 e 2050, a China pretende intensificar o papel subjacente do mercado na alocação de recursos, de modo a acelerar a construção de um ambiente de mercado amigo da inovação, aperfeiçoar as leis e regulamentos destinados à promoção de empresas inovadoras, incluindo uma política de aquisição governamental para encorajar inovações, e construir um ambiente financeiro e político favorável a esse objetivo.

Ou seja, nesse período a China pretende realizar passos ainda mais fortes em suas políticas de reforma e abertura, melhorar ainda mais sua economia de mercado socialista e, basicamente, concluir a construção de um sistema de mercado de alto nível, capaz de atender a todas as necessidades sociais. A essa altura, a sociabilidade e a civilidade do povo chinês terão sido aprimoradas, possibilitando-lhe adotar os valores socialistas fundamentais.

Portanto, em relação à China, ela traçou um caminho de longa marcha. Em princípio, não há por que se espantar com seu futuro. A não ser que as contradições imperialistas levem algum de seus países a tentar resolver suas contradições internas apelando para foguetes e bombas.


Wladimir Pomar é jornalista e escritor, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate


FONTE: Teoria e Debate

domingo, 13 de dezembro de 2020

Uma hipótese para renovar o projeto socialista

 


Por John Bellamy Foster, na Monthly Review | Tradução: Beatriz Vital


Uma consideração séria da renovação do socialismo, hoje, deve começar pelo enfrentamento à destruição criativa, perpetrada pelo capitalismo, das bases de toda existência social. Desde o final dos anos 1980, o mundo tem sido engolfado pelo capitalismo da catástrofe, definido como o acúmulo de catástrofes iminentes, por todos os lados, devido às consequências não intencionais da máquina da morte do capital [orig: juggernaut of capital].1 Assim conceituado, o capitalismo da catástrofe manifesta-se hoje na convergência entre (1) a crise ecológica planetária, (2) a crise epidemiológica global e (3) a infindável crise econômica mundial.2 Somam-se a isso as principais características do atual “império do caos”, inclusive: o extremo sistema de exploração imperialista desencadeado pelas cadeias globais de mercadorias; o ocaso do Estado liberal-democrático, relativamente estável, com a ascensão do neoliberalismo e do neofascismo; e a emergência de uma nova era de instabilidade da hegemonia global, acompanhada pelos crescentes perigos de uma guerra ilimitada.3

A crise climática representa o que o consenso científico mundial chama de situação “sem análogo”a, na qual estarão ameaçadas, se o saldo das emissões de carbono provenientes da queima de combustíveis fósseis não chegar a zero nas próximas décadas, a própria existência da civilização industrial e, em última análise, a sobrevivência humana.4 Essa crise existencial não se limita, porém, às mudanças climáticas; ela abarca a violação de outros limites planetários que, juntos, delineiam a fratura ecológica global no sistema terrestre como um lugar seguro para a humanidade. Eles incluem: (1) a acidificação dos oceanos; (2) a extinção de espécies (e perda de diversidade genética); (3) a destruição de ecossistemas florestais; (4) a perda de água doce; (5) a interrupção dos ciclos de nitrogênio e fósforo; (6) a rápida disseminação de substâncias tóxicas (inclusive radionuclídeos); e (7) a proliferação descontrolada de organismos geneticamente modificados.5

Essa ruptura dos limites planetários é intrínseca ao sistema de acumulação de capital, que não conhece barreiras intransponíveis ao seu avanço quantitativo, exponencial e ilimitado. Sendo assim, não há saída para a atual destruição capitalista do conjunto das condições sociais e naturais de existência que não seja uma saída do próprio capitalismo. O essencial é a criação do que István Mészáros chamou, em Para além do capital, de um novo sistema de “reprodução metabólica social”.6 O socialismo surge, assim, como aparente herdeiro do capitalismo do século XXI, mas concebido de maneiras que desafiam, criticamente, a teoria e a prática do socialismo à maneira do século passado.

A polarização do sistema de classes

Nos Estados Unidos, setores cruciais do capitalismo monopolista-financeiro conseguiram, agora, mobilizar elementos próprios da classe média baixa, majoritariamente branca, na forma de uma ideologia nacionalista, racista e misógina. O resultado é o nascimento de uma classe política neofascista, que capitaliza a longa história de racismo estrutural herdeira da escravidão, do colonialismo de ocupação e do militarismo/imperialismo global. A relação desse neofascismo em ascensão com a conformação política neoliberal já existente é a de “irmãos inimigos”, caracterizada por uma feroz disputa pelo poder associada à repressão, comum a ambos, da classe trabalhadora.7 Foram essas as condições que propiciaram a ascensão do bilionário Donald Trump, magnata do mercado imobiliário de Nova York, como líder da chamada direita radical, o que levou à imposição de políticas direitistas e à instauração de um novo regime autoritário capitalista.8 Mesmo que a facção neoliberal da classe dominante vença a próxima eleição presidencial, derrubando Trump e substituindo-o por Joe Biden, uma aliança neoliberal-neofascista, reflexo de necessidades internas da classe capitalista, provavelmente continuará a formar a base de poder estatal sob o capitalismo financeiro-monopolista.

Simultaneamente à configuração dessa nova política reacionária, ressurge, nos Estados Unidos, um movimento em prol do socialismo, cuja base é composta da maioria da classe trabalhadora e de intelectuais dissidentes. O fim da hegemonia dos EUA dentro da economia mundial, acelerado pela globalização da produção, enfraqueceu a antiga aristocracia operária, de base imperialista, em certos setores privilegiados da classe trabalhadora, o que conduziu ao ressurgimento do socialismo.9 Confrontado com o que Michael D. Yates chamou de “a grande desigualdade”, o grosso da população dos Estados Unidos, especialmente os jovens, tem cada vez menos perspectivas, encontrando-se em um estado de incerteza e, frequentemente, desespero, marcado por um aumento dramático nas “mortes por desespero”.10 Eles estão cada vez mais alienados de um sistema capitalista que não lhes oferece nenhuma esperança e são atraídos pelo socialismo como a única alternativa genuína.11 Embora a situação estadunidense seja única, forças objetivas semelhantes, que impulsionam o ressurgimento dos movimentos socialistas, estão presentes em outras partes do sistema, principalmente nos países do sul, em uma era de contínua estagnação econômica, financeirização e declínio ecológico universal.

Se, porém, o socialismo parece estar novamente em ascensão, no contexto da crise estrutural do capitalismo e do aumento da polarização entre classes, fica o questionamento: que tipo de socialismo é esse e de que maneiras ele difere do socialismo do século XX? Boa parte do que está sendo chamado de socialismo nos Estados Unidos e outras partes do globo tende para a social-democracia, na busca de uma aliança com os liberais de esquerda e, portanto, com a ordem existente, na vã tentativa de fazer o capitalismo funcionar melhor por meio do fomento à regulação e ao bem-estar social, em oposição direta ao neoliberalismo, mas em uma época em que o próprio neoliberalismo está dando lugar ao neofascismo.12 Movimentos como esses são canoas furadas no atual contexto histórico, pois é inevitável que traiam as esperanças suscitadas, já que se concentram na mera democracia eleitoral. Felizmente, também estamos vendo hoje o crescimento de um socialismo genuíno, evidente na luta extraeleitoral, na intensificação da ação de massas e no apelo a ir além dos parâmetros do sistema vigente, a fim de reconstituir a sociedade como um todo.

A inquietação geral latente na base da sociedade dos Estados Unidos veio à tona nas revoltas de fins de maio e junho deste ano, que assumiram a forma, praticamente inédita na história do país desde a Guerra de Secessão, de enormes manifestações de solidariedade, com milhões nas ruas, e com a classe trabalhadora branca, e a juventude branca em particular, desafiando o racismo em resposta ao linchamento de George Floyd, morto pela polícia apenas por ser negro.13 Esse foi o estopim, em meio à pandemia do coronavírus e à depressão econômica, dos furiosos dias de junho nos EUA.

Entretanto, embora o movimento em direção ao socialismo, crescente agora até mesmo nos Estados Unidos, “coração bárbaro” do sistema, avance como resultado de forças objetivas, falta-lhe uma base subjetiva adequada.14 Um grande obstáculo à formulação de objetivos socialistas estratégicos no mundo atual tem a ver com o abandono, por parte do socialismo do século XX, de seus próprios ideais, originalmente articulados na visão comunista de Karl Marx. Para entender o problema, é preciso ir além das recentes tentativas da esquerda de compreender filosoficamente o comunismo, o que levou, na última década, a percepções abstratas da “ideia comunista”, da “hipótese comunista” e do “horizonte comunista” debatidos por Alain Badiou, entre outros.15 Em vez disso, é necessário um ponto de partida historicamente mais concreto, que focalize diretamente a teoria de duas fases do desenvolvimento socialista/comunista que emergiu da Crítica do programa de Gotha, de Marx, e de O Estado e a revolução, de Lênin. O artigo de Paul M. Sweezy, “Communism as an Ideal”, publicado há mais de meio século na Monthly Review de outubro de 1963, é um texto clássico a esse respeito.16

O comunismo de Marx como ideal socialista

Na Crítica do programa de Gotha ― escrito em desafio às noções economicistas e trabalhistas do ramo da social-democracia alemã influenciado por Ferdinand Lassalle ― Marx designou duas “fases” históricas na luta para criar uma sociedade de produtores associados. A primeira fase seria iniciada pela “ditadura revolucionária do proletariado”, refletindo a experiência de guerra entre classes da Comuna de Paris e representando um período de democracia operária, mas um que ainda teria as “distorções” da sociedade de classes capitalista. Nessa fase inicial, haveria não apenas uma ruptura com a propriedade privada capitalista, mas também uma ruptura com o Estado capitalista como estrutura de comando político.17 Como reflexo da natureza limitada da transição socialista nessa fase, a produção e a distribuição tomariam, inevitavelmente, a forma de “a cada um segundo seu trabalho”, perpetuando as condições de desigualdade ao mesmo tempo em que criava as condições para transcendê-las. Em contraste, na fase posterior, o princípio norteador da sociedade mudaria para “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, com a eliminação do sistema salarial.18 Do mesmo modo, enquanto a fase inicial do socialismo/comunismo exigiria a formação de uma nova estrutura de comando político no período revolucionário, o objetivo na fase superior era encolher o Estado como aparato separado, acima da sociedade e em relação antagônica com ela, e substituí-lo por uma forma de organização política que Frederick Engels chamou de “comunidade”, associada a um modo de produção de base comunitária.19

Na última fase, superior, da transição socialista/comunista, não apenas a propriedade seria possuída e controlada coletivamente, mas as células constitutivas da sociedade seriam reconstituídas sobre um alicerce comunal, e a produção estaria nas mãos dos produtores associados. Nessas condições, afirmou Marx, o “trabalho” terá se tornado não um “mero meio de vida”, mas ele mesmo “a primeira necessidade vital”.20 A produção seria direcionada para valores de uso e não para valores de troca, em consonância com uma sociedade em que “o livre desenvolvimento de cada um” seria “a condição para o livre desenvolvimento de todos”. A abolição da sociedade de classes capitalista e a criação de uma sociedade de produtores associados levaria ao fim da exploração de uma classe por outra, além da eliminação das divisões entre trabalho mental e manual e entre cidade e campo. A família monogâmica patriarcal baseada na escravidão doméstica das mulheres também seria superada.21 Fundamental para a visão de Marx da fase superior da sociedade de produtores associados era um novo metabolismo social da humanidade e da terra. Em sua afirmação mais geral sobre as condições materiais que governariam a nova sociedade, escreveu: “Aqui [no reino da necessidade natural], a liberdade não pode ser mais do que fato de que o homem socializado, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza… com o mínimo emprego de forças possível” no processo de promover condições para um desenvolvimento humano sustentável.22

Em O Estado e a revolução e em outros escritos, Lênin capta habilmente os argumentos de Marx sobre a fase inferior e a superior, descrevendo-as como a primeira e a segunda fase do comunismo. Continuou enfatizando o que chamou de “a distinção científica entre socialismo e comunismo”, em que “o que normalmente é chamado de socialismo foi definido por Marx como a ‘primeira fase’, inferior, da sociedade comunista”, enquanto o termo comunismo, significando “comunismo completo”, seria mais apropriado para designar a fase superior.23 Embora Lênin tenha alinhado estreitamente essa distinção à análise de Marx, no marxismo oficial posterior ela se engessou em dois estágios totalmente separados, com o chamado estágio comunista tão afastado do estágio socialista que aquele se tornou utópico, não mais visto como parte de uma luta contínua ou atual. Com base em uma concepção artificial do estágio socialista e do princípio intermediário de distribuição “a cada um segundo seu trabalho”, Joseph Stálin empreendeu uma guerra ideológica contra o ideal de uma igualdade verdadeira, que ele caracterizou como um “absurdo reacionário pequeno-burguês digno de uma seita primitiva de ascetas, mas não de uma sociedade socialista organizada na linha marxista”. Essa mesma postura persistiria na União Soviética, de um jeito ou de outro, até Mikhail Gorbachev.24

Portanto, como explica Michael Lebowitz em The Socialist Imperative, “ao invés de uma luta contínua para ir além do que Marx chamou de ‘distorções’ herdadas da sociedade capitalista, a interpretação padrão” do marxismo no período do final dos anos 1930 ao final dos anos 1980 “introduziu uma divisão da sociedade pós-capitalista em dois ‘estágios’ distintos”, determinados economicamente pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Mudanças fundamentais nas relações sociais, enfatizadas por Marx como essenciais à trajetória socialista, foram abandonadas no processo de convivência e adaptação às distorções herdadas da sociedade capitalista. Em vez disso, Marx insistiu em um projeto que visava construir a comunidade de produtores associados “desde o início” como parte de um processo contínuo, embora necessariamente desigual, de construção socialista.25

Este abandono do ideal socialista associado à fase superior do comunismo de Marx foi concluído, de maneira complexa, pela mudança das condições materiais (e de classe) e, por fim, pelo desaparecimento das sociedades de tipo soviético, que tendiam a estagnar assim que deixassem de ser revolucionárias e até mesmo ressuscitavam formas de classe, colapsando por fim quando a nova classe ou nomenklatura abandonava o sistema. Como defendeu Sweezy em 1971, “a propriedade estatal e o planejamento não são suficientes para definir um socialismo viável, imune à ameaça de retrocesso e capaz de avançar na segunda etapa do movimento para o comunismo”. Era preciso algo mais: a luta contínua para criar uma sociedade de iguais.26

Para Marx, o movimento em direção a uma sociedade de produtores associados era a própria essência do caminho socialista embutido na “consciência comunista”.27 No entanto, uma vez que o socialismo passou a ser definido em termos mais restritivos e economicistas, particularmente na União Soviética a partir do final dos anos 1930, onde se defendeu a desigualdade substancial, a sociedade pós-revolucionária perdeu a conexão vital com a luta dúplice por liberdade e necessidade, desconectando-se, assim, dos objetivos de longo prazo do socialismo, dos quais antes havia tirado seu significado e coerência.

Com base nessa experiência, é evidente que a única maneira de construir o socialismo no século XXI é abraçar precisamente os aspectos do ideal socialista/comunista que permitam uma teoria e prática radicais o bastante para atender às necessidades urgentes do presente, sem perder de vista as necessidades do futuro. Se a crise ecológica planetária nos ensinou alguma coisa, foi que precisamos de um novo metabolismo social com a Terra, uma sociedade de sustentabilidade ecológica e igualdade substantiva. Isso pode ser visto nas realizações extraordinárias da ecologia cubana, como recentemente demonstrado por Mauricio Betancourt em “The Effect of Cuban Agroecology in Mitigating the Metabolic Rift”, atigo publicado no periódico Global Environmental Change.28 Isso está de acordo com o que György Lukács chamou de “dupla transformação” necessária das relações sociais humanas e das relações humanas com a natureza.29 Tal projeto emancipatório deve necessariamente passar por diversas fases revolucionárias, que não podem ser previstas com antecedência. No entanto, para ter sucesso, uma revolução deve procurar tornar-se irreversível por meio da promoção de um sistema orgânico voltado para as verdadeiras necessidades humanas, enraizado na igualdade substantiva e na regulação racional do metabolismo social humano com a natureza.

[continua]

Notas

Karl Marx, Capital, vol. 1 (Londres: Penguin, 1976), 799. O capitalismo da catástrofe, nesse sentido, é diferente do capitalismo do desastre de Naomi Klein. Naomi Klein, The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism (New York: Henry Holt, 2007). A noção de Klein concentra-se em como o neoliberalismo, como um projeto político-econômico do capitalismo, tem buscado explorar sistematicamente desastres de todos os tipos, muitos deles próprios do capitalismo, para impor como solução uma “doutrina de choque”, projetada de modo a aumentar ainda mais o poder capitalista. A noção de capitalismo de catástrofe empregada aqui trata, por outro lado, do crescimento cumulativo do potencial catastrófico como uma característica inerente a um modo de produção que coloca a acumulação de capital acima de todos os outros fins sociais (e ecológicos), o que resulta na universalização da tendência para catástrofes. Ver John Bellamy Foster, “Capitalism and the Accumulation of Catastrophe”, Monthly Review 63, no. 7 (dezembro de 2011): 1–17.

Para descrições concretas dessas catástrofes iminentes convergentes, consulte John Bellamy Foster e Robert W. McChesney, The Endless Crisis (Nova York: Monthly Review Press, 2012); John Bellamy Foster e Brett Clark, The Robbery of Nature (Nova York: Monthly Review Press, 2020): 238–87; John Bellamy Foster e Intan Suwandi, “COVID-19 and Catastrophe Capitalism”, Monthly Review 72, no. 2 (junho de 2020): 1–20; e Mike Davis, The Monster Enters (Nova York: OR, 2020).

Samir Amin, Empire of Chaos (Nova York: Monthly Review Press, 1992).

Ver Ian Angus, Facing the Anthropocene (Nova York: Monthly Review Press, 2016), 25: James Hansen, Storms of My Grandchildren (New York: Bloomsbury, 2009). Mesmo o esforço para zerar o valor líquido das emissões até 2050, embora incorporado aos Acordos de Paris, não é suficiente e se baseia em suposições irrealistas sobre tecnologias que hoje não existem em grande escala e podem nunca ser viáveis. A realidade é que o orçamento de carbono, determinado pelas emissões restantes possíveis (com 67% de chance de manter a temperatura média global abaixo de 1,5 °C), será estourado em apenas oito anos, se tudo continuar como está. Ver Greta Thunberg, Speech at the World Economy Forum, Davos, 21 de janeiro de 2020.

Johan Rockström et al., “A Safe Operating Space for Humanity,” Nature 461, no. 24 (2009): 472–75; William Steffen et al., “Planetary Boundaries”, Science 347, no. 6223 (2015): 745–46; Michael Friedman, “GMOs: Capitalism’s Distortion of Biological Processes”, Monthly Review 66, no. 10 (março de 2015): 19–34.

István Mészáros, Beyond Capital (Nova York: Monthly Review Press, 1995), 39–71.

Karl Marx, Capital, vol. 3 (Londres: Penguin, 1981), 362.

Ver John Bellamy Foster, Trump in the White House (Nova York: Monthly Review Press, 2017).

Foi Engels quem primeiro defendeu, em um artigo de 1885 para o Commonweal, editado por William Morris (uma análise que mais tarde foi incorporada ao prefácio da edição inglesa de 1892 de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra), que o desenvolvimento de um movimento trabalhista de cunho socialista foi possível na Grã-Bretanha pela primeira vez em meados da década de 1880 devido ao declínio da aristocracia operária (consistindo principalmente de homens adultos e excluindo mulheres, crianças e imigrantes) ocasionado pelo declínio da hegemonia imperial da Grã-Bretanha. Karl Marx e Frederick Engels, Collected Works, vol 26 (New York: International Publishers, 1975), 295–301. A famosa análise de Lênin sobre a aristocracia operária foi construída com base nessa concepção de Engels. Ver também Martin Nicolaus, “The Theory of the Labour Aristocracy”, Monthly Review 21, no. 11 (abril de 1970): 91–101; Eric Hobsbawm, “Lenin and the ‘Aristocracy of Labour’”, Monthly Review 21, no. 11 (abril de 1970): 47–56.

Anne Case e Angus Deaton, Deaths of Despair and the Future of Capitalism (Princeton: Princeton University Press, 2020).

Michael D. Yates, “The Great Inequality”, Monthly Review 63, no. 10 (março de 2012): 1–18.

Em seu The Socialist Manifesto, Bhaskar Sunkara apresenta uma imagem de Marx, divorciada da Crítica do Programa de Gotha, segundo a qual Marx e Engels imaginaram um futuro, no Manifesto Comunista e outros escritos, em que “um estado democrático radicalmente transformado possuísse a propriedade anteriormente privasa e a usasse racionalmente, sob a direção e para o benefício do povo”. Em vez de uma tentativa de uma descrição precisa dos pontos de vista de Marx, tal análise visa simplesmente apoiar sua própria versão de uma “social-democracia com luta de classes”. Bhaskar Sunkara, The Socialist Manifesto (Nova York: Basic, 2019), 48, 216-17.

Ver “Notes from the Editors”, Monthly Review 72, no. 3 (julho a agosto de 2020).

Curtis White, The Barbaric Heart (Sausalito: PoliPoint, 2009).

Alain Badiou, “The Communist Hypothesis,” New Left Review 49 (2008): 29-42; Alain Badiou, “The Idea of Communism”, em The Idea of Communism, ed. Costas Douzinas e Slavoj Žižek (Londres: Verso, 2010): 1–14; Alain Badiou, The Communist Hypothesis (Londres: Verso, 2015); Jodi Dean, The Communist Horizon (Londres: Verso, 2018).

Paul M. Sweezy, “Communism as an Ideal”, Monthly Review 15, no. 6 (outubro de 1963): 329–40.

Karl Marx, Critique of the Gotha Program (Nova York: International Publishers, 1938), 9–10, 18. Aqui Marx usou a terminologia de “a primeira fase da sociedade comunista” e “a fase superior da sociedade comunista”. Esta edição da Crítica do Programa de Gotha inclui cartas e anotações de Marx, Engels e Lênin, além de passagens de O Estado e a revolução, de Lênin. Sobre a Comuna de Paris, ver Karl Marx e Friedrich Engels, Writings on the Paris Commune, ed. Hal Draper (Nova York: Monthly Review Press, 1971); Badiou, The Communist Hypothesis, 127-71.

Marx, Critique of the Gotha Program, 6–10, 14; Karl Marx, “Value, Price, and Profit”, em Wage Labor and Capital/Value, Price and Profit (Nova York: International Publishers, 1935), 62.

Marx, Critique of the Gotha Program, 10, 17 (Marx), 31 (Engels), 47-56 (Lênin); Marx e Engels, Collected Works, vol. 25, 247, 267–68. Para o significado, ainda relevante, da ideia de decadência do Estado, ver Mészáros, Beyond Capital, 460-95; Henri Lefebvre, The Explosion (Nova York: Monthly Review Press, 1969), 127-28.

Marx, Critique of the Gotha Program, 10; Sweezy, “Communism as an Ideal”, 337-38.

Karl Marx e Frederick Engels, The Communist Manifesto (Nova York: Monthly Review Press, 1964), 34-35, 41.

Marx, Capital, vol. 3, 959.

I. Lênin, Selected Works: One-Volume Edition (Nova York: International Publishers, 1976), 334.

Isaac Deutscher, Stalin: A Political Biography (Oxford: Oxford University Press, 1967), 338; Sweezy, em Paul M. Sweezy e Charles Bettelheim, On the Transition to Socialism (Nova York: Monthly Review Press, 1971), 127.

Michael Lebowitz, The Socialist Imperative (Nova York: Monthly Review Press, 2015). 71; Karl Marx, Grundrisse (Londres: Penguin, 1973), 171-72. Ver também Peter Hudis, Marx’s Concept of the Alternative to Capitalism (Boston: Brill, 2012), 190.

Sweezy, em Sweezy and Bettelheim, On the Transition to Socialism, 131.

Marx e Engels, Collected Works, vol. 5, 52.

Mauricio Betancourt, “The Effect of Cuban Agroecology in Mitigating the Metabolic Rift: A Quantitative Approach to Latin American Food Production,” Global Environmental Change 63 (2020): 1–9.

György Lukács, The Ontology of Social Being, vol. 2, Marx’s Basic Ontological Principles (Londres: Merlin, 1978), 6.


FONTE: Controvérsia

sábado, 5 de dezembro de 2020

Biografia: Leoncio Basbaum (1907-1969):




Filho de imigrantes judeus da Bessárabia, atual Moldávia, que chegaram ao Brasil no início do século, indo morar na capital de Pernambuco. Em Recife, já em 1918, com apenas 11 anos, participaria da passeata de comemoração do fim da 1ª. Guerra Mundial. Após concluir seus estudos preparatórios em 1924, Basbaum foi para o Rio de Janeiro, ingressando posteriormente na Faculdade de Medicina da Praia Vermelha. Nesta época escreveu alguns contos e artigos para a revista Número.

Em Recife no início de 1925, entra em contato com o comunismo e toma conhecimento da existência do Partido Comunista do Brasil(PCB). No início de 1926, passa a trabalhar como revisor na Gazeta de Notícias. Neste período conhece Abelardo Nogueira, membro do PCB e amigo de Brandão, participando com estes das comemorações do 1º. de maio, e filiando-se ao PCB.

Em 1926, integra a 1ª. Diretoria da recém-fundada União dos Trabalhadores Gráficos (UTG). No fim deste ano deixa a Gazeta de Notícias dedicando-se ao seu curso de medicina. Em 1927 vai para Recife e por indicação de Astrogildo Pereira começa a organizar a Juventude Comunista na região fundando o 1º. Comitê Regional da futura Juventude Comunista (JC). Dois meses depois, vai para Salvador com o mesmo objetivo. De volta ao Rio de Janeiro, em abril de 27, é convidado por Astrogildo Pereira para comparecer a uma reunião da Comissão Central Executiva (CCE) do PCB, na qual apresenta um relatório de suas atividades no Nordeste. Após esta reunião, passaria a integrar a CCE e seria encarregado de organizar a juventude do partido a nível nacional. 

Em 1° de agosto de 1927, na sede da União dos Trabalhadores Gráficos seria fundada a Juventude Comunista Brasileira (JCB), sendo Basbaum escolhido para Secretário-Geral, e responsável pela edição do jornal O Jovem Proletário. Nesse período, apoiaria as decisões e gestões do partido no sentido de uma aproximação com Luiz Carlos Prestes, fato que provocaria uma cisão no interior da JC. 

Leôncio Basbaum sofre a sua primeira prisão no início de 1928, ficando oito dias detido. Neste ano é escolhido para participar como representante brasileiro da JC no V Congresso do KIM, além de integrar a delegação do PCB, ao lado de Paulo Lacerda e Morales, que se dirigiam ao IV Congresso da Internacional Comunista. A seguir, trabalhou na organização do III Congresso do PCB e no I Congresso da Juventude Comunista. No III Congresso Basbaum seria eleito para o Comitê Central do Partido, sem deixar a Juventude Comunista. 

Em 1929, como membro do Secretariado Político, passa a ocupar a Secretaria-Geral, e ocuparia ainda a Secretaria de Agitação e Propaganda. Tendo sido escolhido para liderar a delegação do PCB na 1ª. Conferência Latino-Americana dos PC's, que se realizou em Buenos Aires, em junho de 1929, foi encarregado de após a Conferência, entrar em contato com Prestes para, em nome do partido, propor-lhe a candidatura a presidência da república pelo PCB, nas eleições de 30, convite que Prestes recusaria.

De volta ao Rio, Basbaum, revendo sua posição anterior, critica a possível aliança com Prestes durante uma reunião do CC, tendo sido sua posição mal aceita. A partir de 1930, com a implementação da política de proletarização do PCB, Basbaum seria afastado do Secretariado Político. Em função disso é enviado a São Paulo a serviço do "Comitê Militar Revolucionário", além de trabalhar na candidatura de Minervino de Oliveira à presidência da república. Mais tarde, parte para a Bahia, sendo preso após o movimento da Aliança Liberal. Em janeiro de 1931, após ser libertado, volta ao Rio de Janeiro, sendo informado de sua expulsão do CC, juntamente com Astrogildo Pereira e Paulo de Lacerda.

Em 1931 é preso e depois deportado para o Uruguai. Ao chegar em Montevidéu, participou de uma reunião do Secretariado Sul-Americano, tecendo críticas a política de proletarização. Nessa oportunidade, entraria em contato com Augustin Guralski e Harry Berger, líderes da IC na América Latina. Após ter participado, em novembro de 1931, da organização da Conferência Regional do PCB e da Conferência Sindical, foi escolhido, em janeiro de 32, Secretário-Geral do CR paulista. Em maio desse ano, com o afastamento de Paulo de Lacerda do Secretariado, Basbaum passaria a integrar o Secretariado Político, assumindo a Secretaria de Agitação e Propaganda. Em janeiro de 1933 é designado pela IC para organizar "O Comitê de Luta Contra a Guerra". Em fevereiro, é criticado em uma reunião do CC, acusado de "pequeno-burguês". Em função disso afasta-se do partido, mantendo sua posição crítica em relação à política obreirista.

No ano de 1934, participará, como membro da diretoria, da Liga Anti-Fascista, o que vai lhe custar nova prisão. Ao ser solto é transferido para a filial das Lojas Brasileiras em Salvador, sabendo pouco depois de sua expulsão do PCB.

Estando afastado do partido, não participaria do movimento de 35. Em 1936 o CC reconhece a irregularidade de sua expulsão, e Basbaum volta a atuar no PCB, ficando responsável pelo CR da Bahia, onde permanece até 1939. Retorna ao Rio de Janeiro, onde escreveria o livro Introdução ao Estudo da Filosofia. Em 1940 seria novamente preso em função de sua militância. Em 1942 passa a trabalhar na reorganização do PCB, cooperando na formação da "Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP). Apesar de sua militância não é convidado a participar da "Conferência da Mantiqueira".

No início de 1944, trabalha na organização de uma editora para o PCB, que recebe o nome de "Vitória". Neste mesmo ano, é publicada a edição brasileira de seu livro Fundamentos del Materialismo, publicado em 1943 na Argentina. No ano de 1945 foi encarregado de alojar Luiz Carlos Prestes em sua casa, com a finalidade de protegê-lo. Deixa a direção da editora Vitória, passando a trabalhar na Comissão Nacional de Finanças do partido, além de organizar grupos de assistência a militantes estrangeiros no Brasil. Em 1946, trabalharia na organização da Conferência Nacional do PCB, embora não participe desta. Em 1947, com a decretação da ilegalidade do partido, a Comissão de Finanças seria dissolvida, ficando Basbaum sem tarefas. Mais tarde é procurado pelo Comitê Nacional para articular um órgão com as mesmas características do extinto Socorro Vermelho, que se chamaria "Associação Brasileira de Assistência Social (ABAS), sendo escolhido seu Secretário-Geral. Em função desse trabalho é preso, e negando-se a retratar-se perante a direção da empresa, demite-se das Lojas Brasileiras.

No ano de 1950 elogia o rompimento com a "política de cooperação" do partido, apoiando o Manifesto de Agosto e a "Frente Popular de Libertação Nacional". No ano de 1952 se afastaria gradativamente do PCB. Em 1954, Leôncio Basbaum criticaria as diretrizes do IV Congresso do PCB. Em 1957, trabalhou na revista Novos Tempos que publicou o primeiro volume de seu livro História Sincera da República. No ano seguinte se matricula no Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB), publica o segundo volume de sua obra, e afasta-se definitivamente do PCB.




No final de 60 tenta criar uma organização política capaz de substituir o PCB, com um pequeno grupo de ex-membros e simpatizantes. Esse projeto seria interrompido com o recebimento de um convite para visitar a Iugoslávia. De volta ao Brasil, funda sua própria editora Agência Literária (Edaglit), publicando entre outras obras seu livro No Estranho País dos Iugoslavos, e em 1962, o terceiro volume da História Sincera da República. No início de 62 funda o Movimento Unitário do Povo Brasileiro (MUPB), sendo eleito presidente da organização, que duraria pouco tempo, e que lhe custaria a acusação pelo PCB de divisionista. 

No início de 1964 publicaria o seu livro O Processo Evolutivo da História, antes do fechamento de sua editora pelo governo militar. Em maio de 1965, embarca para a Europa, retornando em 66. Em 1967 viaja pela América Latina, seguindo para o México e logo em seguida para os EUA, sendo convidado pelo Prof. Ellison para ministrar uma palestra sobre o Brasil na Universidade de Austin. Retornando ao Brasil, seria convidado por alguns amigos do partido a reingressar no PCB, não aceitando o convite. Em 1968, publicaria o quarto volume da História Sincera da República.

No dia 17 de março de 1969, aos 61 anos de idade, Leôncio Basbaum faleceu em São Paulo, deixando incompleta sua auto-biografia Uma Vida em Seis Tempos. 

(Fonte: Partido Comunista Brasileiro - Caminhos da Revolução (1929-1935).

Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1995). 

FONTE: Marxists Internet Archive


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O socialismo do futuro

Por Giorgio Napolitano


1. Se nossa intenção é suscitar uma discussão criativa, livre de qualquer preconceito, é necessário reconsiderar o próprio conceito de "sociedade socialista", o objetivo mesmo de "construção" de uma sociedade socialista. Tal conceito e tal objetivo remetem a uma contraposição radical entre relações de produção capitalistas e relações de produção socialistas, entre leis econômicas do capitalismo e leis econômicas do socialismo; contraposição essa que tem sido duramente posta a prova pelas múltiplas experiências históricas, por disputas teóricas complexas, por novas tendências emergentes em escala mundial.

Deve-se observar que, se respeitamos a identificação entre socialismo e propriedade coletiva dos meios de produção, se reconhecemos a exigência de uma combinação entre diversas formas (privada, estatal, cooperativa) de propriedade dos meios de produção, se reconhecemos que o mercado tem um papel não marginal também em relação à utilização possível de instrumentos de planejamento, torna-se difícil definir e prefigurar uma "sociedade socialista" como sistema econômico e social que funciona com base em mecanismos totalmente antitéticos aos do sistema capitalista.

Já pertence ao passado a disputa sobre a via a seguir, que por décadas dividiu o movimento operário europeu. Faz tempo que a alternativa revolucionária tornou-se inapresentável. Mas hoje, também, parece altamente problemática a meta a ser alcançada através da luta pelo socialismo. O que está em questão não são as contradições do desenvolvimento capitalista, mas seu desenlace, ou seja, pergunta-se se ao aprofundamento daquelas contradições pode seguir-se a "construção" de uma ordem totalmente diversa.

Além disso, a construção de uma sociedade socialista tem sido tradicionalmente concebida como irreversível: como se o conceito de irreversibilidade pudesse ser conciliado com uma opção de respeito pleno pelo jogo democrático. É insuficiente afirmar que o advento de uma sociedade socialista não deve ser concebido em termos de uma derrubada violenta da ordem existente, mas como resultado de um processo histórico objetivo apoiado por uma ação política para a transformação gradual da sociedade. É necessário ter claro que conquistas de tipo socialista podem seguir-se como efeito da alternância entre forças de esquerda e forças conservadoras no governo de qualquer país -fases de "restauração", de cancelamento ou redimensionamento dessas conquistas, em um processo muito menos linear e objetivo do que se poderia imaginar a partir de certas versões do marxismo.

Levando tudo isso" em conta, parece mais sustentável uma definição de socialismo como conjunto de fins e de valores inseparáveis do desenvolvimento da democracia: fins e valores a serem reformulados e perseguidos no contexto de economia e sociedades capitalistas já profundamente transformadas e em vias de transformações ulteriores, e isso, de modo geral, no contexto de um mundo cada vez mais interdependente.

Nos países da Europa ocidental, o movimento operário e os partidos de esquerda, partindo da defesa dos interesses materiais da classe trabalhadora, esforçaram-se de fato, nas últimas décadas, em traduzir passo a passo os fins e valores do socialismo em objetivos de reforma, de gradual modificação das relações de classe e das tendências "espontâneas" do desenvolvimento capitalista. Hoje faz-se necessário identificar novos objetivos de reforma, novos objetivos de correção, de qualificação e de governo do desenvolvimento global da sociedade. A discussão, do ponto de vista do socialismo, sobre a validade de tais objetivos e dos resultados que possam ser alcançados através da luta política e social, permanecerá sempre aberta, não existindo nenhum texto sagrado ou autoridade de onde possa emanar um juízo inapelável. Mas pode-se pensar em padrões de medida amplamente compartilha dos para apreender o significado e o porte dos programas elaborados pelas esquerdas e dos resultados conseguidos, também, e especialmente, através da ação de governo.

A definição proposta não é, portanto, a mais "cômoda": elimina o álibi de uma referência qualquer ao futuro, e estimula a avaliação concreta dos elementos de mudança efetiva que as forças de inspiração socialista podem introduzir na sociedade. De fato, foi e é mais "cômodo" referir a própria identidade e o compromisso socialista à, mais do que nunca hipotética, "construção de uma sociedade socialista" num futuro distante, e eximir-se de qualquer esforço e qualquer verificação da coerência entre seus próprios objetivos e comportamentos atuais e os ideais do socialismo.

2. Em que medida e em que sentido se reduziram, comparando-se ao passado, os espaços para estratégias socialistas enquanto estratégias nacionais, e em que medida mudaram os conteúdos e os horizontes dessa estratégia?

Pode-se dizer que, até a reviravolta ocorrida na primeira metade dos anos 70 em conseqüência do choque do petróleo, as forças de esquerda implementaram, em alguns países da Europa ocidental, estratégias de caráter nacional obtendo visíveis sucessos. A melhoria substancial das condições econômicas, sociais e culturais dos trabalhadores bem como o progresso civil geral, conseguidos em alguns países - graças a ação sindical e política, às batalhas de oposição e aos períodos de governo de esquerda - podem ser considerados como um progresso relevante do movimento para o socialismo. Mas a partir da crise do petróleo aceleram-se enormemente os fenômenos de interdependência e os processos de inovações tecnológicas e de internacionalização da economia.

Também do ponto de vista da política externa, a dimensão nacional parece cada vez mais insuficiente, com respeito ao período precedente, no qual partidos socialistas e social-democratas no governo - refiro-me ao SPD ou ao partido social-democrata sueco - deram contribuições importantes no plano das relações internacionais a partir da máxima valorização do fator nacional.

O dado mais evidente é constituído pelo crescente condicionamento recíproco entre políticas econômicas e monetárias dos países membros da Comunidade Européia; pelo novo desenvolvimento do processo de integração européia sancionado pelo Ato Único de 1985; pela maior importância assumida pelas iniciativas comuns de política externa dos "doze". Parece ser possível afirmar que pelo menos os partidos mais representativos de esquerda já reconheceram, em linhas gerais, a necessidade de conferir uma dimensão européia às suas estratégias de reforma, de desenvolvimento econômico, de progresso social, e de enquadrar sua estratégia nacional numa perspectiva mais ampla de coordenação e de ação conjunta no nível da Comunidade.

Mas as conexões entre o desenvolvimento da Europa ocidental e o desenvolvimento nas outras partes do mundo tornam-se cada vez mais estreitas, e as questões e desafios de caráter "global" assumem um peso cada vez maior. As situações nacionais de alguns países da Europa ocidental conservam, sem dúvida, fortes especificidades e continuam a desenvolver-se de modo diferenciado; no interior de alguns desses países os interesses das classes trabalhadoras, os princípios da igualdade e da justiça, os valores da liberdade, da democracia e da tolerância - próprios da tradição socialista - são sustentados através de plataformas concretas que levam em conta aquelas realidades específicas, suas peculiaridades históricas e os aspectos novos que essas realidades apresentam. Por outro lado, é fato que, não apenas se amplia a esfera dos problemas e dos objetivos comuns a todos os países da Comunidade Européia e a todos os partidos de esquerda que nela operam, como os vínculos de competição e as exigências de cooperação em escala européia e mundial condicionam cada vez mais a possibilidade de ações e escolhas a nível nacional. Encontrar um ponto de equilíbrio satisfatório, isto é, coerente com uma estratégia socialista, não é fácil.

Consideremos um exemplo concreto, Competição significa também empenho em salvaguardar e melhorar a posição relativa do próprio país no âmbito da Comunidade Européia e do processo de realização do mercado único. Poderá esse empenho - que implica políticas de reestruturação, de modernização, etc. - ser priorizado por uma força de esquerda em relação a políticas de reequilíbrio social, de luta contra o desemprego, de sustentação ou melhoria dos níveis salariais, e dos padrões de proteção para os trabalhadores? O problema, que certamente não é novo, da relação entre promoção dos interesses de classe e a representação dos interesses nacionais na ação dos governos de esquerda, recoloca-se hoje num contexto bem mais complexo, por efeito da aceleração contínua dos processos de integração e competição internacionais.

Ainda mais difícil e agudo, porém, está se tornando, do ponto de vista do socialismo, o problema da relação entre a ação das forças de esquerda nos países capitalistas mais desenvolvidos, nas sociedades mais ricas do Ocidente, e o empenho no sentido de alcançar novos equilíbrios no desenvolvimento econômico mundial, e particularmente no sentido de estabelecer relações novas e mais justas entre Norte e Sul. Esse pode ser considerado o grande desafio "global" do nosso tempo, no sentido de que para todos, mesmo do ponto de vista dos interesses dos países mais industrializados, a persistência e agravamento dos desequilíbrios atuais nos países mais pobres e mais populosos podem vir a produzir conseqüências catastróficas, sufocar as perspectivas de desenvolvimento geral da economia mundial, e dar lugar a convulsões e conflitos incontroláveis. Mas certamente as forças socialistas do Ocidente deveriam considerar como um compromisso irrenunciável, e mesmo qualificador do socialismo, o compromisso com respeito a iniciativas orientadas para a definição e implementação de políticas de abertura plena, de colaboração múltipla e de transferência de recursos para o Sul do mundo. Também daqui surgem condicionamentos não desprezíveis para as estratégias nacionais dos partidos da esquerda européia, constituindo-se em razões suficientemente fortes para se repensar os conteúdos e possibilidades dessas estratégias. Aliás, as próprias necessidades atuais de políticas de sustentação dos processos de reforma e recuperação das economias do Leste implicam revisões das políticas de utilização de recursos dos países da Europa ocidental.

No limite, a inversão da tendência ao reaparecimento e aprofundamento dos desequilíbrios e injustiças nas relações econômicas internacionais, a questão do estado de pobreza e atraso de tantas regiões do Terceiro Mundo, se apresenta como questão de sobrevivência da civilidade humana. Assim também se apresenta, sem dúvida - como se reconhece crescentemente - a questão da interrupção e da inversão dos processos de degradação do meio ambiente, sendo claro que esses últimos estão ligados tanto ao uso desregrado de recursos nos países mais desenvolvidos como à condição desesperada de imensas áreas subdesenvolvidas.

Definitivamente, dentro de uma nova visão de socialismo devem recompor-se hoje, em termos muito diversos dos de um passado não tão longínquo, interesses de classe, interesses nacionais, e interesses de sobrevivência da espécie. Deve-se enfatizar a formulação e persecução de objetivos de justiça e de progresso em escala supranacional e mundial. Não pode haver justificativa mais elevada para as ações das forças socialistas do que a de afastar ameaças extremas à civilização humana - começando, naturalmente, pela ameaça da guerra mundial - e de garantir um desenvolvimento equilibrado e qualificado de forma bem diversa.

3. A crise dos sistemas construídos e governados por partidos comunistas difunde-se tumultuadamente, e as tentativas de reforma empreendidas com grande coragem na União Soviética e em outros países, não apenas se deparam com grandes dificuldades como estão dando lugar a graves e até convulsivas tensões. Deve-se repelir a tese segundo a qual a falência do assim chamado socialismo real equivale à falência da idealidade do socialismo. Mas não há dúvida de que elementos essenciais da ideologia e da prática dos maiores partidos comunistas - em relação à sua concepção de conquista e exercício do poder, do papel do Estado e da gestão da economia da sociedade socialista como sociedade monolítica, da função do partido único da classe operária - conduziram, ao se cristalizarem, a resultados desastrosos; por outro lado, já há bastante tempo era impossível falar de um movimento comunista diverso das doutrinas e experiências dos partidos comunistas no poder, especialmente depois da falência da tentativa extrema do eurocomunismo, e não obstante a importância de uma realidade diversa e original como a do PCI.

Não se vê como, ao "fim do comunismo histórico" possa seguir-se um maldefinido retorno ao comunismo original ou um não menos vago neocomunismo. Não sabemos qual será o desfecho dos processos de reformas e democratização iniciadas no Leste, ou o desfecho das mudanças repentinamente impostas na Alemanha Oriental e na Tchecoslováquia, originadas de in-coercível impulso das bases. Isto é, não sabemos como será o "comunismo reformado". Mas já pudemos observar na Polônia, na Hungria e na própria União Soviética, o quanto são importantes. Como pontos de referência, as experiências ocidentais do Estado de direito, da democracia representativa e da economia de mercado. A reforma e a evolução das sociedades do "socialismo real" têm sido colocadas por Gorbatchev, com grande audácia ideal, numa perspectiva que não é mais a da antiga contra- posição entre socialismo e capitalismo (ou imperialismo), mas na perspectiva de uma necessária cooperação e integração entre diversos sistemas no mundo de hoje e de amanhã: um mundo cada vez mais interdependente, "um mundo único". Longe estão as velhas idéias de "convergência", e não só porque apenas o "sistema socialista", em crise manifesta, parece convergir para um sistema capitalista recuperado, nos países mais desenvolvidos, dos choques dos anos 70, mas porque deve-se pensar em processos mais vastos e complexos de interpenetração entre as diversas experiências (também no campo do ocidente) e de experimentação de múltiplas vias de desenvolvimento econômico e social.

No seu desenvolvimento, esse discurso contempla, com lúcida consciência crítica - especialmente quando se parte da crise dos esquemas ideológicos e dos sistemas comunistas - a realidade dos próprios países capitalistas mais industrializados e mais democráticos, bem como a realidade do Terceiro Mundo. Nos anos 80 as políticas (e ideologias) de exaltação máxima do imperativo da eficiência, da inovação, da competitividade, foram coroadas de sucessos tangíveis, ainda que envolvendo pesados custos sociais e civis. Nesses mesmos anos os países mais pobres e mais endividados do Sul retrocederam assustadoramente, enquanto as economias estatizadas e centralizadas de tipo socialista perdiam toda sua força de atração devido à exaustão e à crescente e clamorosa incapacidade de garantir os níveis de segurança social e igualdade que haviam constituído o traço característico de sua imagem. De tudo isto derivam novas responsabilidades para as forças democráticas e socialistas que não pretendem identificar-se com a lógica neoconservadora prevalente no Oeste nem com os velhos esquemas do Leste e que não pretendem fechar os olhos à explosiva realidade do Sul.

Os sistemas democráticos da Europa Ocidental não podem ignorar a crise de valores, o quadro de desigualdade e de marginalização, os fenômenos de concentração do poder, as devastações e incógnitas de um crescimento desordenado, que fazem parte do saldo de desenvolvimento e bem-estar com que se celebra o fim do penúltimo decênio do século. Compete às forças de esquerda orientar aqueles sistemas para uma decidida revisão das concepções e políticas prevalentes nos anos 80. Somente assim a democracia européia poderá colocar-se à altura de suas melhores tradições e das expectativas que o "socialismo real" despertou no Leste: não separando direitos de liberdade e pluralismo econômico e político de novos desenvolvimentos no terreno da justiça social, da gestão do poder e da proteção do interesse geral.

Compete também às forças de inspiração socialista, empenhadas em toda a Europa-, no limiar dos anos 90, no difícil esforço de seu próprio relançamento, olhar para além das fronteiras do Velho Continente, e recolher as questões assim formuladas recentemente por Norberto Bobbio: "Estarão as democracias que governam os países mais ricos do mundo em condições de resolver os problemas que o comunismo não conseguiu resolver? Este é o problema, O comunismo histórico está falido, ... somente os tolos alegram-se com sua derrota e esfregando as mãos de contentamento dizem: 'Nós sempre dissemos!' Oh iludidos, acreditais que o fim do comunismo histórico tenha posto fim ã necessidade e à sede de justiça? Não será bom se dar conta que, se no nosso mundo reina e prospera a sociedade dos dois terços que nada têm a temer do terço de pobres diabos, no resto do mundo a sociedade dos dois terços, ou dos quatro quintos ou dos nove décimos é a sociedade dos pobres?

A democracia venceu o desafio do comunismo histórico, admitamo-lo. Mas com que meios e ideais se dispõe a enfrentar os mesmos problemas que originaram o desafio comunista?**

A resposta às indagações de Bobbio pode não provir unicamente das forças de esquerda da Europa ocidental. Mas essas serão certamente chamadas a desempenhar um papel não secundário na busca de novas vias pacíficas e democráticas para fazer avançar a justiça no mundo. É ao sucesso dessa busca que se confia o futuro do socialismo.


* Tradução de Regis de Castro Andrade

** O artigo de Bobbio mencionado por Napolitano foi publicado por Lua Nova nº 21,         [ Links ] com o título "A utopia" (N. T.)

Giorgio Napolitano.  Dirigente do Partido Comunista Italiano, Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Partido e membro do Parlamentos italiano


FONTE: Scielo

domingo, 22 de novembro de 2020

Friedrich Engels: 200 anos

 

                                                        Desenho de David Maciel. Arte final de Alexandre Pimenta 
                                                                                      (editores de marxismo21)


MARXISMO21


Há 200 anos, em 28 de novembro de 1820, nascia Friedrich Engels, em Barmen, na então Prússia Renana. Filho de um industrial do ramo têxtil, cedo desvinculou-se política e filosoficamente de sua origem e condição de classe participando do movimento intelectual de crítica à realidade alemã promovido pelos jovens hegelianos e se aproximando dos operários fabris e de sua luta na cidade de Manchester (Inglaterra), para onde foi enviado pelo pai para administrar os negócios da família. Esta posição permitiu-lhe passar da crítica da religião e da filosofia para a crítica da economia politica e para a centralidade da “questão social”, antes mesmo de seu encontro com Marx.

Com Marx elaborou os fundamentos teóricos e políticos do materialismo histórico, para o qual contribuiu não só como pensador original, trazendo contribuições em diversos temas, mas também como militante revolucionário, organicamente ligado ao movimento operário. Junto com Marx militou na Liga dos Comunistas e participou ativamente da Revolução de 1848-49 na Alemanha, chegando a “pegar em armas” contra as forças da ordem. Graças à sua condição social burguesa, como sócio de uma empresa industrial, Engels contribuiu financeiramente durante décadas para a sobrevivência de dezenas de militantes revolucionários, não apenas para Marx como também para organizações de trabalhadores, que tinham nele um apoio material permanente.

Como pesquisador original, Engels estudou e produziu obras importantes sobre um notável leque de temas e disciplinas, que foram da filosofia, da economia politica, da antropologia e da história à biologia, à química e à física, além da arte militar e do que hoje chamaríamos “tecnologia”. Foi, assim, um típico intelectual do século XIX, quando a especialização acadêmica ainda não pesava como uma mortalha sobre o cérebro dos vivos. Após se libertar do “cativeiro egípcio”, apodo com o qual ele designava jocosamente o trabalho na administração dos negócios da família, passou a se dedicar de modo integral à elaboração intelectual e à militância política, produzindo algumas das obras fundamentais do aparato marx-engelsiano, tornando-se um dos principais dirigentes da Associação Internacional dos Trabalhadores e contribuindo para a criação e formação teórico-política dos primeiros partidos operários.

Após a morte de Marx tornou-se o legatário da obra do camarada d’armas e amigo, responsabilizando-se por sua divulgação e pela publicação de diversos trabalhos ainda inéditos, entre os quais os livros II e III d’O Capital (dos quais é um verdadeiro co-autor tamanho o volume de suas intervenções para sistematizar e mesmo complementar os manuscritos deixados por Marx). Em seus últimos anos, Engels tornou-se uma espécie “farol” do movimento socialista internacional, esclarecendo problemas conceituais e políticos suscitados pela ascensão do marxismo à condição de principal referência teórico-política do movimento operário e aconselhando dirigentes partidários e sindicais em sua luta cotidiana (apesar de nem sempre os dirigentes social-democratas seguirem seus conselhos!). Faleceu em Londres, em 5 de agosto de 1895, com 75 anos incompletos.

Durante muito tempo seus esforços para abordar temas das ciências físicas e naturais à luz do materialismo histórico e para sistematizar os resultados teóricos a que chegaram Marx e ele em suas pesquisas foram vistas como uma tentativa de transformar o materialismo histórico numa doutrina filosófico-científica global, capaz de tratar de qualquer assunto a partir determinados postulados apriorísticos, suscitando críticas de diversos autores, particularmente ligados à tradição do chamado marxismo ocidental, que viam neste esforço uma negação do método marxiano das “aproximações sucessivas”. Esses questionaram o senso comum no movimento socialista em torno da identidade entre os dois fundadores do materialismo histórico presente na entidade “Marx-Engels” como um mito fabricado com finalidades políticas pela social democracia e mais tarde pelo stalinismo (que incorporou Lênin e Stálin ao duo), insistindo nas diferenças entre os dois, e acusaram Engels de abrir as portas para a contaminação positivista do marxismo. Neste âmbito sua obra. passou a ser negligenciada, tida como irrelevante ou desviante da real perspectiva analítica de Marx. De “segundo violino”, como ele mesmo definiu seu papel na criação do materialismo histórico, Engels caiu para a condição de primeiro “marxista positivista”, o que contribuiu para o esquecimento de sua contribuição fundamental para áreas tão variadas como a historiografia, a antropologia, a sociologia do trabalho, a ciência política e a própria crítica da economia política.

No entanto, as pesquisas suscitadas pela edição das obras completas de Marx e Engels a partir dos anos 70 e a incorporação de suas contribuições como uma referência fundamental para pesquisas em áreas diversas das ciências sociais tem suscitado a retomada dos estudos em torno de sua obra e uma compreensão mais equilibrada e realista de sua contribuição para o marxismo, para as ciências sociais e para a luta revolucionária. O dossiê que ora publicamos se orienta nesta direção.

Editoria, 16 de novembro de 2020


FONTE: Portal do PCB

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Marx e ecossocialismo



Por Michael Löwy*


Ecologistas tradicionais frequentemente rejeitam Marx por considerá-lo “produtivista” e cego para problemas ecológicos. Um corpo crescente de escritos eco-marxistas tem sido desenvolvido recentemente nos Estados Unidos, o que contradiz agudamente esse senso comum. Os pioneiros desta nova linha de pesquisa foram John Bellamy Foster e Paul Burkett, seguidos por Ian Angus, Fred Magdoff e outros; eles contribuíram para transformar a Monthly Review em uma revista eco-marxista. Seu principal argumento é que Marx estava completamente ciente das consequências destrutivas da acumulação capitalista para o meio-ambiente, um processo que ele descreveu por meio do conceito de ruptura metabólica. Alguém pode discordar de algumas das interpretações feitas sobre os escritos de Marx, mas essas pesquisas foram decisivas para um novo entendimento da contribuição dele para a crítica ecológica do capitalismo.

Kohei Saito é um jovem acadêmico marxista japonês que pertence a essa importante escola eco-marxista. Seu livro, publicado pela Monthly Review Press, é uma contribuição muito valiosa para a reavaliação da herança Marxista, de uma perspectiva ecossocialista.

Uma das ótimas qualidades de sua obra é que – ao contrário de muitos outros acadêmicos – ele não trata os escritos de Marx como um conjunto sistemático de escritos, definidos, do início ao fim, por um forte compromisso ecológico (conforme alguns), ou por uma forte tendência não-ecológica (conforme outros). Como Saito muito persuasivamente argumenta, há elementos de continuidade na reflexão de Marx sobre a natureza, mas há também algumas mudanças muito significativas, e reorientações. Além disso, como o subtítulo do livro sugere, suas reflexões críticas sobre a relação entre economia política e meio ambiente estão “inacabadas”.

Dentre as continuidades, uma das mais importantes é a questão da “separação” capitalista entre os homens e a terra, isto é, a natureza. Marx acreditava que em sociedades pré-capitalistas existia uma forma de unidade entre os produtores e a terra, e ele viu como uma das tarefas chave do socialismo restabelecer a unidade original entre homens e natureza, destruída pelo capitalismo – mas em um patamar superior (negação da negação). Isso explica o interesse de Marx por comunidades pré-capitalistas, tanto em sua discussão ecológica (por exemplo, de Carl Fraas) ou em sua pesquisa antropológica (Franz Maurer): ambos os autores foram percebidos como “socialistas inconscientes”. E, é claro, em seu último documento importante, a carta para Vera Zassoulitsch (1881), Marx afirma que, com o fim do capitalismo, sociedades modernas poderiam retornar para uma forma elevada de um tipo “arcaico” de propriedade e produção coletivas. Eu argumentaria que isso pertence ao momento “anti-capitalista romântico” nas reflexões de Marx… Em todo caso, essa interessante percepção de Saito é muito relevante hoje, quando comunidades indígenas nas Américas, do Canadá à Patagônia, estão na linha de frente da resistência à destruição capitalista do meio-ambiente.

Não obstante, a principal contribuição de Saito é mostrar o movimento, a evolução das reflexões de Marx sobre a natureza, num processo de aprendizado, repensando e remodelando seus pensamentos. Antes d’O Capital (1867), alguém poderia achar na obra de Marx uma avaliação um tanto acrítica do “progresso” capitalista – uma atitude frequentemente descrita pelo termo mitológico vago “Prometeanismo”. Isso é óbvio no Manifesto Comunista, o qual celebra a capitalista “sujeição das forças da natureza ao homem” e a “limpeza de continentes inteiros para o cultivo”; mas isso também se aplica aos Cadernos de Londres (1851), aos Manuscritos econômicos de 1861-63, e a outros escritos daqueles anos. Curiosamente, Saito parece excluir o Grundrisse (1857-58) de seu criticismo, uma exceção que, em minha visão, não se justifica, considerando o quanto Marx admira, nesse manuscrito, “a grande missão civilizatória do capitalismo” em relação à natureza e às comunidades pré-capitalistas, prisioneiras de seu localismo e de sua “idolatria da natureza”!.

A mudança vem em 1865-66, quando Marx descobre, pela leitura dos escritos do químico agrícola Justus Von Liebig, os problemas da exaustão do solo e a ruptura metabólica entre sociedades humanas e ambiente natural. Isso levará, n’O Capital vol. 1 (1867) – mas também nos demais volumes interminados – à uma avaliação muito mais crítica da natureza destrutiva do “progresso” capitalista, particularmente na agricultura. Após 1868, pela leitura de outro cientista alemão, Carl Fraas, Marx vai descobrir também outras questões ecológicas importantes, tais quais desmatamento e alteração do clima local. De acordo com Saito, caso Marx tivesse sido capaz de terminar os volumes 2 e 3 d’O Capital, ele teria enfatizado com mais veemência a crise ecológica – o que também implica, ao menos implicitamente, que em seu estado inacabado atual não há ênfase forte o bastante sobre tais questões…

Isso leva-me ao meu principal desacordo com Saito: em diversas passagens do livro ele afirma que, para Marx, “a insustentabilidade ambiental do capitalismo é a contradição do sistema” (p. 142, ênfase do autor) –  ou que em seus anos tardios ele chegou a ver as rupturas metabólicas como “o mais sério problema do capitalismo”, ou que o conflito com limites naturais é, para Marx, “a principal contradição do modo capitalista de produção”.

Eu me pergunto onde Saito encontrou, nos escritos, livros publicados, manuscritos ou cadernos de Marx, quaisquer dessas declarações… Elas não podem ser encontradas, e por uma boa razão: a insustentabilidade do sistema capitalista não era uma questão decisiva no século XIX, como se tornou hoje; ou melhor, desde 1945, quando o planeta entrou em uma nova era geológica, o Antropoceno. Aliás, eu acredito que a ruptura metabólica, ou o conflito com limites naturais, não é um “problema do capitalismo” ou uma “contradição do sistema”; é muito mais que isso! É uma contradição entre o sistema e “as eternas condições naturais” (Marx), e, por isso mesmo, com as condições naturais da vida humana no planeta. De fato, como Paul Burkett (citado por Saito) argumenta, o capital pode continuar sua acumulação sob quaisquer condições naturais, ainda que degradadas, desde que não haja uma completa extinção da vida humana: a civilização pode desaparecer antes da acumulação de capital tornar-se impossível…

Saito conclui seu livro com uma avaliação sóbria que me parece sumarizar de forma muito apta do problema: O Capital (o livro) continua um projeto inacabado. Marx não solucionou todas as questões, nem previu o mundo de hoje. Contudo, sua crítica do capitalismo fornece uma base teórica extremamente útil para a compreensão da crise ecológica atual. Portanto, eu acrescentaria, o ecossocialismo pode se inspirar nas reflexões de Marx, mas deve, com as mudanças da era Antropocena no século XXI, desenvolver por completo um novo, eco-marxista, modo de enfrentamento.


*Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique


Tradução por Marina Bueno

Kohei Saito. Karl Marx’s Ecosocialism. Capitalism, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy. New York: Monthly Review Press, 2017.


FONTE: A Terra é Redonda

terça-feira, 3 de novembro de 2020

O caminho chinês

 Por Wladimir Pomar 


A experiência, até agora exitosa na China e no Vietnã, demonstra que o socialismo de mercado é um poderoso vetor de crescimento econômico e social, cujos paradigmas podem ser utilizados por qualquer país para seu desenvolvimento

A Chin tem sido uma das nações mais eficientes para debelar
 o surto epidêmico. É a nação que mais rapidamente
está retomando sua economia. Foto: Alv Song/Reuters

                                     

A China se torna, cada vez mais, ponto de referência mundial, embora muitas vezes seus conhecidos pontos positivos na luta contra a covid-19 sejam imediatamente contraditados por supostos aspectos negativos. Até mesmo intelectuais que se autodenominam “marxistas” a acusam de ser uma sociedade fechada, sob uma ditadura possuidora de uma máquina de propaganda estatal poderosa, fornecendo informações incompletas ou maquiadas à Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo causado a morte do oftalmologista de Wuhan que alertou a existência de um problema virótico novo... e por aí afora.

Na realidade, a China tem sido uma das nações mais eficientes para enfrentar e debelar o surto epidêmico. Seu índice de mortalidade é baixíssimo (2 por 1 milhão). E ela é a nação que mais rapidamente está recolocando sua economia em funcionamento, inclusive na produção de instrumentos indispensáveis para que os Estados Unidos e vários outros países da Europa e do resto mundo se contraponham à pandemia.

Tudo isso, se aumenta os ataques a ela, também eleva o interesse por sua história, em especial por sua história moderna. Mesmo porque não são poucas as pessoas que ignoram o fato de que a China realizou, nos últimos quarenta anos, um desenvolvimento industrial, técnico e científico que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos levaram cerca de duzentos anos para completar. Ou que a China, no passado feudal, com a atividade comercial de sua antiga Rota da Seda e de sua frota marítima do século 14, foi um dos impérios que contribuíram, seja para a expansão da navegação oceânica, com a invenção da bússola, do leme e da vela triangular (que permitiu navegar contra o sentido do vento), seja para a acumulação primitiva do capital na própria Europa.

É verdade que esse caminho chinês de comércio internacional naufragou, ao ser incendiada sua frota, poucos séculos depois, por imposição dos senhores de guerra feudais, manchus e hans, incomodados com a emergência de uma classe comercial burguesa e, também, pelas guerras de domínio impostas à China pelas emergentes nações capitalistas coloniais. Estas a subordinaram, impedindo-a de ingressar no desenvolvimento capitalista como nação independente.

Somente em 1949, com a vitória da revolução democrática e popular comandada pelo PC, a China se livrou da dominação imperialista, realizou a reforma agrária e tentou ingressar no desenvolvimento industrial através de uma aliança de operários, camponeses e intelectuais com os burgueses nacionais. Esse novo caminho, porém, naufragou em virtude das ações especulativas da própria burguesia chinesa, levando o país a ingressar num caminho de estatização e planejamento idêntico ao do socialismo da União Soviética.

Tal caminho, porém, tinha o defeito de dar pouca atenção à produção de bens de consumo corrente e não estimular a competição entre as empresas estatais no sentido de evitar a burocratização, elevar a produtividade, ampliar a produção e reduzir os preços. Se já eram graves na União Soviética, tais defeitos se tornaram ainda mais complexos ao se confrontarem com o tamanho da população chinesa. Ou seja, a produção insuficiente de bens de consumo corrente tendia a intensificar as contradições internas na China com muito mais rapidez que na União Soviética.

De outro lado, na suposição de que tal problema poderia ser resolvido através da luta ideológica, o Partido Comunista da China (PCC) ainda fez um esforço extra para resolvê-lo através da Grande Revolução Cultural. Mas fracassou, e foi obrigado a voltar atrás e descobrir que Marx tinha certa razão ao afirmar que o socialismo de transição da sociedade capitalista para a sociedade comunista só seria possível quando o próprio capitalismo tivesse esgotado suas possibilidades históricas.

Isto é, houvesse centralizado de tal modo a propriedade capitalista e elevado sua produtividade a tal ponto que não mais precisasse de muitos trabalhadores assalariados para o processo produtivo. Isso criaria a contradição insustentável, e humanitária, entre a enorme capacidade produtiva do capitalismo e a presença de uma imensa massa de trabalhadores sem emprego e incapaz de consumir a produção de quem não lhe permitia trabalho nem salário.

O PC, da China, então sob a direção de Deng Xiaoping, deu-se conta dessa contradição. E também do fato histórico de que muitas sociedades humanas haviam enfrentado, em sua transição para uma sociedade de tipo superior, um processo intermediário em que as características da nova e da antiga sociedade conviveram, em cooperação e em conflito, até o novo tipo de sociedade se impor através do desenvolvimento de suas características básicas.

As histórias da transição do escravismo para o feudalismo, no Império Romano em decadência, assim como da sociedade feudal da Inglaterra, França e outros países, para a sociedade capitalista, são cheias de exemplos da convivência complexa de diferentes forças produtivas e diferentes relações de produção na transição de um tipo de sociedade para outro.

Pode-se dizer que foi um fenômeno histórico idêntico que fez com que a China, a partir do final dos anos 1970, fosse levada a ingressar no chamado socialismo de mercado, combinando e confrontando a propriedade estatal e a propriedade privada, orientação estatal e disputa de mercado, trabalho assalariado e trabalho cooperativo. Para facilitar, e também para complicar, isso ocorreu paralelamente às reformas estruturais no capitalismo desenvolvido, caracterizadas em grande medida por investimentos externos em países com mão-de-obra mais barata, investimentos que incluíam a transferência de plantas industriais, inteiras ou segmentadas, para tais países. Tal processo deu surgimento ao que foi chamado de “globalização” capitalista.

Para aproveitar-se dessa reestruturação do capitalismo desenvolvido e intensificar a recepção desse tipo de investimentos externos, após realizar uma reforma agrícola que privilegiou as unidades familiares camponesas, a China criou inúmeras Zonas Econômicas Especiais, onde os investidores estrangeiros podiam investir desde que se associassem a empresas chinesas, inclusive estatais, e transferissem a elas novas ou altas tecnologias.

De qualquer modo, naquela ocasião e, também, agora, essas medidas levaram e levam muita gente a crer que a China estava privatizando tudo e retornando ao capitalismo, ainda por cima subordinada ao imperialismo capitalista. Sequer se deram e se dão conta, no entanto, que a China não só manteve suas empresas estatais, embora evitando seu monopólio setorial, como as incentivou a concorrerem entre si e com as empresas privadas, de modo a elevar sua capacidade tecnológica para disputarem o mercado e não se burocratizarem.

Ao mesmo tempo, a China modificou seu antigo sistema de trabalho 3 por 1 (três trabalhadores por posto de trabalho, como forma de reduzir o desemprego, mas de baixa produtividade) e incentivou e financiou os trabalhadores dispostos a elaborar e a levar adiante projetos industriais privados, financiados por bancos estatais. Com isso reconstituiu a burguesia nacional para intensificar a disputa no mercado com as empresas estrangeiras e as estatais.

Ou seja, da mesma forma que a transição do Império Romano para o feudalismo incluiu a convivência, por certo tempo histórico, de relações de produção escravistas e feudais, seja em cooperação, seja em conflito, o socialismo de mercado chinês (assim como o vietnamita) tende a ser uma das soluções para o problema da transição de países e povos economicamente atrasados que se adiantaram, antes que seu capitalismo tivesse se desenvolvido plenamente, na transição para uma sociedade mais avançada e igualitária.

Os efeitos do socialismo de mercado, desde seu início em 1978 até hoje, resultaram na transformação da China rural e agrícola numa China predominantemente urbana e industrial. As 31 províncias chinesas estão colocadas entre as 32 economias mundiais de maior crescimento. Os dois maiores bancos chineses, ambos estatais, estão entre os dez maiores mundiais. Entre as quinhentas maiores empresas globais estão 61 chinesas. A China também possui seis dos dez maiores portos mundiais, e a segunda maior rede ferroviária do mundo.

Do ponto de vista social, é reconhecido que a China retirou da pobreza mais de 800 milhões de seus habitantes (quase quatro Brasis), sua taxa de pobreza caindo de 65% para 10%. Seu seguro-desemprego e sua renda mínima, que associam o pagamento à obrigação de ingressar em cursos técnicos ou realizar trabalhos comunitários, apontam para caminhos concretos de superação da pobreza e da ignorância. Portanto, ao mesmo tempo que se transforma num país altamente industrializado, a China se encaminha também para criar as condições que a tornem também um país socialmente livre da pobreza e crescentemente igualitário.

Comparada com os países capitalistas mais desenvolvidos, a China só se encontra atrás, em termos estritamente produtivos, dos Estados Unidos, devendo ultrapassá-lo, mesmo nesse quesito, nos próximos anos, ao menos mantidas as tendências atuais de baixo crescimento e alto desemprego da potência norte-americana e de crescimento positivo chinês, embora bem abaixo dos seguidos 10% que manteve durante vários anos.

Mas também é importante perceber que há uma diferença básica entre os dois países. Reside no fato de que a potência industrial norte-americana já atingiu o grau de produtividade industrial que lhe permite substituir, em grande escala e de forma crescente, o trabalho vivo pelo trabalho morto. Ou, dizendo de outro modo, substituir a força de trabalho humana pela força de trabalho de máquinas e aparelhos. Isso, por um lado, elevou a produtividade e a capacidade produtiva. Mas, mantidas as relações de produção capitalistas, a substituição do trabalho vivo por máquinas impede um número crescente de proprietários da mercadoria força de trabalho de vender sua única fonte de sobrevivência, reduzindo, portanto, sua capacidade de sobrevivência.

Ao mesmo tempo, a substituição da força viva de trabalho pela força morta também incide negativamente sobre a taxa média de lucro do capital, empurrando seus donos a apelarem para o mercado financeiro especulativo. E a experiência internacional capitalista, pelo menos desde 1857, tem sido a de que esse mercado de dinheiro, centralizador de mais dinheiro, é gerador de crises cada vez mais destrutivas.

Na atualidade, tendo como fonte principal o sistema financeiro da maior potência capitalista, essas crises tendem cada vez mais, conforme apontava a crítica da economia política do final do século 19, para o fato de que o capitalismo da potência estadunidense está se aproximando de uma situação limite. Ou bem se verá diante da necessidade de substituir sua estrutura econômico-social de propriedade privada por algum tipo de socialismo ou será empurrado para um processo de destruição brutal de forças produtivas já acumuladas, a exemplo de uma guerra em grande escala.

A China, por seu lado, cresce há quarenta anos seguidos, mas ainda não alcançou o estágio em que o mercado pode ser substituído pela administração coletiva das coisas. Os próprios chineses fazem planos científicos e tecnológicos para se aproximar, de modo muito mais favorável que os Estados Unidos, por volta de 2050, das condições objetivas que podem fornecer as possibilidades de livrá-los do mercado.

Dizendo de outro modo, o que ocorre na China e também no Vietnã pouco tem a ver com supostos tipos de sociedades asiáticas, anteriores ao capitalismo, denominadas erroneamente de “modos de produção asiáticos”. Sociedades escravistas e feudais com fortes componentes estatizantes e mercantis ocorreram tanto na Ásia quanto na Europa (o Império Romano, por exemplo, foi o criador dos primeiros proletários históricos conhecidos, mas nem por isso ele gerou qualquer modo de produção asiático ou capitalista). Na China, por outro lado, em várias ocasiões, os senhores feudais impuseram aos mercadores fortes restrições a suas atividades, a exemplo do que fizeram com a armada de Zheng He, no século 14, totalmente incendiada e selando o fim do comércio marítimo da China com a África Oriental e a Arábia.

O que muito provavelmente não estava na previsão dos principais críticos do capitalismo, como Marx e Engels, é que sociedades atrasadas do ponto de vista capitalista se tornassem os primeiros palcos das tentativas de superação prática do capitalismo. Algumas delas geraram práticas totalmente estatizantes, que fracassaram, enquanto as experiências de socialismo de mercado, até agora em processo de desenvolvimento, ainda não têm uma perspectiva clara de como ocorrerá a superação do mercado e da burguesia proprietária.

De qualquer modo, a concorrência e as contradições entre a propriedade estatal e a propriedade privada fazem parte do cotidiano das experiências e contradições que permeiam o socialismo de mercado. Os proprietários privados, em geral, consideram que a propriedade estatal é burocrática e um estorvo ao desenvolvimento pleno da economia e da sociedade. Com base nessa suposição, fazem uso de mecanismos como a corrupção, para desmoralizar o sistema estatal e abrir caminho para que o mercado se liberte da orientação estatal e se torne o único agente orientador da sociedade chinesa. Nessa luta de classes ainda relativamente surda, não é por acaso que os chineses consideram que a corrupção é o principal perigo estratégico do socialismo de mercado, precisando ser duramente combatido.

Mas é difícil dizer se o socialismo de mercado será a formação econômica e social de transição de todos os países capitalistas pouco desenvolvidos, para realizar o crescimento econômico, técnico e científico, tendo a indústria como principal instrumento, que os levará a uma sociedade superior ao capitalismo. Apesar disso, a experiência até agora exitosa na China e no Vietnã demonstra que o socialismo de mercado é um poderoso vetor de crescimento econômico e social, cujos paradigmas podem ser utilizados por qualquer país para seu desenvolvimento. Vale a pena estudá-los.


Wladimir Pomar é escritor, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate


FONTE: Teoria e Debate